Genero E Violencia Domestica

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Universidade Eduardo Mondlane

Faculdade de Letras e Ciências Sociais Departamento de Sociologia Mestrado em Sociologia Rural e Gestão de Desenvolvimento

Modulo 5: FUNDAMENTOS DE SOCIOLOGIA

A Estratificação do Género e a Violência Doméstica: Um olhar sobre o contexto moçambicano

Domingos Elias Bihale

En sa i oel abora dopara e f ei t osdeAva liação do Módulo de Fundamentos de Sociologia

Maputo, Abril de 2009

Resumo

O presente ensaio estuda a relação existente entre a estratificação do género e a violência doméstica e faz uma reflexão sobre essa relação na sociedade moçambicana. Discute igualmente os conceitos de género e de violência doméstica e analisa como as representações sociais sobre o género e as relações entre os géneros na instituição família contribuem para ocorrência da violência doméstica, com vista a compreender as motivações da violência doméstica. A estratificação de género existe quando os homens e as mulheres em uma sociedade recebem efectivamente parcelas desiguais de dinheiro, poder, autoridade, prestígio e outros recursos e é sustentada pelos ciclos de socialização, que reforçam mutuamente pela identidade de género. A análise é feita com base na perspectiva sociológica marxista. Na perspectiva marxista, a violência doméstica é um conflito social resultante de oposição de interesses entre os homens e as mulheres e expressa dinâmicas de poder/afecto, nas quais estão presentes relações de dominação – subordinação. A luta pela igualdade de género na sociedade moçambicana encontra muitas vicissitudes na tradição, em nome da qual se mantém, ainda, rígidos padrões de autoridade e dominação masculina. Palavras-chave: Desigualdade Social. Estratificação do género. Violência Doméstica.

Abstract This essay studies the relationship between the gender stratification and domestic violence and reflects on this relationship in Mozambican society. Also discusses the concepts of gender and domestic violence and examines how the social representations of gender and relations between the sexes in the family institution contribute to the occurrence of domestic violence, to understand the motivations of domestic violence. The gender stratification exists when men and women in an unequal society actually receive parcels of money, power, authority, prestige and other resources and is supported by cycles of socialization, that reinforce the identity of gender. The analysis is based on the Marxist sociological perspective. In the Marxist perspective, domestic violence is a social conflict due to opposition of interests between men and women and expresses the dynamics of power / affection, which are present relations of domination subordination. The struggle for gender equality in the Mozambican society is in many vicissitudes tradition, in the name of which remains, still, rigid patterns of male domination and authority. Keywords: Social inequality. Gender Stratification. Domestic Violence.

Introdução A luta pela igualdade do género está a assumir uma evolução incontornável na sociedade moçambicana, constituindo, portanto, uma política generalizada no seio das instituições tais como a família, o governo, a educação, a saúde, a ciência, entre outras. Entretanto, a luta pela igualdade do género não é encarada da mesma forma. Enquanto no governo, na educação, na saúde e na ciência, a luta pela igualdade do género tem merecido um apoio expressivo, na família causa conflitos que por vezes atingem um carácter violento. Assim, à medida que o género feminino vai conquistando o seu espaço na sociedade, reporta-se muitos casos de violência doméstica, o que faz levantar a seguinte questão: de que forma a luta pela igualdade do género contribui para o agravamento da violência doméstica? A violência doméstica não é, infelizmente, um problema dos nossos dias, assim como não é um problema especialmente nacional. Muito pelo contrário, a sua prática atravessa os tempos, e o fenómeno tem características muito semelhantes em países cultural e geograficamente distintos. Em Moçambique cresce o debate em volta deste fenómeno em consequência do aumento dos casos. No contexto multicultural como é o de Moçambique, as motivações da violência doméstica podem ser diversas. Não obstante a diversidade, a luta pela igualdade de género afigura-se como uma das principais motivações. Portanto, é importante estudar as relações do género para compreender as motivações da violência doméstica na sociedade moçambicana. Com o presente trabalho se pretende, em geral, estudar a relação existente entre a estratificação do género e a violência doméstica na sociedade moçambicana e, especificamente, visa discutir o conceito de género e de violência doméstica; analisar como as representações sociais sobre o género e as relações entre os géneros na instituição família contribuem para ocorrência da violência doméstica e compreender as motivações da violência doméstica. O trabalho se desenvolve com base em pressupostos de que os esforços para reduzir o fosso de diferenciação entre homens e mulheres em termos de características culturalmente definidas e status na sociedade moçambicana contribuem para ocorrência da violência doméstica e que a violência doméstica ocorre quando as mulheres reivindicam os seus direitos sobre os papéis, a economia, o poder, autoridade, o prestígio, e outros no seio familiar, facto percebido pelos homens como uma ameaça contra à sua posição dominante. Em primeiro lugar faz-se uma discussão teórica da estratificação do género e da violência doméstica. Em seguida discute-se os conceitos de estratificação do género e de violência. Depois estabelece-se a relação entre a estratificação do género e a violência doméstica. A seguir, reflecte-se sobre o género e a violência doméstica na sociedade moçambicana, para depois tecer as considerações finais.

1. A Estratificação de Género e a Violência Doméstica – discussão teórica As sociedades humanas, desde as simples às mais complexas têm alguma forma de desigualdades sociais. O poder e o prestígio são, em particular, desigualmente distribuídos entre indivíduos e grupos e em muitas sociedades existem também diferenças notáveis na distribuição de riqueza1 . Quando a desigualdade social é cotada em termos de presença de grupos que são classificados uns sobre outros em função de alguns atributos como o poder, o prestígio, a riqueza, a raça, entre outros, é denominada estratificação social. De acordo com Turner (2000:133), “a desigualdade em uma sociedade gira em torno da distribuição diferenciada de recursos de valor às variadas categorias de indivíduos – sendo as de classe, étnica e género as três mais importantes”. A estratificação social envolve a hierarquia de grupos sociais. Membros de um determinado estrato têm uma identidade comum, como interesses e mesmo estilo de vida, gozam ou sofrem a distribuição desigual de recompensas na sociedade como membros de diferentes grupos sociais. Existe a tendência de cada estrato desenvolver a sua própria subcultura, definida em termos de certas normas, atitudes e valores que os distinguem como um grupo social. Muitos sistemas de estratificação social são acompanhados de crenças que defende que as desigualdades sociais são biologicamente determinadas. A questão da relação entre as desigualdades biologicamente determinadas e socialmente criadas provou-se ser muito difícil de responder. As desigualdades biológicas consistem em diferença de idade, saúde, força física e faculdades mentais. As desigualdades socialmente criadas consistem diferentes privilégios que alguns Homens gozam para prejudicar os outros, tais como ser mais rico, mais honrado, mais poderoso, ou mesmo estar numa posição para impor obediência (Halambos & Holborn, 1991: 26). Quando a renda, o poder, o prestígio e outros recursos de valor são dados aos membros de uma sociedade desigualmente e quando, com base nessa desigualdade, variados grupos se tornam cultural, comportamental e organizacionalmente distintos, fala-se da estratificação de classes. O grau de estratificação está relacionado ao nível de desigualdade, à distinção entre as classes em nível de mobilidade entre as classes e à durabilidade das classes (Turner, 2000:112) Muitos sociólogos acreditam que as desigualdades biológicas são extremamente pequenas comparativamente às sociais. Porém, argumenta-se que as desigualdades biológicas, não obstante serem pequenas, constituem a fundação sobre a qual as desigualdades sociais são construídas. Os factores biológicos assumem importância em muitos sistemas de estratificação social por causa dos significados a que lhes são atribuídos por diferentes culturas. Segundo Halambos & Holborn (1991: 28), as crenças que defendem que os sistemas de estratificação social são baseados em desigualdades

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Poder refere-se à capacidade que certos indivíduos ou grupos têm de impor a sua vontade sobre outros, com ou sem seu consentimento. Prestígio relaciona-se com o grau de e stima ou honra associados com posições sociais, qualidades individuais ou estilo de vida. Riqueza diz respeito à posse de bens materiais definidos como de valor em cada sociedade. O termo desigualdade social refe re-se simplesmente à desigualdades socialmente criadas.

biológicas podem ser vistas na racionalização de tais sistemas. Tais crenças servem para explicar o sistema aos seus membros: fazem a desigualdade social parecer como racional e razoável e, justificam e legitimam o sistema com apelos à natureza. As perspectivas marxistas vêm a estratificação social como uma estrutura desintegradora e como um mecanismo através do qual alguns exploram os outros. Os marxistas argumentam que na sociedade existem dois grupos sociais: classe dominante e classe dominada. O poder da classe dominante emana da propriedade e controlo dos meios de produção e por meio deste poder a classe dominante explora e oprime a classe dominada. Como resultado, existe um conflito de interesses básico entre as duas classes. Nesta perspectiva, os sistemas de estratificação derivam da relação entre os grupos sociais em função dos meios de produção. Por isso, do ponto de vista marxista, classe é um grupo social cujos membros partilham a mesma relação perante os meios de produção (Halambos & Holborn, 1991: 37; Rocher, 1989:72-90). Na perspectiva marxista, a relação entre as grandes classes sociais da sociedade capitalista (a burguesia e o proletariado) é de dependência mútua e conflito. Os trabalhadores vendem a sua força de trabalho ao proprietário dos meios de produção e, por sua vez, recebem salários para garantirem a sua sobrevivência. Esta relação é, mantida com recurso à ideologias de classe que são conceitos criados pela classe dominante para justiçar e legitimar a sua dominação e projectar uma imagem distorcida da realidade. Os membros de ambas classes tendem a aceitarem o status quo como normal e natural e ficam desatentas à verdadeira natureza da exploração e opressão. Assim, os conflitos de interesses entre as classes encobrem-se e produz uma relativa estabilidade, mas as contradições e os conflitos básicos das sociedades de classes permanecem irresolutas. Portanto, a revolução constitui a única forma de imprimir mudança de um estrato para outro na sociedade de classes (Halambos & Holborn, 1991: 40). Os neomarxistas procuram outras fontes estruturais de conflitos sociais, isto é, fonte permanente que provoca e alimenta os conflitos à estrutura da organização social, ao seu modo de funcionamento. Para os neomarxistas a distribuição desigual da autoridade 1 pelas pessoas ou grupos é a principal fonte estrutural de conflitos sociais. Em toda a colectividade humana há sempre pessoas ou grupos submetidos a uma autoridade. Como resultado, entre as pessoas ou grupos existem sempre pessoas ou grupos que exercem uma autoridade maior ou menor e pessoas ou grupos submetidos a essa autoridade – relações de dominação – sujeição. Os conflitos sociais partem da dicotomia da autoridade: dominação versus sujeição totais (Rocher, 1989: 78). Da dicotomia de autoridade surge um conflito de interesses entre os que exercem a autoridade e os que obedecem. Os que têm cargo de autoridade têm interesses em comum que não podem ser partilhados pelos que estão sujeitos a essa autoridade: conflito de interesses ou oposição de

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A autoridade é a probabilidade de que uma ordem com um conteúdo específico implique a obe diência de um dado grupo de pessoas. A autoridade de difere do poder que é a probabilidade de que um actor implicado numa relação social consiga aquilo que apesar da resistência encontrada, seja qual for a base em e ssa probabilidade se funde. Enquanto o poder depende de características individua is e status, a a utoridade depende do papel. Assim, as fontes e struturais de conflitos devem ser procuradas na autoridade (Rocher, 1989:83).

interesses. Assim, os que exercem a autoridade têm interesse em manter o status e os que se sujeitam têm o interesse em mudança do status quo. Surgem assim grupos que consistem em um conjunto de pessoas que possui uma certa organização, um programa de acção explícito, fins bastante precisos (sindicatos, partidos, movimento social, etc.). A dicotomia de autoridade implica logicamente a dualidade de oponentes. A permanência na vida social explica-se, portanto, pela origem estrutural do conflito. O conflito e a divisão de autoridade são necessidades inerentes à estrutura e ao funcionamento do sistema social, mas provocam simultaneamente conflitos que afectam e modificam o sistema. O conflito é o principal factor estrutural da historicidade das sociedades, pois provoca a mudança, a evolução ou revolução na organização social (Rocher, 1989: 78-81).

1. Estratificação do Género Sempre que se fala de desigualdade, pensa-se sempre de classes sociais, ligando-as à raça, incluindo o género – uma das bases fundamentais de desigualdade da Sociedade Contemporânea (Gray, in McNeill& Townley, 1986:337). Segundo Turner, (2000:128), em todas sociedades, os homens categorizam-se uns aos outros como masculino e feminino; e com base nessa distinção as crenças culturais e normas indicam quais os status os homens e as mulheres deveriam ocupar e como eles deveriam desempenhar os papeis associados a esses status. Mas a evolução da história indica que as distinções entre os sexos são mais sócio -culturais que biológicas Para Gray, existem dois termos de fácil distinção e percepção que são o sexo e o género. O primeiro refere-se a diferença física entre homens e mulheres e é biologicamente determinada. A segunda diz respeito à diferença entre a masculinidade e a feminilidade e é culturalmente determinada. Tal como Turner, Gray diz que não existe nenhuma evidência conclusiva sobre a importância dos factores biológicos e culturais na produção das identidades do género. No entanto, a explicação das divisões sexuais deve basear-se nos papéis tanto de homens como de mulheres. Embora não haja nenhuma evidência conclusiva sobre a importância dos factores biológicos e culturais na produção das identidades do género, muitos acreditam que as diferenças entre os sexos podem ser explicados biologicamente – tal é a crença dos naturalistas. Os naturalistas, acreditam que as diferenças biológicas fundamentais influenciam nos papéis da sociedade. Todavia, o processo da 1 socialização não pode ser ignorado. As pessoas são socializadas para o papel do género desde o nascimento de acordo com as normas culturais da sociedade onde se inserem. A escolha de nome, do vestuário, de brinquedos, entre outros aspectos, constitui um exemplo desse processo (Gray, in McNeill& Townley, 1986:338). A socialização tende a efectuar uma soma progressiva das relações de dominação de género. Este trabalho de inculcação, ao mesmo tempo sexualmente diferenciado e sexualmente diferenciador, impõe a “masculinidade” aos corpos dos machos humanos e a “feminilidade” aos corpos das fêmeas humanas. Assim, a soma do arbítrio cultural também se torna uma construção permanente do inconsciente (Lamas, 1999:21).

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Aque las interacções que induzem os indivíduos nos componentes básicos da personalida de que sã o necessários para sua participação na sociedade (Turner, 2000:229).

Para os marxistas, a família nuclear é uma das principais unidades onde se reproduz o sistema de classes. Na família, a criança aprende os valores de hierarquia, diferenças e obediência, entre outros aspectos considerados importantes para a manutenção do capitalismo. A dinâmica e a organização das famílias baseiam-se na distribuição dos afectos, criando, no espaço doméstico, um complexo dinamismo de competições. Essas disputas são orientadas pelas diferenças de poder entre os sexos e, no contexto afectivo, motivadas pela conquista de espaços que garantam o amor, o reconhecimento e a protecção, necessidades básicas da condição humana. Trata-se, dessa forma, de disputas que estimulam sentimentos ambíguos de amor/ódio, aliança/competição, protecção/domínio entre seus membros (Ministério da Saúde - Secretaria de Políticas de Saúde, 2002:13; Da Motta, 1998:69). Desta feita, o género é aprendido na família, resultando na distinção clara de papéis em idade adulta. De acordo com Lamas (1999:16), o género é “o resultado de um processo mediante o qual recebemos significados culturais mas também os inovamos”. Os marxistas argumentam que o capitalismo atribui à mulher a responsabilidade de trabalho doméstico onde ela é vista como um carácter central na manutenção de um ambiente seguro e amável, porque satisfaz as necessidades físicas, emocionais e sexuais do seu parceiro, para que este possa trabalhar com eficiência. Enquanto isso, ao homem atribui a responsabilidade de procurar recursos financeiros para sua família (Gray, in McNeill& Townley, 1986:340). Existem algumas assumpções sobre a estereotipagem das diferenças sexuais, nomeadamente: − As responsabilidades da maternidade (gravidez, amamentação, atenção diárias para com as crianças) implicam necessariamente que a mulher deixe de trabalhar; − Tanto a maternidade quanto o trabalho doméstico exigem claramente baixos níveis de força e energia; − As mulheres, ao longo da História e em todas culturas, sempre se confinaram ao papel doméstico, contribuindo pouco para o bem-estar económico das suas sociedades; − As mulheres são menos fortes comparativamente aos homens e isto exclui-as de certas actividades. Com base nessas assumpções, as mulheres foram sendo consideradas pelos homens como sendo inconsistentes, emocionalmente instáveis, irresponsáveis, sem lógica e menos inteligentes. As qualidades de prestígio tais como razão, objectividade, independência, autoridade e liderança foram sempre atribuídas aos homens. Estas crenças colocaram as mulheres como uma classe dominada e socialmente excluída. Porém, essas assumpções embora continuem a vigorar em algumas sociedades contemporâneas, carecem de fundamentos práticos, pois em muitas sociedades, as mulheres sempre trabalharam e trabalham lado a lado com os homens, contribuindo assim para o bem-estar (Gray, in McNeill& Townley, 1986:350-361). Compreender correctamente o que são género e diferença sexual continua sendo fundamental para desenvolver uma concepção realista dos seres humanos e indispensável para o avanço de uma política democrática radical. O feminismo desenvolveu o conceito de género como o conjunto de ideias em uma cultura sobre o que é “próprio” dos homens e “próprio” das mulheres e, com isto, se propôs a revisar como a determinação de género assegura a dicotomia na qual se fundamenta a

tradição intelectual ocidental. Esta tradição é, ademais, androcêntrica, o que enviesa a produção de conhecimento e gera certos postulados que legitimam mecanismos de dominação e exclusão (Lamas, 1999:13). De acordo com De Almeida, et al (1994), o sexo distingue os homens e mulheres, distinção geneticamente determinada e universal. Por diferenças do género entendem-se as que se referem às dimensões psicológicas, sociais e culturais, que distinguem, de forma variada, o masculino e o feminino. As características consideradas “femininas” ou “masculinas” são incorporadas no contexto dos processos de socialização, que decorre a partir dos primeiros anos de criança de modo ainda inconsciente, até às diferentes interacções que ocorrem ao longo da vida. Esse processo contribui para explicar a prevalência da discriminação quanto ao género. Assim, o género é a diferenciação entre homens e mulheres em termos de características culturalmente definidas e status na sociedade. A estratificação de género existe quando os homens e as mulheres em uma sociedade recebem efectivamente parcelas desiguais de dinheiro, poder, prestígio e outros recursos. A estratificação de género é sustentada pelos ciclos de socialização, que reforçam mutuamente pela identidade de género e por crenças relacionadas ao género, que, por sua vez, se tornam a base para discriminação e crenças preconceituosas, frutos da ameaça ressentida pelos homens (Turner, 2000:133).

Violência doméstica1 A Organização Mundial da Saúde define violência como O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (Krug E.G. et al, 2002:5). Violência da família e de parceiro(a) íntimo(a) é aquela violência que ocorre em grande parte entre os membros da família e parceiros íntimos, normalmente, mas não exclusivamente, dentro de casa (ibid: 6). De acordo com (Nações Unidas, 2003: 13), o termo “violência doméstica” é usado para descrever as acções e omissões que ocorrem em variadas relações. Embora, em sentido restrito, designe os incidentes de ataque físico, pode abranger todas as violações de carácter físico e sexual, tais como empurrões, beliscões, cuspidelas, pontapés, espancamento, murros, estrangulamento, queimaduras, agressão com objectos, esfaqueamentos, uso de água a ferver, ácido e fogo. Os resultados de tal violência física podem ir de pequenos ferimentos até à própria morte. O que começa por ser, aparentemente, um ataque de pouca gravidade pode aumentar de frequência e de intensidade. Algumas pessoas utilizam o termo “violência doméstica” para abranger a violência psicológica e mental, que pode consistir em agressões verbais repetidas, perseguição, clausura e privação de

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Na literatura usa-se mais os termos violência intrafamiliar, violência contra a mulher ou violência de género. Por isso, algumas vezes, e não poucas, esses termos vão aparecer neste trabalho para manter a originalidade das fontes consultadas.

recursos físicos, financeiros e pessoais. Outras usam o termo para descrever apenas a violência contra a mulher ocorrida em família, sendo, por vezes, utilizado para designar uma violação em que a vítima e o agressor têm, ou já tiveram antes, um relacionamento pessoal. Neste sentido mais lato, a violência doméstica engloba o abuso de crianças (físico, sexual ou psicológico), a violência entre meios-irmãos, o abuso ou negligência de idosos por parte dos respectivos filhos. Para Natividade (1998), o conceito de violência tem diversas denominações que muitas vezes podem dificultar a leitura acerca do fenómeno, pelo que, dessa forma, se apresenta as seguintes especificações: (1) violência intrafamiliar: determinadas pelas relações de proximidade e/ou parentesco entre as vitimas e o compartilhamento de um mesmo ambiente entre os mesmos; (2) violência doméstica: remete a um ambiente físico que envolve não apenas a família, mas ‘todas as pessoas que convivem no mesmo espaço doméstico, vinculada ou não por laços parentesco’. (3) violência de género: diz da violência exercida a partir de relações de poder e soberania onde o agressor é detentor de poder dentro de uma determinada relação hierárquica e (4) violência de género no âmbito doméstico: conceito que caracteriza tanto a relação desigual entre os parceiros e a dimensão simbólica que essa violência assume. Embora haja muitas denominações para designar a violência perpetrada por homens contra as mulheres, incluindo os termos violência do género, violência intrafamiliar e violência sexual, neste trabalho o conceito “violência doméstica” designa qualquer acto de violência exercida contra a mulher a partir de relações de poder, autoridade e soberania onde o agressor (normalmente homem) é detentor de poder dentro de uma determinada relação hierárquica e que resulte, ou possa resultar, em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, assim como a ameaça de tais actos ou coerção a privação da liberdade seja na vida publica ou no âmbito doméstico. (Pinto, Meneghel, & Marques, 2007:238).

1. Relação entre a estratificação de género e a violência doméstica A violência no quadro da estratificação de género expressa o conflito de interesses entre duas partes que participam da relação de convivência. O género enquanto categoria constituinte das relações sociais entre homens e mulheres tem sido utilizado para explicar a construção e organização social da diferença entre os sexos. É um sistema simbólico de significados, que configura e reflecte posições hierárquicas e antagónicas entre homens e mulheres. Assim, a violência de género ou doméstica é um fenómeno complexo, com raízes profundas nas relações de poder baseadas no género e na sexualidade. Estudos indicam que as relações hierárquicas de género perpetuadas através da socialização e as desigualdades socioeconómicas são determinantes da violência contra a mulher. A maioria das situações de violência masculina é perpetrada pelos parceiros íntimos das mulheres, na maioria das vezes, de maneira crónica. A relação entre os géneros é hierarquizada e entendida como um princípio que classifica as pessoas e serve como instrumento ideológico de dominação. Para entender a violência de género a partir do ponto de vista dos homens, busca-se a inspiração nas ideias que embasam a construção social da masculinidade. A sociedade patriarcal provê experiências

diferentes para meninos e meninas; da menina é esperado comportamento meigo, gentil, carinhoso, passivo. São consideradas sensíveis, ou fracas, como se sempre estivessem necessitando de protecção. Dos meninos é esperado que sejam rudes, autoritários, “durões”, sujos, que tenham força e não demonstrem fraqueza. Nas sociedades patriarcais o prestígio das mulheres provém dos homens. Esses são os detentores do poder, tomam as decisões e são considerados responsáveis pela protecção da família. Às mulheres cabe facilitar a carreira profissional do marido e tornar a vida confortável, em troca, obtém sustento e protecção. O processo de fabricação de “machos e fêmeas” é uma dinâmica psicossocial que se desenvolve de forma intencional através da escola e da família, da igreja e outros grupos (. (Pinto, et al, 2007:238-240). Embora as causas da violência doméstica possam não ser conhecidas, a necessidade de agir é evidente. Há muitas teorias para explicar a existência e a dimensão da violência doméstica. Algumas delas debruçam-se no indivíduo, na procura de explicações de tipo pessoal, tais como o abuso de bebidas alcoólicas ou de drogas, o modo de agir do indivíduo, doença mental, stress, frustração, subdesenvolvimento e antecedentes de violência na família. A frequência e a aceitabilidade implícita da violência doméstica contra mulheres levou alguns autores a questionarem a validade das explicações baseadas em características individuais. Eles sugerem uma explicação estrutural e social. A violência doméstica tem origem em todo um contexto social. A agressão a mulheres é reflexa das amplas estruturas de desigualdade económica e social na sociedade. Existem estudos que demonstram que, em vez de ser vista como uma aberração, a violência doméstica é geralmente aceite e tolerada. É uma extensão do papel que a sociedade espera dos homens, no âmbito doméstico. Segundo esta análise, o abuso de mulheres pode ser visto como uma demonstração do poder masculino, resultado de relações sociais em que as mulheres são mantidas numa posição inferior à dos homens, responsáveis por eles e carentes da sua protecção. Estas teorias sugerem que a dependência social, económica e política das mulheres cria uma estrutura que permite que o homem pratique actos de violência contra a mulher (Nações Unidas, 2003:15). Na perspectiva marxista, a violência doméstica é um conflito social resultante de oposição de interesses entre os homens e as mulheres. Nesta perspectiva, os conflitos sociais podem ser analisados segundo duas escalas: intensidade e violência. A intensidade de conflitos depende da soma de energias somadas no conflito, das paixões e emoções que desperta, da importância que liga à vitória ou a derrota. Assim, a intensidade de conflitos decresce: − Quando há possibilidade de organização de grupos de interesses. O contrário, a intensidade aumenta; − Quando há dissociações de conflitos; − Quando não há sobreimposição entre grupos de interesse; − Na medida em a distribuição da autoridade não coincide com a distribuição de outras vantagens sócio – económicas: ex. riqueza, prestígio, a cultura; − Quando a estrutura de classes sociais é aberta para permitir certa mobilidade social descendente/crescente (Rocher, 1989:82).

A violência de um conflito depende mais dos meios empregados, das armas a se recorre para exprimir a hostilidade e combater o adversário. A violência dos conflitos decresce: − Quando há possibilidade de organização de grupos de interesses; − Quando a privação total de vantagens socio-económicas dos que não exercem autoridade evolui para a privação relativa; − Quando existe regulamento das relações sociais, isto é, reconhecimento das diferenças e respeito pelas regras comuns nas relações mútuas entre os que exercem a autoridade e os que a ela se sujeitam. A violência de um conflito não implica só por si uma mudança radical da estrutura. A amplitude das mudanças resultantes de um conflito depende muito da intensidade do conflito do que da violência (Rocher, 1989:83). As origens da violência doméstica situam-se na estrutura social e no complexo conjunto de valores, tradições, costumes, hábitos e crenças que estão intimamente ligados à desigualdade de género. A vítima da violência é, quase sempre, a mulher e o agressor é, quase sempre, o homem, servindo as estruturas da sociedade de confirmação desta desigualdade. A violência contra as mulheres é resultado da crença, fomentada em muitas culturas, de que o homem é superior e de que a mulher que com ele vive é um objecto de posse que ele tratará como muito bem quiser. Por fim, considerase que não existe uma explicação única para a violência doméstica e que a ênfase posta na procura das respectivas causas pode desculpar alguma inacção. Sejam quais forem as causas, os agressores devem ser responsáveis pelos actos de violência cometidos e a sociedade deve enfrentar a violência doméstica (Nações Unidas, 2003:17, Krug, et al, 2002: 13). O fenómeno da violência doméstica acontece no mundo inteiro e atinge as mulheres em todas as idades, graus de instrução, classes sociais, raças, etnias e orientação sexual. A violência doméstica em seus aspectos de violência física, sexual e psicológica, é um problema que está ligado ao poder, onde de um lado impera o domínio dos homens sobre as mulheres, e de outro lado, uma ideologia dominante, que lhe dá sustentação. É importante ressaltar que independente do tipo de violência praticada contra a mulher todo tem como base comum as desigualdades que predominam na sociedade. São muitas as formas de violência doméstica: as desigualdades salariais; o assédio sexual no trabalho; o uso do corpo da mulher como objecto, nas campanhas publicitárias; o tratamento desumano que muitas recebem nos serviços de saúde. Todas representam uma violação aos direitos humanos e atingem a cidadania das mulheres. A violência doméstica, também conhecida como violência de género e sexual, aí incluídos os assédio moral e sexual e o tráfico nacional e internacional de mulheres e meninas, é ainda mal dimensionada, necessitando maiores investimentos em pesquisas e medidas legislativas e jurídicas adequadas (Presidência da República - Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – Brasil, 2003:9) Para entender essa problemática da violência de homens contra mulheres, a partir da perspectiva de género, é preciso incluir análises sobre os processos de socialização e sociabilidade masculinas e os significados de ser homem em nossas sociedades. Em geral, os homens são educados, desde cedo,

para responder a expectativas sociais, de modo proactivo, em que o risco e a agressividade não são algo que deve ser evitado, mas experimentado quotidianamente. A noção de auto cuidado, em geral, é substituída por uma postura destrutiva e auto destrutiva. Essa noção se desenvolve de diferentes maneiras e em diferentes lugares: nas brincadeiras infantis, na mídia segmentada por idade e sexo, nas ruas, escolas, casas, bares, quartéis, mosteiros, prisões, na guerra... Pouco importa o lugar, o que importam são os recorrentes mecanismos de brutalidade constitutivos do tornar-se homem, pois a violência é, muitas vezes, considerada uma manifestação tipicamente masculina para resolução de conflitos. Os homens são, em geral, socializados para reprimir suas emoções, sendo a raiva, e inclusive a violência física, formas socialmente aceitas como expressões masculinas de sentimentos. Essas manifestações “aceites”, e muitas vezes estimuladas, pela sociedade podem representar portas abertas para actos violentos graves que atentam inclusive contra a vida de muitas mulheres e dos próprios homens (Presidência da República - Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – Brasil, 2003:22). De acordo com Ministério da Saúde - Secretaria de Políticas de Saúde (2002:13), o género é a construção cultural colectiva dos atributos da masculinidade e feminilidade. O sistema de género ordena a vida nas sociedades contemporâneas a partir da linguagem, dos símbolos, das instituições e hierarquias da organização social, da representação política e do poder. Com base na interacção desses elementos e de suas formas de expressão, distinguem-se os papéis do homem e da mulher na família, na divisão do trabalho, na oferta de bens e serviços e até na instituição e aplicação das normas legais. A estrutura de géneros delimita também o poder entre os sexos. Mesmo quando a norma legal é de igualdade, na vida quotidiana encontramos a desigualdade e a iniquidade na distribuição do poder e da riqueza entre homens e mulheres. Durante séculos, as mulheres foram educadas para submeterem-se aos homens. A "domesticação" da mulher foi consequência da necessidade dos homens assegurarem a posse de sua descendência. O facto de que a maternidade é certa e a paternidade apenas presumível (ou incerta) sempre foi um fantasma para a organização da cultura patriarcal. O controle da sexualidade e da vida reprodutiva da mulher garante a imposição das regras de descendência e património e, posteriormente, um sistema rígido de divisão sexual do trabalho. Assim, a mulher passa a ser tutelada por algum homem, seja pai, do ou marido. Este sistema de divisão sexual do trabalho, cuja finalidade primeira foi a de regulamentar a reprodução e organizar as famílias, acabou por dar aos homens e mulheres uma carga simbólica de atributos, gerando uma correlação entre sexo e personalidade que foi interpretada como característica inerente aos sexos. Atribuiu-se à natureza de homens e mulheres aquilo que era da cultura. Pensar que a mulher é frágil e dependente do homem ou que o homem é o chefe do grupo familiar pode levar as pessoas a concluírem que é natural que os homens tenham mais poderes que as mulheres e os meninos mais poderes que as meninas. Este tipo de pensamento sempre justificou o autoritarismo masculino, interpretando a violência do homem contra a mulher como algo natural. Isso impregnou de tal forma nossa cultura que, assim como muitos homens não assumem que estão sendo violentos, muitas mulheres também não reconhecem a violência que estão a sofrer (Nações Unidas, 2003:20).

Pode-se identificar previamente a existência de condições particulares individuais, familiares e colectivas que aumentam o risco de ocorrência do problema. Um factor significativo da vitimização pode ser o facto de que a mulher foi socializada para ser mais desvalorizada, passiva, resignada e submissa que o homem. Sem dúvida, a explicação da origem deste fenómeno, e sua magnitude, há que buscá-la nos factores culturais e psicossociais que predispõem o agressor a cometer esta violência e nas formas em que a sociedade tolera, e inclusive estimula, este comportamento. A maior parte desta violência se tolera em silêncio, se legitima em leis e costumes e se justifica como “tradição” cultural. Sua forma mais endémica é os maus-tratos à esposa, o qual ocorre de forma universal em todos os grupos raciais, culturais e socio-económicos. A prevalência real de maustratos a mulheres não se conhece, dado que os casos de abuso seguem sendo pouco notificados. Por um lado, porque a mulher se envergonha do facto, o aceita, teme represálias do companheiro, ou da família, ou porque não encontra apoio no sistema jurídico (Ministério da Saúde - Secretaria de Políticas de Saúde, 2002:15). Numa visão marxista, a violência doméstica expressa dinâmicas de poder/afecto, nas quais estão presentes relações de dominação - subordinação. As famílias baseadas numa distribuição desigual de autoridade e poder, conforme papéis de género, sociais ou sexuais são propensas à ocorrência de violência doméstica. Nessas relações – homem/mulher, pais/filhos, diferentes gerações, entre outras – as pessoas estão em posições opostas, desempenhando papéis rígidos e criando uma dinâmica própria, diferente em cada grupo familiar. Krug et al, (2002: 17) chamam atenção também para a violência resultante da falta de acesso aos serviços necessários, da falta de qualidade ou inadequação do atendimento, que representa mais uma agressão a pessoas que buscam assistência por terem sofrido violência doméstica. Alertar para este tipo de violência – a qual chamamos de institucional – é muito importante, pois as pessoas que sofrem violência doméstica estão especialmente vulneráveis aos seus efeitos A violência no contexto familiar não é uma questão nova; atravessa os tempos e se constitui em uma relação historicamente construída a partir das relações de poder, género, etnia e classe social. De acordo com Natividade et al (2008:3-4), as relações de género pautadas na hegemonia do patriarcado, caracterizando relações de poder do tipo dominador-dominado, são fruto de uma construção histórica que ainda rege os padrões de comportamentos de nossa sociedade actual. Os adventos de igualdade e liberdade tomados na pós-modernidade como possibilidades de novos arranjos sociais e familiares, redefinindo papéis, ainda não atingiram os ideais de masculinidade e feminilidade que ainda são impostos pelas regras implícitas da sociedade. Em outras palavras, a violência doméstica é uma expressão extrema de distribuição desigual de poder entre homens e mulheres, de distribuição desigual de renda, de discriminação, de raça e de religião. Como a violência doméstica é um fenómeno que perpassa todas as classes sociais, é importante usar o conceito de classe social para identificar as diferenças e particularidades que existem no trato da questão. A repercussão dos conflitos conjugais ganha relevo nas narrativas femininas: a reprodução doméstica ameaçada, filhos traumatizados, revoltados ou com dificuldades no desempenho escolar dificuldades no exercício das actividades profissionais ou na obtenção de empregos. Baseada nessa análise, a violência doméstica constitui-se historicamente em factor

desencadeador de outros tipos de violência, tais como: física, psicológica, sexual etc., a qual tem sido corroborada por estudos apresentados na literatura médica, pela pediatria e psicanálise, quando identificavam o abuso sexual e maus-tratos de crianças e adolescentes na família. A partir da metade do século as considerações sobre a violência contra mulheres sofreram substanciais modificações em virtude das transformações que ocorreram nas relações da família com a sociedade, no que diz respeito às questões económicas, culturais, sociais, políticas, do papel da mulher na sociedade contemporânea, especialmente na organização das mulheres por meio dos movimentos feministas, na luta pela igualdade com os homens; na questão da sexualidade, nas relações de trabalho e na luta contra a violência. Essas transformações reflectiram na reorganização das funções, dos papéis e dos valores na família, a partir das questões de poder, género, etnia, sexualidade e de direitos, o que contribuiu para o redimensionamento dos conceitos sobre abuso, exploração e maus-tratos de crianças e adolescentes. Desta forma, para uma melhor compreensão da relação género/violência doméstica é necessário um estudo aprofundado do tema, a partir das questões a seguir relacionadas a fim de permitir a construção de indicadores: estruturais: pobreza, desemprego, exclusão, novas formas de pobreza, globalização e diversidade, dentre outros e outros; culturais: género, sexualidade, etnia, ordem/desordem, controle e poder; psicossociais: aspectos comportamentais: alcoolismo, consumo de drogas e outros; valores: morais, religiosos e éticos; Legais: protecção — políticas públicas; defesa — mecanismos legais (http://www.unb.br/ih/dss/gp/Viol%EAncia%20intrafamiliar%20%20Texto%20Lucia.pdf).

Género e violência doméstica na sociedade moçambicana É difícil estimar a actual incidência da violência doméstica na sociedade moçambicana. A violência doméstica é uma questão largamente encoberta. As comunidades negam a existência do problema, temendo que a sua admissão ponha em risco a integridade familiar. Há poucas estatísticas disponíveis. Os métodos actuais para calcular o número de mulheres agredidas pelos maridos são questionáveis. As estimativas baseiam-se em participações de casos de abuso, obtidas através da polícia, de registos mantidos por hospitais e centros de assistência social e de denúncias das próprias vítimas, obtidas em inquéritos presenciais e telefónicos (Nações Unidas, 2003: 14). De acordo com as Nações Unidas (ibid), as estatísticas recolhidas a partir de registos policiais e de outras fontes oficiais demonstram que a agressão conjugal é um problema real, mas não revelam a sua verdadeira dimensão. A vítima, muitas vezes, mostra-se relutante em apresentar queixa de violação: sente vergonha; sente receio; possui um sentimento de lealdade familiar. Quando se decide a apresentar queixa, isso pode não se reflectir estatisticamente, se o funcionário registar o incidente de forma incorrecta. Embora pudessem constituir uma fonte inestimável de informação, os registos criminais omitem, com frequência, o sexo da vítima e do agressor, raramente indicando o relacionamento entre os dois. Nestas circunstâncias, é impossível distinguir agressão conjugal de qualquer outro tipo de agressão e, por isso, este fenómeno torna-se estatisticamente invisível.

Os inquéritos presenciais também apresentam problemas. Estas mulheres podem preferir guardar segredo do sucedido. Quando apresentam queixa, podem exagerar na reconstituição dos factos ou, o que é mais comum, fazerem exactamente o contrário. Por exemplo, podem considerar que o facto de terem sido alvo de empurrões e bofetadas não é significativo e, por isso, não lhes fazem referência. Os inquéritos telefónicos estão restringidos a mulheres com acesso a telefone e que estão dispostas a revelar informação de carácter íntimo a um desconhecido. Este método pode, também, excluir mulheres de etnias minoritárias. Os inquéritos obtidos junto de casais que coabitam actualmente excluem a existência de violência em relações já terminadas. Estudos relativos a mulheres que recorreram a abrigos de emergência estão limitados a mulheres que já se definiram como vítimas de agressão e que, nesse caso, não representam a população em geral. Não obstante estes problemas, existem testemunhos informais e outras provas que tornam claro que a violência doméstica contra a mulher constitui um grave problema. Em Moçambique, as relações entre homens e mulheres são relações de poder, socialmente construídas, constantemente negociadas, resultando em partilhas, desigualdades e diferenças. A violência doméstica está veiculada ao desequilíbrio nas relações de poder entre mulheres e homens no âmbito das relações familiares, nas dimensões do social, do económico, do religioso e político, apesar de todos os esforços das legislações a favor da igualdade (Loforte, 2008:2). A violência doméstica assume várias formas e há uma elevada incidência no seio da sociedade moçambicana. As afectadas por esta violência estão entre os membros discriminados pelas relações sociais de género (mulheres de todas as idades). Não obstante o reconhecimento da família como um espaço social, sinonimo de segurança, protecção e afecto e também uma rede intricada e complexa de relações de poder, é preocupante constatar que particularmente para as mulheres, se tem convertido cada vez mais num espaço de risco (WILSA, 2008:11). A luta pela igualdade de género na sociedade moçambicana encontra muitas vicissitudes na tradição. De acordo com Loforte (2003), a utilidade particular de uma tradição é possibilitar e oferecer a todos que a enunciam e a reproduzem no quotidiano, os meios de afirmar as suas diferenças e de assegurar a sua autoridade e poder. É neste contexto que se pode entender que, em nome da tradição, se mantenham ainda, por exemplo, nas zonas periféricas e rurais de Moçambique, rígidos padrões de autoridade e dominação masculina na definição das estratégias de casamento, no controlo da sexualidade e capacidade reprodutiva feminina e nas práticas religiosas tradicionais. Em contexto citadino de grandes mudanças sociais, onde predominam sistemas de pensamento e práticas heterogéneas, a continuidade em relação à tradição pretende assegurar o poder, a autoridade masculina e a ideologia patriarcal dominante. A tradição é uma herança que define e transmite uma ordem apagando a acção transformadora do tempo, retendo apenas os momentos cruciais pelos quais os que a transmitem legitimam o seu poder e a sua influência.

Considerações finais O género é a diferenciação entre homens e mulheres em termos de características culturalmente definidas e status na sociedade. A estratificação de género existe quando os homens e as mulheres em uma sociedade recebem efectivamente parcelas desiguais de dinheiro, poder, autoridade, prestígio e outros recursos. A estratificação de género é sustentada pelos ciclos de socialização, que reforçam mutuamente pela identidade de género e por crenças relacionadas ao género, que, por sua vez, se tornam a base para discriminação e crenças preconceituosas, frutos da ameaça ressentida pelos homens. As qualidades de prestígio tais como razão, objectividade, independência, autoridade e liderança foram sempre atribuídas aos homens. Estas crenças colocaram as mulheres como uma classe dominada e socialmente excluída. Porém, essas assumpções embora continuem a vigorar em algumas sociedades contemporâneas, carecem de fundamentos práticos, pois em muitas sociedades, as mulheres sempre trabalharam e trabalham lado a lado com os homens, contribuindo assim para o bem-estar. O conceito “violência doméstica” designa qualquer acto de violência exercida contra a mulher a partir de relações de poder, autoridade e soberania onde o agressor (normalmente homem) é detentor de poder dentro de uma determinada relação hierárquica e que resulte, ou possa resultar, em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, assim como a ameaça de tais actos ou coerção a privação da liberdade seja na vida pública ou no âmbito doméstico. A violência no quadro da estratificação de género expressa o conflito de interesses entre duas partes que participam da relação de convivência. Para entender essa problemática da violência de homens contra mulheres, a partir da perspectiva de género, é preciso incluir análises sobre os processos de socialização e sociabilidade masculinas e os significados de ser homem em nossas sociedades. Na perspectiva marxista, a violência doméstica é um conflito social resultante de oposição de interesses entre os homens e as mulheres. A violência doméstica expressa dinâmicas de poder/afecto, nas quais estão presentes relações de dominação - subordinação. As famílias baseadas numa distribuição desigual de autoridade e poder, conforme papéis de género, sociais ou sexuais são propensas à ocorrência de violência doméstica. Nessas relações – homem/mulher, pais/filhos, diferentes gerações, entre outras – as pessoas estão em posições opostas, desempenhando papéis rígidos e criando uma dinâmica própria, diferente em cada grupo familiar. É difícil estimar a actual incidência da violência doméstica na sociedade moçambicana. Em Moçambique, as relações entre homens e mulheres são relações de poder, socialmente construídas, constantemente negociadas, resultando em partilhas, desigualdades e diferenças. A luta pela igualdade de género na sociedade moçambicana encontra muitas vicissitudes na tradição. Em nome da tradição, se mantém, ainda, rígidos padrões de autoridade e dominação masculina na definição das estratégias de casamento, no controlo da sexualidade e capacidade reprodutiva feminina e nas práticas religiosas tradicionais. Todavia, mas há avanços a materialização de um instrumento jurídico que criminalize aos actos de violência doméstica, com vista a melhor protecção da Mulher no País.

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