FREUD, Sigmund. “Recalque.” In: Os Filósofos Através dos Textos, por Grupo de Professores, 268-271. São Paulo, SP: Paullus, 1997. Texto digitalizado por Gilberto Miranda Júnior –
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FREUD (1856-1939)
Nasceu em Freiberg (Morávia) (Mor via) numa família fam lia de comerciantes. Viveu em Viena quase toda a sua vida, até at o momento em que foi obrigado ao exílio ex lio pelo regime nazista, em virtude de sua origem judaica (1938). Médico M dico especialista do sistema nervoso, enfrentou a histeria, doença doen a enigmática enigm tica que precisamente não n o comporta comporta lesões les es nervosas. Foi posto no caminho da psicoterapia por Breuer, médico dico de Viena Viena estudioso da histeria, que praticava a hipnose. Tendo achado seu caminho, métodos todos da caminho, Freud parte para a Franca para se instruir sobre os m sugestão sugest o e da hipnose, praticados em Paris por Charcot e em Nanei por Bernheim (1899). O que deve a Breuer, a Charcot Charcot e a Bernheim não n o tira nada da novidade radical da psicanálise, psican lise, método m todo do qual Freud é verdadeiramente o inventor.
75. O RECALQUE Nem todas as tendências, nem todos os desejos que nos habitam são admitidos à consciência clara; os que não o são permanecem no inconsciente como em seu lugar natural. Só são inconscientes porque teriam sido expulsos da consciência, só são inconfessados porque teriam sido repudiados pelo eu consciente. Não são inconscientes porque se tornaram tais, são inconscientes primitivamente e permanecem assim porque não são apresentáveis. O guardião que vela na entrada do salão onde está sediada a consciência é um homem mundano, que recalca os desejos sem honorabilidade e cobertos de andrajos, que não se poderia admitir num salão. Esse guardião não é a consciência; não está em nós o decreto que admite ou desautoriza segundo normas claramente percebidas da moral e segundo as regras da razão; não é a instância que desvaloriza e por isso desinfla os desejos irracionais ou morais. O guardião vela na entrada do salão, para manter fora da vista da consciência o que ela não poderia ver, para que ela sequer suspeite da presença pululante dos hóspedes do inconsciente. O guardião não é, como o guardião platônico, semelhante a um cão de guarda que deve reconhecer seu dono para defendê-lo e não atacá-lo; é um porteiro mundano inconsciente, cujo papel de guardião tende à boa ordem, à paz e ao equilíbrio da consciência, mas cuja função de censor é a de recalcar no inconsciente, para que permaneçam aí sem exame e fora da vista da consciência, tendências às quais a consciência não pede razões. Posto que exerce sua função fora da consciência, o guardião certamente garante, contra os intrusos perturbadores e perigosos, o equilíbrio e a tranqüilidade da consciência, mas os garante perigosamente. Não é despojá-los de sua energia, recalcar fora
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da luz da consciência os desejos inadmissíveis. Porque é inconsciente, o mecanismo do recalque conserva o dinamismo das tendências recalcadas. O guardião não é um sábio que renunciaria à realização de desejos considerados utópicos, perigosos, imorais, sem valor: o recalque não é a renúncia, porque o guardião é censor, sem ser juiz. O guardião é um porteiro educado, mas estúpido. Respeita a obrigação mesmo quando seria útil levantá-la; continua a manter fora do olhar da consciência aquilo que contudo, em certas circunstâncias catastróficas, ela sofre mais por não ver que por ver. Não se deve, pois, confundir com a consciência moral, nem com a razão, a instância que recalca no inconsciente certos desejos. O recalque é fenômeno psíquico encarregado de manter o equilíbrio do psiquismo, mas que pode desregulá-lo por causa do caráter inconsciente e subterrâneo de sua função. O recalque só tem sentido na perspectiva da saúde e da doença; não tem nenhum espaço na ordem da sabedoria e da moral, que se ocupam de nossa salvação.
Temos toda a vantagem em dizer que cada processo faz primeiro parte do sistema psíquico do inconsciente e pode, em certas circunstâncias, passar para o sistema do consciente. A representação mais simples desse sistema é, para nós, a mais cômoda: é a representação espacial. Comparamos pois o sistema do inconsciente a uma grande antecâmara, na qual as tendências psíquicas se amontoam, tais como seres vivos. A esta antecâmara é contígua outro compartimento, mais estreito, uma espécie de salão, no qual permanece igualmente a consciência. Mas na entrada da antecâmara, no salão, vela um guardião que inspeciona cada tendência psíquica, impõe-lhe a censura e a impede de entrar no salão se ela o desgosta. Que o guardião faça retornar uma tendência dada desde o umbral ou que ele a faça atravessar novamente o umbral depois que ela penetrou no salão: a diferença não é muito grande e o resultado é quase o mesmo. Tudo depende do grau de sua vigilância e de sua perspicácia. Esta imagem tem para nós a vantagem de permitir-nos desenvolver nossa nomenclatura. As tendências que se acham na antecâmara reservada ao inconsciente escapam do olhar do consciente, que permanece no compartimento vizinho. São pois de início inconscientes. Quando, depois de terem penetrado até o umbral, são levadas de volta pelo guardião, é porque são incapazes de se tornar conscientes: dizemos então que são recalcadas. Mas as tendências às quais o guardião permitiu transpor o umbral não são por isso necessariamente tornadas conscientes; podem vir a ser, se conseguirem atrair
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sobre elas o olhar da consciência. Chamaremos pois este segundo de sistema da pré-consciência. [O fato, para um processo, de tornar-se consciente, guarda assim seu sentido puramente descritivo.] A essência do recalque consiste em que uma tendência dada é impedida pelo guardião de penetrar do inconsciente ao pré-consciente. E é esse guardião que nos aparece sob a forma de resistência quando tentamos, pelo tratamento analítico, pôr fim ao recalque. Freud, Introduction à la psychanalyse (Introdução à psicanálise), Payot, pp. 318-319.