UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TECNOLOGIA
MARIA HELENA SABURIDO VILLAR
A FOTOGRAFIA ESTENOPEICA REVISITADA: DESCONSTRUÇÃO DA HOMOLOGIA TRADICIONAL ATRAVÉS DAS DIMENSÕES SÓCIO-CULTURAIS DA TECNOLOGIA
CURITIBA 2008
MARIA HELENA SABURIDO VILLAR
A FOTOGRAFIA ESTENOPEICA REVISITADA: DESCONSTRUÇÃO DA HOMOLOGIA TRADICIONAL ATRAVÉS DAS DIMENSÕES SÓCIO-CULTURAIS DA TECNOLOGIA
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Tecnologia. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
Orientadora: Profa. Dra. Luciana Martha Silveira
CURITIBA 2008
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da UTFPR – Campus Curitiba V719f Villar, Maria Helena Saburido A fotografia estenopeica revisitada : desconstrução da homologia tradicional através das dimensões sócio-culturais da tecnologia / Maria Helena Saburido Villar. Curitiba. UTFPR, 2008 249 f. : il. ; 30 cm Orientadora: Profª. Drª. Luciana Martha Silveira Dissertação (Mestrado) – Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia. Curitiba, 2008 Bibliografia: f. 235 - 244 1. Fotografia. 2. Arte e tecnologia. 3. Fotografia – Técnicas. I. Silveira, Luciana Martha, orient. II. Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia. III. Título.
Aos meus amores
Tarefa delicada esta de agradecer àqueles que contribuem para uma realização. Talvez fosse mais fácil não citar nomes, para não correr o risco de esquecer alguém. Mas, como não citá-los? Por isso, manifesto meus mais sinceros agradecimentos... ... à Luciana, querida orientadora. Por sua disposição em compartilhar olhares e idéias. Sempre paciente, apoiando e acreditando que eu conseguiria chegar até aqui. ... à Maristela Ono, Ronaldo Correa e Ronaldo Entler, pela contribuição e disposição em estabelecer uma leitura crítica e trocar idéias imprescindíveis para firmar o direcionamento do trabalho. ... aos “amantes” da fotografia pinhole: Ana Angélica Costa, Cleber Falieri, Dirceu Maués, Neide Jallageas, Rafael Johann e Simone Rodrigues, pela contribuição com seus depoimentos e imagens, fundamentais para a compreensão das inquietações que movem artistas e fotógrafos na produção de imagens estenopeicas. ... ao professor Thales Trigo, por sua valiosa colaboração, sanando minhas mais profundas dúvidas ópticas. ... às amigas Mônica, Juracy, Cloudy, Isis e Mary; e amigos Fernando e Luis, por todo o carinho, o apoio e o estímulo em diferentes momentos. ... aos meus pais, Elvira e Luis, que sempre incentivaram minha curiosidade e minha dedicação aos estudos. ... aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da UTFPR. ... à CAPES, pelo incentivo à pesquisa e o fundamental suporte financeiro.
... e, em especial: ... à minha pequena Ana, que acompanhou este trabalho tão de perto. Mesmo me obrigando a me afastar de tudo e roubando minha atenção só pra ela. ... ao Paulinho, pelo amor, cumplicidade e estímulo que sempre me dedicou. E, principalmente, por me ajudar a reparar nas imagens, mais do que simplesmente olhar para elas.
[...] hoje [...] quase não é mais possível [...] falar de uma arte em si e por si só [...]. Ao contrário, penso que [...] nunca se sente melhor posicionado para tratar, afinal, de uma forma de imagem dada, a não ser encarando-a a partir de uma outra, através de uma outra, dentro de uma outra, pelo viés de uma outra, como uma outra. Essa visão oblíqua, deslocada, parece-me, muitas vezes, oferecer aberturas mais eficazes para se atingir o que existe no coração de um sistema. Entrar pela grande porta central, prevista para tanto, e em que tudo já fica organizado para ser visto na frontalidade, parece-me menos pontiagudo, menos pertinente, menos instigante, do que imiscuir-se pelo lado, por uma pequena entrada lateral que permitirá ver coisas inéditas (nunca vistas desta maneira) e, muitas vezes, mais significativas e originais. Anamorfosear os territórios de imagens [...] é, na maioria dos casos, mais penetrante e subvertente que o fato de observá-las recatadamente de frente, lá onde elas se afixam e onde, afinal, se escondem. Philippe Dubois
5
RESUMO Este estudo propõe investigar e discutir o uso da câmera estenopeica por artistas e fotógrafos contemporâneos e a mediação que se estabelece entre eles e o processo envolvido no ato de fotografar com estes artefatos. Fotografia estenopeica, conhecida também como fotografia pinhole, é a terminologia adotada para definir imagens obtidas com câmeras de orifício - as objetivas das câmeras fotográficas tradicionais são substituídas por um pequeno furo. Partindo da premissa que o resgate do uso desta técnica, pelos artistas contemporâneos, se dá no sentido de questionar os padrões, rompendo com a homologia no processo da fotografia tradicional, entendida como o registro e reprodução “fiel” da realidade. Percebe-se que essas posturas revelam mais claramente a subjetividade e a presença do usuário – artista/fotógrafo - como construtor da representação. Por isso, optou-se por estudar a recente produção de imagens fotográficas estenopeicas, resultado da retomada da técnica por fotógrafos e artistas contemporâneos, porque, além de buscar novas opções expressivas de manifestação estética, esses artistas procuram questionar o meio e as determinações das “novas tecnologias” impostas pela indústria fotográfica. Para compreender essas posturas, foi preciso entender quais as principais características da fotografia estenopeica, e as possibilidades de intervenção criativa do artista, nas diferentes etapas de produção das imagens. A simplicidade da técnica e as múltiplas possibilidades de construção da câmera aproximam o fotógrafo do processo de realização da imagem, transformando as relações de tempo e de espaço representados, e questionando os conceitos da fotografia tradicional. Na medida em que subverte o padrão convencionalmente imposto ao aparato fotográfico, o artista tem condições de utilizar a fotografia estenopeica como forma de expressão alternativa e ferramenta de criação. A opção estética do artista se inicia no momento em que ele constrói sua câmera. Conclui-se que, a partir deste estudo, foi possível confirmar que, por meio da fotografia estenopeica, é possível questionar os padrões e perturbar a prática comum de constituição de imagens fotográficas, desconstruindo o conceito de homologia do processo da fotografia tradicional e, ao mesmo tempo, evidenciando as dimensões sócio-culturais da tecnologia.
Palavras-chave: Fotografia Estenopeica; Pinhole; Fotografia Contemporânea; Arte e Tecnologia.
6
ABSTRACT This study proposes to investigate and to discuss the use of stenopaic photography by contemporary artists and photographers, as well as the mediation established between them and the process involved in the act of photographing with these devices. Known as pinhole photograph, stenopaic photograph is the terminology adopted to define images produced by orifice cameras. A tiny hole replaces the lenses of traditional photographic cameras. This study understands that some contemporary artists are rediscovering this technique in order to question the standards, disrupting with the common praxis of photographic images constitution, breaching with the homology of traditional photography, understood as a faithful register and reproduction of the reality. These attitudes disclose more clearly the subjectivity and the presence of the user artist/photographer - as the constructor of the representation. In this sense, the option is to study the recent pinhole images production, result of resumption of the technique by contemporaries photographers and artists, because, besides looking for new expressive options of aesthetic manifestation, these artists intend to question the means and the “new technologies” determination imposed by photographic industry. In order to do this, we attempt to understand which are the main characteristics of pinhole photography and the possibilities of creative intervention in the different stages of image production. The simplicity of this technique and the multiple possibilities of camera construction approach the photographer to the process of image accomplishment. Time and space relations represented in pinhole photography are transformed and finish questioning traditional photography concepts. At the same time the artist subverts the conventional pattern imposed to the photographic apparatus, this artist has conditions to use the pinhole photography as an alternative expression medium and creation tool. The artist’s aesthetic option begins at the moment he builds the camera. Throughout this study, it was possible to attest that the use of pinhole photography is a possibility to question the standards and breaching with the common praxis of photographic images constitution, deconstructing the homology of traditional photography, and, at the same time, making evident the sociocultural dimensions of technology.
Keywords: Pinhole; Contemporary Photography; Art and Technology.
7
LISTA DE FIGURAS Figura 1: Desenho mostrando o funcionamento da tavolleta................................................................... 46 Figura 2: Modelo da primeira tavolleta de Brunelleschi........................................................................... 47 Figura 3: Esquema de Alberti para a construção perspectiva.................................................................... 48 Figura 4: Objeto em perspectiva. ............................................................................................................ 48 Figura 5: Leonardo da Vinci, estudo para A Adoração dos Magos, c. 1481. ............................................ 48 Figura 6: Desenho da “janela” de Leonardo da Vinci. ............................................................................. 49 Figura 7: Albrecht Dürer, Pintor Estudando as Leis do Escorço, 1525. ................................................... 49 Figura 8: Camera obscura do séc. XIX, Dionysis Larder, 1855................................................................ 51 Figura 9: Maurits Cornelis Escher, Waterfall, 1961 ................................................................................ 52 Figura 10: Ilusão perspectiva, s. d. .......................................................................................................... 53 Figura 11: Paulo Camargo, sem título, 1989. ......................................................................................... 75 Figura 12: Matt Gatton, Paleo-Camera. ................................................................................................. 78 Figura 13: David Stork, imagens de um eclipse parcial do sol, s.d. .......................................................... 79 Figura 14: Reinerus Gemma Frisius, Camera Obscura, 1544.................................................................. 80 Figura 15: Fox Talbot, Latticed Window at Lacock Abbey, 1835. .......................................................... 82 Figura 16: Oscar Rejlander, Two Ways of Life, 1858. ............................................................................ 85 Figura 17: Guerra Duval, Estudo, 1930.................................................................................................. 87 Figura 18: Edward Steichen, O Pensador, 1902...................................................................................... 88 Figura 19: Eadweard Muybridge, Galloping Horse, 1878....................................................................... 90 Figura 20: Étienne-Jules Marey, homem correndo vestindo roupa negra com listras brilhantes, 1880-90.91 Figura 21: Flinders Petrie, Waiting to Begin Work, Egito, 1883 84........................................................ 92 Figura 22: George Davison, An Old Farmstead, ou The Onion Field, 1890........................................... 93 Figura 23: Henri Cartier-Bresson, Hyeres, França, 1932. ....................................................................... 96 Figura 24: Alexander Rodchenko, Mulher ao Telefone, 1928. ................................................................ 97 Figura 25: Kasimir Malevich, Fotografia Aérea, c. 1927.......................................................................... 98 Figura 26: László Moholy-Nagy, From the Radio Tower Berlin, 1928. .................................................. 99 Figura 27: Man Ray, Rayografia, 1927. ................................................................................................ 101 Figura 28: Arturo Bragaglia, Retrato Fotodinâmico de Uma Mulher, c. 1924....................................... 102 Figura 29: Otto Steinert, Lamps at the Place de la Concorde, luminograma, 1952. .............................. 104 Figura 30: Geraldo de Barros, A Menina do Sapato, São Paulo, 1949................................................... 105 Figura 31: Andréas Muller-Pohle, Face Codes 2096, Kyoto, 1989/99................................................... 114 Figura 32: Maureen Bisilliat, sem título, déc. 1960............................................................................... 120 Figura 33: Rosangela Rennó, Cicatriz, 1996. ........................................................................................ 121 Figura 34 (esq): Carlos Fadon Vicente, Medium, 1991. ....................................................................... 122 Figura 35 (dir): Carlos Fadon Vicente, Medium, 1991. ........................................................................ 122 Figura 36: Abelardo Morell, projeção do sol sobre mesa coberta, 2000. ................................................ 128
8
Figura 37: Abelardo Morell, eclipse solar, Brookline, MA, 1994. .......................................................... 128 Figura 38: Formação da imagem através de um orifício. ....................................................................... 129 Figura 39: Reflexão da luz..................................................................................................................... 131 Figura 40: Refração da luz. ................................................................................................................... 132 Figura 41: Reflexão total da luz............................................................................................................. 132 Figura 42: Formação da imagem no interior da camera obscura............................................................ 133 Figura 43: Thomas Hudson Reeve, Brooklyn Bridge, s.d...................................................................... 134 Figura 44: Proporção da imagem estenopeica........................................................................................ 135 Figura 45: Luminosidade da imagem estenopeica. ................................................................................ 135 Figura 46: Danilo pedruzzi, s. d............................................................................................................ 136 Figura 47: Material sensível paralelo. .................................................................................................... 137 Figura 48: Peter Zirnis, Backyard, 1998 ............................................................................................... 137 Figura 49: Joaquín Casado, Hotel Arts - Port Olímpic, Barcelona, 2003. ............................................. 138 Figura 50 e Figura 51: Material sensível côncavo. ................................................................................. 138 Figura 52: Kenneth Ransom, Rockport, ME, 1991. ............................................................................. 139 Figura 53: Câmera panorâmica côncava................................................................................................ 139 Figura 54: David Van Zandt, 2006. ..................................................................................................... 139 Figura 55: Material sensível convexo..................................................................................................... 140 Figura 56: Câmera estenopeica 360°. .................................................................................................... 140 Figura 57: Jürgen Lechner, Schloss weibenstein1, Eckental Alemanha, 2006. ....................................... 141 Figura 58: Ana Angélica Costa, Janelas, Brasília, 2003.......................................................................... 141 Figura 59: Material sensível inclinado................................................................................................... 142 Figura 60: Eric Renner, Stretch Marilyn, 1997. .................................................................................... 142 Figura 61: Câmera tubular 360° ........................................................................................................... 143 Figura 62: Cleber Falieri, Imagem anamórfica 360°. ............................................................................. 143 Figura 63: Cleber Falieri, Imagem anamórfica 360°. ............................................................................. 144 Figura 64: Julian Beever, c. 2004. ......................................................................................................... 144 Figura 65: Julian Beever, Ilustração vista de outro ângulo. .................................................................... 145 Figura 66 (esq): Lente convergente. ...................................................................................................... 147 Figura 67 (dir): Lente divergente. ......................................................................................................... 147 Figura 68: Imagem formada por uma lente simples............................................................................... 147 Figura 69: Imagem formada por um orifício e detalhe. ......................................................................... 148 Figura 70: Formação da imagem através de um orifício. ....................................................................... 149 Figura 71: Formação da imagem através de uma lente convergente. ...................................................... 149 Figura 72: Luz passando através de uma fenda sem apresentar difração. ................................................ 150 Figura 73: Luz passando através de uma fenda apresentando difração. .................................................. 150 Figura 74: Veijo Vilva, s.d. ................................................................................................................... 152 Figura 75: Uso de slit vertical e slit horizontal....................................................................................... 153 Figura 76: Doris Markley, sem título, 1987. ......................................................................................... 153
9
Figura 77: Uso de slit horizontal e slit vertical....................................................................................... 154 Figura 78: Doris Markley, sem título, 1987. ......................................................................................... 154 Figura 79: Formas de slits. .................................................................................................................... 154 Figura 80: Joaquin Casado, Franz Kafka, s.d......................................................................................... 155 Figura 81: Claudia Rojas, Desnudo n°2, s.d.......................................................................................... 155 Figura 82: Desenhos de zone plates. ..................................................................................................... 156 Figura 83 (esq): Imagem com câmera de orifício................................................................................... 156 Figura 84 (dir): Imagem com zone plate no lugar do orifício. ............................................................... 156 Figura 85: Nancy Spencer, Beth, 1996 ................................................................................................. 157 Figura 86: Jochen Dietrich, Cine São Jorge, Lisboa, 1996/97. .............................................................. 159 Figura 87 e Figura 88: Ana Angélica Costa, Duração, 2004-2005......................................................... 160 Figura 89: Louis Daguerre, Paris Boulevard, 1839. ............................................................................... 161 Figura 90: Anton Giulio Bragaglia, Change of Position, 1911. ............................................................. 162 Figura 91: Paolo Gioli, Dire No, 1974. ................................................................................................ 162 Figura 92: Dirceu Maués, Ver-o-Peso Pelo Furo da Agulha, 2004. ....................................................... 163 Figura 93: Danilo Pedruzzi, Auto-Retrato, c. 2000............................................................................... 164 Figura 94: Dominique Stroobant, fotografia com exposição de 6 meses. ............................................... 165 Figura 95: Ilan Wolff, Red Pepper Used Like a Camera Obscura, s.d. .................................................. 167 Figura 96: Jeff Guess, From Hand to Mouth ,1994.............................................................................. 168 Figura 97: Jeff Guess, From Hand to Mouth ,1994.............................................................................. 168 Figura 98: Paolo Gioli, Pugno Contro me Stesso, 1989. ....................................................................... 169 Figura 99: Imagem do punho utilizado como câmera, 1989. ................................................................ 169 Figura 100: Paolo Gioli, Imagem feita com a Câmera Crackerstenopeica, 1980.................................... 170 Figura 101: Paolo Gioli, câmera Crackerstenopeica, 1980. ................................................................... 170 Figura 102: Jeff Fletcher, Bromide Eggs, 1989. .................................................................................... 171 Figura 103 (esq): Jochen Dietrich, Auto retrato, 1993. ......................................................................... 171 Figura 104 (dir): Jochen Dietrich, Câmera relógio, 1994...................................................................... 171 Figura 105: Abelardo Morell, Philadelphia Museum of Art, 2005. ....................................................... 173 Figura 106: Marja Pirilä, Interior/exterior, 1996-2002. ........................................................................ 174 Figura 107 (esq): Thomas Bachler, O Terceiro Olho, 3.5 x 5 cm, 1999................................................ 176 Figura 108 (dir): Thomas Bachler, O Terceiro Olho – Nus, 1999. ....................................................... 176 Figura 109: Tarja Trygg, Solargraphy, Helsinki, 2003 .......................................................................... 186 Figura 110: Thomas Bachler, Bon Voyage!, 1998. ................................................................................ 187 Figura 111 (esq): Thomas Bachler, From Nuernberg to Kassel, Travel Memories, 1985. ...................... 187 Figura 112 (dir): Thomas Bachler, Pinhole Parcel, Travel Memories, 1985. ......................................... 187 Figura 113: Thomas Bachler, Scenes of Crime, 1995............................................................................ 188 Figura 114: Thomas Bachler, Shot in a Head, 1993. ............................................................................ 189 Figura 115: Neide Jallageas, Realidades Meramente Superficiais, 2000. ................................................ 190 Figura 116: Câmeras usadas em Realidades Meramente Superficiais ..................................................... 190
10
Figura 117: Neide Jallageas, fotogramas de Realidades Meramente Superficiais, 2000. ......................... 191 Figura 118: Paula Trope, Contos de Pasagem, 2000............................................................................. 193 Figura 119: Paula Trope, Os Meninos, 1993/1994............................................................................... 194 Figura 120: Claudia Wornum, Eletric Montains, Walker Lake, Eastern Sierra Nevada, 1999. .............. 194 Figura 121: Marcus Kaiser, sem título, 1990. ....................................................................................... 195 Figura 122: Ilan Wolff, Concorde, Paris, 1997. .................................................................................... 196 Figura 123: Robert Doisneau, Dancers, s.d........................................................................................... 204 Figura 124: Andreas Müller-Pohle , Transformance 3590, 1980........................................................... 205 Figura 125: Frederic Fontenoy, Métamorphose, 1988-1990. ................................................................ 208 Figura 126: Andrew Davidhazy, Peripheral Portrait de Bruce Made, c. 1967........................................ 208 Figura 127: Nam June Paik, TV Magnet, 1965. ................................................................................... 209 Figura 128: Zbigniew Rybczynski, The Fourth Dimension, 1988. ....................................................... 210 Figura 129: Steve Pippin, Laundromat-Locomotion (Horse & Rider) 1997. ........................................ 211 Figura 130: Joaquín Casado, Port Olímpic, Barcelona, 2003................................................................ 218 Figura 131: Michael Wesely, Postdamer Platz, Berlin, 5.4.1997 a 3.6.1999.......................................... 218 Figura 132: Thomas Bachler, From Frankfurt to Kassel, Travel memories, 1985.................................. 218
11
SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS.......................................................................... 13 CONCEITO DE TECNOLOGIA..........................................................................23
1
2
A IMAGEM E O “REAL”: A IMAGEM FOTOGRÁFICA E OS SEUS CÓDIGOS.................................................................................................. 34 1.1
IMAGEM COMO REPRESENTAÇÃO.......................................................36
1.2
ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRÁFICA ..........................................40 1.2.1 Perspectiva: O Modelo Perspéctico como Visão de Mundo .................44 1.2.2 A Fotografia como Espelho do Real: A Mimese ..................................54 1.2.3 A Fotografia como Transformação do Real: A Desconstrução..............59 1.2.4 A Fotografia como Traço do Real: O Índice e o Referente...................65 1.2.4.1 Referente ......................................................................................68 1.2.5 Outros Olhares: novos caminhos........................................................73
1.3
A TRAJETÓRIA DA FOTOGRAFIA ..........................................................76 1.3.1 Antes da Fotografia............................................................................78 1.3.2 A primeira fase – primeira metade séc. XIX ........................................81 “fidelidade ao real” .......................................................................................81 1.3.3 A segunda fase – segunda metade séc. XIX..........................................83 “documento x arte” ......................................................................................83 1.3.4 A terceira fase – primeira metade séc. XX ...........................................95 “domínio técnico x experimentalismo” ..........................................................95 1.3.5 A quarta fase - segunda metade do séc. XX. ...................................... 103
1.4
CONTEXTO ARTÍSTICO CONTEMPORÂNEO.................................... 109 1.4.1 A Fotografia .................................................................................... 112 1.4.2 A Fotografia Expandida ................................................................... 115 1.4.3 Contexto Brasileiro.......................................................................... 118
IMAGEM E ARTEFATO: A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS COM A CÂMERA ESTENOPEICA......................................................................... 124 2.1
ARTEFATO: CARACTERÍSTICAS TÉCNICAS ......................................... 126 2.1.1 Formação da Imagem ...................................................................... 128 2.1.1.1 Luz: propriedades ópticas............................................................130 2.1.1.2 No interior da câmera a imagem se forma...................................133 2.1.2 Orifício: Ausência da Objetiva, Refração e Difração ......................... 146 2.1.2.1 Outras possibilidades: Slits e Zone Plates ....................................153 2.1.3 Tempo Expandido........................................................................... 157
12
2.2
CONSTRUINDO A CÂMERA ESTENOPEICA: A EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA ............................................................................................... 166 2.2.1 Uma Outra Perspectiva.................................................................... 175
2.3
EXPERIMENTAÇÃO: AS POSSIBILIDADES EXPRESSIVAS DA CÂMERA ESTENOPEICA ......................................................................................... 177 2.3.1 Acaso .............................................................................................. 181 2.3.2 Produção Estenopeica Artística Contemporânea: outras possibilidades 183
2.4
(DES)CONSTRUINDO A CAIXA PRETA ............................................... 198 2.4.1 Decifrando o Aparelho .................................................................... 199 2.4.2 Estenopeica: Dentro da Caixa Preta ................................................. 212
3
APONTAMENTOS.................................................................................. 215
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 228
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 235 GLOSSÁRIO .................................................................................................. 245
13
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Ao explicar o tema de pesquisa, o comentário mais comum sempre foi:
— Hã? fotografia estenopeica, o que é isso? Em seguida, após explicar o que vem a ser fotografia estenopeica, segue-se sempre um segundo comentário:
— Que legal! Você vai falar sobre fotografia de latinha! Então, a resposta é:
— Sim, sim, vou falar sobre fotografia de latinha! O estranhamento com relação ao tema da pesquisa continua:
— Puxa, mas seu mestrado é em Tecnologia, não é?... E você vai estudar fotografia de latinha?...
14
O estranhamento com relação à fotografia estenopeica e à tecnologia se espalha para além do público leigo. As concepções de fotografia e de tecnologia podem ser por vezes, de tal forma equivocadas, que a escolha do tema pode então parecer, se não deslocada, ao menos um tanto insólita. Mas, apesar de estar associada a uma brincadeira de criança, ou apenas a um método para aprender os princípios básicos da fotografia, o que se vê na fotografia estenopeica está muito além do lúdico ou dos fundamentos fotográficos. Percebe-se nela uma alternativa de aproximação da fotografia e uma possibilidade de questionamento dos conceitos já enraizados sobre ela, e porque não, sobre a tecnologia. Mais do que isso, a fotografia estenopeica pode ser vista como uma opção extremamente fecunda e rica de criar e pensar as imagens. Afinal, uma discussão teórica não precisa necessariamente se enquadrar ou se limitar a temas sisudos e comportados para ser aceita no meio acadêmico, ou precisa? Além disso, o que se espera, no decorrer desta dissertação, é mostrar o quão séria pode ser a discussão sobre essa “brincadeira de criança”. Como primeiríssimo passo, é importante elucidar a primeira pergunta: o que é fotografia
estenopeica? O termo é pouco comum e de certa forma não muito conhecido mesmo entre fotógrafos. Estenopeica é a terminologia adotada para definir imagens obtidas sem a utilização de lentes. A luz que forma a imagem atravessa apenas um pequeno furo. No caso da fotografia estenopeica, no lugar das objetivas das câmeras fotográficas tradicionais é apenas um orifício que forma a imagem. A palavra estenopeica vem de “estenopo” que é o nome que se dá ao pequeno furo por onde passa a luz que irá formar a imagem. O termo tem origem na língua grega – steno: estreito, e opê: furo ou ôps: olho. Curiosamente, em grego, furo e olho parecem ter uma raiz comum. No Brasil aparecem com freqüência as denominações: câmera de orifício, câmera de
buraco de agulha ou simplesmente camera obscura; também é muito comum a utilização do termo pinhole, num empréstimo da língua inglesa: pin – alfinete e hole – buraco. Entretanto, alguns cuidados devem ser tomados ao se utilizar o termo pinhole: ele pode designar tanto o orifício, como a maneira como é obtida a imagem - a técnica propriamente dita – e as próprias imagens que resultam desse processo. Optou-se por utilizar as denominações “estenopo” ou “orifício” para designar o furo, e a palavra “estenopeica” para qualificar a técnica, a câmera e as imagens.
15
A possibilidade de obtenção de imagens formadas através de um orifício não se restringe à fotografia; alguns artistas utilizam o orifício para obter imagens em vídeo, por exemplo. Na verdade, em qualquer processo de formação de imagens que derive da camera obscura1, ou seja, que dependa da ação da luz que penetra em um ambiente escuro para formar a imagem, pode-se utilizar apenas um orifício no lugar das lentes. Uma camera obscura nada mais é do que um compartimento escuro – de qualquer tamanho - com um furo (ou mais) em um dos lados. Do lado de fora desse compartimento a luz é refletida pelos objetos em todas as direções. Parte dessa luz refletida pelos objetos atravessa o furo e forma a imagem externa no interior do compartimento, invertida e na face oposta ao(s) furo(s). Maiores detalhes sobre os princípios e o desenvolvimento da camera obscura serão abordados na seção 1.3.1 do capítulo 1, p. 78. Uma câmera estenopeica é basicamente um ambiente vedado de luz com um pequeno furo de um lado e um material fotossensível do outro. A luz refletida pelos objetos passa pelo orifício e atinge a superfície fotossensível, formando a imagem. Essa superfície sensível pode ser tanto um material convencional/químico - uma emulsão que depois de receber a luz, será processada quimicamente para fixar a imagem; como também pode ser um sensor eletrônico do processo digital – que transforma os sinais elétricos captados pelo sensor em informações digitais de intensidade e cor de luz. Neste caso, o que diferencia a imagem estenopeica é basicamente a ausência de lentes no equipamento que irá capturar a imagem, ou seja, na câmera. Por conta disso, no decorrer da dissertação, o termo “fotografia com lentes” será usado para identificar imagens obtidas com câmeras que utilizam objetivas, independentemente do tipo de superfície fotossensível: química ou digital. O termo “sem lentes” poderá usado para identificar as diferentes modalidades de imagens obtidas com câmeras sem a utilização de objetivas. A busca primeira desta pesquisa é pensar a fotografia, sua linguagem e as concepções que se traçam a respeito de suas imagens, resultado do incômodo em perceber que a imagem fotográfica ainda está impregnada pela idéia da figuração. A ligação com o real e o referente está de tal forma aderida à imagem fotográfica que, no senso comum, uma imagem fotográfica ainda 1
Camera obscura é o termo latino para câmera escura – (camera - compartimento ou aposento de uma casa e, em especial, o quarto de dormir; e obscuru (a) - falta de luz; pouco claro; sombrio, tenebroso). A expressão é utilizada para designar o princípio de formação de imagens através de orifícios no interior de compartimentos escuros. Inicialmente as cameras obscuras eram utilizadas para a observação de eclipses. Posteriormente, na forma de pequenas caixas portáteis, foram utilizadas para auxiliar no desenho. Nessas caixas foram acrescentadas lentes no lugar do orifício para melhorar a qualidade da imagem, e uma superfície translúcida do lado oposto, para decalcar a imagem. No início do séc. XIX, com a introdução de um material sensível na face onde se forma a imagem ela se transformou na câmera fotográfica.
16
significa uma “imagem muito fiel ao modelo”; uma “cópia fiel”; uma “reprodução exata”. Mesmo com o advento do digital, no qual a pós-fotografia2 não depende da luz para a formação da imagem, diferente, portanto, em sua gênese, da fotografia tradicional, a figuração permanece sendo o grande referencial. As imagens de modulação digital direta, que não dependem das especificidades do processo fotográfico – fenômenos físico/químicos responsáveis pela formação da imagem: luz, câmera, conjunto óptico, processamento químico/eletrônico – ainda perpetuam o modelo figurativo da construção perspéctica renascentista. Com toda a corrida pela mais alta tecnologia de produção de imagens, alardeada aos sete ventos pela indústria fotográfica, se chega, no final, ao modelo que se repete há quase dois séculos pela fotografia tradicional. A inquietação com essa concepção acerca da imagem fotográfica, como cópia fiel do referente e da tecnologia como sinônimo de progresso técnico, desligada de todo o contexto social, cultural e histórico que a envolve, motivou a reflexão e a busca por possibilidades de produção de imagens que colocassem em questão essas concepções. Encontrou-se na fotografia estenopeica uma possibilidade. Assim, este estudo propõe-se a discutir as imagens estenopeicas fotográficas, com a preocupação de investigar diferentes conceitos e discussões que se estabelecem no entorno da imagem fotográfica e do conceito de tecnologia. Opta-se por observar a prática da fotografia estenopeica, pois se acredita que ela permitirá evidenciar e colocar em discussão uma série de aspectos, de conceitos e de pré-conceitos que, de certa forma, estão cristalizados no senso comum, a respeito da imagem fotográfica tradicional e das demais mídias visuais que dela são herdeiras. Dessa forma, o objetivo desta pesquisa é o estudo da fotografia estenopeica como possibilidade de romper com o conceito de homologia no processo da fotografia tradicional3 com lentes e, ao mesmo tempo, como forma de evidenciar as dimensões sócio-culturais da tecnologia. A noção de ruptura é adotada com o sentido de indicar uma quebra com as convenções formais e conceituais estabelecidas em torno da fotografia tradicional. Apesar da intensidade do termo, ele é adotado, neste trabalho, para identificar posturas que se propõem, não apenas a questionar, mas também desconstruir práticas da fotografia tradicional e limitações impostas pelo 2
O termo pós-fotografia se refere a imagens de aparência “fotográfica” que são modeladas diretamente no computador sem a necessidade da existência de um objeto real, um referente que reflita a luz para formar a imagem. 3
Neste trabalho, o termo “fotografia tradicional” se refere tanto à prática quanto às imagens obtidas através da utilização de câmeras fotográficas convencionais com uma postura também convencional, ou seja, que reproduz o padrão estético figurativo da perspectiva renascentista. Consideram-se câmeras convencionais aquelas disponíveis comercialmente – analógicas ou digitais – nas quais a imagem é formada através de um conjunto óptico - objetiva – sobre um material sensível disposto numa superfície perfeitamente plana do lado oposto à objetiva e delimitado por uma área retangular.
17
mercado ao aparato fotográfico. Posturas que estabelecem um corte conceitual e formal com a idéia da fotografia como reprodução fiel da realidade visível, como um análogo do referente. Para isso, optou-se por estudar a recente produção de imagens fotográficas estenopeicas, resultado da retomada da técnica por fotógrafos e artistas contemporâneos que, além de buscar novas opções expressivas de manifestação estética, procuram, muitas vezes, questionar o meio e as determinações das “novas tecnologias” impostas pela indústria fotográfica. Através de uma pesquisa bibliográfica de caráter descritivo/exploratório, buscou-se inicialmente um levantamento bibliográfico para fundamentar as bases conceituais delimitadas pela pesquisa. A partir do referencial teórico, observaram-se aspectos conceituais envolvidos na ontologia da imagem fotográfica. Paralelamente, realizou-se uma pesquisa bibliográfica a respeito dos aspectos técnicos envolvidos na construção da câmera e na formação da imagem. Outro procedimento adotado foi pesquisar o uso da técnica da fotografia estenopeica em atividades artísticas e de pesquisa estética a partir da observação de imagens, assim como, do acompanhamento da produção estenopeica artística contemporânea. Esses três caminhos de investigação procuram descrever os aspectos tecnológicos envolvidos com a forma de captação e de registro das imagens estenopeicas. Ao mesmo tempo, estabelecer parâmetros para identificar em que medida os resultados formais possibilitados pelo uso desse tipo de tecnologia aliados às posturas estéticas dos artistas/fotógrafos podem permitir o distanciamento das concepções de objetividade e mimese fotográficas. Inicialmente buscaram-se textos e publicações teóricas em língua portuguesa assim como imagens e artistas que trabalham com a técnica. Diante da escassez de material impresso, recorreuse a produções em outras línguas e, principalmente, a rede mundial de computadores. Cabe ressaltar que o contato com a produção recente, nacional e internacional, só foi possível por meio de pesquisas na internet, uma vez que os acervos das bibliotecas e museus não dão conta dessa produção. Distribuída por diferentes países, e com praticantes que não se restringem ao meio artístico institucionalizado, a prática da fotografia estenopeica abordada na pesquisa inclui usuários diversos, entre eles: artistas, fotógrafos profissionais e “amadores” - no sentido de amantes da fotografia. Usuários com diferentes conhecimentos técnicos que encontraram na fotografia estenopeica um meio de expressão e experimentação estética. Entrevistas com artistas brasileiros, realizadas por meio de correio eletrônico, foram essenciais para direcionar e identificar
18
o foco de interesse e a postura artística com relação à técnica, além de orientar as pesquisas na rede mundial de computadores. Apesar de restrições técnicas, conceituais e ideológicas, os artistas contemporâneos buscam, cada vez mais, alargar as fronteiras que limitam a fotografia, tanto como possibilidade expressiva como em sua conceitualização teórica. Isso vem reforçar a postura de alguns deles na direção de um rompimento com a técnica e a estética fotográfica praticadas convencionalmente. O uso de câmeras rudimentares, tecnologicamente “primitivas” ou que apresentam “deficiências” construtivas e a utilização de processos químicos alternativos, não disponíveis comercialmente, trazem aos artistas outras perspectivas expressivas. O artista/fotógrafo se desprende de certos estatutos visuais da fotografia para estabelecer outros, mais adequados às suas necessidades expressivas. No contexto artístico contemporâneo, a fotografia estenopeica, assim como o fotograma e outros inúmeros processos fotográficos históricos, chamados hoje de alternativos tais como o cianótipo, a goma-arábica, o platinótipo e a fotogravura, entre outros -, estão sendo retomados4. O intuito dos artistas, ao retomar essas técnicas, não é apenas o de produzir imagens diferentes daquelas obtidas pela fotografia tradicional, mas, principalmente, buscar maneiras de discutir o próprio meio. As possibilidades de rompimento com o processo fotográfico tradicional entendido como registro e reprodução “fiel” do referente, que surgem de propostas estéticas e atitudes experimentais na busca pelo entendimento dos processos de representação e dos códigos inscritos nas imagens técnicas5, revelam mais claramente a subjetividade e a presença do usuário – artista/fotógrafo - como construtor da representação. Ao mesmo tempo, essas novas imagens estimulam tanto aquele que as cria, quanto aquele que as observa a questionar a maneira como simbolizam e interpretam sua própria realidade, evidenciando que representações visuais como a fotografia são construções simbólicas social e culturalmente constituídas. A técnica não determina sozinha o resultado simbólico das imagens. Uma técnica mais avançada não significa necessariamente novos resultados simbólicos ou novas posturas estéticas. A construção simbólica das imagens fotográficas não está na técnica em si, mas nas intenções e posturas do 4
Para maiores informações sobre os processos fotográficos históricos, ver Monforte (1997). Uma versão eletrônica do livro está disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2008.
5
Segundo Flusser imagens técnicas são aquelas produzidas de forma programática ou com uma tendência automatizada, que fazem parte de um sistema em geral fechado para quem o opera e sempre mediado por um aparelho (FLUSSER, 2002).
19
artista/fotógrafo ao dispor daquele meio para criar imagens, e na tecnologia fotográfica, ou seja, a técnica fotográfica inserida no complexo contexto sócio-cultural do qual fazem parte o artista/fotógrafo criador das imagens e o espectador que as observa. Ao discutir-se a imagem fotográfica não se pode deixar de ter em mente a dimensão interdisciplinar do processo de construção do conhecimento e a importância da imagem como instrumento de conhecimento da realidade social mediado pela cultura e especialmente por um tipo de cultura visual do qual fazem parte as imagens fotográficas. Os seres humanos têm a capacidade de dar significado a tudo que se relaciona à sua realidade. É através do significado atribuído às representações (aos signos) - visuais ou não - que se dá sentido às experiências (GEERTZ, 1978). A fotografia está entre esses signos que estão na base do conjunto de processos de significação que é a cultura, regulando e identificando a existência humana. Produtos de um sujeito social e historicamente localizado, essas construções simbólicas são elaboradas a partir da vida em sociedade, resultado da interação entre os vários grupos sociais, com suas diferentes experiências, pois a história é dinâmica, e as experiências, heterogêneas. Cada grupo humano, em cada época, constrói os processos de significação, envolvendo sempre uma dimensão de pluralidade, porque suas experiências são diferentes e múltiplas. Essas experiências são incorporadas ao cotidiano, produzindo e reproduzindo as condições de existência através das práticas e das técnicas comuns a cada grupo, a cada cultura. Como resultado, tem-se diversas maneiras de significar o mundo, múltiplos discursos e diferentes “verdades”, ou, nas palavras de Bakhtin, inúmeras vozes sociais através das quais dá-se sentido ao mundo. Um mesmo signo poderá ter significações diferentes, dependendo da voz social que o enuncie (BAKHTIN, 1981, apud FARACO, 2003). As discussões sobre a imagem fotográfica seguem essa mesma lógica, trilhando por inúmeros e distintos caminhos que se entrelaçam e se entrecruzam como numa teia. Se existem fronteiras entre esses caminhos, elas são móveis e estão em constante transformação. Assim, podem-se lançar sobre a fotografia tantos pontos de vista quantos são os ângulos possíveis de se observar um objeto ou de fotografá-lo. Da mesma maneira como se modifica o sentido atribuído às imagens - representações visuais -, os conceitos sobre elas vão sendo alterados e transformados no decorrer da história, refletindo as experiências daquele contexto histórico, social e cultural. Essas diferentes vozes estão num contínuo diálogo, no qual ora se estabelecem trocas, ora
20
confrontos, como que em posições opostas. São olhares distintos, mas não isolados uns dos outros. É através dessa relação dialógica entre essas diferentes vozes que esta pesquisa procura se aproximar da imagem fotográfica. No decorrer desta dissertação, ao estudar o desenvolvimento histórico e os diferentes conceitos acerca da fotografia, percebe-se que, em alguns momentos, na história da fotografia, se privilegia um determinado olhar (uma determinada voz) em detrimento de outro, como num diálogo monológico, onde apenas uma das vozes prevalece. Entretanto, se observa que esses diferentes pontos de vista podem, e devem, ser lançados sobre a imagem fotográfica ao mesmo tempo. Nesta perspectiva, acredita-se que analisar a construção de imagens através da fotografia estenopeica permite perceber que a presença simultânea dessas diferentes vozes, desses diferentes olhares, é possível. Um olhar que é mimético, outro olhar que é desconstrutor, outro que é indicial, ou ainda outros que misturam um pouco de cada um deles. Todos esses olhares buscam, de alguma maneira, discutir a imagem fotografia em sua relação com o “real”. Desde seu surgimento, a fotografia trouxe consigo uma série de questionamentos conceituais acerca da semelhança que a aparência de suas imagens apresenta com a realidade. A intenção de reproduzir automaticamente a realidade, sem a interferência da subjetividade e da presença humana nos processos de registro do mundo visível, fez com que a fotografia, desde os seus primórdios, fosse conhecida como o “espelho do real”6. Diferentemente de outras técnicas de registro figurativo da realidade usadas pelo homem, como a pintura, a gravura e o desenho, o processo fotográfico trouxe, em sua constituição, a sensação aparente de não precisar e nem depender das habilidades manuais de quem a utilizasse. Gerando assim, a crença de que a gênese mecânica do meio supria a interferência humana na captação da imagem, em função de sua objetividade técnica. Num outro extremo, o conceito de fotografia, como “transformação do real”, considera a fotografia uma codificação ideológica produzida pela interferência de diversos elementos (técnicos, culturais, sociológicos, estéticos e outros) que agem determinando um rompimento com a idéia de que a fotografia se manifeste conceitualmente como um duplo do real. Voloshinov (1995) defende que a realidade material da ideologia é formada por signos: entidades elementares que constituem todos os sistemas de representação – numa definição 6
As expressões “espelho do real”, “transformação do real” e “traço de um real” foram tomadas da discussão de Philippe Dubois (1994) sobre a questão do realismo na fotografia.
21
simplificada, signo seria aquilo que representa algo que não é ele próprio. Para ele “essa representação das coisas se dá de forma dupla e contraditória: os signos ao mesmo tempo refletem e refratam a realidade visada pela representação” (MACHADO, 1984, p. 20). Os verbos refletir e refratar, tomados da óptica, significam igualmente modificar uma onda de luz pela interposição de uma superfície qualquer. No fenômeno da reflexão os raios são devolvidos ao meio de origem e na refração eles são absorvidos e desviados. Segundo Machado: [...] o fenômeno da refração nos impede de obter uma reprodução “fiel” dos sinais luminosos, já que ele os “deforma” ou os “transfigura” de acordo com a natureza do material cristalino interposto em seu percurso. É justamente esse caráter “transfigurador” dos signos que Voloshinov tem em mente ao apropriarse da expressão óptica refração [...] Eis porque refratar, na acepção de Voloshinov, significa operar uma modificação nos fenômenos. (MACHADO, 1984, p. 21).
O pensamento da fotografia como “transformação do real” se dá, neste caso, pela codificação ideológica produzida pela interferência dos diversos elementos que se colocam em seu processo de constituição. Com esta idéia, pode-se entender que a questão da gênese mecânica e da automatização da constituição da imagem fotográfica foi examinada por meio de uma concepção transformadora e interpretativa da realidade. Por esse conceito, não há fotografia sem interferência ideológica ou sem interpretação subjetiva. Ela é sempre considerada uma codificação. Na câmera estenopeica, a luz que chega até o material fotossensível para formar a imagem atravessa apenas um pequeno orifício. A ausência de lentes (objetivas) ou sistemas óticos baseados na refração luminosa, permite evitar alguns problemas ocasionados pela refração, ao mesmo tempo, impede uma série de correções e compensações que, supostamente, conferem às câmeras convencionais a fidelidade de imagem necessária à ilusão de objetividade obtida pelas imagens técnicas. No decorrer desta dissertação, adota-se o conceito de refração dentro da acepção de Voloshinov, como uma transfiguração dos signos que se processa pela re-interpretação que se faz da realidade, mediada por questões técnicas, estéticas e principalmente por questões sociais e culturais. No entanto, também o conceito óptico-físico de refração é discutido no momento em que se trata do processo de formação óptica da imagem, com o intuito de explicar diferenças que são fundamentais para demonstrar as especificidades da formação da imagem através do orifício em comparação à imagem formada pela objetiva.
22
Se, por um lado, existe a semelhança entre a imagem e o objeto representado e, por outro, a desconstrução da imagem fotográfica, que interpreta e transfigura o “real”, existe também uma forte ligação entre a imagem e seu referente. Na abordagem que considera a fotografia como “traço de um real”, um índice, na classificação semiótica de Peirce (2003), a inevitável sensação de presença do referente se dá pela conexão física entre o objeto e sua representação. A imagem fotográfica não seria possível caso não existisse o objeto que reflete a luz e que formará a imagem no interior da câmera. Assim, segundo Peirce, as fotografias são “produzidas em circunstâncias tais que foram fisicamente forçadas a corresponder ponto a ponto à natureza” (PEIRCE, 2003 p. 65). Nessa mesma teia que envolve as discussões sobre a imagem fotográfica também está presente o conceito de tecnologia. A multiplicidade de olhares com relação à tecnologia, com definições e conceitos confusos, muitas vezes, faz com que se tenha um entendimento equivocado de suas amplas dimensões, que vão muito além da técnica ou do artefato em si, mas se estendem como uma construção humana. Pode parecer estranho relacionar fotografia e tecnologia. A tendência seria, provavelmente, considerar a fotografia como uma técnica específica, ou no máximo falar em tecnologia fotográfica. No entanto, o mesmo olhar que leva a enxergar a imagem fotográfica como uma forma de significar o mundo e apreender a realidade, construindo conhecimento, permite olhar para a tecnologia como uma construção social complexa, com papel fundamental nos processos de significação do real e do simbólico. Da mesma forma, o mesmo olho que vê a tecnologia como “logos da técnica”, ou como a ciência aplicada à técnica, enxerga na fotografia apenas a aplicação prática de uma técnica, de um saber, ambas isoladas das relações sociais. As interpretações e os determinismos que envolvem os conceitos de fotografia e de tecnologia estão muito próximos. Assim, pode-se tomar a fotografia como um exemplo de como se constrói simbolicamente a idéia de tecnologia. E neste ponto, estudar uma técnica fotográfica específica ou um artefato em particular, como a fotografia estenopeica, permite verificar uma série de características que evidenciam certas concepções acerca da fotografia em si, e, ao mesmo tempo, acerca da tecnologia. Tanto a prática da fotografia estenopeica como os resultados imagéticos que ela possibilita permitem questionar os diferentes conceitos sobre a fotografia e, de certa forma, evidenciar algumas questões que envolvem sua prática. Assim, cabe inicialmente
23
discutir as definições que se traçam acerca da tecnologia como uma maneira de estabelecer desde já como serão lançados os olhares sobre a fotografia.
CONCEITO DE TECNOLOGIA O avião não foi feito para voar, mas para o homem voar. Álvaro Vieira Pinto7
É importante estabelecer uma diferenciação entre o uso que se fará dos termos técnica e tecnologia. Etimologicamente, o termo “tecnologia” vem da língua grega - technología, - tecknê: arte ou ofício, e logos: estudo, ciência, saber -, significando “o conhecimento da técnica”; o conjunto ou a totalidade de conhecimentos, especialmente de princípios científicos, que se aplicam a uma determinada atividade. Nesta acepção, o termo se confunde com a definição de técnica - do grego technikós, ‘relativo à arte’, ou pelo latin technicu - o conjunto de processos de uma arte; maneira, jeito ou habilidade especial de executar ou fazer algo. (FERREIRA, s.d.) O que se percebe é que, no senso comum, se estabelece uma hierarquização entre eles. A palavra “técnica” é associada a uma prática que se realiza de maneira mecânica, repetitiva, automática, como a fabricação de um utensílio ou de uma ferramenta, como a pedra lascada nas sociedades primitivas, resultado de um treinamento, destituído de qualquer elaboração sensível ou intelectual, enquanto “tecnologia” envolve a aplicação de teorias e experimentações científicas mais elaboradas. Milton Vargas define tecnologia como o desempenho científico da técnica, atribuindo a passagem da “técnica” para a “tecnologia”, não a uma evolução ou ao desenvolvimento interno das técnicas, mas às condições sócio-econômicas em que a tecnologia estaria inserida. (VARGAS, 1984 apud BASTOS, 2000) Neste caso, a passagem da técnica para a tecnologia se dá com a aliança entre a técnica e o conhecimento científico a partir do séc. XVIII, com a Revolução Industrial. No entanto, ambas são consideradas realizações humanas, e nelas estão inseridas questões que envolvem a produção das condições materiais de vida que fazem parte da experiência 7
PINTO, 2005, p. 80, v. 1
24
humana, desde os primórdios de sua existência. Assim, diferencia-se técnica de tecnologia não a partir de um momento histórico específico, ou de um modelo sócio-econômico, mas sim no uso que se faz do termo. Neste trabalho a palavra “técnica” é usada quando se está referindo ao conjunto de procedimentos e materiais utilizados para executar determinada tarefa, incluindo todo o desenvolvimento histórico e científico envolvidos em sua prática. Ao usar a palavra “tecnologia”, se está considerando todo o complexo contexto sócio-cultural do qual ela faz parte: o jogo de valores culturais, políticos, religiosos e econômicos no qual a técnica está inserida, e não apenas o processo de forma isolada, por isso a importância de se esclarecer desde já o entendimento do termo para este trabalho. É inegável que a tecnologia faz parte do contexto atual. Cada vez mais, objetos e bens que simbolizam e remetem à tecnologia, cercam a vida humana. No entanto, a percepção da tecnologia como uma vasta variedade de instrumentos e máquinas, desenvolvidas para satisfazer necessidades e melhorar a qualidade da vida humana é apenas uma das possibilidades de concebêla. O termo assume diferentes sentidos e interpretações dependendo do contexto em que estiver sendo abordado, o que torna sua conceituação extremamente complexa, levando muitas vezes a definições vagas e confusas. O olhar mais freqüente sobre a tecnologia é aquele que privilegia suas dimensões materiais, com concepções utilitaristas que atribuem ao termo um significado instrumental e que envolve basicamente as máquinas. Sob esse olhar, a tecnologia é vista como a aplicação de conhecimentos científicos: o que consequentemente atribui ao desenvolvimento e à inovação tecnológica o papel de transformar conhecimento científico em valor econômico. Outros olhares procuram pensar a tecnologia de forma mais ampla, apresentando conceitos que consideram também suas dimensões sócio-culturais, relacionando tecnologia e sociedade. Dentro desse modo de ver a tecnologia, se destacam as reflexões de Ruy Gama (1986), para quem a tecnologia moderna é a “ciência do trabalho produtivo”. Dentro do pensamento de tradição marxista, ele adota o conceito clássico de trabalho nas suas relações com o modo de produção. Entretanto, ao considerar o “trabalho produtivo”, Gama limita o conceito, por estabelecer uma ligação direta entre a tecnologia e o modo de produção capitalista, uma vez que ele considera como trabalho produtivo apenas aquele que produz valor de mercadoria (GAMA, 1986). Apesar de ampliar a compreensão do termo ao considerar suas dimensões sociais, Gama
25
restringe a possibilidade de pensar a tecnologia em outras formas de organização social, fora da lógica capitalista. Uma abordagem mais aberta vê a tecnologia por sua estreita interação com o ser humano, em seus aspectos social e cultural, considerando a tecnologia presente praticamente em todas as atividades humanas: desde as mais simples, dos primórdios da humanidade, até as mais complexas e sofisticadas, como as atuais. Os seres humanos construíram sua trajetória buscando na natureza as soluções para garantir a sua sobrevivência e satisfazer suas necessidades. Para superar as dificuldades impostas pelas forças naturais, eles se utilizaram e fabricaram instrumentos cujo desenvolvimento é fruto da aplicação de um conhecimento socialmente produzido e compartilhado, que pode ser considerado, portanto, tecnológico. Dessa forma, a tecnologia atravessa todas as formações sociais, independentemente do momento histórico ou do sistema político-econômico, uma vez que, para manter as condições materiais de vida, qualquer sociedade necessita se apropriar, criar e manipular técnicas que envolvem dados culturais, políticos, religiosos e econômicos, que constituem sua existência social. (BASTOS, 1997; CARVALHO, 2003). Seguindo essa mesma abordagem, têm-se os estudos desenvolvidos por Álvaro Vieira Pinto, no livro O Conceito de Tecnologia (2005). Para defender sua posição com relação ao caráter de dominação que se estabelece em torno da questão da tecnologia, Vieira Pinto destaca quatro significados principais, dentre as diferentes acepções do termo. O primeiro coloca a tecnologia como “a teoria, o estudo, a discussão da técnica”. No segundo significado, tecnologia equivale à técnica: os dois termos são utilizados sem distinção na linguagem corrente. No terceiro, o conceito de tecnologia é entendido como “o conjunto de todas as técnicas de que dispõe uma determinada sociedade, em qualquer fase histórica de seu desenvolvimento” (PINTO, 2005, p. 219). Como quarto significado está aquele que Vieira Pinto defende: que considera tecnologia como a ideologia da técnica. Nesse sentido, Vieira Pinto compartilha das idéias de Jürgen Habermas, com relação ao caráter ideológico presente nos domínios da ciência e da técnica: Não é apenas de maneira acessória, a partir do exterior, que são impostos à técnica fins e interesses determinados – eles já intervêm na própria construção do aparato técnico; a técnica é sempre um projeto (Projekt) histórico-social; nela é projetado (Projektiert) aquilo que a sociedade e os interesses que a dominam tencionam fazer com o homem e com as coisas. (HABERMAS, 1983, p. 304)
26
Lima Filho e Queluz (2005) apresentam uma outra maneira de pensar a multiplicidade de significados e apropriações que se fazem do termo. Buscando uma sistematização teórica, reunindo afinidades e discordâncias entre os diferentes conceitos de tecnologia, eles destacam duas matrizes conceituais que, de certa forma, englobam os significados descritos anteriormente. Cabe ressaltar, que mesmo dentro de cada uma das matrizes apontadas, existem posições e conceituações diversas ou até divergentes. A matriz instrumental, ou reduzida, concebe a tecnologia como técnica, isto é, “como aplicação prática de saberes e conhecimentos”. A matriz relacional, ou plena, compreende a tecnologia em sua dimensão relacional, ou seja, como “construção, aplicação e apropriação das práticas, saberes e conhecimentos.” (LIMA FILHO & QUELUZ, 2005, p.19). Este trabalho não se detém numa discussão profunda de cada uma dessas acepções. Busca apenas destacar alguns aspectos de sua conceituação, para nortear a discussão e apresentar a concepção de tecnologia da qual se partilha e que é adotada neste trabalho. O olhar que se lança sobre a questão da tecnologia considera que ela está presente e é desenvolvida de forma relacional em todas as culturas, como uma construção social complexa, participando e condicionando as mediações sociais, como força intelectual e material do processo de produção e reprodução social. Entende-se que ela não pode ser considerada como fenômeno isolado das relações sociais, independente das necessidades do modo de produção capitalista, como concebida pela conceituação instrumental, que atribui autonomia e neutralidade à tecnologia, pois não a considera como relação social, mas apenas como uma técnica, artefato ou máquina. (LIMA FILHO & QUELUZ, 2005) Bastos considera que a tecnologia é a capacidade humana de “perceber, compreender, criar, adaptar, organizar e produzir insumos, produtos e serviços”. Ela ultrapassa a dimensão puramente técnica, incorporando outros elementos da vida social, tornando-se “um vetor fundamental de expressão da cultura das sociedades” (BASTOS, 1998, p. 32). Compreender a tecnologia em sua dimensão sócio-cultural, como um elemento formador da sociedade, não significa acreditar que ela, de alguma forma, a determine. O desenvolvimento tecnológico se intensifica com a consolidação do capitalismo, e junto com ele, a idéia de que a tecnologia determina a vida social. Esta, capaz de trazer progresso e transformar toda a sociedade: como se as inovações e avanços tecnológicos fossem responsáveis pela melhoria da qualidade de vida, e como se essas melhorias fossem acessíveis a todos. Essa valorização
27
exagerada do desenvolvimento tecnológico pode levar, num outro extremo: ao entendimento de que aqueles que não se desenvolverem e não inovarem tecnologicamente estarão condenados à dominação. Acusa-se o desenvolvimento tecnológico pelas desigualdades sociais e pelo desemprego estrutural na sociedade globalizada. Com isso, delega-se ao conhecimento tecnológico uma relação de poder e dominação que, na verdade, deve ser compreendida de forma mais ampla, pela interação de diferentes forças sociais, políticas, econômicas, culturais e ideológicas (CARVALHO, 1998). Os discursos e concepções acerca da tecnologia são também reflexos de diferentes interesses políticos, econômicos e sociais. Ao descontextualizá-la, retirando-a do contexto sóciocultural no qual ela é produzida e apropriada, esta-se incorrendo em determinismos que ratificam os interesses dominantes, dotando a tecnologia de autonomia, como se ela, por si só, dominasse a vida humana. A esse respeito, concordando com as idéias de Vieira Pinto (2005), João Bastos defende que a tecnologia é um “instituto social que desempenha um papel político” (BASTOS, 1997, s.p.). Sendo assim, a tecnologia não pode ser considerada politicamente neutra. Segundo João Bastos: A estrutura de poder se utiliza da tecnologia, como de outros meios, para exercer sobre ela o controle de suas ações e de suas ideologias. A tecnologia, embora fundamentada em conceitos científicos, vincula-se ao concreto de máquinas e ferramentas. [...] A atividade instrumental não deixa de ser um ‘discurso’ que corresponde ao conceito e à interpretação que se dá àquela técnica. A escolha de determinadas máquinas e o controle exercido em nome de uma determinada classe social institucionalizam a tecnologia. Escolhidas por essas sociedades, as máquinas se transformam em instrumentos de inovação e adaptam-se a seus interesses e necessidades. (BASTOS, 1998, p. 14)
O desenvolvimento tecnológico pode trazer avanços e melhorias para a vida humana, mas em contrapartida cria novas necessidades. “O rol de necessidades vai aumentando à medida que inovações tecnológicas surgem, sem que se perceba o quanto se depende dessa artificialidade” (CARVALHO, 1997) Novas máquinas são desenvolvidas para satisfazer as necessidades humanas ao mesmo tempo em que criam novas necessidades. Nas palavras de Vieira Pinto: À medida, porém, que vão sendo compreendidos os processos naturais e descobertas as forças que os movimentam, com a conseqüente possibilidade de utilização delas pelo homem, para produzir artefatos capazes de satisfazer novas necessidades, e essa fabricação se multiplica constantemente, o mundo deixa de ser o ambiente rústico espontâneo e se converte em ambiente urbano, na casa povoada de produtos de arte e, na época atual, de aparelhos que põem as forças naturais a serviço do homem. (PINTO, 2005, p. 47, v. 1)
28
Pode-se incluir as máquinas semióticas8 no rol desses instrumentos criados pela sociedade para satisfazer e gerar novas necessidades. O discurso e os conceitos reunidos nessas máquinas refletem os interesses políticos, econômicos e sociais. Segundo Flusser (2002), os aparelhos, assim como o aparelho fotográfico “funciona em função dos interesses da fábrica, e esta, em função do parque industrial”, que atende aos interesses administrativos, econômicos, políticos, culturais, ideológicos e assim por diante, seguindo uma cadeia ad infinitum. (FLUSSER, 2002, p. 26-27). No entanto, o desenvolvimento tecnológico não é resultado de uma evolução do processo ou das máquinas em si, mas resulta da interação que o ser humano estabelece com a tecnologia. À medida que o ser humano cria os processos e estes produzem melhor os bens que lhe darão condições convenientes de existência, ele mesmo se recria. Para Vieira Pinto, as mudanças são frutos das necessidades e dos usos que a humanidade faz do conhecimento, assim: as estupendas criações cibernéticas com que hoje nos maravilhamos resultam apenas do aproveitamento da acumulação social do conhecimento, que permitiu fossem concebidas e realizadas. Não derivam das máquinas anteriores enquanto tais, mas do emprego que o homem fez delas (PINTO, 2005, p. 9, v. 2).
Descontextualizar a tecnologia em relação às práticas sociais significa separar tecnologia e sociedade (LIMA FILHO & QUELUZ, 2005). Isso configura-se como determinismo tecnológico, ao enxergar a tecnologia como entidade independente das relações sociais, produzindo impactos positivos ou negativos sobre a sociedade, consequentemente, dominando a vida social. Essa visão reducionista sugere, de certa forma, uma impossibilidade de resistência a esse fenômeno de dominação. Da mesma maneira que a tecnologia pode ser percebida como uma entidade neutra e transparente, independente das relações sociais, a imagem fotográfica, por sua aparente objetividade, calcada em conceitos científicos, pode da mesma forma, levar a esse entendimento. Entretanto ela também é resultado da interação de um conjunto complexo de diferentes práticas sociais e históricas, como comenta Machado (1984):
8
Máquinas semióticas segundo Machado seriam aquelas cuja propriedade básica é de “estarem programadas para produzir determinadas imagens e para produzi-las de determinada maneira, a partir de certos princípios científicos definidos a priori. [...] cuja função básica é de produzir bens simbólicos destinados à inteligência e à sensibilidade do homem.” (MACHADO, 2002, p.149)
29
Os sistemas simbólicos que os homens constroem para representar o mundo são
ideológicos exatamente porque, longe de constituírem entidades autônomas transparentes, estão sendo determinados, em última instância, pelas contradições da vida social. (MACHADO, 1984, p. 13)9
∗ ∗ ∗ Retomando a questão das representações visuais, pode-se dizer que as imagens figuram nesses sistemas simbólicos construídos para representar o mundo com uma importância cada vez maior. Uma vez que as imagens atuam como instrumentos de conhecimento da “realidade” social, principalmente hoje que se vive em um tempo cuja compreensão e assimilação dependem cada vez mais das imagens. Entre as maneiras encontradas pelo ser humano para construir imagens está o uso da máquina fotográfica. Como artefato humano, se parece com ele, na medida em que busca reproduzir seu olhar. No entanto, as máquinas fotográficas, ao menos as convencionalmente produzidas em escala industrial, se limitam a um modo de olhar específico, eliminando outros inúmeros pontos de vista, outros olhares possíveis ou imagináveis, suprimindo outras possibilidades de olhar para o mundo. Este olhar “fotográfico”, impregnado na imaginação e na experiência visual humana, é fruto de uma “cultura visual” formada por meio da representação de um modelo geométrico: a perspectiva linear, que passou a codificar a informação visual através de cálculos matemáticos desde o Renascimento e, a partir de então, assumido como reprodução fiel do visível. Esse modelo perspéctico geométrico, que caracteriza o olhar fotográfico, não se restringiu às imagens construídas a partir da câmera fotográfica ou dos demais artefatos que surgiram a partir da câmera, mas se estende, ao menos no ocidente, a todo o imaginário visual, até mesmo às imagens obtidas a partir de outros meios de representação – tais como o desenho e a pintura. O olhar foi moldado ao “fotográfico” antes mesmo do advento da própria fotografia, transformando a forma de perceber o mundo através das imagens e a própria interpretação que se faz dele (JALLAGEAS, 2007). Igual a fotografia, a perspectiva é uma construção simbólica, um artefato humano que procura reproduzir um modo de representar e pensar o mundo. 9
Arlindo Machado considera o conceito de ideologia, a partir da perspectiva de classes de Marx e Engels em A ideologia Alemã. Simplificadamente, ideologia seria o “sistema das representações de que se valem os homens para se dar conta das relações materiais (naturais e sociais) em que se acham mergulhados”. (MACHADO, 1984, p. 12)
30
Considerar que a tecnologia está nos artefatos, ou mesmo que esses artefatos são “neutros” e “transparentes”, significa ser determinista e aceitar a posição de espectador passivo, ou, segundo as proposições de Vilém Flusser (2002), a posição de “funcionário”10. Neste aspecto, a fotografia estenopeica figura como uma possibilidade de rompimento com o determinismo dos aparelhos fotográficos produzidos em escala industrial. Ao construir sua própria câmera o artista/fotógrafo está rompendo com a cadeia de consumo e ao mesmo tempo interferindo profundamente no olhar escolhido para construir a representação e no resultado plástico/formal e, portanto, estético da imagem. Com a possibilidade de romper com diferentes conceitos limitadores que se estabelecem com relação à imagem fotográfica tradicional, a prática da fotografia estenopeica demonstra que as imagens técnicas são também construções técnicas/simbólicas sócio-culturalmente elaboradas. Diferentemente de abordagens instrumentais, já citadas anteriormente, que consideram a máquina como determinante do processo, acredita-se que as opções estéticas do artista, ao construir a câmera estenopeica, permitem questionar os modelos de representação do “fotográfico”, e os inúmeros conceitos que se estabelecem sobre sua relação com o real, evidenciando a dimensão relacional da tecnologia. O questionamento e as atitudes contestadoras com relação ao meio permitem a esses artistas/fotógrafos colocar-se de forma mais consciente e responsável diante de suas práticas sociais. Com o desafio de questionar conceitual e formalmente seus meios, os artistas/fotógrafos contemporâneos, fortemente envolvidos pelas mediações técnicas, encontram na prática da fotografia estenopeica, uma maneira de repensar as imagens técnicas e, ao mesmo tempo, o determinismo tecnológico embutido na concepção do aparato fotográfico e das demais máquinas semióticas derivadas da câmera fotográfica. A presença da imagem, como instrumento de conhecimento do real, sempre caracterizou a vivência humana: desde a pré-história, com a reprodução de suas experiências no interior das cavernas por meio das pinturas rupestres; ou as inscrições hieroglíficas do antigo Egito; até hoje, com o crescente aumento da dependência das imagens visuais para compreender e assimilar a realidade social. As diferentes maneiras de expressar essas experiências cotidianas apresentam–se nas imagens com uma multiplicidade de possibilidades de interpretação e de transformação da
10
Quando o usuário utilizar um aparelho sem conhecer seu funcionamento interno, lidando apenas com as opções disponíveis e limitadas pelo programa da máquina está atuando como um “funcionário”. O conceito de “funcionário” de Vilém Flusser é abordado de forma detalhada na página 203 desta dissertação.
31
realidade. A percepção e a interpretação do que é o real e de como ele é representado permeia toda a discussão em torno das representações visuais e da fotografia. As maneiras como se percebem e se interpretam as imagens estão em constante transformação e tomam características que, de certa forma, condizem com os valores do contexto histórico social e cultural no qual estão inseridas. A cada momento se esta interferindo, construindo, desconstruindo e reconstruindo novas formas de perceber e de representar a realidade. Como resultado, são lançados diferentes olhares sobre a imagem, e especialmente sobre a imagem fotográfica. Para compreender esses diferentes olhares, opta-se por desenvolver este trabalho em três momentos: inicialmente serão abordadas as relações da imagem fotográfica com o real. Em seguida, apresentam-se os aspectos técnicos da câmera estenopeica e suas implicações na imagem. Num terceiro momento, será feito um breve comentário a partir da observação de três imagens estenopeicas, nas quais podem ser percebidas diferentes vozes, que ressoam diferentes conceitos acerca da imagem fotográfica. Entre os conceitos discutidos no decorrer da dissertação, opta-se por tratar de apenas três deles, evidenciados pela fotografia estenopeica, e que se apresentam, em maior ou menor grau, materializados em cada uma das imagens escolhidas. Conforme foi apresentado anteriormente, podem-se lançar sobre a fotografia múltiplos olhares. Sem a intenção de limitá-los, mas apenas para compreender melhor sua diversidade, apresentam-se duas maneiras de abordar o assunto, que reúnem, em cada uma delas, uma diversidade de olhares possíveis. Em um extremo está a fotografia como representação simbólica. Noutro extremo tem-se um ponto de vista técnico, que visa descrever o dispositivo e seus potenciais. Este trabalho procura se aproximar da imagem fotográfica por esses dois olhares, aparentemente opostos, como forma de simplificar a abordagem. O caminho trilhado para se aproximar desses olhares, que passa inicialmente pela ontologia da fotografia e segue com a abordagem dos aspectos técnicos de constituição da fotografia estenopeica é apenas um recurso metodológico necessário dentro das limitações de um texto construído linearmente. De forma alguma se pretende suprimir a complexidade do debate. Na verdade, perceber-se-á que esses olhares se interpenetram e se complementam, uma vez que cada um deles é composto por inúmeros outros olhares. Em nenhum momento se acredita que só existam essas duas abordagens possíveis, ou que elas possam existir de forma estanque, com o início de uma encerrando a outra. No entanto este trabalho se limitará a elas como estratégia de abordagem.
32
Compreender o que caracteriza as imagens fotográficas significa buscar as relações simbólicas ligadas às suas referências e valores culturais e, ao mesmo tempo, entender como a utilização de diferentes artefatos tecnológicos pode transformar as imagens e a própria relação simbólica que se estabelece com ela. Para desenvolver essa discussão, no capítulo 1, numa primeira abordagem, busca-se entender a imagem fotográfica como representação, como uma construção sócio-cultural-simbólica em sua ligação com a realidade. Inicialmente discute-se a utilização da perspectiva linear, posteriormente automatizada pela câmera fotográfica, como modelo de representação adotado para traduzir o real visível desde o Renascimento. Em seguida são abordadas as várias maneiras de encarar a imagem fotográfica em sua relação com o real, se aproximando como um duplo da realidade, ou se afastando como uma transformação, uma desconstrução dessa mesma realidade. Entre esses campos opostos serão colocadas outras possibilidades de ligação da imagem fotográfica e o real. Passa-se então, a abordar esses conceitos no decorrer da história da fotografia, observando a forma como eles se alternam em diferentes posturas por parte de artistas e fotógrafos, destacando os movimentos que se aproximam da fotografia estenopeica. Para finalizar esse primeiro momento da dissertação, trata-se do contexto artístico recente, abordando-se as diferentes posturas estéticas e conceituais com relação, especificamente, à fotografia. No capítulo 2, um segundo olhar busca compreender a fotografia como um aparato, construído técnica, social e culturalmente. Menos como uma ferramenta neutra e transparente, mas como decorrência de um conjunto de intencionalidades, como uma construção complexa e não simplesmente uma técnica. Para isso, observam-se inicialmente as características do aparato câmera estenopeica -, para então se avaliar as diferentes possibilidades e opções do usuário ao construir e utilizar a câmera e as possíveis implicações de suas escolhas na evidência do caráter sócio cultural dessa construção simbólica. Como terceiro momento, no capítulo 3, observa-se a imagem fotográfica e busca-se identificar nela a multiplicidade de possibilidades de percebê-la. Para isso, analisam-se algumas fotografias estenopeicas e, através da observação de seus aspectos formais e plásticos, aponta-se para uma possível presença de diferentes conceitos a respeito da imagem fotográfica, buscando evidenciar como a fotografia estenopeica pode questionar, ou mesmo romper com os conceitos homológicos da fotografia tradicional.
33
Nas considerações finais, toma-se a fotografia estenopeica como uma possibilidade de desconstruir e romper com a homologia ingênua ao se distanciar dos cânones figurativos da fotografia tradicional, como a perspectiva renascentista. Ao mesmo tempo, ao evidenciar a participação do autor como construtor da representação no momento que constrói a câmera, consequentemente interferindo no processo de captação da imagem, o artista/fotógrafo, usuário da técnica, se liberta das determinações do aparelho. Dessa forma, a fotografia, assim como a tecnologia, não se apresenta como um artefato neutro ou transparente. Ao contrário, ela é um artefato opaco, pois na medida em que é uma construção simbólica social e culturalmente constituída, é um processo dinâmico, construído e reconstruído continuamente e no qual se interfere o tempo todo.
34
1
A IMAGEM E O “REAL”: A IMAGEM FOTOGRÁFICA E OS
SEUS CÓDIGOS
O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas – que espelho? Há-os “bons" e "maus", os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si ‘muito’ diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. João Guimarães Rosa
35
Para compreender as relações da imagem fotográfica com o “real” precisa-se entender como o ser humano se relaciona com a natureza e com a cultura e como traduz suas experiências através de símbolos. Cabe, inicialmente, esclarecer o uso dos termos real e realidade no decorrer deste trabalho. A partir do entendimento de Paulo Laurentiz, considera-se “real como tudo aquilo que acontece sem a ação do pensamento do homem e realidade como tudo aquilo que é fruto do pensamento humano” (Laurentiz, 1991, p. 99). A interpretação que se faz desses conceitos, e o uso desses termos neste trabalho definem o “real” como sendo o “objeto”, a “coisa” que existe de forma “concreta”, “material”, “física”; excluindo-se desse grupo os “objetos” mentais ou imaginários. Especialmente neste primeiro capítulo, quando se trata da relação entre a imagem e o objeto “real”, o termo “real”, é utilizado a partir das colocações de Philippe Dubois (1994), fazendo menção ao “referente” que permitiu a obtenção da imagem fotográfica. Dito de outra forma, nomina-se como “real” aquele objeto ou cena “concreta” que refletiu a luz, possibilitando a formação de uma imagem no interior da câmera fotográfica. Com relação ao conceito de “realidade”, busca-se na filosofia (idealismo) seu esclarecimento. O que se costuma chamar de realidade “é apenas o que podemos conhecer por meio das idéias de nossa razão. [...] embora a realidade externa exista em si e por si mesma, só podemos conhecê-la tal como nossas idéias a formulam e a organizam e não tal como ela seria em si mesma.” (CHAUI, 2000, s.p.) Para Geertz (2002), a arte está entre as diferentes maneiras pelas quais o ser humano apreende o mundo e expressa seus sentimentos com relação à vida. A fotografia, como forma de manifestação artística, representa e reproduz conhecimento da realidade. A maneira como ela constrói e representa simbolicamente essa realidade tem como modelo de codificação do espaço, a perspectiva linear renascentista. Os conceitos de mundo que estão por trás desse modelo de representação refletem a visão antropocêntrica que caracterizou a cultura ocidental naquele momento. De alguma forma, a construção matemática da perspectiva linear confere à perspectiva uma racionalidade e uma objetividade, essenciais para a ilusão de realidade, que garantiram a aceitação da fotografia como espelho do real até os dias de hoje. Entretanto, o caráter ideológico operado por esse código de representação levou ao questionamento da objetividade fotográfica, deslocando sua visão como espelho neutro e atribuindo a ela um caráter transformador. Ao mesmo tempo, a gênese do processo fotográfico confere à sua imagem uma ligação tal com o
36
referente, que atribui a ela um valor de testemunho, de prova indicial da existência do objeto fotografado. Com o objetivo de se aproximar desses múltiplos olhares que se lançaram e que se lançam sobre a fotografia, este capítulo apresenta inicialmente uma breve abordagem da produção de conhecimento por meio das representações visuais como construção de bens simbólicos, mais especificamente, a representação através da imagem fotográfica. Em seguida, para apresentar os diferentes conceitos ontológicos da fotografia, discute-se o uso da perspectiva renascentista como forma de esclarecer o modelo de representação adotado pela fotografia; para então apresentar as diferentes concepções acerca da fotografia com relação ao mundo visível real: como espelho perfeito; como agente transformador; como índice; ou ainda, como o conjunto dos três aspectos. A seção seguinte trata da trajetória da fotografia, observando-se os diferentes conceitos ontológicos acerca da imagem fotográfica e buscando-se os momentos em que as posturas conceituais e formais se aproximam da fotografia estenopeica; descrevendo-se principalmente aqueles que apresentam posturas experimentais e questionadoras com relação ao meio fotográfico. O capítulo é encerrado com a apresentação do contexto artístico contemporâneo. Destaca-se a produção fotográfica que busca romper com as barreiras que limitam a fotografia, discutindo-se para isso, o conceito de “fotografia expandida”. Finaliza o capítulo, um breve panorama da produção fotográfica contemporânea brasileira.
1.1
IMAGEM COMO REPRESENTAÇÃO É através da interação com a cultura que, não só se constroem as experiências e dá-se
sentido aos acontecimentos, como também dá-se forma, ordem, objetivo e direção à vida. O ser humano utiliza símbolos significantes - palavras, gestos, desenhos, sons musicais - para impor um significado à sua existência. A cultura é o conjunto complexo desses sistemas de símbolos significantes - a linguagem, a arte, o mito, o ritual - que regulam a existência humana, não como simples padrões de comportamento, mas como mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções - que governam a conduta humana e são condição essencial para a sua existência e razão de sua especificidade. (GEERTZ, 1978)
37
Submetendo-se ao governo de programas simbolicamente mediados para a produção de artefatos, organizando a vida social ou expressando emoções, o homem determinou, embora inconscientemente, os estágios culminantes do seu próprio destino biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele próprio se criou (GEERTZ, 1978, p. 60).
Através da arte, assim como das demais expressões dos objetivos humanos como a religião, a moralidade, a ciência, o comércio, a tecnologia, a política, o direito, ou nas formas de lazer e até na forma como organiza sua vida prática e cotidiana, é que um povo transmite os sentimentos que tem pela vida (GEERTZ, 2002). A arte faz parte desse sistema geral de formas simbólicas que é a cultura. Os sinais com que os artistas trabalham são reflexos de uma sensibilidade formada coletivamente com base na vida social, materializando uma forma de viver, trazendo “um modelo específico de pensar para o mundo dos objetos, tornando-o visível” (GEERTZ, 2002, p. 150). Esse processo de significação, constituído social e historicamente, só faz sentido se observado considerando-se seu contexto cultural e temporal específicos, respeitando-se as diferenças e semelhanças entre povos e indivíduos. A forma como o ser humano percebe e interpreta esses signos é determinada pela sociedade que influencia sua experiência de vida. Ele vive e vê o mundo com os olhos e valores de sua época (GEERTZ, 2002). Dentro do universo das artes, as imagens estão entre os mais importantes objetos simbólicos dos quais o ser humano se utiliza para pensar, sentir e traduzir seu mundo. As diferentes culturas fizeram e fazem usos distintos das imagens, sejam elas imagens mentais ou imagens visuais concretas. As imagens mentais são abstratas, imateriais, e aparecem como visões, fantasias, imaginações, modelos, ou seja, como representações construídas mentalmente por outros estímulos perceptivos: táteis, olfativos, auditivos ou gustativos e não pelos olhos. As imagens visualmente concretas são representações visuais com um suporte definido materialmente: como desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas, televisivas, holo e infográficas (SANTAELLA & NÖTH, 2001). As imagens, mentais ou visuais, seja qual for seu uso, se caracterizam como uma representação cultural, uma forma de construção de conhecimento sobre a realidade. Em seu significado filosófico, representação é o conteúdo concreto apreendido pelos sentidos, pela imaginação, pela memória ou pelo pensamento11. Dentre os diversos usos do termo, 11
Verbete representação (FERREIRA, s.d.).
38
Jacques Aumont (1993) aponta como ponto comum, que representação “é um processo pelo qual institui-se um representante que, em certo contexto limitado, tomará o lugar do que representa” (AUMONT, 1993, p. 103). Para Peirce, representação é o processo da apresentação de um objeto a um intérprete de um signo ou a relação entre o signo e o objeto. Santaella e Nöth explicam que, para estabelecer uma distinção, Peirce nomeia como representação o ato de representar e designa aquilo que representa como representamen. (SANTAELLA & NÖTH, 2001) Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas como referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamen.[...] A palavra signo será usada para denotar um objeto perceptível, ou apenas imaginável, ou mesmo inimaginável num certo sentido [...] para que algo possa ser um signo, esse algo deve “representar”, como costumamos dizer, alguma outra coisa, chamada seu Objeto [...]. (PEIRCE, 2003, p.46-47)
A respeito da representação como ato de representar, Aumont (1993) apresenta alguns conceitos com relação ao ato de olhar uma imagem: a arbitrariedade e/ou a motivação da representação, a ilusão e o realismo. A escolha do representante/substituto é arbitrária e não depende necessariamente da semelhança entre o objeto e sua representação, mas sim de questões culturais. Se uma determinada representação é considerada mais adequada do que outra, por ser mais semelhante a um dado objeto, isso se deve a convenções produzidas socialmente. A representação pode ser motivada, ou seja, certas técnicas de representação podem ser consideradas mais “naturais” do que outras, por serem aprendidas com mais facilidade por qualquer indivíduo, ou porque nem precisam ser aprendidas. Dentre os teóricos que partilham dessa opinião, Aumont cita alguns exemplos: Ernst Gombrich argumenta que a perspectiva artificialis reproduz várias características da perspectiva natural12, enquanto André Bazin considera o plano-seqüência do cinema como uma representação mais próxima do real que outras (AUMONT, 1993). Aumont prossegue dizendo que uma imagem pode criar uma ilusão sem ser a réplica exata de um objeto. Não é o fato de ser um duplo do real, que provoca na representação a ilusão de realidade, mas sim 12
Para distinguir os conceitos de perspectiva artificialis e perspectiva natural Jallageas (2007, p.45) cita a definição de René Taton (1915-2004) e Albert Flocon (1909-1994): “A palavra prospectiva ou perspectiva designava, no latin da Idade Média, a ciência óptica que os gregos chamavam de [...] optikê, ciência que trata dos fenômenos luminosos. A perspectiva geométrica, elaborada pelos artistas, chamar-se-á então perspectiva artificialis, enquanto a óptica, receberá o nome de perspectiva communis ou naturalis” (1967, p. 47).
39
a interpretação psicológica e cultural que se faz dela. A questão do realismo é vista como uma construção social com regras determinadas. “O realismo, enfim, é um conjunto de regras sociais, com vistas a gerir a relação entre a representação e o real de modo satisfatório para a sociedade que
formula essas regras” (AUMONT, 1993, p. 105). O fascínio pela representação do mundo por meio de imagens e a sua ilusão de realidade são até hoje os mesmos descritos por Platão na “alegoria da caverna”13. No Mito da Caverna, os prisioneiros, acorrentados e imobilizados, sem poder mover a cabeça, observam sombras de marionetes projetadas pela luz do fogo na parede da caverna e imaginam ver seres verdadeiros. Um dos prisioneiros, ao se libertar e sair da caverna, é inicialmente cegado pela luz e em seguida começa a distinguir as imagens dos seres vivos e os próprios seres. Essa dificuldade colocada por Platão nessa alegoria, em dissociar a aparência da realidade, a imagem de seu original, é vivida ainda hoje, quando a relação com as imagens se dá de forma ingênua, sem a consciência de que são apenas “imagens”. Platão, em A República (1996), coloca que são as formas inteligíveis (as idéias) que permitem um saber legítimo, imutável e eterno. As formas materiais sensíveis (as coisas físicas e os seres) são manifestações inferiores, que encobrem e mascaram as formas ideais que devem guiar o conhecimento: as idéias. Para alcançar a verdade, deve-se desprender-se da matéria, direcionando a atenção para as formas puras e verdadeiras que não estão ao alcance dos sentidos. Segundo Entler (2008), Platão (1996) diz que o artista, ao partir do mundo material visível para extrair dele sua aparência, segue o caminho contrário, pois, as imagens são simulacros que falam de modo sedutor aos sentidos, mas estão ainda mais distantes das formas ideais que interessam ao conhecimento. Por isso, as imagens não podem ser fontes da razão. Representar é imitar as 13
“Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada, nem locomover-se, forçados a olhar apenas a parede do fundo, e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do Sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais cujas sombras são projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são os seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna, no primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus olhos não estão acostumados; pouco a pouco, habitua-se à luz e começa ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. [...] A caverna, diz Platão, é o mundo sensível onde vivemos. A réstia de luz que projeta as sombras na parede é um reflexo da luz verdadeira (as idéias) sobre o mundo sensível. Somos os prisioneiros. As sombras são as coisas sensíveis que tomamos pelas verdadeiras. Os grilhões são nossos preconceitos, nossa confiança em nossos sentidos e opiniões.” (CHAUI, 2007, s.p.)
40
aparências, e a arte de imitar está muito afastada do verdadeiro, pois a imitação só toma uma pequena parte de cada coisa, passa a ser um simulacro ou fantasma. Aqueles que se deixam seduzir por essas falsas manifestações são como prisioneiros dentro de uma caverna, que acabam tomando como realidade as sombras projetadas em seu interior (ENTLER, 2008). Ainda segundo Platão, tomar a imitação como verdade é ser “tolo”. Olhar para uma imagem e acreditar que é a realidade é não discernir a “ciência” da “ignorância”. A noção de imagem se relaciona com a falsidade: “Aparecer e parecer, mas não ser, dizer algo, porém não a verdade” (PLATÃO apud SILVA, 2001, p. 71). A imagem é parecida, feita à semelhança daquilo que é verdadeiro: uma cópia meramente reproduzida a partir do que é o autêntico ser. No entanto, apesar de não ser o verdadeiro, a imagem é enquanto cópia. Assim, a imagem é e não é ao mesmo tempo (SILVA, 2001). Em outras palavras, a imagem não é o real, mas enquanto imagem é um ente real, cuja ontologia14 merece ser investigada.
1.2
ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRÁFICA Como todo artefato social, a imagem funciona apenas em proveito de um hipotético saber do espectador. Jacques Aumont15
As imagens assumem hoje, de forma cada vez mais intensa, o papel de instrumentos de compreensão e assimilação da realidade social. As imagens visuais invadem a vida contemporânea e a saturação de imagens na experiência diária acaba por distorcer e criar uma tensão entre o real e o imaginário. A imagem fotográfica, de certa forma, enfatiza essa dissolução entre realidade e representação e traz consigo uma série de questionamentos acerca de sua semelhança com a realidade. A questão da semelhança entre a representação e o objeto representado se faz mais presente na história das artes do ocidente a partir do Renascimento. A busca por aproximar as
14
A ontologia estuda a essência ou sentido dos seres ou entes - físico ou natural, do ente psíquico, lógico, matemático, estético, ético, temporal, espacial, etc. - antes de serem investigados e transformados em conceitos pelas ciências e depois de se tornarem objeto de interesse para nossa vida cotidiana. Busca as diferenças e as relações entre eles, seu modo próprio de existir, sua origem, sua finalidade. (CHAUI, 2007)
15
AUMONT, 1993, p. 163.
41
imagens figurativas da realidade visível se concretiza com o desenvolvimento da perspectiva
artificialis, que procurava organizar o espaço da representação de modo a trazer, para as imagens bidimensionais, a sensação das três dimensões da percepção direta. Essa forma simbólica16 do Renascimento, fundada em leis científicas de construção do espaço, deveria proporcionar a imagem mais justa e fiel da realidade visível, “na verdade, mais do que analogia, o que a imagem figurativa buscou [...] foi uma homologia absoluta, a identidade perfeita entre o signo e o designado.” (MACHADO, 1984, p. 27). A fotografia é herdeira da perspectiva renascentista, uma vez que os fundamentos óticos do processo fotográfico reproduzem os fundamentos desse código de representação. A fotografia, assim como a perspectiva, é uma construção simbólica, um artefato humano que procura reproduzir um modo de representar e pensar o mundo. Olhar para a questão da perspectiva renascentista como modelo de representação, é essencial para a compreensão da construção do olhar reproduzido pela câmera fotográfica. O olhar se transforma com a utilização de instrumentos intermediários para a construção da representação, que surgem a partir do Renascimento. Observar e entender essa transformação do olhar permite compreender de que maneira esses aparelhos intervirão, a partir de então, na percepção do mundo através de imagens, e consequentemente, na interpretação do próprio mundo, tanto por parte do artista quanto do espectador. Diferentemente de outras técnicas de registro figurativo da realidade usadas pelo homem (como a pintura, a gravura e o desenho), o processo fotográfico trouxe em sua constituição a sensação aparente de não precisar e nem depender das habilidades manuais de quem o utilizasse. A presença de um artista na construção da representação imprimia sua subjetividade à imagem, por maior que fosse sua habilidade em reproduzir o real, não satisfazendo a obsessão de realismo. A fotografia, assim como outras formas de impressão como a gravura, depende de um processo mecânico. No entanto, se na gravura é o artista quem cria a imagem, na fotografia é o
16
Segundo Jacques Aumont (1993), a noção de forma simbólica, foi proposta por Ernst Cassirer e se aplica a todas as grandes construções intelectuais e sociais pelas quais o homem se relaciona com o mundo - arte, mito, religião, cognição - “para ele, a linguagem como forma simbólica dos objetos na comunicação verbal, a imagem artística como forma simbólica das idéias da comunicação visual, os mitos e depois a ciência como forma simbólica de nosso conhecimento do mundo natural” (AUMONT, 1993, p. 215). A expressão foi popularizada por sua aplicação à perspectiva feita por Erwin Panofsky. Ao retomar a noção de forma simbólica, Panofsky quer mostrar que a perspectiva não é uma convenção arbitrária, mas que “cada período histórico teve ‘sua’ perspectiva, ou seja, uma forma simbólica da apreensão do espaço, adequada a uma concepção do visível e do mundo.” (AUMONT, 1993, p. 215)
42
apertar de um botão de uma máquina que capta a imagem. Ao comparar a fotografia e a pintura, André Bazin, em seu texto Ontologia da imagem fotográfica de 1945, atribui à fotografia uma
objetividade essencial: “uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído” (BAZIN, 2005). A formação da imagem por meio de um instrumento mecânico regido por leis científicas como a física e a química, dotou a fotografia de uma objetividade que permitiu a formação de imagens do mundo exterior sem a intervenção do artista. Dessa forma, a fotografia gerou uma confiança de que a gênese mecânica do meio supria a interferência humana na captação da imagem em função de sua objetividade técnica. Nas Palavras de Bazin: Pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação nada se interpõe a não ser um outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma, automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo. [...] Todas as artes se fundam sobre a presença do homem, unicamente na fotografia é que fruímos da sua ausência. (BAZIN, 2005, s.p.)
Susan Sontag, em seu livro Ensaios sobre a Fotografia de 1973, comenta a gênese automática da fotografia, e a independência maior do processo com relação à interferência do autor na imagem: A fotografia tem poderes que nenhum outro sistema de imagens jamais possuiu, pois, ao contrário dos anteriores, ela não depende do fotógrafo. Por mais cuidadoso que seja o fotógrafo ao intervir na organização e orientação do processo fotográfico, o processo em si mesmo permanecerá sempre ópticomecânico (ou eletrônico), com funcionamento automático, com uma maquinaria que será indubitavelmente adaptada para fornecer mapas da realidade cada vez mais detalhados e, em conseqüência, mais úteis. A gênese mecânica de tais imagens, e a exatidão da força que conferem configuram nova relação entre imagem e realidade. (SONTAG, 1981, p. 151-152)
A credibilidade da fotografia como testemunho do real, que perdura até os dias de hoje, se deve principalmente à consciência que se tem do processo mecânico de produção de suas imagens - sua gênese mecânica. Contudo, a fotografia não é um meio neutro e a participação do artista na construção da imagem vai além da escolha do enquadramento e do momento de apertar o botão. A mesma Sontag, admite que, “[...] embora num certo sentido a câmera efetivamente capte a realidade [...] a fotografia constitui uma interpretação do mundo, da mesma maneira que a pintura ou o desenho.” (SONTAG, 1981, p.7) As discussões em torno da fotografia estão repletas desses olhares diversos e, por vezes, contraditórios, como os de Susan Sontag, que num momento vêem a fotografia de forma
43
transparente; no instante seguinte como interpretação; mais adiante como prova documental. Essa variedade de interpretações não são mais do que o resultado da multiplicidade de possibilidades que caracterizam essa complexa forma de representação. Para entender essa complexidade da imagem fotográfica, busca-se em sua ontologia as questões que envolvem sua produção e sua percepção. Todas as discussões a esse respeito concentram-se de uma forma ou de outra em torno da relação de semelhança entre os objetos e sua representação e os diferentes níveis de interferência causados por sua gênese mecânica de produção. Pode-se dizer que as diferentes abordagens ontológicas da fotografia se reúnem em torno de dois principais conceitos. Inicialmente o discurso da mimese, que predominou no século XIX, entende a fotografia como um espelho perfeito da realidade. No século XX, prevalece o discurso da desconstrução que busca apontar que, apesar de sua gênese mecânica, a fotografia sofre interferências; na verdade, a imagem fotográfica, ao invés de espelhar, interpreta e transforma a realidade. Têm-se, mais recentemente, abordagens que pensam a imagem fotográfica dentro da semiótica de Charles Sanders Peirce. A fotografia pode ser considerada como um traço do real, como índice na classificação de Peirce (2003). Essa concepção assinala a conexão física entre o objeto e sua imagem como razão fundamental para a sensação inevitável de realidade perante as imagens fotográficas. Essa conexão entre imagem e o objeto fotografado alimenta a discussão de alguns autores sobre o referente; é ele que causa a fotografia. Alguns investigadores do campo da imagem, como Arlindo Machado (2001), colocam a fotografia na que seria a ordem dos símbolos de Peirce: como a expressão de um conceito geral e abstrato. Machado (2001) cita ainda Flusser (2002), quando este afirma que a fotografia é a tradução de teorias científicas em imagens; a materialização de conceitos da ciência; ou, nas palavras de Flusser: “são conceitos transcodificados em cenas” (FLUSSER, 2002, p. 32). Ainda dentro da semiótica de Peirce, existe a tendência de considerar a fotografia como um signo completo. José Luis Caivano considera a fotografia “como uma mensagem visual complexa [...] que não pode ser considerada em uma classe específica de signos [pois,] distintos aspectos de uma mesma fotografia podem funcionar como distintos tipos de signos.”17
17
Tradução do texto em espanhol: “[...] es pertinente considerar a la fotografía como um mensage visual complejo, [...] que no puede ser encasillado em uma classe espacífica de signos. [...] distintos aspectos de una misma fotografía pueden funcionar como distintos tipos de signos.” (CAIVANO, 1999, p. 40)
44
(CAIVANO, 1999, p. 40). A imagem fotográfica é considerada índice por sua gênese; pode guardar semelhança com seu referente, portanto, pode ser ícone e, ao mesmo tempo, pode ser símbolo, por se caracterizar como uma interpretação baseada em convenções científicas. Essas várias abordagens convivem até hoje em maior ou menor grau, dependendo principalmente do uso que se faz da imagem fotográfica e da percepção que se espera dela junto aos espectadores. Apesar de se tratar de um debate extenso, a discussão da ontologia da imagem fotográfica será apresentada como uma maneira de compreender a complexidade do signo fotográfico. Para isso, o percurso que se traça, a partir daqui, para tratar das diferentes teorias a respeito da imagem fotográfica, toma como base a discussão de Philippe Dubois, sobre a questão do realismo na fotografia, presente em seu livro O ato fotográfico e outros ensaios, de 1990. Dubois apresenta diferentes posições, defendidas por críticos e teóricos da fotografia no decorrer da história, reunidas em três diferentes pontos de vista: “a fotografia como espelho do real (o discurso da mimese)”; “a fotografia como transformação do real (o discurso do código e da desconstrução)”, e “a fotografia como traço de um real (o discurso do índice e da referência)” (DUBOIS, 1994, p. 26). Antes de lançar esse olhar mais detalhado sobre as diferentes questões que envolvem a relação entre a imagem fotográfica e suas ligações com a realidade, se discute, inicialmente, a construção simbólica da representação em perspectiva, para, em seguida, tratar das diferentes abordagens ontológicas acerca da imagem fotográfica.
1.2.1
Perspectiva: O Modelo Perspéctico como Visão de Mundo A experiência artística humana se traduz através de diferentes meios de expressão, como
a música, o teatro, a poesia, a escultura, mas também por meio de representações visuais bidimensionais como o desenho e a pintura. No caso específico das artes visuais, os artistas sempre se depararam com a dificuldade de construir uma representação do espaço através de uma imagem bidimensional. Não existe uma maneira “natural” para isso, o que existem são estratégias que os artistas utilizam para criar a ilusão de profundidade em uma imagem plana, ou seja, a ilusão de tridimensionalidade em uma superfície bidimensional, como é o caso da perspectiva utilizada na pintura, por exemplo. Também não existe um tipo único de perspectiva.
45
Ao transpor o que ele vê na realidade para o plano bidimensional da tela, o artista opera uma tradução do real, ele acrescenta, retira e transforma uma série de informações como as cores, o movimento e o espaço. Os critérios que o artista usa para essa transposição são resultados de uma tradição enraizada na cultura e que foi absorvida por ele, assim como pelo observador da obra, ao longo de sua formação e de sua educação. Se, ao observar uma imagem, acredita-se que ela reproduza o real, é porque esse modelo de representação corresponde às expectativas. Para isso, tem-se que estar habituado a enxergar através desses modelos. Assim, o artista usa a perspectiva para orientar a percepção do espaço supostamente tridimensional, pois esse tipo de construção simbólica faz parte da “cultura visual”. (ENTLER, 2007) Ao longo da história da arte pode-se observar a presença de diferentes construções perspectivas, como a perspectiva medieval ou invertida, utilizada na Idade Média, ou a perspectiva cavaleira das estampas japonesas clássicas, para citar apenas dois exemplos. No entanto, a mais conhecida foi aquela que se consolidou no Renascimento. A perspectiva renascentista, também conhecida como perspectiva artificialis, central, linear ou uniocular, está baseada em leis científicas de construção do espaço fundamentadas na geometria euclidiana e na representação cartesiana do espaço que materializam as concepções de espaço de Isaac Newton e Gottfried Wilhelm Leibniz.18 A perspectiva que interessa a este trabalho é a artificialis. Assim, a partir daqui, a utilização do termo “perspectiva”, estará se referindo à perspectiva artificialis. Os princípios óticos que fundamentam a perspectiva já haviam sido observados através do funcionamento da camera obscura. As características da formação da imagem no interior da câmera conduziram à afirmação da propagação retilínea da luz, um dos postulados da Óptica Euclideana, que coincide com a compreensão do funcionamento do mecanismo ótico da visão de Leon Battista Alberti. Em 1435, Arberti escreve De Pictura, um tratado sobre a pintura que defende a figuração realista da natureza e para isso, recomenda que o artista obedeça ao código da perspectiva artificialis. Dedicou seu livro ao arquiteto italiano Filippo Brunelleschi, que realizou uma série de experiências que se tornaram importante subsídio para a matematização da perspectiva (FRAGOSO, 2004).
18
A esse respeito ver: FRAGOSO, 2003.
46
Em 1415, Brunelleschi realiza sua primeira experiência com a tavolleta na Praça São Giovane, em Florença. Ele pinta sobre um pequena tábua (tavolleta) o batistério São Giovane visto do portal da catedral Santa Maria del Fiore. Em seguida ele elabora um dispositivo para fazer o espectador ver a imagem pintada sobreposta à realidade que ela representa. A imagem pintada de acordo com a construção perspectiva tinha um grande poder de convencimento devido à sensação de verossimilhança entre a imagem que se observa através da tavolleta e a imagem do Batistério observada a olho nu. (Figura 1 e Figura 2)
Brunelleschi pinta a imagem do batistério em um dos lados de uma superfície de madeira. Para que o modelo e o real se sobreponham e se confundam perfeitamente, Brunelleschi cria um orifício na madeira onde está pintada a imagem. De frente para a imagem ele coloca um espelho. A tavolleta é posicionada entre o observador e o edifício e o que o observador vê é apenas uma superfície de madeira com um orifício. Ao olhar pelo orifício, o espectador vê a imagem pintada através do seu reflexo no espelho. A visão direta do edifício é então ocultada, mas o reflexo do espelho mostra a imagem pintada no reverso da tavoletta sobreposta à realidade que o espelho encobre. Ao ver a imagem, o espectador crê ver a própria realidade, sobre a qual a imagem pintada se insere. A pintura sobre a tavoletta poderia ser vista de frente, sem o orifício e o espelho que a reflete. Mas a idéia de Brunelleschi não é a de mostrar uma imagem, mas demonstrar um princípio, o da perspectiva. Princípio que deveria permitir simular, sobre o plano bidimensional, uma realidade tridimensional. Para que o experimento fosse bem sucedido e evitar problemas com as proporções, o observador deveria estar posicionado em um ponto específico, e a distância entre a tela, o espelho e o objeto teriam que ser cuidadosamente calculadas. Além disso, para a demonstração da tavolleta, Brunelleschi escolheu um edifício simétrico, o que evitou as discrepâncias decorrentes da reversão esquerda/direita do espelho. Para ampliar a impressão de realismo, o céu não era pintado na tavolleta; no lugar dele, Brunelleschi colocou uma camada de prata reflexiva. Ao observar a imagem pelo orifício, o observador poderia ver as nuvens do céu se movendo com o vento. Figura 1: Desenho mostrando o funcionamento da tavolleta. Fonte: História da perspectiva, Instituto Maserati, Itália.19
19
Disponível em: Acesso em 20 fev. 2008.
47
Figura 2: Modelo da primeira tavolleta de Brunelleschi. Fonte: Instituto e Museu de História da Ciência, Firenze. 20
Segundo Jallageas, Alberti (1989) afirma que um quadro funciona como uma janela através da qual se observa uma secção do mundo visível (JALLAGEAS, 2007, p. 34). Assim, a representação perspectivada seria uma secção plana da “pirâmide visual” que reproduz a projeção do campo visual a sua frente.21 A maneira como Alberti descreve o traçar das linhas reforça a afinidade entre a representação em perspectiva e a visão humana. Ele descreve as linhas conectando ponto-a-ponto os objetos do mundo e os olhos do observador. Fragoso (2004) cita a descrição de Alberti: “quando se vê, produz-se um triângulo cuja base é a quantidade vista e os lados são esses raios, os quais se estendem dos pontos da quantidade até o olho” (ALBERTI, 1989, p. 76). Para construir a perspectiva, um ponto fixo era escolhido para representar o centro visual, que correspondia ao centro da “pirâmide”. Desse ponto partiam linhas retas que se ligavam aos contornos de todos os objetos que estavam dentro do campo de visão. Esse ponto fixo é chamado ponto de fuga. (Figura 3 e Figura 4)
20
Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2008.
21
“Pirâmide visual” é o termo utilizado por Alberti para denominar o ângulo de visão do olho.
48
Figura 3: Esquema de Alberti para a construção perspectiva. Fonte: Museu virtual, Instituto de Artes de Universidade de Brasília.22
Figura 4: Objeto em perspectiva. Desenho mostrando um objeto visto em perspectiva onde: LH – linha do horizonte, que equivale à altura dos olhos e PF – ponto de fuga.
Um estudo para a obra A Adoração dos Magos de Leonardo da Vinci mostra com bastante clareza a precisão na construção da perspectiva, como, por exemplo, o traçado das linhas do piso, que orientam o posicionamento dos objetos, como no modelo de Alberti. (Figura 5).
Figura 5: Leonardo da Vinci, estudo para A Adoração dos Magos, c. 1481. Galeria UFFIZI, Florença Fonte: Livraria do Congresso, EUA. 23
22
Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2008.
23
Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2008.
49
Além de Alberti, Leonardo da Vinci, Filippo Brunelleschi e Albrecht Dürer, desenvolveram aparelhos para facilitar a produção de seus trabalhos artísticos, utilizando a perspectiva. Para construí-la, o ponto de vista do artista deveria se manter fixo, o que se pode observar em alguns desenhos que mostram que esses aparelhos incluíam algum tipo de dispositivo, para orientar e manter o posicionamento do olho do artista durante a reprodução da cena, associado a uma grade de linhas horizontais e verticais. (Figura 6 e Figura 7)
Figura 6: Desenho da “janela” de Leonardo da Vinci. Fonte: New Principles of Linear Perspective, 1811. (RENNER, 2000) Esta ilustração de Brook Taylor, mostra como um olho está sendo usado para observar o topo do cubo, ABCD, projetado na janela de Leonardo, que é a superfície de intersecção FGHI.
Figura 7: Albrecht Dürer, Pintor Estudando as Leis do Escorço, 1525. Fonte: Book of Measurements, c. 1525 (RENNER, 2000) A gravura de Dürer mostra o artista utilizando uma grade quadriculada para facilitar a construção da perspectiva da cena. A mesma grade é reproduzida no plano onde o artista desenha. É importante observar a pequena haste, que continha um furo por onde o artista deveria olhar a cena para manter seu ponto de vista fixo. Tanto artistas quanto modelo deveriam se manter na mesma posição durante todo o trabalho, para que a reprodução da perspectiva fosse eficaz.
50
A partir do Renascimento, a perspectiva, como modelo de representação do espaço, passa a ser vista como a maneira mais justa e fiel de traduzir a realidade visível, capaz de traduzir a visão da natureza mais próxima possível da visão do olho humano. A própria definição dicionarizada do termo, considera a perspectiva como uma forma de representação equivalente à visão natural: [Do latin: perspectiva; perspicere - ver através de]; significando: “Arte de representar os objetos sobre um plano tais como se apresentam à vista.” (FERREIRA, s.d.) O pintor e fotógrafo David Hockney defende em seu livro O conhecimento secreto, de 2001, que, a partir do início do século XV, instrumentos ópticos como espelhos e lentes teriam sido usados por muitos artistas ocidentais para auxiliar na criação de suas obras: [...] a partir do início do século XV, muitos artistas ocidentais usaram a óptica – com o que me refiro a espelhos e lentes (ou uma combinação dos dois) – para criar projeções fieis. Alguns dos artistas usavam essas imagens projetadas diretamente para produzir desenhos e pinturas, e cedo esse novo modo de retratar o mundo – esse novo modo de ver – disseminou-se. (HOCKNEY, 2001, p. 12)
Hockney realizou uma pesquisa na qual reproduziu os métodos e procedimentos de trabalho usados a partir do século XV pelos artistas na execução de suas pinturas. A partir de suas experiências, ele afirma que, mesmo antes do século XVII, quando se acredita que pintores como Canaletto e Vermeer, em particular, estivessem usando a câmera obscura, os artistas já dispunham de uma ferramenta óptica para auxiliar a construção da imagem em perspectiva. (HOCKNEY, 2001) A partir do século XVII e mais amplamente no século XVIII, passou-se a ter na camera
obscura uma maneira mais simples de construir a imagem em perspectiva. Com o auxílio de uma lente no lugar do orifício, a imagem era projetada e se formava sobre uma superfície translúcida. O artista, então, poderia desenhar sobre a imagem projetada. O mecanismo de refração da lente fazia com que os raios luminosos convergissem para um único ponto, fazendo com que um ponto no objeto correspondesse a um ponto na imagem projetada, formando a imagem em perspectiva. Nasce então, o mecanismo ótico da fotografia, que surge justamente para automatizar a obtenção da perspectiva artificialis. (Figura 8)
51
Figura 8: Camera obscura do séc. XIX, Dionysis Larder, 1855. Fonte: The Museum of Science and Art, Museum Victoria. 24 Alguns aparelhos, além de lentes para melhorar a qualidade da imagem, continham um espelho que refletia a imagem em uma superfície translúcida, normalmente um vidro despolido, para facilitar o controle e a visualização da imagem.
A base científica da construção perspectiva confere a ela uma aparente neutralidade, já que a representação é construída com base em leis físicas, como a óptica, sem a interferência da subjetividade humana. Erwin Panofsky (1892-1968) define a perspectiva como forma simbólica da experiência humana do espaço e questiona a representação perspectivada como forma ideal de representação, denunciando que esse reconhecimento é uma construção cultural.25 Machado comenta as idéias de Panofsky: É essa “objetividade”, essa racionalidade, esse distanciamento que possibilitam a constituição do efeito de “realidade” dessa perspectiva [...]. Mas, ao mesmo tempo, essa mesma homogeneidade impõe um ponto de vista subjetivo, uma determinação do olho totalizador do sujeito da representação [...]. Ao olhar para um quadro construído em perspectiva, o espectador parece ver tão-somente o “reflexo” especular de uma realidade que se abre para ele como numa janela; o que ele não percebe, na maioria das vezes, é que esse quadro já está visto por um olho hegemônico que lhe dirige o olhar. (MACHADO, 1984, p. 73)
O ponto de vista único da perspectiva coloca o sujeito como construtor do olhar; o mundo passa a ser visto pelos olhos humanos. Esta visão corresponde à ideologia da burguesia ascendente do Renascimento, onde a ordem divina passa a ser substituída por uma ordem racional e científica (MACHADO, 1984). 24
Disponivel em: . Acesso em: 04 mar. 2008.
25
Ver: AUMONT, 2004, p. 215; FRAGOSO 2004, p. 108; MACHADO, 1984, p. 73.
52
A fotografia, como sistema simbólico de representação da realidade construído pelo homem, assim como a perspectiva, passa a representar o mundo de acordo com as concepções de um grupo social dominante. Entretanto, não se pode atribuir essa culpa ao aparato câmera fotográfica em si, mas, como pondera Jacques Aumont, “é nas normas estilísticas, mais do que no aparelho, que se inscrevem os efeitos ideológicos”. O espectador lida com o espaço ilusório da representação porque ele, de certa forma, tem consciência dos meios dessa ilusão, ou seja, ele tem a expectativa de tridimensionalidade. (AUMONT, 2004, 143) Na verdade, o artista usa a perspectiva para orientar a percepção de espaço do espectador, que seria supostamente tridimensional. Para percebê-la assim, precisa-se de um repertório e de um contexto que faça enxergar a cena como tridimensional. Tem-se que ter a expectativa de tridimensão e partilhar do mesmo contexto social, cultural e histórico para poder enxergar a tridimensionalidade nessa representação plana. Está-se tão habituado a enxergar em perspectiva, que, muitas vezes, é através de imagens irreais, construídas em perspectiva, que se percebe como o olhar está condicionado. Alguns artistas tiram partido dessa expectativa do observador para “brincar” com as construções em perspectiva. (ENTLER, 2007) (Figura 9)
Figura 9: Maurits Cornelis Escher, Waterfall, 1961 Fonte: The Artchive. 26 Nesta gravura, Escher constrói um objeto impossível respeitando as regras geométricas da perspectiva. Acompanhando o percurso da água parece que ela está descendo, mas está subindo. O que num momento está atrás, noutro momento está na frente. Olhando para as colunas, por exemplo, elas estão na frente e atrás ao mesmo tempo. 26
Disponível em: . Acesso em 04 mar. 2008.
53
A construção do espaço tridimensional não é arbitrária, o artista usa a perspectiva para orientar a percepção do espaço, supostamente tridimensional, e a fotografia também pode gerar essas discrepâncias (Figura 10). As características ópticas de alguns tipos de objetivas fotográficas acentuam essas distorções entre os planos. Ao observar uma fotografia feita com uma objetiva grande angular, por exemplo, tem-se a sensação de que os diferentes planos estão mais distantes entre si do que realmente estão. Com uma teleobjetiva, a sensação é inversa: os diferentes planos ficam mais próximos do que na realidade.
Figura 10: Ilusão perspectiva, s. d. Fonte: ENTLER, 2007.27 Nesta fotografia só se percebe a forma real do objeto por seu reflexo no espelho. Este tipo de ilusão só acontece se porque a foto foi tirada de um ponto de vista específico, como as construções em perspectiva. Se o ponto de vista mudar, a ilusão se desfaz.
Ao incorporar a técnica da camera obscura, a informação visual da fotografia passa a ser codificada por essa construção simbólica que é a perspectiva renascentista que predomina até hoje, mesmo com todo o recente desenvolvimento científico e filosófico com relação às concepções do espaço. Novas concepções de espaço têm surgido apontadas por teorias científicas contemporâneas, como a teoria da relatividade de Albert Einstein, no início do século XX, que
27
Esta imagem também está disponível em: . Acesso em 25 mar. 2008.
54
atribui uma quarta dimensão ao espaço – o tempo; ou a teoria das cordas e das supercordas, que surgiu no final do século XX, na tentativa de explicar a propagação da luz no vácuo e que propõe um espaço em dez dimensões, unificando a teoria da relatividade geral de Einstein e a mecânica quântica (FRAGOSO, 2003). Ainda assim, elas não foram suficientes para que a construção do espaço através da perspectiva renascentista deixasse de ser vista como a forma mais correta de representar o mundo. Deve-se ter em mente que o modelo da perspectiva é um artifício que codifica o sistema fotográfico, assim como os demais sistemas visuais posteriores à fotografia, que se baseiam no uso de câmeras e lentes. Essa codificação, assumida como modelo, faz com que as imagens perspectivadas sejam vistas como uma forma “natural” de representação, como janelas; artefatos transparentes e neutros e não como sistemas simbólicos, produtos da experiência humana, construídos a partir de conjuntos de crenças socialmente constituídos.
1.2.2
A Fotografia como Espelho do Real: A Mimese A idéia de reprodução automática da realidade – segundo apenas as leis da óptica e da
química - sem a intervenção humana direta, ao contrário da pintura, que era resultado do trabalho manual do artista, leva a discursos controversos quando compara a fotografia à pintura. No seu início, a fotografia era tida apenas como um instrumento de reprodução da realidade. Uma ferramenta auxiliar para os artistas, que a utilizavam como um esboço inicial para seus trabalhos, suprindo a necessidade de representação da realidade visível. Nesse sentido, os pintores do séc. XIX reagiram positivamente à fotografia. O processo automático de captação reduzia o trabalho do pintor, traduzindo a realidade tridimensional para o plano bidimensional da tela. A fotografia existia para “servir” à pintura. A fotografia era (se não é ainda hoje) considerada inferior à pintura justamente porque sua gênese automática e o caráter mimético28 de suas imagens levavam ao entendimento de que 28 O conceito de mimesis designa, em sua acepção mais geral, “imitação”. De origem grega, foi desenvolvido por Platão e Aristóteles. Pode-se apresentar, de forma abreviada, o conceito de mímesis a partir da discussão entre as posições sobre a obra de arte em Platão, na República, e em Aristóteles, na Poética. Para Platão o conceito de mimesis é pejorativo. Ao tratar do conceito de imitação em sua obra, refere-se a ele como uma impossibilidade de ser “cópia fiel da realidade”. Afirmando que o decalque, uma reprodução perfeita só é possível a um deus, nunca ao homem. Essa imitação é extremamente perigosa para a obtenção do objetivo dos “cidadãos da República” que é se aproximar
55
qualquer pessoa poderia utilizá-la, sem a necessidade do gênio criador de um artista para construir a representação. É o que se percebe em comentários como o de Sontag: “a fotografia tem a desagradável reputação de ser considerada a mais realista e, por conseguinte, a mais fácil, dentre as artes miméticas (1981, p.51)”. Enquanto a fotografia está a serviço da pintura ela é muito bem vista. Entretanto, ao menor sinal de que a fotografia poderia vir a reclamar seu papel como arte, surgem reações e criticas intensas. Dubois (1994) apresenta essa questão, descrevendo a reação dos artistas contra o domínio crescente da indústria técnica durante todo o séc. XIX. Diferentemente da pintura, que faz parte do universo das artes, a fotografia era colocada no campo da indústria técnica, afastada da criação e do criador. Dubois (1994) cita as críticas do poeta e teórico da arte francês Charles Baudelaire, com relação à fotografia: Estou convencido de que os progressos mal aplicados da fotografia contribuíram muito, como aliás todos os progressos puramente materiais, para o empobrecimento do gênio artístico francês [...]. Quando se permite que a fotografia substitua algumas das funções da arte, corre-se o risco de que ela logo a supere ou corrompa por inteiro graças à aliança natural que encontrará na idiotice da multidão. É portanto necessário que ela volte a seu verdadeiro dever, que é de servir ciências e artes, mas de maneira bem humilde [...]. Mas se lhe for permitido invadir o domínio do impalpável e do imaginário, tudo o que só e válido porque o homem lhe acrescenta alma, que desgraça para nós! (BAUDELAIRE, 1859 apud DUBOIS, 1994, p. 29).
Essas pesadas críticas, além de colocarem a fotografia no papel de mera imitadora da natureza a serviço da pintura, também destituem qualquer atitude criadora por parte de quem a realiza e mesmo de quem a observa. Podendo ser utilizada por qualquer pessoa, sem a necessidade de grandes conhecimentos técnicos ou estéticos. Sobre essa concepção, Dubois (1994) cita ainda Hippolyte Taine: [...] a fotografia é a arte que, numa superfície plana, com linhas e tons, imita com perfeição e sem qualquer possibilidade de erro a forma do objeto que deve reproduzir. Sem qualquer dúvida a fotografia é um instrumento útil à arte pictural. É manejada muitas vezes com gosto por gente culta e inteligente, mas, afinal, nem se cogita compará-la com a pintura (TAINE, 1865 apud DUBOIS, 1994, p. 29).
da realidade do mundo das idéias. Para Aristóteles há na espécie humana a tendência natural para o imitar. Ele compreende o conceito mimesis como um aspecto fundamental das artes miméticas. A mimesis é imitação da ação. Há uma separação entre os indivíduos que praticam as artes miméticas e esta divisão é estabelecida conformemente à qualidade dos que representam a imitação. Conclui-se, por fim, que todas as artes poéticas - inclusive a dança, pintura, escultura e música - são reconhecidamente artes miméticas. A imitação, para Platão era reprodução sem criação, mera repetição. Aristóteles, como discípulo de Platão, toma para si o conceito de mimesis, mas refuta o mestre, afirmando a mimesis como imitação criadora. Imitação que também produz e não só reproduz. (ARAÚJO, 2007; OLIVEIRA, 2007)
56
Por outro lado, teóricos como Walter Benjamin conseguem perceber algo positivo com a participação da fotografia no mundo das artes. Em seu ensaio A obra de arte na época de suas
técnicas de reprodução, de 1936, Benjamin afirma que, com as novas técnicas de produção e reprodução, como a fotografia e o cinema, desenvolvidos entre os séculos XIX e XX, a obra de arte perde sua “aura”. Ao mesmo tempo em que qualidades como a “autenticidade” e “autoridade” deixam de fazer sentido, por outro lado, ao perder sua “aura”, a arte deixa para trás o aspecto elitista e tradicional, deixando de ser privilégio de apenas alguns para atingir a grande massa, ou seja, segundo Benjamin, as novas técnicas de reprodução da arte poderiam, em última análise, promover a democratização no campo das artes: “multiplicando as cópias, elas transformam o evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas” (BENJAMIN, 1980, p. 8). Os mesmos discursos que, à primeira vista, se referem à fotografia de forma positiva, trazem ainda uma separação entre arte e fotografia. Ao enxergar na fotografia um instrumento fiel de reprodução do real, “uma técnica muito mais bem adaptada do que a pintura para a reprodução mimética do mundo”, a fotografia passaria a cumprir funções que até então eram exercidas pela pintura (DUBOIS, 1994, p. 30). Dubois acrescenta que, segundo esses discursos: [...] graças à fotografia, a prática pictural poderá doravante adequar-se àquilo que constitui sua própria essência: a criação imaginária isolada de qualquer contingência empírica. Eis a pintura de certa forma libertada do concreto, do real, do utilitário e do social. (DUBOIS, 1994, p. 31)
Essa idéia de libertação da pintura pela fotografia fica bastante explícita no texto de André Bazin, A ontologia da imagem fotográfica, de 1945: A fotografia, ao redimir o barroco, liberou as artes plásticas de sua obsessão pela semelhança. Pois a pintura se esforçava, em vão, por nos iludir, e esta ilusão bastava à arte, enquanto a fotografia e o cinema são descobertas que satisfazem definitivamente, por sua própria essência, a obsessão do realismo (BAZIN, 2005, s.p.)
Por trás desse discurso libertador, existe uma separação bastante clara entre os domínios da fotografia e da pintura. Para a fotografia, a função documental, a referência, o concreto, o conteúdo, enquanto que para a pintura se destinam: a arte, a busca formal, o imaginário. Esta separação é reflexo de um conjunto de “pré-conceitos” que colocam a técnica e as atividades
57
humanas em lados opostos. Num extremo, restringe a fotografia ao resultado objetivo de um aparelho que se julga neutro; no outro, a pintura como produto subjetivo da sensibilidade de um artista e de sua habilidade. (DUBOIS, 1994, p. 32) Essa ligação da fotografia com o real e seu valor documental se embasa nos pressupostos científicos do processo fotográfico. O que leva a crer que a gênese mecânica e os processos físicoquímicos – hoje eletrônicos - envolvidos na produção da fotografia, superam a participação do fotógrafo na construção da imagem. Um dos primeiros aspectos que chama a atenção ao se observar uma imagem fotográfica é a sensação de semelhança entre a imagem e os objetos, seres e ou cenas fotografadas. Olhar a fotografia por sua aparência mimética, como se a imagem fotográfica fosse um espelho perfeito do mundo visível, foi o pensamento dominante no século XIX, mas continua até hoje fazendo parte das discussões a respeito da fotografia. Um dos pensadores mais conhecidos pela discussão da fotografia como espelho do real – discurso da mimese - foi Roland Barthes. Semiólogo francês, Barthes produziu textos que se tornaram clássicos no estudo da imagem fotográfica. Seu pensamento, calcado na idéia da gênese mecânica da fotografia, defende a imagem fotográfica como uma representação transparente, ou seja: um observador diante de uma fotografia, não precisa, diferentemente da pintura, interpretar as intencionalidades do pintor para compreender a imagem. A aparente ausência do fator humano entre o objeto e a imagem no processo fotográfico isenta a fotografia do deciframento. Essa idéia da fotografia como “mensagem sem código”, ou seja, como uma mensagem que não precisa ser decifrada, fica bastante clara em dois textos escritos por Barthes na década de 1960: A mensagem
fotográfica de 1961 e A retórica da Imagem, de 1964. Qual o conteúdo da mensagem fotográfica? O que transmite a fotografia? Por definição, a própria cena, o literalmente real. Do objeto à sua imagem há, na verdade uma redução: de proporção, de perspectiva e de cor. No entanto essa redução não é, em momento algum, uma transformação (no sentido matemático do termo); [...]; entre esse objeto e sua imagem não é absolutamente necessário interpor um relais, isto é, um código; é bem verdade que a imagem não é o real, mas é, pelo menos, o seu analogon perfeito, e é precisamente essa perfeição analógica que, para o senso comum, define a fotografia. Surge assim, o estatuto próprio da imagem fotográfica: é uma mensagem sem código... (BARTHES, 1990, p. 13).
Segundo Barthes (1990), assim como outras formas de reprodução analógica da realidade como desenhos, pinturas, cinema e teatro, a fotografia é uma mensagem sem código. No
58
entanto, diferentemente da fotografia, essas outras mensagens apresentam, além do conteúdo analógico direto (cena, objeto, paisagem), uma outra mensagem que é resultado da ação criativa do autor. Assim, Barthes (1990) atribui a essas “artes imitativas” dois tipos de mensagem: a primeira é a mensagem denotada que é o próprio analogon, o real literal, a significação óbvia de senso comum, isenta de interpretações; a segunda é uma mensagem conotada, simbólica, que depende dos significados pessoais e valores culturais de quem a interpreta. Assim, segundo Barthes, a fotografia, como um análogo mecânico do real, caracteriza-se por ser puramente denotativa: [...] de todas as estruturas de informação, a fotografia seria a única a ser exclusivamente constituída por uma mensagem “denotada” que esgotaria totalmente seu ser; diante de uma fotografia, o sentimento de “denotação”, ou de plenitude analógica, é tão forte, que a descrição de uma fotografia é, ao pé da letra, impossível (BARTHES, 1990, p. 13-14).
Atribuir uma segunda mensagem à fotografia seria “significar uma coisa diferente daquilo que é mostrado” (BARTHES, 1990, p. 14). Para Barthes (1990), os procedimentos de conotação na fotografia são bastante frágeis e não fazem parte da estrutura fotográfica. São manipulações de origem externa à própria estrutura da fotografia, como as trucagens, a pose, as imagens construídas para remeter o leitor a uma determinada leitura, seja pela composição dos
objetos da cena, seja pela fotogenia ou estetismo da fotografia, ou pela imposição de uma sintaxe, que induz o observador a uma leitura discursiva da imagem. Essas intervenções humanas de ordem conotativa se contrapõem ao registro mecânico, que atua como uma garantia de objetividade, que é reforçada pela ausência de código da mensagem fotográfica e que atribuem a ela o mito do “natural”. “A relação entre os significados e os significantes da imagem fotográfica não é de ‘transformação’, mas de ‘registro’” (BARTHES, 1990, p. 36). Barthes admite que essa crença na naturalidade da imagem fotográfica limita sua percepção como construção cultural simbólica. A ausência de código naturaliza a mensagem simbólica: “a natureza parece produzir espontaneamente a cena representada” (BARTHES, 1990, p. 37); a mensagem literal parece ser suficiente, fornecendo meios de “mascarar o sentido construído sob a aparência do sentido original” (BARTHES, 1990, p. 37). O discurso mimético olha para a fotografia como uma “imagem sem código”, como um processo autônomo e sem interferências de ordem subjetiva ou de outra natureza, atribuindo à fotografia uma transparência que impede que se enxerguem nela todos os demais elementos que
59
fazem parte de sua complexa construção simbólica. O que se vê é apenas o reflexo do mundo, uma cópia fiel isenta de interpretações.
1.2.3
A Fotografia como Transformação do Real: A Desconstrução A caixa preta fotográfica não é um agente reprodutor neutro, mas uma máquina de efeitos deliberados. Ao mesmo modo que a língua, é um problema de convenção e instrumento de análise e interpretação do real. Philippe Dubois29
O conceito da fotografia como uma reprodução mecânica fiel à realidade começa a ser questionado ainda no século XIX. Na busca de um estatuto artístico para a fotografia, surgiram discussões acerca de suas possibilidades como construtora da realidade. Ao invés da reprodução automática do real graças a sua gênese mecânica, a fotografia passa a ser vista como resultado da interpretação do sujeito-fotógrafo, que atua como intermediário entre a realidade e a representação. Essas discussões culminaram com o movimento pictorialista que, apesar de ser considerado, na maioria das vezes, um movimento conservador, que pretendia da fotografia uma imitação da pintura, foi responsável por importantes reflexões sobre o estatuto da imagem fotográfica como simplesmente uma técnica precisa de registro da realidade. No
século
XX,
paralelamente
ao
discurso
da mimese, intensificam-se os
questionamentos quanto à fidelidade da imagem fotográfica ao real, apontando também para sua capacidade de interpretação e transformação, desconstruindo a realidade. Dentro dessa discussão da fotografia como mensagem codificada, transformadora do real, podem-se encontrar alguns grupos com diferentes tendências. Philippe Dubois (1994) destaca, além dos discursos semiológicos30 - três tendências teóricas principais. Uma delas vem dos estudos da psicologia da percepção com Rudolf Arnheim e Siegfried Kracauer, baseada na observação da técnica fotográfica e seus efeitos perceptivos. Em seguida, teóricos como Hubert Damisch, Pierre Bourdieu e Jean-Louis Baudry se caracterizam pelo caráter ideológico na interpretação da 29 30
DUBOIS, 1994, p. 40-41.
Sobre as discussões semiológicas da fotografia como mensagem codificada Dubois cita Christian Metz, Umberto Eco, Roland Barthes e René Lindekens entre outros. (DUBOIS, 1994, p. 37)
60
transformação do real que se estabelece pela fotografia, considerando que a câmera fotográfica não é neutra, mas ao contrário, que a concepção de espaço que ela reproduz está ligada às convenções da perspectiva renascentista. Uma outra abordagem diz respeito aos usos antropológicos da fotografia, que não aparece mais como um espelho transparente, mas como uma mensagem codificada cuja significação é determinada culturalmente (DUBOIS, 1994). Neste sentido, a fotografia não funciona apenas como um registro das representações comportamentais, mas como uma possibilidade de tradução das representações mentais de um grupo. (SAMAIN, 1997) A questão da fotografia como transformação do real será observada, neste trabalho, a partir da idéia de que ela é uma construção simbólica constituída ideológica e culturalmente. Para isso, busca-se nas concepções de signo ideológico de Mikhail M. Bakhtin e Valentin N. Volochinov
31
as bases para a abordagem sócio-semiológica da discussão da fotografia como
transformação do real. Apesar de privilegiar a linguagem verbal, suas considerações se aplicam de forma bastante apropriada aos signos visuais como a imagem fotográfica. Signo, numa descrição simplificada da semiótica de Peirce, “é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém” como também “qualquer coisa que conduz alguma outra coisa” (PEIRCE, 2003, p.46; p.74). Segundo Voloshinov, a ideologia32 e a realidade material dos signos não se separam. Para ele, signo é qualquer corpo físico que, mesmo fazendo parte da realidade material, de alguma forma adquiriu significado, convertendo-se em signo, ou seja, remetendo a algo fora de si mesmo, refletindo ou refratando em alguma medida uma outra realidade. Um corpo físico que vale por si só, que coincide com sua própria natureza, sem se remeter a algo fora dele mesmo não é ideologia. “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Sem
signos não existe ideologia” (BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1995, p. 31). Um instrumento de produção ou um produto de consumo também podem ser transformados em signos e adquirir
31
Apesar da confusão com relação à autoria de algumas obras de Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev (1892-1938) que foram posteriormente creditadas a Mikhail M. Bakhtin, adota-se V. N. Voloshinov como o autor do livro Marxismo e filosofia da linguagem, conforme observações de Faraco (2003, p. 13-14).
32
A palavra ideologia é usada por Bakhtin e Voloshinov para designar o universo da produção imaterial humana, que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as áreas da criatividade intelectual humana. Neste sentido, não guarda nenhuma conotação restrita ou negativa com o sentido marxista de “mascaramento do real”. Em Marxismo e filosofia da linguagem, Voloshinov afirma que tudo que é ideológico - ou seja, todos os produtos da cultura dita imaterial -, possui significado; e, portanto, é um signo. (FARACO, 2003, p. 46-47)
61
“um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades” (BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1986, p. 31) Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Voloshinov inicia a discussão de uma filosofia da linguagem pela natureza ideológica e dimensão histórica dos signos. A linguagem é entendida como forma de construção e formação de sentido a partir da interação social, como um sistema simbólico culturalmente construído para representar um mundo em que os interesses sociais, os saberes e os poderes estão em constante conflito. Cada um desses sistemas simbólicos - como a linguagem, a religião, a ciência, o direito, etc. - tem seu modo próprio de se relacionar com a realidade, e a reflete ou a refrata de maneira diferente, de acordo com seu papel na vida social. Nas palavras de Voloshinov: Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc) (BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1986, p.32).
Os signos são criados no curso das relações sociais e determinados pelas formas de interação dentro dos diferentes grupos e entre eles, por isso são “vivos” e “móveis”, refletindo as alterações na vida social: O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes. Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um mesmo e único código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontamse índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. (BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1986, p. 46)
Assim, para Voloshinov, as diferentes classes sociais, ao partilharem uma mesma língua, atribuem a um mesmo signo, diferentes sentidos, fazendo com que o signo se torne o local onde acontece o confronto de valores contraditórios. Ao mesmo tempo, o que torna o signo ideológico vivo e dinâmico também faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser. No entanto, as contradições são obscurecidas pelas classes dominantes que tendem a conferir ao signo
62
ideológico “um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava”. (BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1986, p. 47) Voloshinov acrescenta: Na realidade, todo signo ideológico vivo tem [...] duas faces. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante. (BAKHTIN & VOLOSHINOV, 1986, p. 47)
Em função do citado acima, com os signos, não só o mundo é descrito como também é construído. Na concepção de Voloshinov, Bakhtin e demais membros do chamado Círculo de
Bakhtin, ao se referir ao mundo, os signos refletem e refratam esse mundo, ou seja, através dos signos aponta-se para uma realidade externa a ele, mas isso se faz não somente descrevendo o mundo (refletindo), mas construindo diversas interpretações (refrações) desse mundo. É dessa forma que os diferentes grupos humanos geram diferentes modos de dar sentido ao mundo (de
refratá-lo). Para o círculo, não é possível significar sem refratar, pois as significações não estão dadas no signo em si, [...] mas são construídas na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de experiências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições e confrontos de valoração e interesses sociais. [Dito de outra forma] a refração é o modo como se inscrevem nos signos a diversidade e as contradições das experiências históricas dos grupos humanos. (FARACO, 2003, p. 50-51)
A multiplicidade e a complexidade das experiências dos diferentes grupos humanos fazem com que, em cada época, esses grupos atribuam, disputem e negociem diferentes significações, várias verdades, inúmeros discursos, ou melhor, faz com que existam inúmeras vozes sociais através das quais se atribui sentido ao mundo, tornando o processo de significação vivo e dinâmico. (FARACO, 2003, p. 50-51) Segundo Machado, ao se apropriar da expressão óptica refração, Voloshinov utiliza o termo russo prelomit, que é utilizado na conversação cotidiana com o sentido de “dar uma nova interpretação”, “atribuir um outro significado” (MACHADO, 1984, p. 21). Traçando uma
63
analogia com a fotografia, Arlindo Machado comenta que no processo fotográfico o fenômeno da refração opera uma transformação equivalente. Ao se interpor um material cristalino entre os objetos e o material sensível, a direção dos raios luminosos se altera. Dessa forma, o fenômeno da refração impede que se obtenha uma reprodução “fiel” dos sinais luminosos, uma vez que os “deforma”, e os “transfigura”. Essa deformação óptica (refração) operada pela câmera equivale à transformação (refração) dos signos que se opera na vida social. Assim, a ilusão de verossimilhança da imagem fotográfica atua como uma censura ideológica que tenta esconder seu caráter de transformação e interpretação da realidade, impondo uma sensação de naturalidade às imagens que faz com que o observador as perceba como a própria realidade, ocultando os processos de reflexão e refração que constituem o sistema simbólico. (MACHADO, 1984, p. 28-29). De acordo com Dubois (1994), para alguns autores como Damisch, Baudry e Bourdieu, o código ideológico operado pela imagem fotográfica é o da perspectiva renascentista: [...] a fotografia é um sistema convencional que exprime o espaço de acordo com as leis da perspectiva (seria necessário dizer, de uma perspectiva) e os volumes e as cores por intermédio de degrades do preto e do branco. Se a fotografia é considerada um registro perfeitamente realista e objetivo do mundo visível é porque lhe foram designados (desde a origem) usos sociais considerados “realistas” e “objetivos”. E, se ela se propôs de imediato com as aparências de uma “linguagem sem código nem sintaxe”, em suma de “uma linguagem natural”, é antes de mais nada porque a seleção que ela opera no mundo visível é completamente conforme, em sua lógica, à representação do mundo que se impôs na Europa desde o Quattrocento. (BOURDIEU, 1965 apud DUBOIS, 1994, p. 40)
Apenas retomando a questão, abordada mais detalhadamente na seção 1.2.1: Perspectiva: O Modelo Perspéctico como Visão de Mundo, (pág. 44), a invenção da perspectiva central e uniocular no Renascimento buscou produzir um código de representação cujo efeito de “realidade” se aproximasse ao máximo do “real” visível, como seu analogon perfeito. Qualquer sistema de signos busca de alguma maneira se referir a algo real, representá-lo, mas, no caso da perspectiva renascentista, o que se pretendia é que esse analogon se fizesse passar pelo próprio “real”, como se não fosse apenas uma representação (MACHADO, 1984, p. 27). Dessa forma, ao reproduzir a construção de espaço renascentista, a câmera fotográfica, ao invés de um agente reprodutor neutro que somente reflete a realidade, passa a ser um instrumento de refração, que deforma a realidade ao perpetuar a concepção de mundo do grupo social que a
64
inventou. O caráter ideológico não está na deformação da realidade, mas na imposição dessa visão de mundo como sendo universal, transparente e neutra, ocultando a codificação do signo e encobrindo as contradições entre os diferentes grupos e classes sociais. Arlindo Machado acrescenta: [...] para que a ideologia dominante possa aparecer como dominante, ou seja, para que ela se imponha como o sistema de representação de toda a sociedade e não de uma classe em particular, ela não pode se mostrar como ideologia. Aqueles que forjam a ideologia dominante se dizem e se julgam fora dela: a imprensa se diz “objetiva”, a religião se diz “universal”, o sistema político se diz “democrático”, a instituição jurídica se diz “igualitária” e a produção intelectual se diz “científica” (MACHADO, 1984, p. 15).
Olhar para a fotografia não apenas como um espelho neutro, que apenas reflete a realidade, isento de interpretações e de refrações, é o que busca fazer Arlindo Machado em seu livro A ilusão especular, de 1984. Analisando uma a uma as características da imagem fotográfica, ele defende que a imagem refletida pela câmera nada tem de inocente, evidenciando a determinação ideológica, consciente ou inconsciente, que está por trás da fotografia. Através da desconstrução de cada característica - da representação perspectiva; da escolha do instante; do enquadramento; do ponto de vista; do recorte; da pose; do tempo congelado; do foco; das deformações ópticas; da proximidade ou distância - ele desmistifica a ilusão especular do reflexo de realidade fotográfico e evidencia as refrações que comprometem a transparência da representação. Defendendo a fotografia como uma mensagem codificada, Machado (1984) reafirma que a representação fotográfica passa por um processo de transfiguração, pois, apesar de se referir a algo real, ela sofre todas as interferências inerentes ao processo fotográfico. Assim: [...] o signo fotográfico é ao mesmo tempo motivado e arbitrário: motivado porque, de qualquer maneira, não há fotografia sem que um referente pose diante da câmera para refletir para a lente os raios de luz que incidem sobre ele; arbitrário porque essa informação de luz que penetra na lente é refratada pelos meios codificadores (perspectiva, recorte, enquadramento, campo focal, profundidade de campo, sensibilidade do negativo e todos os demais elementos constitutivos do código fotográfico que examinamos até aqui) para convertê-los em fatos da cultura, ou seja, em signos ideológicos. (MACHADO, 1984, p. 159)
65
E conclui que “Só um domínio eficiente do código que opera em cada sistema nos reconcilia com o referente e nos permite ver com clareza a dialética do reflexo e da refração operando sobre as formas simbólicas.” (MACHADO, 1984, p. 159) Observar a imagem fotográfica com um olhar desconstrutor significa compreender que a visão de mundo que se constitui por essa representação é uma visão transfigurada por uma série de interpretações e interferências. Tais transformações operadas pelo código fotográfico devem ser decifradas e não simplesmente vistas e aceitas como se fossem reflexos “especulares” da própria realidade. Olhar para a fotografia como algo transparente e neutro, como um espelho do real, é, na verdade, ocultar toda a codificação que está por trás da construção da representação. Como se aquele olhar, impregnado de intenções e interpretações, fosse um olhar puro e universal sem filtros ou distorções. Como se as fotografias fossem apenas janelas, e não construções simbólicas, signos que, ao mesmo tempo, refletem e refratam a realidade.
1.2.4
A Fotografia como Traço do Real: O Índice e o Referente Na discussão sobre as relações entre a imagem fotográfica e o real, além das abordagens
ontológicas da fotografia como espelho do mundo e da fotografia como agente desconstrutor do real, mais recentemente tem se pensado a imagem fotográfica dentro da classificação semiótica indicial de C. S. Peirce. Essa abordagem está diretamente ligada ao fenômeno ótico que envolve a formação da imagem no processo fotográfico. Como a imagem foi produzida através da reflexão da luz do objeto, mais do que a questão da semelhança entre a imagem e o objeto, é a ligação física entre eles que estará no foco da discussão. Peirce desenvolve sua classificação semiótica dos signos já na segunda metade do século XIX33. Não se pretende aqui desenvolver uma discussão aprofundada das categorias semióticas propostas por Peirce. Também não se tem a intenção de utilizar suas postulações de maneira reducionista ou deslocada do complexo contexto de sua semiótica. Apenas busca-se, de uma forma muito simplificada e despretensiosa, abordar a tríade ícone, índice e símbolo, no que diz respeito às relações que podem ser estabelecidas entre a fotografia (como signo) e os objetos, 33
Segundo Lucia Santaella, Peirce propõe suas categorias sígnicas em seu ensaio “Por uma nova lista das categorias” de 1867. (SANTAELLA, 1995, p. 107)
66
principalmente aos usos que correntemente se fazem dessas três categorias quando da discussão da ontologia da imagem fotográfica. Um signo pode ter, segundo Peirce (2003), três espécies de identidades semióticas que correspondem ao tipo de relação que este signo pode estabelecer para com o objeto (do qual ele é signo). O “signo” é considerado um Ícone do objeto se ele se identifica com o objeto por similaridade, ou semelhança ou igualdade em algum aspecto, quer o objeto exista ou não. “Qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente individual ou uma lei, é Ícone de qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como um signo seu” (PEIRCE, 2003, p.52). Um “Índice” é um signo que se relaciona com seu objeto por uma conexão física, independentemente de ser interpretado ou não. Não é o intérprete que confere ao signo o poder de índice, mas a relação que existe entre signo e objeto: Um Índice é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de realmente ser afetado por esse Objeto. [...] Na medida em que o Índice é afetado pelo Objeto, tem ele necessariamente alguma qualidade em comum com o Objeto, e é com respeito a estas qualidades que ele se refere ao Objeto. Portanto, o Índice envolve uma espécie de Ícone, um Ícone de tipo especial; e não é a mera semelhança com o seu Objeto, mesmo que sob estes aspectos, que o torna um signo, mas sim sua efetiva modificação pelo Objeto. (PEIRCE, 2003, p. 52)
Um “Símbolo” não depende de semelhança ou contigüidade com o objeto, mas de uma significação que é atribuída ao signo pelo interpretante. O símbolo não indica uma coisa em particular, mas denota uma espécie de coisa. Nas palavras de Peirce: “Um Símbolo é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma associação de idéias gerais que opera no sentido de fazer com que o Símbolo seja interpretado como se referindo àquele Objeto” (PEIRCE, 2003, p. 52). Ou, ainda: “O símbolo está conectado a seu objeto por força da idéia da mente-que-usa-o-símbolo, sem a qual essa conexão não existiria” (PEIRCE, 2003, p. 73). Peirce cita a fotografia como um exemplo de índice, pensando não apenas na imagem (no signo) em si, mas considerando sua relação com o objeto e principalmente seu modo de produção. Mais do que uma associação por semelhança (icônica) ou por operações intelectuais (simbólica), o que acontece na fotografia é uma associação por contigüidade física (indicial) (PEIRCE, 2003 p. 76). Segundo ele, o que coloca a fotografia na categoria de índice, é o fato de
67
haver uma conexão física entre a fotografia e seu referente, como uma impressão digital que lhe confere uma correspondência ponto a ponto com a natureza. As fotografias, principalmente as do tipo “instantâneo”, são muito instrutivas, pois sabemos que, sob certos aspectos, são exatamente como os objetos que representam. Esta semelhança, porém, deve-se ao fato de terem sido produzidas em circunstâncias tais que foram fisicamente forçadas a corresponder ponto a ponto à natureza. Sob este aspecto, então, pertencem à segunda classe dos signos, aqueles que o são por conexão física (PEIRCE, 2003, p. 65).
Segundo Peirce, um signo se inscreve na categoria indicial, porque ele se refere a seu objeto, não em virtude de uma similaridade ou analogia, nem pelo fato de estar associado a características que por ventura o objeto também tenha, mas sim por estar em uma “conexão dinâmica”, inclusive espacial, tanto com o objeto individual, quanto com os sentidos ou a memória da pessoa a quem serve de signo (PEIRCE, 2003, p. 74). Essa definição se encaixa perfeitamente no discurso da fotografia como índice, como traço do real. Mais do que a semelhança - que é apenas uma possível conseqüência de sua gênese -, a relação entre a fotografia e o referente se dá tanto pela conexão física com o objeto quanto pelos sentidos ou a memória de quem a observa. A partir das proposições da semiótica de Peirce os questionamentos acerca da “essência” da fotografia são deslocados. O resultado formal das imagens que prevalece no discurso mimético é substituído pela ênfase no processo de produção das imagens que passa a ser o foco de uma série de discussões. André Bazin (1945) afirma que a essência da fotografia está em sua gênese. Barthes (1984) leva a discussão para o campo da referência como uma conexão mais sensível do que física. Dubois (1994) retoma a questão da referência de Barthes e coloca a discussão ontológica da fotografia no campo do traço físico do real. O que irá definir os fundamentos essenciais da fotografia não será a representação em si, mas a imagem e o ato que a definem ao mesmo tempo, pois a fotografia “não é apenas uma imagem produzida por um ato, é também, antes de qualquer outra coisa, um verdadeiro ato icônico ‘em si’, [...] uma imagem-ato.” (DUBOIS, 1994, p. 59)34 Susan Sontag (1981) discutiu a fotografia sob os mais diferentes aspectos, e, apesar de não utilizar claramente o termo índice, em alguns momentos também caracterizou a fotografia de acordo com a categoria peirceana: 34
Observações referentes aos autores: André Bazin em Ontologia da imagem fotográfica de 1945 (BAZIN, 2005); Roland Barthes no livro A câmara clara de 1980 (BARTHES, 1984) e Philippe Dubois no livro O ato fotográfico e outros ensaios de 1990 (DUBOIS, 1994).
68
A fotografia aparentemente não constitui depoimento sobre o mundo, mas fragmento desse, miniatura de uma realidade que todos podemos construir e adquirir. [...] A fotografia fornece provas. [...] A fotografia pode constituir perfeitamente a prova irrefutável de que certo evento ocorreu. A fotografia pode distorcer – mas sempre permanece a suposição de que algo semelhante ao que mostra a fotografia existe ou existiu. [...] Essas imagens são verdadeiramente capazes de usurpar a realidade porque, antes de mais nada, uma fotografia é não só uma imagem (como o é a pintura), uma interpretação do real – mas também um vestígio, diretamente calcado sobre o real, como uma pegada ou uma máscara fúnebre. Enquanto um quadro, mesmo aquele que está conforme os padrões fotográficos da verossimilhança, nunca é mais do que uma forma de interpretação, a fotografia nunca é menos que o registro de uma emanação (ondas de luz refletidas por objetos) – vestígio material do tema fotografado, a tal ponto que quadro algum se lhe pode comparar (SONTAG, 1981, p. 4; p. 5; p. 6; p. 148).
A abordagem da fotografia a partir das classificações de signo de Peirce – ícone, índice e símbolo - teve diferentes desdobramentos. Dentre eles, aborda-se a seguir o discurso da referência que se tornou freqüente entre os teóricos que pensaram a fotografia por seu caráter indicial. Outros discursos, também baseados na classificação semiótica de Peirce, que colocam a fotografia como símbolo ou mesmo como um signo completo, serão tratados mais adiante na seção 1.2.5 (p. 73).
1.2.4.1 Referente A idéia de naturalidade e objetividade da imagem fotográfica está permeada pela questão da gênese mecânica automática; da não intervenção humana no processo fotográfico. Ao mesmo tempo, mais do que a semelhança entre o objeto e sua fotografia, o que fica evidente em alguns discursos é a maneira “natural” com que a fotografia “atesta” a existência daquilo que mostra: a referência que a imagem faz do objeto fotografado. No texto sobre a ontologia da fotografia, quando Bazin descreve o que considera ser sua “essência”, ele atribui a naturalidade da imagem fotográfica à forma como se dá a transferência das aparências do objeto fotografado para o material sensível, de forma direta, por contigüidade física, sem a intervenção humana. Assim, a gênese automática da fotografia confere a ela um poder de credibilidade ausente em qualquer outra obra pictórica: Sejam quais forem as objeções do nosso espírito crítico, somos obrigados a crer na existência do objeto representado, literalmente representado, quer dizer, tornado presente no tempo e no espaço [...] A imagem pode ser nebulosa,
69
deformada, descolorida, sem valor documental, -mas ela provém por sua gênese da ontologia do modelo; ela é o modelo. (BAZIN, 1987, s.p.)
Os discursos de André Bazin e de Roland Barthes, apesar de miméticos, estão impregnados pela idéia de índice de Peirce. A semelhança deixa de ser o fator mais importante, e a ligação entre objeto e representação, decorrente da gênese mecânica, passa a dominar as atenções. Seja ela uma ligação emocional do ponto de vista subjetivo da reação imediata do espectador diante de uma foto, como nas descrições de Barthes, ou uma conexão física, como traço de um real, mais próxima do signo indicial de Peirce. Em seguida, se descreve com mais detalhes a questão da referência presente claramente no discurso de Barthes em seu livro A câmara clara, de 1979, retomado posteriormente por Dubois no livro O ato fotográfico e outros ensaios, de 1990. No livro A Câmara Clara, Barthes se coloca como espectador da fotografia. A motivação que o leva a pensar a fotografia é justamente a emoção diante das fotografias de sua mãe recém falecida. Para tentar explicar seu interesse por determinadas fotos, ele identifica duas características que deveriam estar presentes na imagem: o studium e o punctum. O studium é o gosto geral, que tem a ver com seu saber, com seu repertório simbólico. “Reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo.” (BARTHES, 1984, p. 48) Punctum é o detalhe que o atrai na imagem, o que provoca o deslumbramento, o que punge. “O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere).” (BARTHES, 1984, p. 46) Enquanto o studium é codificado, o punctum é da ordem do subjetivo, do emocional. Barthes dá especial importância ao referente fotográfico. Para ele: a foto jamais se distingue de seu referente, pelo menos não de imediato e não para todo mundo. “[...] a fotografia sempre traz consigo seu referente, [...] estão colados um ao outro” (BARTHES, 1984, p. 15). Ele acredita na transparência da imagem fotográfica e afirma isso: “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos”, o que se vê é o referente. (BARTHES, 1984, p. 16) Barthes acrescenta: [...] o referente da fotografia não é o mesmo que o dos outros sistemas de representação. Chamo de ‘referente fotográfico’, não a coisa facultativamente real a que remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia. A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. [...] na fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado. [...] O que intencionalizo em uma foto [...] não é nem a Arte, nem a Comunicação, é a Referência, que é a ordem fundadora da fotografia. O nome do noema da
70
Fotografia será então ‘Isso-foi’, ou ainda o Intratável. (BARTHES, 1984, p. 115)
A fotografia capta e imprime diretamente os raios luminosos emitidos por um objeto diversamente iluminado, por isso ela se apresenta como uma emanação do referente. Mais a frente Barthes coloca que o punctum não é apenas o detalhe, mas o Tempo, o isso-foi. “A fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas, e com certeza, daquilo que foi.” (BARTHES, 1984, p.127). O passado e o presente se aproximam, achatando o tempo na fotografia. Barthes conhece a crítica dos desconstrutores, de que a fotografia é uma imagem codificada, mas insiste que, para ele, a emanação do real passado, o isso-foi é o mais importante. Para Susan Sontag (1981), a força emotiva da referência fotográfica se revela pela utilização da fotografia como talismã, como um pedaço de uma realidade inatingível, ou apenas como uma recordação do passado. Ela diz que “fotografar é apropriar-se da coisa fotografada”, e “a fotografia não é só pseudopresença, mas também símbolo de ausência” (SONTAG, 1981, p. 34). Colecionar fotografias é colecionar o mundo. A forte relação entre a fotografia e o objeto fotografado não está simplesmente na semelhança que a imagem guarda com o referente, mas na sensação de reconhecimento da coisa fotografada. Seja qual for a tentativa de classificar ou separar os diferentes discursos, eles sempre influenciam e são influenciados por outros. Não se consegue isolá-los em categorias estanques. Susan Sontag, no decorrer de seu livro Ensaios sobre a fotografia, passeia pela mimese, pela desconstrução, pelo índice, pela referência, sem necessariamente se fixar ou se limitar a um deles. O conceito de mimese é bastante claro na obra de Barthes, entretanto, em A câmara
clara, sua abordagem é de tal forma emocional, que o referente passa a ser mais importante do que a própria semelhança mimética. Ele destaca como “essência” da fotografia mais do que a simples semelhança, a presença, o referente por completo, o é isso. Diante da emoção do (re)encontro com a mãe na Foto do Jardim de Inverno ele afirma, de forma enfática, que uma foto pode retratar uma pessoa, identificá-la, mas nem sempre consegue mostrá-la em sua “verdade completa”. O “ar” do retratado, que aparece em algumas fotos, não tem a ver com a simples analogia, com a “semelhança” entre a imagem e o retratado, mas com a qualidade de reconhecimento da pessoa fotografada; a semelhança entre a imagem e o objeto fotografado é mais subjetiva do que formal. Barthes completa:
71
[...] enfim, a Fotografia do Jardim de Inverno, na qual faço mais do que reconhecê-la [...]: na qual eu a encontro: brusco despertar, fora da semelhança satori no qual as palavras falham, evidência rara, talvez única, do ‘Assim, sim, assim, e nada mais’ (BARTHES, 1984, p.160)
O sentimento de Barthes diante da imagem da mãe salienta uma das características mais marcantes da imagem fotográfica, seu caráter fetichista, principalmente do retrato fotográfico: a crença de que a fotografia capta a essência da pessoa fotografada, como se fossem verdadeiros “objetos vodu”. A ligação com o referente é tão intensa que a fotografia passa a ser sentida como uma emanação do passado. Nas palavras de Barthes: A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vem me atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada: a luz, embora impalpável é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado. (BARTHES, 1984, p. 121, ênfase adicionada)
A questão da referência da imagem fotográfica evoca abordagens como a de Barthes, extremamente subjetiva e apaixonada, mas também leva a discursos mais ponderados. Philippe Dubois (1994) retoma o conceito de referência de Barthes (1984) e constrói um caminho teórico que irá estabelecer uma nova abordagem da construção do realismo das imagens técnicas a partir dos princípios da semiótica de Peirce (2003). Ele irá questionar a fotografia, mas não apenas as fotografias em si, como mensagens visuais resultantes de um processo técnico. Dubois se propõe a abordar o “fotográfico”, ou seja, uma categoria de pensamento que não se limita à estética, à semiótica ou à história, mas se relaciona com os signos, com o espaço e o tempo, com o real e o sujeito, com o ser e o fazer (DUBOIS, 1994). Além do discurso mimético da representação analógica e do discurso ideológico do código da representação renascentista, Dubois (1994) se aproxima da questão do realismo e do valor documental da imagem fotográfica a partir da questão da referência, da condição indicial da imagem fotográfica. A relação que a fotografia estabelece com o referente é da ordem do índice, regida por uma conexão física que, indiscutivelmente, se estabelece na pequena fração de tempo que a luz impressiona a superfície sensível, sem a interferência humana. Entre dois gestos codificados culturalmente (as escolhas no ato da tomada da foto e depois, no processamento da imagem), se interpõe um instante em que a foto pode ser considerada “um puro ato-traço (uma
72
‘mensagem sem código’).” Dubois (1994) classifica esse instante da exposição propriamente dita como “um índice quase puro”, um instante de “pura indicialidade”. “Aqui, mas somente aqui, o homem não intervém e não pode intervir sob a pena de mudar o caráter fundamental da fotografia (DUBOIS, 1994, p.51).” Para Dubois (1994), a fração de segundo desse instante traz como principal conseqüência teórica, a questão da referência como característica indiscutível da fotografia. Dubois (1994) se baseia nas três categorias básicas de Peirce (2003): a fotografia é um “índice”, inseparável do ato que a funda, uma representação por contigüidade física com seu referente; pode ser “ícone”, por se assemelhar ao real de forma mimética, como um espelho do mundo; e é “símbolo” por se tratar de uma interpretação/transformação cultural e ideológica do real, um conjunto de códigos. Nessa abordagem, a imagem fotográfica se identifica com a categoria indicial por sua característica elementar de traço, de conexão física – imagem formada através do contato da luz emitida pelo objeto com a superfície sensível. E pelas qualidades essenciais de um índice: por sua singularidade como prova da unicidade referencial que se estabelece entre o signo e seu objeto como uma relação de metonímia; pelo princípio de atestação - ou seja, a fotografia, por sua gênese, testemunha, certifica, atesta a existência do que mostra; e por designação – pois indica o referente. Assim, a fotografia é por sua gênese um índice, pode estabelecer semelhança com o referente se tornando um ícone e finalmente adquirir sentido e ser símbolo. Outro exemplo que demonstra uma abordagem mais moderada com relação ao referente está na utilização da fotografia como fonte de informação histórica. A condição referencial da representação fotográfica é um valor fundamental para que ela possa ser tomada como documento. Entretanto, com o cuidado de não considerar a fotografia de forma ingênua, apenas como uma imagem transparente, um duplo do real. Boris Kossoy (1999) apresenta algumas considerações bastante críticas com relação ao uso da fotografia como fonte histórica. Para ele, o potencial informativo da fotografia pode ser alcançado se esses fragmentos forem contextualizados historicamente em seus múltiplos desdobramentos – sociais, políticos, econômicos religiosos, artísticos, culturais. Ele observa que a fotografia tem uma realidade própria, uma “segunda realidade”, construída, codificada, sedutora em sua montagem e em sua estética, de forma alguma inocente, mas que é decisiva para desvendar o passado. A fotografia é uma “segunda realidade”,
73
sua ligação referencial com a realidade é indiscutível, ela “é certamente um registro do visível”, mas é fundamental decifrar sua “realidade interior”, desmontando as construções ideológicas que se materializam nos testemunhos fotográficos (KOSSOY, 1999, p. 143). Essa “segunda realidade”, apresentada pela fotografia, não corresponde necessariamente à verdade histórica – primeira realidade. A realidade da fotografia reside no conjunto de intenções do construtor da representação – fotógrafo, e nas múltiplas interpretações, nas diferentes “leituras” que cada receptor faz dela num dado momento. E assim deve ser analisada, como uma construção simbólica, constituída histórica e culturalmente.
1.2.5
Outros Olhares: novos caminhos Recentemente, outros olhares sobre a ontologia da imagem fotográfica apontam para
novos caminhos. Alguns teóricos como Arlindo Machado (2001), Marie Carani (1999), Göran Sonesson (1999) e José Luis Caivano (1999) têm procurado pensar a ontologia da fotografia considerando, também, os novos processos de constituição de imagens “fotográficas” que não passam mais pela intermediação do aparato fotográfico – câmera e lentes. Essas imagens de aparência fotográfica são modeladas diretamente no computador, através de equações matemáticas e modelos da física, sem a necessidade da existência de um objeto real, um referente que reflita a luz para formar a imagem. Lúcia Santaella chamou essa categoria de “pós-fotográficas”, pois tratam-se de imagens sintéticas cujo suporte não é mais “físico”, nem físico-químico e maquínico como nas máquinas ópticas, mas a junção de um computador com uma tela de vídeo, mediados por uma série de operações abstratas, programas e cálculos. Além de que, o computador é uma máquina que não opera com a realidade física como as máquinas ópticas, mas com um substrato simbólico: a informação (SANTAELLA; NÖTH, 2001). As “pós-fotografias” trazem a tona além dos questionamentos até aqui colocados sobre a imagem fotográfica, outros tantos que irão se estender para muito além das relações icônicas, indiciais ou simbólicas da representação. Questionamentos que enveredam para especulações acerca da natureza das matrizes digitais, dos programas, dos modelos e simulações do real que se estabelecem com essa nova tecnologia de constituição de imagens. No entanto, apesar de profundamente instigante e interessante, este trabalho não se
74
deterá na discussão das questões que se colocam no entorno pós-fotografia. Cabe apenas observar que, apesar de não serem obtidas pelo processo fotográfico, essas imagens de modulação digital direta acabam por ecoar muitas das características formais da fotografia com lentes. Dentro desses olhares focados nos conceitos científicos que estão por trás da construção das máquinas semióticas se estabelecem outros questionamentos que buscam deslocar a fotografia mais claramente para a categoria dos signos simbólicos. Mais do que somente um reflexo mimético, um vestígio da realidade, ou a desconstrução do real operado pela construção da imagem fotográfica, e além da questão ideológica da adoção do modelo perspectivo como forma simbólica, a imagem fotográfica passa a ser encarada como a expressão de conceitos gerais e abstratos, conceitos científicos que se transformam em imagens (FLUSSER, 2002, p.32). Mais do que um simples traço do real, como uma impressão digital ou uma pegada, o traço registrado pela câmera fotográfica depende de um grande número de processos físico-químicos/eletrônicos inerentes ao processo fotográfico. As mediações técnicas que se interpõem entre o objeto e o registro de seu traço se alternam em uma infinidade de combinações que impedem que o registro da imagem seja simplesmente uma impressão indicial direta do objeto fotografado. Entre essas mediações técnicas, pode-se destacar, entre muitas outras: as características construtivas da câmera e da objetiva: sua distância focal, a escolha do foco; as escolhas da abertura do diafragma e da velocidade do obturador; também as propriedades do material sensível35: como a sensibilidade espectral, o contraste, a resolução, a granulação; além do processamento químico (ou eletrônico) da imagem (Figura 11). Ou seja, não há contato físico direto entre o objeto e o material sensível. A imagem é formada no material sensível quando este é exposto aos raios de luz refletidos por um determinado objeto ou mesmo pelos raios de luz provenientes de uma fonte luminosa, como uma lâmpada, por exemplo. A formação da imagem dependerá dessa informação luminosa, que está sujeita às suas próprias características e às propriedades reflexivas do objeto, além de ser interpretada de acordo com as características físico-químicas do material sensível (MACHADO, 2001). Além disso, sofrerá a interferência de todos os dispositivos internos da câmera, sobretudo da objetiva, que se interpõe fisicamente entre o objeto e o material sensível. No limite, o máximo
35
O termo “material sensível” será adotado para designar tanto as emulsões sensíveis do processo fotográfico analógico-químico quanto os sensores digitais do processo fotográfico eletrônico/digital. Apesar de suas especificidades (com relação á sensibilidade e resposta cromática) ambas possuem características semelhantes no que diz respeito à interpretação e às interferências que sofrem dos dispositivos internos da câmera.
75
que se pode dizer é que existiu um contato físico entre os fótons da energia luminosa e o material sensível.
Figura 11: Paulo Henrique Camargo, sem título, 1989. Fotografia P&B com lentes. Fonte: Acervo do fotógrafo. Várias características presentes nessa imagem questionam sua classificação como ícone e mesmo como índice. A ausência de foco, associada à movimentação da câmera faz com que a imagem apareça “borrada”, o que dificulta a relação indicial de correspondência “ponto a ponto” entre a imagem e a cena. O recorte do quadro despersonaliza a imagem, se identifica apenas o local (Viaduto Santa Efigênia em São Paulo) pelo desenho do gradil. A granulação - provocada por uma série de fatores: baixa luminosidade; filme de alta sensibilidade; processamento químico que favorece o aumento do tamanho dos grãos – diminui sua definição (revelação “puxada”), aproxima a imagem da aparência e textura dos processos de gravação, que naturalmente já a afastam da noção de espelho do real fotográfico. Apesar da presença de uma diagonal que sugere a perspectiva, a textura e a ausência de foco fazem com que a imagem se apresente mais como um plano, dificultando a percepção de profundidade do espaço tridimensional.
Todo esse instrumental científico que se interpõe entre o objeto fotografado e sua imagem questionam o enquadramento da fotografia na categoria de índice e reforçam a defesa da fotografia como símbolo dentro da definição semiótica de Peirce. Segundo Machado (2001), tanto quanto a imagem digital, a fotografia é uma imagem científica informada pela técnica. Ela é resultado da aplicação técnica de conceitos científicos - dos campos da óptica, da mecânica e da química -, acumulados durante séculos. Mesmo que, na maioria dos casos, ainda esteja presente certo grau de indicialidade, o “traço”, quando existe, não está em estado bruto, mas profundamente mediado e interpretado pelo saber científico. Por isso, concorda-se com a
76
afirmação de Machado de que, “a verdadeira função do aparato fotográfico não é [...] registrar um traço, mas sim interpretá-lo cientificamente” (MACHADO, 2001, p.129). Estar consciente desse processo interpretativo é fundamental para a compreensão e o deciframento da fotografia. Como símbolo, ela precisa ser decifrada, no entanto, a aparente objetividade da gênese mecânica fotográfica, torna a fotografia uma imagem transparente, fazendo com que ela não pareça ser símbolo, portanto, não precise ser decodificada. Essa questão é discutida amplamente no livro Filosofia da Caixa Preta, de 2002 de Vilém Flusser, e será objeto de discussões mais detalhadas na seção 2.4.1 (p.199). Até aqui, buscou-se mostrar a multiplicidade de olhares ou as várias vozes que se deixam ouvir nos diferentes discursos sobre a imagem fotográfica. A fotografia pode ser vista por sua
iconicidade, por sua analogia com o objeto fotografado, observando as semelhanças que a imagem fotográfica guarda com as características plásticas e formais do referente, por suas características miméticas. Por outro lado, pode-se olhá-la como uma marca, um traço do real, que atesta a existência do referente, como um índice, uma prova da presença do objeto fotografado. Outro olhar possível, considera a fotografia como um símbolo, por concretizar uma série de conceitos científicos envolvidos no processo fotográfico e traduzi-los em imagens. Para além das categorias de Peirce (2003), que possibilitam analisar a fotografia pela relação entre a representação e o objeto ou coisa fotografada, aspectos que estão mais diretamente ligados à gênese fotográfica, procura-se olhar para a fotografia como um artefato, que materializa uma construção-simbólica formada sócio-culturalmente, que envolve todo o desenvolvimento do aparato câmera fotográfica, a interpretação do sujeito que constrói a imagem e a interpretação do sujeito que a recebe.
1.3
A TRAJETÓRIA DA FOTOGRAFIA A trajetória da fotografia é marcada pelo predomínio de um rigor técnico que privilegia
os resultados imagéticos e as posturas que reproduzem a idéia da fotografia como documento e reprodução fiel da realidade. Mesmo quando se considera o caráter interpretativo da fotografia, este está, em sua grande maioria, submetido ao controle e ao domínio do usuário/fotógrafo na manipulação da técnica fotográfica, com o objetivo de obter imagens que reproduzam, exatamente, suas intenções prévias. No senso comum, ainda prevalece a idéia de que o “bom
77
fotógrafo” é aquele que consegue “dominar a técnica”. Aquele que consegue obter, fotograficamente, as imagens que estão em sua imaginação, ou, no mínimo, que consegue, no momento do “clique”, antever como ficará a imagem final. No entanto, em alguns momentos surgem posturas que rompem com essas concepções, repensando a fotografia como meio de expressão e incorporando a experimentação, a imprecisão, a anamorfose e o acaso na imagem fotográfica. Posturas que procuram explorar ao máximo as possibilidades da fotografia, sem, necessariamente, se deter ao específico fotográfico. Apesar de extremamente rica e interessante, este trabalho não se deterá em descrever toda a trajetória da fotografia, mas em pontuar, no decorrer de seu desenvolvimento histórico, alguns momentos em que se percebem essas posturas questionadoras. Entre eles, serão destacados os que envolvem diretamente o experimentalismo e a manipulação técnica, como o pictorialismo, as vanguardas e a fotografia subjetiva; ou que exploram o registro dinâmico e a inscrição do tempo na imagem fotográfica, como os experimentos de Muybridge e Marey, e o fotodinamismo futurista dos irmãos Bragaglia. Posturas que, de alguma maneira, dialogam com o objeto de estudo deste trabalho: a prática da fotografia estenopeica pelos artistas contemporâneos. Algumas bases para a compreensão do desenvolvimento da fotografia já foram expostas anteriormente, como a perspectiva Renascentista e os diferentes aspectos ontológicos que envolvem a percepção da imagem fotográfica. Para traçar um paralelo entre a fotografia estenopeica e a fotografia tradicional com lentes, inicialmente apresenta-se os princípios de formação da imagem através de orifícios, que culminam com o desenvolvimento da camera
obscura que, por sua vez, é precursora tanto da fotografia tradicional com lentes quanto da fotografia estenopeica. Como estratégia metodológica, os momentos escolhidos, e que serão destacados neste trabalho, vão obedecer ao desenvolvimento histórico, cronológico, da fotografia que será dividido por períodos. A primeira fase compreende da invenção da fotografia até a metade do séc. XIX, e destaca-se o caráter de reprodução fiel e automática da realidade com que foi encarada a fotografia no seu início. A segunda fase estende-se da segunda metade do séc. XIX até, aproximadamente, o início do séc. XX, e observa-se, paralelamente ao uso da fotografia como documento, os primeiros experimentos que procuram o registro do movimento e, principalmente, a busca pelo reconhecimento da fotografia como arte, destacando-se o movimento pictorialista e a presença da
78
fotografia estenopeica. Na terceira fase, que vai, aproximadamente, do início até a metade do século XX, destacam-se o experimentalismo das vanguardas históricas em oposição à “objetividade” da “fotografia direta”. Como último momento, na quarta fase, será dado destaque à experiência da “fotografia subjetiva” com sua influência na fotografia moderna brasileira, e a retomada da fotografia estenopeica no contexto artístico pós década de 1960.
1.3.1
Antes da Fotografia Numa alusão à Alegoria da Caverna, de Platão, a experiência imagética humana estaria
intrinsecamente ligada à formação de imagens através de orifícios. A projeção de imagens no interior de espaços escuros pela passagem da luz através de pequenos orifícios, muito provavelmente, já foi experimentada pela humanidade desde seus primórdios. (RENNER 2000) Algumas experiências demonstram que os desenhos encontrados em gravuras paleolíticas, podem ter sido obtidos através do decalque direto das imagens formadas pelo princípio da camera obscura no interior das cabanas, construídas pelos humanos, para se abrigar do frio da era glacial.36
Figura 12: Matt Gatton, Paleo-Camera. Fonte: Gatton, 2007. Desenho ilustrando a projeção de imagens externas através de um orifício em uma cabana do paleolítico. Algumas imagens de gravuras da época podem ter sido feitas pelo decalque direto dessas imagens projetadas pelo princípio da camera obscura. 36
Os estudos sobre a teoria da “paleo-camera”, desenvolvidos por Matt Gatton, pesquisam a influência da observação das imagens formadas pelo princípio da camera obscura, como uma das experiências perceptivas que contribuíram para a compreensão das representações bidimensionais. Gatton simula algumas situações em diferentes modelos de cabanas paleolíticas, reconstruídos por arqueólogos na Bélgica, para mostrar que os desenhos gravados nas pedras, podem ter sido feitos através do decalque direto das imagens externas, projetadas no interior das cabanas através dos orifícios na pele que as revestia. (GATTON, 2007).
79
Os estudos mais antigos, com relação ao princípio de formação de imagens através de orifícios, datam de alguns escritos chineses do século. V a.C.. O Filósofo chinês Mo Ti (ou Mo Tsu) teria sido o primeiro a relatar a formação de uma imagem invertida, através de um orifício, para estudar o princípio de propagação retilínea da luz. No ocidente, o primeiro relato data de cerca de 330 anos a.C.. O filósofo grego Aristóteles, em seu trabalho Problems, questiona o porquê do sol, ao atravessar quadriláteros, formar figuras circulares ao invés de figuras igualmente quadriláteras37. Posteriormente, ao observar um eclipse solar, ele se pergunta por que ao observar o eclipse do sol através das folhas de uma árvore, ou ao cruzar os dedos de uma mão sobre a outra, os raios de luz se ampliam quando chegam ao chão? Será pela mesma razão pela qual quando a luz atravessa um orifício quadrado ela se projeta redonda na forma de um cone?38 Aristóteles não encontrou nenhuma explicação convincente para essas perguntas, e elas ficaram conhecidas na óptica como O problema de
Aristóteles.
Figura 13: David Stork, imagens de um eclipse parcial do sol, s.d. Fonte: Renner, 2000. Com uma mão sobreposta à outra, os orifícios que se formam no cruzamento entre os dedos permite a projeção de imagens do eclipse parcial do sol, simulando a experiência de Aristóteles.
37
“Why is it when the sun passes through quadrilaterals, as for instance in wicker work, it does not produce figures rectangular in shape, but circular (Aristotle 1936:333,341 apud GREPSTAD, 2006, s.p; Aristóteles, Livro XV, 6 apud RENNER, 2000, p.4)
38
“Why is it that an eclipse of the sun, if one looks at it through a sieve or through leaves, such as a plane-tree or other broadleaved tree, or if one joins the fingers of one hand over the fingers of the other, the rays are crescentshaped where they reach the earth? Is it for the same reason as that when light shines through a rectangular peephole, it appears circular in the form of a cone? [...]” (Aristotle 1936:333,341 apud GREPSTAD, 2006, s.p; Aristóteles, Livro XV, 6 apud RENNER, 2000, p.4)
80
Althazen, (Ali al Hasan, ou ainda Ibn al-Haytham), astrônomo e óptico árabe, descreve, por volta do ano 1020, os conceitos e fundamentos dos fenômenos ópticos de formação de imagens por meio de experimentos práticos e não de teoria, e propõe, para isso, o uso de uma
camera obscura. (CANTÃO, 2005). Nos séculos seguintes, os cientistas passaram a utilizar o princípio da camera obscura para estudar fenômenos ópticos, inspirados em Althazen. No séc. XVI, o astrônomo Gemma Frisius, que utilizava a técnica para observar eclipses solares, registrou em seu livro De Radio Astronômica et Geométrico (1545), a primeira ilustração que se conhece de uma camera obscura.
Figura 14: Reinerus Gemma Frisius, Camera Obscura, 1544. Fonte: Homepage The Camera Obscura: Aristotle to Zahn, Adventures in Cybersound. 39
O termo camera obscura é creditado a Johannes Kepler (1571-1630) (do latin camera significando quarto e obscura se referindo a escuro). No Renascimento, a técnica passou a ser utilizada principalmente por cientistas na observação astronômica. A partir do século XVI, o instrumento foi aperfeiçoado, com a inclusão de uma lente no lugar do orifício, e passou a ser utilizado também pelos artistas, com a finalidade de auxiliar na produção de desenhos fiéis à natureza, de acordo com o sistema da perspectiva renascentista. Descrições sobre a utilização da camera obscura, também são encontradas em escritos de Leonardo da Vinci (Codex Atlanticus e Manuscript D), e posteriormente por Giovanni Batista della Porta (1538-1615). A grande repercussão do trabalho de della Porta (Magia Naturalis, 1558) creditou a ele, erroneamente, a invenção da camera obscura.
39
Disponível em . Acesso em: 21 set 2006.
81
Durante o século XIX, muitas câmeras obscuras foram construídas com fins de entretenimento. Eram grandes ambientes, onde as pessoas entravam, para observar as cenas externas. Algumas dessas construções existem ainda hoje.40
1.3.2
A primeira fase – primeira metade séc. XIX “fidelidade ao real” Os princípios ópticos de formação da imagem na câmera obscura, associado ao
conhecimento da existência de substâncias químicas, que reagiam na presença da luz, desde, pelo menos, o início do século XVII, possibilitou, no início do século XIX, as primeiras experiências que culminaram com o surgimento da fotografia. Além do conhecimento técnico/científico, o momento histórico favorável foi fundamental para a invenção e a rápida popularização da fotografia. O contexto social e cultural do início da modernidade, com a industrialização e a urbanização do século XIX, e a crescente demanda por imagens, fez com que surgissem diferentes experimentos, na busca pela fixação das imagens formadas pela luz. Cada qual com suas variações, esses experimentos, em torno do processo fotográfico, aconteceram quase que ao mesmo tempo, em diferentes países. Joseph Nicéphore Niépce, Jacques Mandé Daguerre e Hyppolite Bayard, na França, Willian Fox Talbot, na Inglaterra e Hercules Florence, no Brasil. Após o anúncio da descoberta de Daguerre, na Academia de Ciência de Paris em 1839, outros inventores se manifestam e reivindicaram a descoberta. No entanto, a qualidade da imagem, a simplicidade e a rapidez do processo fizeram com que o Daguerreótipo prevalecesse, apesar de produzir cópias únicas, mantendo sua primazia até os anos 50. (Figura 89, p.161) O método desenvolvido por Fox Talbot, denominado Calótipo, utilizava sais de prata sobre um suporte de papel, muito semelhante ao processo da fotografia analógica moderna. Por se tratar de um sistema positivo-negativo, o calótipo permitia várias cópias a partir de uma mesma matriz. No início, o Calótipo não conseguiu muito destaque, mas, na segunda metade o século
40
Muitas informações sobre grandes câmeras escuras podem ser encontradas online na página de Jack e Beverly Wilgus, The magicmirror of life: an apreciation of the camera obscura. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2006.
82
XIX, a fotografia sobre papel passou a predominar por permitir a difusão da imagem numa escala maior.
Figura 15: Fox Talbot, Latticed Window at Lacock Abbey, 1835. Fonte: Homepage BBC.41
Para Janson, o que motivou a invenção da fotografia não foi o desenvolvimento de um instrumento de utilização prática, mas a procura por um meio artístico. “A invenção da fotografia foi uma resposta às necessidades artísticas e às forças históricas que subjazem ao romantismo. Em grande parte, o impulso determinante teve origem na demanda da verdade e do natural”. (JANSON, 1993, p. 882). No meio artístico, a fotografia foi encarada, inicialmente, como um esboço preliminar, um instrumento auxiliar para os pintores. Resultado de procedimentos mecânicos, isentos da inventividade do artista, a fotografia se reveste de discursos que a reconhecem como “reprodução fiel” e “automática” do real, distanciando-a da arte: O discurso da fidelidade ao real, da exatidão, mobilizado pela própria fotografia, que confere verdade ao meio em si, que atribui autenticidade ao que registra, independentemente da natureza do referencial, volta-se contra ela quando tenta ser aceita no panteão artístico. (FABRIS, 1998, p. 175)
O desenvolvimento dos cartões de visita (carte-de-visite photographique), em 1854, por Adolphe Eugene Disderi, popularizou a fotografia. A proliferação de ateliês de fotógrafos conferiu
41
Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2008.
83
a ela uma dimensão industrial, colocando ao alcance de um público cada vez maior, a possibilidade de ter seu retrato de forma simples e barata. (FABRIS, 1998b).
1.3.3
A segunda fase – segunda metade séc. XIX “documento x arte” A partir da década de 1850, se percebe o delineamento de uma divisão das práticas
fotográficas em dois campos, um realista, da documentação, e outro criativo, com autores que lutavam para que a fotografia fosse reconhecida como arte. O valor de “verdade” atribuído à fotografia, fez com que ela passasse a ser utilizada como documento e testemunho dos acontecimentos, como a Guerra da Criméia, documentada por Roger Fenton em 1855, e em seguida, a Guerra Civil norte-americana, que é registrada por Mathew Brady, Alexandre Gardner e Timothy O’Sullivan em 1861. Apesar das diferenças de enfoque, essas reportagens militares inauguraram o jornalismo fotográfico. A fotografia também é utilizada em expedições a lugares exóticos e desconhecidos, para registrar as paisagens e o cotidiano de povos distantes. No livro Egito, Núbia, Palestina e Síria, publicado em 1852, o francês Maxine Du Camp, documenta os vestígios das civilizações passadas em imagens marcadas pela ausência humana, em decorrência dos longos tempos de exposição. Duas décadas depois, em 1873, o inglês John Thomson mostra aspectos característicos da vida chinesa no livro Ilustrações da China e de seu Povo, privilegiando a presença humana. (FABRIS, 1998b) A realidade próxima também foi documentada. Publicado em 1877, o estudo sociológico A Vida nas Ruas de Londres, de John Thomson, é citado por Janson (1993) como o primeiro documentário fotográfico, a mostrar a realidade cruel da pobreza. Apesar da pose dos personagens, a fotografia deixava de apresentar uma imagem romântica da pobreza. Inicia-se, então, a prática das reportagens e documentários que buscam o registro dos acontecimentos e da realidade social com caráter de denúncia. Cabe destacar o trabalho do fotógrafo Jacob Rijs, ao retratar a criminalidade e a periferia de Nova Iorque, e a publicação de seu livro How the Other
Half Lives, de 1890, composto por imagens que mostram a precariedade das condições de vida nos bairros mais pobres.
84
Se, de um lado, existiu esse discurso realista por parte da fotografia documental, ainda no século XIX, alguns fotógrafos procuraram, ao contrário, explorar suas potencialidades plásticas, deslocando o discurso de cópia fiel e instaurando a fotografia como realidade construída. No caminho contrário ao da massificação da fotografia, por sua crescente industrialização de equipamentos e materiais, alguns fotógrafos “amadores” como Julia Margareth Cameron e o escritor Lewis Carrol, desligados do mercado fotográfico, buscaram, na fotografia, um meio de expressão artística. (MELLO, 1998). Annateresa Fabris (1998c) cita ainda os fotógrafos David Octavius Hill, Robert Adamson, Gustave Le Gray, Nadar, e Antoine Samuel Adam Salomon, por procurarem explorar as possibilidades plásticas da fotografia em busca de efeitos artísticos. Neste primeiro momento, a pintura foi a principal referência da “fotografia artística”. Segundo o pensamento da época, a maneira mais lógica de garantir para a fotografia o estatuto de obra de arte seria fazer a fotografia incorporar os princípios da arte acadêmica, tanto na temática quanto na técnica (COSTA, 1995).
Pictorialismo Heloise Costa (1998) descreve três principais correntes da fotografia artística, que passaram a ser conhecidas, indistintamente, como Pictorialismo. A primeira delas teve início na década de 1850, tendo como maior representante, o pintor Oscar Gustave Rejlander. Suas imagens resultavam da combinação de vários negativos. Esse processo, denominado impressão composta, utilizado inicialmente por questões técnicas, para resolver o problema do foco em diferentes planos, é incorporado por Rejlander com o objetivo de dar sentido artístico a suas obras. (MELLO, 1998). Sua obra mais famosa é The two
ways of life (1857) - Os dois caminhos da vida -, que combina mais de trinta negativos diferentes para produzir um tema alegórico com personagens míticos. A obra obedecia à iconografia da pintura acadêmica, imitando, inclusive, a pose das figuras que evocavam estátuas greco-romanas (FABRIS, 1998c). No caminho contrário ao das idéias correntes da fotografia como registro fiel da realidade, Rejlander molda os recursos da técnica fotográfica assim como o próprio real, com o objetivo de expressar uma idéia. (MELLO, 1998) “[...] à medida que a fotografia é reconhecida
85
como um retrato fiel do mundo, prepará-la, retocá-la e fragmentá-la, reconstituindo-a numa ordem artificial e subjetiva, significa manipular o próprio real.” (MELLO, 1998, p. 26).
Figura 16: Oscar Rejlander, Two Ways of Life, 1858. Fonte: Homepage George Eastman House.42
Numa segunda corrente, Costa (1998) destaca o pintor Henry Peach Robinson, que também se dedicou a produzir imagens através da fotomontagem. Diferentemente de Rejlander, Robinson buscava uma fotografia de cunho realista. Sua obra mais famosa é Fading away (1858) – Uma vida que se apaga -, que associa cinco negativos diferentes para criar uma imagem que simula a morte de uma jovem cercada por seus parentes. A montagem dos diferentes negativos permitia, ao fotógrafo, representar os objetos posicionados em planos distintos com o foco apropriado, mantendo a relação entre as diferentes distâncias e corrigindo assim, os problemas técnicos causados pela lente. A fotografia podia ser dividida em várias partes, que eram depois reunidas em um só papel. Isso fazia que cada parte da imagem recebesse atenção especial, obtendo-se maior perfeição nos pormenores. O objetivo era reforçar a atmosfera e os detalhes que ampliassem a dramaticidade da cena. (MELLO, 1998). Se contrapondo ao “academicismo” de Rejlander e Robinson, com cenas posadas em estúdio e montadas de forma artificial, Peter Henry Emerson propôs uma volta à natureza como
42
Disponível em: . Acesso em 21 abr. 2008.
86
fonte de inspiração. Sua fotografia, denominada “naturalista”, tinha por base as pesquisas científicas de então, sobre a visão humana. Diferentemente da imagem captada pela câmera fotográfica, a percepção do olho humano não tinha a precisão de foco da fotografia. O campo de visão do olho não é inteiramente uniforme. Os olhos enxergam com nitidez apenas a área central da imagem. Assim, Emerson buscava aproximar a imagem fotográfica da experiência visual humana, defendendo que, para reproduzí-la, o fotógrafo deveria deixar a lente ligeiramente “fora de foco”. (JANSON, 1993). A percepção que se tem da natureza, segundo Emerson, é mediada pelo olhar humano, e a imagem captada pela câmera não representa esse olhar. A seleção das informações acontece de acordo com as características técnicas do processo e da intermediação do fotógrafo. Assim, a fotografia reproduz a realidade de forma muito distinta da visão humana. Mello comenta que as discussões da fotografia acadêmica e da fotografia naturalista articularam as idéias do pictorialismo: As constatações de Emerson de que a câmera não “reflete” o real, de que existe a intermediação do fotógrafo e, portanto, de que a fotografia é basicamente interpretação, significam uma ruptura com o “discurso da transparência” e pautariam todo o debate em torno do pictorialismo. (MELLO, 1998, p. 34)
O pictorialismo surge, então, com a reunião de fotógrafos-artistas que difundiram a concepção de uma arte fotográfica, reivindicando “o reconhecimento da fotografia enquanto imagem artística, com o mesmo estatuto da pintura.” (MELLO, 1998, p. 35). As discussões acerca de a fotografia ser ou não arte culminam com o movimento denominado Secessionismo, que surgiu com a criação, em 1893, do grupo chamado The Linked
Ring em Londres. “Para resolver o dilema entre a arte e a mecânica, os secessionistas tentaram fazer fotografias tão parecidas quanto possível com a pintura” (JANSON, 1993, p. 934). No final do século XIX, se multiplicam as associações e fotoclubes que organizavam reuniões, grandes exposições e publicavam informativos, visando difundir as práticas da fotografia como arte. Além do Linked Ring, destacam-se outros clubes e associações que, principalmente na Europa e Estados Unidos, difundiam novas idéias, como o Photo-Club de Paris, o Camera Club de Viena, a Gesellschaft na Alemanha, a Association Belge de Photographie e o Camera Club de Nova York. No Brasil, o Photo Club Brasileiro, fundado em 1923, foi o principal responsável pela difusão do pictorialismo. O fotoclube desenvolvia uma série de atividades e eventos que incluíram a realização dos primeiros salões de fotografia brasileiros e da publicação da revista
87
Photogramma, fundada em 1926 para falar exclusivamente de fotografia e divulgar a estética pictorialista (COSTA, 1998; MELLO, 1998). Entre os principais representantes dessa prática fotográfica figuram os nomes de Robert Demachy, Edward Steichen, Clarence White, Gertrude Käsebier e Alfred Stieglitz, entre outros. No Brasil, pode-se citar os nomes de Fernando Guerra Duval, Alfredo Friedmann e Hermínia Nogueira Borges.
Figura 17: Guerra Duval, Estudo, 1930. Fonte: Costa, 1998.
O questionamento com relação ao realismo fotográfico faz com que as qualidades específicas da fotografia passem a ser recusadas. A partir da imagem, captada originalmente do real, eram incorporadas estratégias, como manipulações gráficas e pictóricas, que resultavam em copias únicas, que aproximavam a fotografia, cada vez mais, dos resultados pictóricos do desenho, da gravura ou da pintura, chegando ao ponto de não mais ser reconhecida como fotografia. (COSTA, 1998) Para que a imagem [fotográfica] revele a relação do fotógrafo com o real, os pictorialistas lançam mão de uma série de recursos que, além de refletirem uma recusa do real, questionam a própria natureza da câmera. Com a utilização de novos processos surgidos com o desenvolvimento da técnica fotográfica – como a goma bicromatada e o bromóleo -, eles podem controlar as tonalidades, introduzir luzes e sombras e remover detalhes que parecem muito descritivos.
88
Muitos desses efeitos são acompanhados da utilização de pincéis, escovas, raspadeiras e até dos próprios dedos, com o objetivo de alterar as formas. [...] o excessivo trabalho manual produz, muitas vezes, fotografias que não se distinguem de litografias, desenhos e pinturas e leva alguns pictorialistas e críticos de arte a deplorarem esse exagero. A utilização dessas técnicas manifesta o conflito existente entre o fotógrafo, e real e a exatidão da câmera. (MELLO, 1998, p. 38)
Essas técnicas de manipulação e intervenção faziam com que a fotografia perdesse sua ligação com o “real”, afastando-a de sua referência direta à natureza e, ao mesmo tempo, da prática documental do século XIX. Diretamente influenciada pela pintura impressionista, essa prática fotográfica, “de foco suave e temática afetada”, caracteriza a terceira corrente da fotografia artística, dentro do que se conhece como pictorialismo, citada por Costa (1998), e que se difundiu a partir do final do século XIX.
Figura 18: Edward Steichen, O Pensador, 1902. Fonte: Homepage The Metropolitan Museum of Art, New York.43
Apesar das severas críticas ao pictorialismo, por sua vinculação à pintura, os questionamentos levantados pelo movimento, e o experimentalismo técnico, mudam os rumos da prática fotográfica e abrem caminho para a fotografia moderna. Na afirmação de Costa & Silva: O pictorialismo [...] influenciou decisivamente a realidade da fotografia como um todo, pois sua atuação determinou o fim da estética documental do século XIX e teve como conseqüência imediata o desvelamento do caráter ideológico 43
Disponível em: < http://www.metmuseum.org/special/Gilman/view_1.asp?objectID={273FAA58-16E6-443B8847-29DA4A78D37E}&imageID={A80F74AC-706E-4CBD-974A-69120D91C537}>. Acesso em: 25 abr. 2008.
89
de estruturação da imagem. [...] Por mais conservadoras que tenham sido suas intenções, abriu um vasto campo de questionamento para a fotografia por meio do experimentalismo. (COSTA & SILVA, 2004)
Fotografia de movimento Nos primórdios da fotografia, os tempos de exposição eram demasiado longos, e para que as imagens tivessem definição, os retratados deveriam ficar imóveis. Os movimentos apareciam nas imagens como “borrões”, ou nem mesmo apareciam, resultando em paisagens desertas. Aos poucos, os avanços técnicos permitiram registrar, fotograficamente, não apenas os objetos inanimados e estáticos, mas corpos em velocidade cada vez mais acelerada. No final do século XIX, os tempos de exposição já eram bem menores, tanto por conta dos materiais sensíveis, que precisavam de uma quantidade menor de luz, conseqüentemente, tempos de exposição menores, quanto pelos equipamentos fotográficos, que possuíam obturadores mais rápidos. Pode-se dizer que o aprimoramento técnico da fotografia seguiu dois caminhos: o primeiro pela busca em aumentar a definição e o nível de detalhamento das imagens, aproximando a imagem fotográfica do “real” visível, inclusive com relação à reprodução cromática, e o segundo, pela diminuição nos tempos de exposição, numa tentativa de aproximar a fotografia ao máximo do registro “instantâneo”. As primeiras imagens que conseguiram congelar o movimento foram obtidas pelo fotógrafo inglês Eadweard Muybridge, na década de 1870. Após uma série de experiências, Muybridge conseguiu decompor os movimentos de um cavalo galopando num conjunto de fotos sucessivas. Por meio dessa sucessão de imagens estáticas, Muybridge se dedicou ao estudo do movimento humano e de animais. A seqüência do movimento era registrada em uma série de imagens com diferentes câmeras, que eram disparadas a intervalos regulares, registrando, cada qual, uma etapa do movimento em uma placa sensível diferente. Em alguns casos, as câmeras registravam o mesmo movimento de ângulos diferentes. (Figura 19)
90
Figura 19: Eadweard Muybridge, Galloping Horse, 1878. Fonte: Homepage Masters of Photography.44
Étienne-Jules Marey, fisiologista francês, também utilizou a fotografia para estudar o deslocamento dos corpos no espaço. Diferentemente de Muybridge, que registrava a seqüência do movimento em imagens distintas, Marey desenvolveu diversos aparelhos com o objetivo de registrar a seqüência de imagens de um mesmo corpo em movimento, sobrepostas em uma única placa sensível. Entre estes aparelhos estão o fuzil fotográfico e a câmera cronofotográfica, que posteriormente, junto às experiências de outros pesquisadores, contribuíram para o desenvolvimento da câmera cinematográfica. Nas fotografias de Marey, as diferentes fases do movimento aparecem fundidas, como uma espécie de “gráfico” do deslocamento dos corpos. A sobreposição das imagens faz com que elas se dissolvam, apagando seus contornos e desmaterializando as figuras. Machado (1993) comenta que Marey buscava a fusão, a continuidade, o “registro do tempo no espaço”, e que, ao encavalar propositalmente as imagens, suas fotografias produzem um “efeito anamórfico de natureza cronotópica”.45 (MACHADO, 1993, p. 108) (Figura 20)
44
Disponível em: . Acesso em 21 abr. 2008.
45
Segundo Machado o conceito de anamorfose é utilizado, a partir do século XVII, para designar procedimentos que consistem em relativizar ou mesmo “perverter” os cânones da perspectiva geométrica do Renascimento. Ele utiliza o termo anamorfoses cronotópicas para se referir às “deformações” que resultam da inscrição do tempo na imagem. O termo cronotopo deriva das idéias de Bakthin quanto à “materialização privilegiada do tempo no espaço”: a possibilidade de encarar o tempo como uma categoria que tem uma expressão sensível, que se mostra na matéria significante, e que pode, portanto, ser modelada artisticamente. (MACHADO, 1993, p. 100).
91
Figura 20: Étienne-Jules Marey, homem correndo vestindo roupa negra com listras brilhantes, 1880-90. Fonte: Homepage Expo Marey.46
Além de Muybridge e Marey, o físico francês Jules Janssen, o pintor americano Thomas Eakins e o médico Francês Albert Londe, também realizaram estudos do movimento por meio da fotografia no mesmo período. (SOUGEZ, 1988; MACHADO, 1993) Esses experimentos, de registro fotográfico do movimento, transmitem o sentimento tipicamente moderno da dinâmica, refletindo o novo ritmo de vida da idade da máquina. (JANSON, p. 938) Ao mesmo tempo, alteraram os padrões de representação do movimento nas artes visuais. As imagens seqüenciais de Muybridge e, mais especificamente, a cronofotografia de Marey, vão influenciar diretamente o trabalho de artistas como Duchamp, em Nu Descendan
l’Escalier (1912) e principalmente dos futuristas italianos, no início do século XX. O fotodinamismo, dos futuristas Anton Giulio, Arturo e Carlo Ludovico Bragaglia, tem como ponto de partida a cronofotografia de Marey, por sua potencialidade em dissolver as figuras e gerar anamorfoses. (MACHADO, 1993).
Fotografia estenopeica Com relação à fotografia estenopeica, é importante ressaltar que ela não foi precursora da fotografia tradicional. As cameras obscuras já utilizavam lentes antes mesmo do surgimento da fotografia. Os primeiros processos fotográficos exigiam tempos de exposição muito longos, devido à pequena sensibilidade dos materiais sensíveis, o que dificultava ainda mais a obtenção de imagens sem a utilização de lentes. Renner (2000) cita o cientista Inglês David Brewster como um 46
Disponível em: . Acesso em: 21 abr. 2008.
92
dos pioneiros na fotografia com câmeras de orifício e credita a ela o termo pin-hole, utilizado por Brewster em seu livro The Stereoscope, de 1856. No campo da documentação, o conjunto de fotografias estenopeicas mais antigo que se tem conhecimento foi feito pelo arqueólogo inglês Flinders Petrie, durante suas escavações no Egito, na década de 1880. (RENNER, 2000)
Figura 21: Flinders Petrie, Waiting to Begin Work, Egito, 1883 84. Fonte: Renner, 2000. Flinders Petrie utilizava a fotografia estenopeica para registrar suas expedições por causa da grande profundidade de campo que ela permite. Sua câmera tinha duas opções de tamanho de orifício e o tempo exposição variava de 2 seg. a no máximo 30 seg.
No contexto do pictorialismo, a fotografia estenopeica aparece como uma alternativa para a obtenção de imagens que se distanciavam do rigor técnico da fotografia. A ausência de lentes permitia a obtenção de imagens “menos definidas”, ou seja, sem a nitidez e a riqueza de detalhes das imagens com lentes. George Davison, defensor das imagens estenopeicas, recebeu o prêmio máximo na exibição anual da Photographic Society of London (Sociedade Fotográfica de Londres) com uma fotografia feita com câmera de orifício. (Figura 22)
93
Figura 22: George Davison, An Old Farmstead, ou The Onion Field, 1890. Fonte: Renner, 2000. A repercussão do prêmio de Davison rendeu a seguinte crítica do jornal inglês Times: “É realmente uma piada para com os ópticos, depois de exaustivas pesquisas científicas para desenvolver uma lente perfeita, o melhor trabalho poder ser produzido com instrumento óptico não mais elaborado do que um pedaço de folha metálica com um pequeno furo.” (RENNER, 2000, p. 47)47
O uso de câmeras sem lentes é ainda defendido por Alfred Maskell num artigo para o informativo Photographic Quaterly de outubro de 1890. É surpreendente como poucas pessoas estão cientes do fato de que uma imagem fotográfica pode ser obtida com a forma mais simples de camera obscura; ou seja, sem a adição de lentes, e por meio apenas de uma abertura de dimensões muito pequenas através da qual os raios de luz podem atingir e imprimir sobre uma placa sensível. [...] O objetivo deste artigo é chamar a atenção para um assunto do interesse de um certo grupo de fotógrafos [...] que buscam o reconhecimento artístico de fotografias que, ao invés de mostrar a intensa definição característica da fotografia como normalmente se conhece, têm, ao contrário, a definição, ou a nitidez de foco, mais ou menos modificada. [...] Em minha opinião, o melhor método para produzir esses resultados é aquele no qual a lente é inteiramente suprimida, e uma simples abertura, de diâmetro muito pequeno é usada no seu lugar. (MASKELL, 1890, p. 17-18)48
47 Tradução livre do texto em inglês: “It is certainly a satire on the labours of the optician that after the resources of science have been exhausted to produce a perfect lens, the best work can be produced with no more eleborate optical instrument than a bit of sheet metal with a hole pierced in it.” “Exhibition of the Photographic Soociety”, Times
(Londres) 29 de setembro de 1890. (RENNER, 2000, p. 47) 48
Tradução livre do texto em inglês: “It is surprising how few people are aware of the fact that a photographic picture can be made with the simplest form of camera obscura; that is to say, without the aid of any glass lens, and by means only of an aperture of very small dimensions through which the rays of light are allowed to fall upon and impress the sensitive plate. […] The object of this paper is, therefore, to endeavour to attract general interest to a subject which
94
A partir da premiação da fotografia de Davison, fotógrafos entusiastas na Europa, Japão e Estados Unidos começaram a comprar câmeras estenopeicas fabricadas comercialmente. Renner (2000) cita que, somente em Londres, foram comercializadas mais de 4 mil câmeras, conhecidas como Photomnibuses. Alguns anos antes, uma empresa americana, havia desenvolvido uma câmera estenopeica descartável em formato de fole chamada Ready Fotographer, A câmera continha uma placa de vidro sensibilizada, e uma fórmula para o preparo da solução reveladora. Além de câmeras com kits contendo placas sensibilizadas e químicos para o processamento, muitos fabricantes comercializavam discos metálicos com furos de diferentes diâmetros para serem adaptados no lugar das lentes. (RENNER, 2000). Na década de 1890, embora sem ligação com o movimento pictorialista, Eric Renner (2000) e Jochen Dietrich (2000) citam as experiências do escritor e dramaturgo sueco August Strindberg, que utilizou a fotografia estenopeica na busca por retratos verdadeiros. Strindberg procurava fotografar a personalidade, ou mesmo, a alma das pessoas. Para isso não utilizava lentes ou qualquer outro material entre o fotografado e o material sensível, para que a energia luminosa fluísse diretamente do retratado para a superfície sensível. Ele julgava “indispensável a possibilidade de a matéria peregrinar livremente entre a pessoa e a chapa fotográfica.” (DIETRICH, 2000, p. 141) Após a rápida popularidade da fotografia estenopeica, no auge do pictorialismo do final do século XIX, quase não se tem registros de sua utilização nas primeiras décadas do século XX. A produção em massa e a busca por equipamentos fotográficos mais rápidos associada às mudanças na concepção de fotografia artística deixaram pouco espaço para a fotografia estenopeica, que só irá reaparecer depois da década de 1960.
has of late been steadily making progress amongst a certain section of photographers – viz. , the claims to artistic recognition of pictures which, instead of showing the intense definition characteristics of a photograph as generally understood, have, on the contrary, that definition, or sharpness of focus, more or less modified. […] in my opinion the best method of producing this result is that I which the lens is entirely suppressed, and a simple aperture of more or less minute diameter used in its stead. .” (MASKELL, 1890, p. 17)
95
1.3.4
A terceira fase – primeira metade séc. XX “domínio técnico x experimentalismo” No início do século XX, os progressos da técnica fotográfica e a necessidade de uma
nova relação com o mundo, provocada pelas novas concepções de tempo e espaço, introduzidas pela modernidade, provocaram uma mudança radical na fotografia. (COSTA, 1995). Com o final da Primeira Guerra Mundial, mais especificamente, a fotografia artística irá seguir o caminho dos movimentos modernistas. O fotojornalismo e a fotografia documental mantêm seu caráter realista, e, ao mesmo tempo, incorporam os cuidados estéticos de perfeição técnica e de composição cuidadosa que irão caracterizar algumas tendências da fotografia artística, fazendo com que, em alguns momentos, não se separe uma da outra. Grupos de fotógrafos, mais ou menos organizados, centralizaram as discussões desse período, caracterizado pela formação de diferentes escolas fotográficas e movimentos de vanguarda estética. Cada um a sua maneira, esses grupos buscavam uma identidade própria para a fotografia, procurando firmá-la como um meio de expressão artística independente da pintura. Num dos caminhos tem-se a procura por valorizar os aspectos específicos do meio fotográfico, sem truques de processamento ou manipulação. No outro, a fotografia aparece como um meio de experimentação. Nos rumos de uma fotografia “pura”, que visava valorizar os aspectos específicos do meio fotográfico, alguns grupos partem para uma fotografia não mais mediada por manipulações técnicas de origem pictórica, com imagens impregnadas de características de outras linguagens visuais, como no pictorialismo. Esse tipo de fotografia ficou conhecido como straight
photography, ou “fotografia direta”, ou ainda “fotografia pura” (COSTA, 1995). Os princípios da “fotografia direta” foram formalizados, primeiramente, nos Estados Unidos, na década de 1910. Pregava-se a obediência às especificidades da técnica fotográfica, traduzida em imagens de temática variada, que mostravam fotografias nas quais as qualidades compositivas deveriam ser obtidas no ato de fotografar. As linhas e planos eram cuidadosamente estudados, assim como o registro das cores e das nuances de luz e sombra. As qualidades da fotografia eram pautadas pelo domínio técnico não admitindo retoques. As únicas “manipulações” aceitas, eram alguns procedimentos de laboratório, que visavam melhorar a qualidade de registro da imagem, e que não poderiam interferir nos aspectos naturais da técnica
96
fotográfica. Inicialmente, essas propostas estéticas foram seguidas por um grupo de fotógrafos conhecido como a Escola Americana, com nomes como Paul Strand, Edward Steichen, Clarence H. White, Gertrude Käsebier, Edward Weston e Ansel Adams. Na Europa, os primeiros indícios dessa proposta fotográfica começam a aparecer de maneira sutil, na primeira década do século XX, nas imagens do fotógrafo francês Eugène Atget. As fotografias de Atget retratavam, com simplicidade, mas com uma técnica apurada, temas comuns da paisagem urbana de Paris, como vendedores ambulantes e lojas de bairro. Atget influenciou a geração de fotógrafos que ficou conhecida como a Escola de Paris, na qual figuraram nomes como André Kertész, Gyula Halasz conhecido como Brassaï e Henri CartierBresson. Considerado um dos criadores do fotojornalismo artístico, Cartier-Bresson sintetiza, em sua obra, alguns dos conceitos do grupo. Os cuidados com a composição e com o ato de fotografar são levados ao extremo com a idéia do “momento decisivo”. O termo, cunhado por Bresson define o reconhecimento do ato fotográfico como sendo o momento exato para a captação da fração de segundo essencial para a organização visual de um acontecimento no “momento mais intenso da ação e da emoção, de modo a revelar seu significado intrínseco e não apenas a registrar sua ocorrência” (JANSON, 1993, p. 1049). (Figura 23)
Figura 23: Henri Cartier-Bresson, Hyeres, França, 1932. Fonte: Homepage Galeria Laurence Miller. 49
49
Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2008.
97
Seguindo outro caminho, as vanguardas artísticas do início do século encontram na fotografia um meio de experimentação. Sem se comprometer com a objetividade ou com a especificidade do meio, surgem, ainda nas primeiras décadas do século XX, quase que simultaneamente em diferentes países, movimentos fotográficos de vanguarda. Movimentos que passam pelo Dadaísmo e pelo Surrealismo, com fotomontagens e colagens, pelo Construtivismo, com suas experiências com fotografia aérea, pelo Futurismo, com os estudos do movimento, e também com os fotogramas de Man Ray e a Bauhaus. Cada um a seu modo, todos esses movimentos lançam mão da fotografia como meio técnico de experimentação visual. (COSTA, 1995). Na Rússia, o movimento de vanguarda apresentou algumas tendências principais. Uma delas, liderada por Aleksander Rodchenko, estava ligada ao Construtivismo e adquire força a partir de 1924. Com uma proposta conceitual e estética, que combinava concepções artísticas e políticas, o grupo reunia artistas que transitavam por diferentes áreas de expressão artística como a literatura, as artes plásticas, as artes gráficas, a música e o teatro. (Figura 24)
Figura 24: Alexander Rodchenko, Mulher ao Telefone, 1928. Fonte: Newhall, 1993.
Além de Aleksander Rodchenko, e sua companheira Varvara Stepanova, citam-se os nomes de Nikolay Prusakov, Viktor Shkolovsky e os irmãos Vladimir e Gyorgy Stenberg. As idéias desse grupo afirmam a necessidade de uma mudança no ato de olhar, provocada pelo
98
estranhamento causado pela imagem, fazendo com que o observador adote uma postura ativa na leitura da imagem, e evidenciando a presença do artista como construtor (enunciador) da representação. Essas idéias aparecem também nas propostas de artistas plásticos como Kasimir Malévitch e El Lissitzky, e do movimento Suprematista, que defendia a supremacia da sensibilidade sobre o próprio objeto. “Malevitch [...] dizia que as aparências exteriores da natureza não tinham para ele nenhum interesse, o essencial era a sensibilidade, livre das impurezas que envolviam a representação do objeto, mais do que isso, que envolviam a própria percepção do objeto” (MORAIS, 1991: 70). Ligados, mais diretamente, ao Abstracionismo, esses artistas trabalhavam com as imagens fotográficas, que são destinadas, de algum modo, à reprodução do real, de uma abstrata. Suas composições partiam de fotografias aéreas que mostravam imagens abstratas, desvinculadas de qualquer relação figurativa. Definindo uma maneira diferente de perceber e representar o espaço, que não mais reproduz a perspectiva renascentista, essas imagens constituem um novo tipo de relação entre o sujeito e o mundo. A realidade é transformada e precisa ser decodificada (DUBOIS, 1994).
Figura 25: Kasimir Malevich, Fotografia Aérea, c. 1927. Fonte: Dubois, 1994. As fotografias aéreas podiam ser imagens tomadas de avião, exibindo paisagens “transformadas”, de difícil identificação – “sem horizonte, nem profundidade, sem buracos, nem saliências, achatadas, geometrizadas, ‘abstratizadas’, metamorfoseadas em texturas, em configurações cromáticas ou formais, em jogos de formas ‘a serem interpretadas’” (DUBOIS, 1994 p. 261). Podiam ainda ser imagem tomadas verticalmente do solo, mostrando esquadrilhas de aviões.
99
Na Alemanha, a experimentação fotográfica pôde ser observada nas propostas de László Moholy-Nagy. Professor da Bauhaus, Moholy-Nagy adotava a fotografia como exercício de alargamento da percepção. Para ele, a fotografia era um recurso ideal para traduzir a proposta da escola, que procurava ensinar arte e design com o objetivo de dar uma função social para a arte e, ao mesmo tempo, conseguir uma nova interação entre vida, arte e tecnologia. Moholy-Nagy foi o principal teórico da proposta conceitual denominada Nova visão, que procurava, através da imagem fotográfica, descobrir novas relações óticas em cenas comuns. Uma vez que a visão humana é limitada, em termos biológicos, a câmera poderia potencializá-la, através de imagens com perspectivas forçadamente oblíquas e enquadramentos inusitados que somente a câmera fotográfica poderia oferecer. Assim, a arbitrariedade do olhar do sujeito ficaria estampada na imagem (COSTA, 1995).
Figura 26: László Moholy-Nagy, From the Radio Tower Berlin, 1928. Fonte: Homepage MOMA.50
Segundo Costa (1995), na Nova Visão, a discussão sobre a experimentação e a objetividade da fotografia se dá numa perspectiva diferente daquela encontrada na “fotografia direta”:
50
Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2008.
100
Para Moholy-Nagy a questão da objetividade se fazia presente na discussão sobre a fotografia; revestia-se, porém, de um significado diferente daquele adotado pela fotografia direta. Para ele, a fotografia era objetiva porque trabalhava com relações oticamente verdadeiras, de forma puramente visual, sem caráter simbólico ou metafórico, e não por uma obediência canônica à realidade. Ainda segundo ele, a atividade fotográfica pautava-se pelo binômio produção-reprodução, ou seja, a reprodução como sendo a fotografia tomada diretamente do real e a produção como o amplo espectro de experimentações possíveis, tais como solarizações, intervenções diversas nas cópias e negativos, múltiplas exposições, fotomontagens e fotogramas (COSTA, 1995, s.p)
Ainda na Alemanha, a liberdade de expressão proposta pela Nova Visão seria fortemente contestada, no final da década de 1920, por um grande grupo de fotógrafos sob a denominação de Nova Objetividade. Com princípios formalmente muito próximos daqueles da fotografia direta americana, a Nova Objetividade traz o preciosismo técnico e a uniformidade de pontos de vista para criar imagens de texturas, seqüências de objetos, detalhes arquitetônicos e de produtos industriais diversos, tentando dar conta da realidade material das coisas de modo impessoal (COSTA, 1995). Com nomes como Albert Renger-Patzsch, August Sanders e Karl Blossfeld, as idéias propostas pela Nova Objetividade obtêm grande repercussão, inclusive dentro da Bauhaus. Paralelamente à discussão estética, estabeleceu-se um confronto ideológico. As idéias da Nova
Visão foram perseguidas e combatidas pelo Nazismo, que encontrou nos princípios da Nova Objetividade, os padrões estéticos preconizados pelo regime. Na Alemanha, o experimentalismo na fotografia só reapareceria na década de 1950, com as propostas do grupo Fotoform, no que viria a ser chamado de Fotografia Subjetiva (COSTA, 1995). Na França, o nome do pintor norte-americano Man Ray se destaca por suas experimentações com a técnica fotográfica. Na década de 1920, ele fez parte do que viria a ser chamado de Vanguarda Francesa na fotografia, que estava ligada mais diretamente ao Surrealismo51 e ao Dadaísmo52. Man Ray alterava o processamento químico fotográfico para 51
Surrealismo. O manifesto inaugural foi publicado em Paris, em 1924. Nele, André Breton define o surrealismo como um “automatismo psíquico puro”, ou a “ausência do controle exercido pela razão, com exclusão de toda preocupação estética e moral” (MORAIS, 1991) O termo traz consigo um sentido de afastamento da realidade ordinária. Trata-se, segundo Breton, de “resolver a contradição até agora vigente entre sonho e realidade pela criação de uma realidade absoluta, uma supra-realidade”. Sob a influência da obra de Sigmund Freud e da psicanálise, os artistas tiram partido do imaginário e dos impulsos ocultos da mente para produzir suas obras. O movimento fez uso de variados canais de expressão - revistas, manifestos, exposições etc. - mobilizando diferentes modalidades artísticas: escultura, literatura, pintura, fotografia, artes gráficas e cinema. Na literatura, além de Breton, destacam-se os nomes de, Louis Aragon, Philippe Soupault, Georges Bataille, Michel Leiris, Max Jacob, etc. Nas artes plásticas, René Magritte, André Masson, Joán Miro, Max Ernst, Salvador Dali, entre outros. Na fotografia, Man Ray, Dora Maar e Brasaï. No cinema, Luis Buñuel. (Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008). 52
O Dadaísmo ou Dada apresenta-se como um movimento de ampla crítica cultural, que interpela não somente as artes, mas modelos culturais, passados e presentes. As manifestações dos grupos dada são intencionalmente desordenadas e pautadas pelo desejo do choque e do escândalo. O dadaísmo é inaugurado oficialmente com a criação
101
distorcer a imagem obtida pela câmera, utilizando, por exemplo, solarizações ou mudanças bruscas de temperatura que provocavam granulação e texturas nas imagens. Ele também desenvolveu uma série de trabalhos utilizando o que chamou de rayograph. Os rayogramas de Man Ray eram obtidos exatamente pelo mesmo processo técnico do fotograma utilizado por Fox Talbot nos photogenic drawings. (desenhos fotogênicos). Objetos eram colocados sobre o papel fotográfico que em seguida era exposto à luz, gravando no papel a silhueta, a sombra dos objetos, as diferenças de claro e escuro e as texturas, de acordo com a transparência ou opacidade do objeto. Outros artistas como Moholy Nagy e Christian Schad também utilizaram o fotograma, para produzir, fotograficamente, imagens abstratas sem a utilização da câmera. (NEWHALL, 1993)
Figura 27: Man Ray, Rayografia, 1927. Fonte: Homepage George Eastman House.53 do Cabaré Voltaire, em Zurique, 1916, pelos escritores alemães H. Ball e R. Ruelsenbeck, e pelo pintor e escultor alsaciano Hans Arp, o clube literário - ao mesmo tempo galeria de exposições e sala de teatro - promove encontros dedicados à música, dança, poesia, artes russa e francesa. O movimento se difunde em diferentes grupos, em diversas cidades, aproximados pelo espírito de questionamento crítico e pelo sentido anárquico das intervenções públicas, num clima de desilusão e ceticismo instaurados pela 1ª Guerra Mundial, que alimenta reações extremadas por parte dos artistas e intelectuais em relação à sociedade e ao suposto progresso social. Na Alemanha, destacam-se os nomes de R. Ruelsenbeck, R.Haussmann, Johannes Baader, John Heartfield, G.Groz e Kurt Schwitters. Em Colônia, Max Ernst. Albert Gleizes e A. Cravan, em Barcelona.. Em Nova York, Francis Picabia, Marcel Duchamp e Man Ray. Nas artes visuais, os ready-made de Duchamp constituem um dos melhores exemplos do espírito que caracterizou o dadaísmo. Ao transformar qualquer objeto escolhido ao acaso em obra de arte, Duchamp realiza uma crítica radical ao sistema da arte. Assim, objetos utilitários sem nenhum valor estético em si são retirados de seus contextos originais e elevados à condição de obra de arte ao ganharem uma assinatura e um espaço de exposições, museu ou galeria. No Brasil são citadas influências dadaístas nos trabalhos de artistas como Ismael Nery, Cicero Dias, Jorge de Lima e Flávio de Carvalho. (MORAIS ,1991; Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008). 53
Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2008.
102
A experimentação técnica e estética também fez parte do movimento Futurista centralizado na Itália a partir de 1909 com a publicação do primeiro manifesto Futurista, de autoria do poeta italiano Filippo Marinetti. Segundo Morais (1991), a atitude estética e política dos futuristas é marcada pela exaltação da máquina e da velocidade. A ênfase na ação e na pesquisa do movimento aparece tanto em romances quanto nas artes visuais, como, por exemplo, na escultura Formas Únicas na Continuidade do Espaço (1913), de Umberto Boccioni, e nas telas
Os Funerais do Anarquista Galli (1911), de Carlo Carrà, e Dinamismo de um Cão na Coleira (1912), de Giacomo Balla. Na fotografia, o futurismo se expressa no trabalho dos fotodinamistas Anton Giulio, Arturo e Carlo Ludovico Bragaglia, mais conhecidos como irmãos Bragaglia. A
fotodinâmica, proposta por Anton Giulio Bragaglia em 1911, tinha como objetivo principal, tornar visível a trajetória contínua do movimento em um único fotograma. A busca era por capturar, por meio do uso da câmera fotográfica, imagens que se formam em intervalos de tempo que o olho e a mente humana não são capazes de perceber, mas que a fotografia consegue registrar.
Figura 28: Arturo Bragaglia, Retrato Fotodinâmico de Uma Mulher , c. 1924. Fonte: Homepage Art and Synesthesia. 54
Mesmo sendo claramente influenciado pela cronofotografia de Marey, Giulio Bragaglia critica seu método. Para ele, as imagens de Marey restituem o tempo e a velocidade de uma maneira muito descontínua. O que Giulio Bragaglia buscava era a “absoluta fusão de todas as fases do movimento, a completa dissolução da matéria em trajetória no tempo-espaço”
54
Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2008.
103
(MACHADO, 1993, p.110). A procura, tanto da cronofotografia de Marey, quanto da fotodinâmica de Giulio Bragaglia, era por registrar o percurso do movimento, a inscrição do tempo na imagem. Para isso, Marey parte de um ponto de vista científico e desenvolve instrumentos para conseguir captar o movimento na imagem. Giulio Bragaglia, por sua vez, parte do ponto de vista da arte, intervindo no aparelho e incorporando os “borrões” da imagem, Procurava radicalizar ao máximo os efeitos borrados, por meio de longos tempos de exposição que distanciavam o registro fotográfico do “instantâneo”, que garantia que a imagem fosse vista como “copia fiel da realidade”. (JALLAGEAS, 2007). Apesar de compartilharem os mesmos objetivos, Giulio Bragaglia recusava a aproximação de seu trabalho com as experiências de Marey, buscando sempre valorizar o caráter interpretativo que diferenciava suas imagens do registro científico e mecânico das imagens de Marey (ENTLER, 2004).
1.3.5
A quarta fase - segunda metade do séc. XX. Neste período, cabe destacar alguns momentos nos quais o experimentalismo fotográfico
se fez presente. O primeiro deles é a constituição de alguns grupos de fotógrafos que renovaram o ambiente fotoclubista internacional. Esses grupos absorvem as idéias modernistas, buscando aprofundar as possibilidades do meio fotográfico, sem, no entanto, se prender apenas ao específico fotográfico ou à radicalidade das posturas pictorialistas. É o caso dos grupos Combined Society de Londres, o Groupe des XV da França, o La Bussola da Itália, o La Ventana do México, o La
Capeta de los Diez da Argentina, e o mais conhecido deles, o grupo Fotoform da Alemanha. No Brasil, a influência das idéias desses grupos pôde ser percebida claramente na produção do Foto
Cine Clube Bandeirantes. (COSTA & SILVA, 2004). A experimentação se destaca também na retomada da fotografia estenopeica a partir do final da década de 1960, como uma alternativa para explorar as possibilidades do meio fotográfico. O grupo Fotoform da Alemanha surge, na década de 1950, a partir da reunião de alguns fotógrafos como Wolfgang Reisewitz, Heinz Hajek-Halke e Peter Keetman que procuram rever a herança da fotografia do período de vanguarda, especialmente da Bauhaus para propor uma atuação contemporânea. Em seguida, se junta ao grupo Otto Steinert, que, ao lado de Frans Roh e Eisenwerth, seria o nome de maior destaque do grupo. Steinert foi o teórico do que viria a ser
104
chamado de Fotografia Subjetiva, cujo conceito, em clara oposição à Nova Objetividade, era a valorização da visão pessoal e a retomada do experimentalismo como base de uma fotografia criativa. (COSTA, 1995).
Figura 29: Otto Steinert, Lamps at the Place de la Concorde, luminograma, 1952. Fonte: Homepage IFA - Institute for Foreign Cultural Relations – Alemanha. 55
As práticas experimentais do grupo retomam uma série de técnicas adotadas por Moholy-Nagy e Man Ray como a solarização, a fotomontagem e o fotograma. No entanto, os princípios pregados pelo grupo são mais puristas que os da Bauhaus, não admitindo qualquer intervenção que não pertencesse exclusivamente ao universo fotográfico. Interferências extrafotográficas, ligadas ao desenho ou a pintura não eram aceitas. A imagem final resulta de uma “construção técnica meticulosa” e apresenta um formalismo rigoroso. “Trata-se de fotografias em que a forma é o destaque” (COSTA, 1995, s.p.). Mesmo se restringindo ao uso de procedimentos especificamente fotográficos, muitas imagens se aproximavam do abstracionismo das artes plásticas, levando à criticas quanto a sua dependência dos padrões pictóricos da época. (COSTA, 1995). No Brasil, a produção do Foto Cine Clube Bandeirantes - FCCB, a partir de meados da década de 1950, apresentou influência direta dos princípios da Fotografia Subjetiva, com a adoção de um forte experimentalismo, com a utilização de solarizações, fotomontagens, fotogramas e múltiplas exposições de uma mesma chapa.
55
Dispon[ivel em: < http://cms.ifa.de/en/exhibitions/exhibitions-abroad/foto/subjektive-fotografie/>. Acesso em: 25 abr. 2008.
105
Fundado em 1939, o FCCB, foi o berço da fotografia moderna no Brasil. Inicialmente estava ligado às práticas acadêmicas, tendo como referência a “fotografia direta” e os princípios da
Nova Visão. Em meados da década de 1940, se apresenta o início de uma transformação que abre possibilidades para a construção de uma nova linguagem, instaurada por alguns pioneiros como José Yalenti, Thomas Farkas, Geraldo de Barros e German Lorca. O experimentalismo dos pioneiros não vai se limitar ao especificamente fotográfico. Geraldo de Barros se destaca por sua postura de intervenção e experimentação no processo fotográfico, realizando um profundo questionamento dos limites da linguagem fotográfica. (COSTA & SILVA, 2004) Ele interferia nas várias etapas de construção da imagem fotográfica. Não apenas no momento da captação e do processamento em laboratório, mas também intervenções posteriores “pela agregação de cortes, furos, riscos e traços com tinta nanquim, ponta seca, montagens e colagens, tudo diretamente realizado nos negativos ou nas cópias em papel.” (BATISTA, 2006, p. 123)
Figura 30: Geraldo de Barros, A Menina do Sapato, São Paulo, 1949. Fonte: Barros, 1994. Neste, como em outros trabalhos, Barros substitui os limites precisos do papel fotográfico retangular, por um formato irregular, mais adequado a imagem por ele criada. As intervenções gráficas na imagem, através de desenho com tinta nanquim e riscos com ponta seca, são feitas diretamente sobre o negativo, mantendo o caráter de reprodutibilidade das imagens.
106
O experimentalismo na fotografia moderna brasileira também se destaca nos trabalhos de José Oiticica Filho. Embora radicado no Rio de Janeiro, Oiticica Filho era filiado ao FCCB, e mantinha contato direto com a produção paulista. Seu trabalho, a partir de meados dos anos 50, é marcado pela pesquisa abstracionista, na busca em desconstruir o referente através da intervenção técnica no próprio processo fotográfico. (COSTA, 1995; COSTA & SILVA, 2004) A partir da década de 1960, as relações entre a arte contemporânea e a fotografia tomam novos rumos e a discussão sobre a relação entre arte e fotografia se esvazia. Influenciados também pelas propostas das vanguardas históricas, alguns movimentos artísticos passam a incorporar, em suas práticas artísticas, não apenas a imagem e a técnica fotográfica em si, como também os conceitos que a envolvem. Dubois (1994) aponta três tendências fotográficas das vanguardas históricas que teriam influenciado a arte contemporânea. A primeira delas seria a lógica do ato percebida na obra de Marcel Duchamp. Seguindo os estudos de Rosalind Krauss, Dubois aponta como característica comum entre a obra de Duchamp e a fotografia, o próprio princípio constitutivo de ambas, não tanto como imagem mimética, mas, em primeiro lugar, como traço físico. Característica que iria constituir uma das tendências mais inovadoras da arte contemporânea: “o ato (fotográfico ou
pictural) tornou-se absolutamente essencial; a obra é apenas um traço seu.” (DUBOIS, 1994, p. 257). A segunda tendência, apontada por Dubois, diz respeito à aproximação da fotografia com a abstração, presente nos princípios da Nova Visão de Moholy-Nagy e nas fotografias aéreas de El Lissitsky e de Kasimir Malévitch. Segundo ele, essas práticas forneceram instrumentos conceituais às atitudes inaugurais da abstração na arte. Por meio de imagens que, apesar de destinadas ao real, rejeitam qualquer relação com a figuração. (DUBOIS, 1994). Como terceira tendência, Dubois cita as práticas surrealistas e dadaístas na fotografia. Além de marca física e superfície abstrata, a fotografia aparece também como material concreto a ser integrado em realizações artísticas diversas, principalmente entre os dadaístas, por meio das fotomontagens de artistas como: John Heartfield, Raoul Hausmann, Hannah Höch, Max Ernst e Moholy-Nagy. A apropriação da fotografia pelos movimentos artísticos contemporâneos se dá tanto pelo questionamento e incorporação de seus conceitos ontológicos, como instrumento de “representação do real”, em práticas como a Pop Art, a Figuração Narrativa, e o Hiper-Realismo, quanto por seu valor de “testemunho”, como na Land-Art e na Body-Art. (DUBOIS, 1994).
107
Se, durante o século XIX, a fotografia esteve marcada por seu poder de analogia, como reprodução fiel da realidade, ao longo do século XX, se observa um esforço da fotografia em anular esse vínculo com o real, enfatizando seu poder de transformação e reconstrução da realidade. No entanto, a partir da década de 1950, algumas práticas artísticas, ao invés de negar a ligação que a imagem fotográfica tem com o real, assumem a fragilidade dessa ligação, tirando partido dela e ao mesmo tempo redefinindo a noção de realismo da imagem fotográfica, em práticas que se apropriam da fotografia, explorando e reinventando as “realidades” representadas em suas imagens. (ENTLER, 2005) As questões não estão mais polarizadas entre a mimese e a desconstrução, entre uma fotografia documental e outra artística, ou entre a especificidade do meio ou o domínio técnico, e as possibilidades de experimentação e intervenção, mas a integração, material e simbólica, do fotográfico, ou, nas palavras de Dubois: [...] não é mais de forma alguma a dimensão mimética da fotografia que a aproxima da arte contemporânea (esse era o caminho típico do século XIX), mas, ao contrário, a própria crítica dessa dimensão pretensamente realista e, por outro, as características de uma ordem completamente diferente, mais epistêmicas, que levam a fotografia a se aproximar de certas formas de arte não representativas que se inspiram com força em sua lógica interna específica. A
foto não está mais em busca da pintura. É a arte contemporânea inteira que se torna fotográfica, no sentido fundamentalista do termo. (DUBOIS, 1994, p.291).
Fotografia estenopeica A fotografia estenopeica reaparece no final da década de 1960, pela iniciativa isolada de alguns artistas, não necessariamente fotógrafos, cada qual com uma busca aparentemente distinta. Motivados talvez pela insatisfação com a excessiva nitidez das imagens da fotografia com lentes, ou procurando um contraponto ao exagerado formalismo da Fotografia Subjetiva, ou ainda por buscar representações de “tempo” e de “realidade” diferentes daquelas da fotografia tradicional. Nomes como Paolo Gioli na Itália, Gottfried Jäger na Alemanha Oriental e David Lebe, Franco Salmoiraghi, Wiley Sanderson e Eric Renner nos Estados Unidos, todos, de alguma maneira, envolvidos pela experimentação e pela busca por novos resultados visuais. (RENNER, 2000) Instigados pelas diferenças na formação da imagem e pela possibilidade de trabalhar com um aparelho simples, construído pelo próprio usuário, esses vários artistas se aventuraram na
108
construção de câmeras estenopeicas, quase sempre buscando conformações diferentes das câmeras convencionais – outros formatos, vários orifícios. Paralelamente às experimentações artísticas, dois cientistas também trabalharam com a fotografia estenopeica. Kennet A. Connors, nos Estados Unidos, pesquisou a definição e a resolução de imagens formadas através de orifícios. Na Inglaterra, Maurice Pirenne utilizou a óptica da fotografia estenopeica para estudar a perspectiva em seu livro Optics, Painting and
Photography, de 1970. Aos poucos, a prática da fotografia estenopeica se popularizou e, no final dos anos 1970, a técnica passou a ser utilizada associada a processos fotográficos históricos, como o cianótipo, a goma-bicromatada, a platinotipia, entre outros. A fotografia estenopeica era o ponto de partida para qualquer processo de impressão que necessitasse de negativos de grandes formatos. Uma câmera para acomodar grandes negativos poderia ser feita de qualquer material. (RENNER, 2000). A partir da década de 1980, com a publicação do livro The Visionary Pinhole (1985), de Lauren Smith, e a organização de algumas exposições, a diversidade de experiências artísticas com a fotografia estenopeica começa a ser divulgada. (RENNER 2000). Além de fabricar suas próprias câmeras, ou reaproveitar caixas e latas, ou ainda, adaptar câmeras fotográficas convencionais, por meio da substituição da lente pelo orifício, os usuários têm a opção de comprar uma câmera estenopeica pronta. Renner (2000) cita pelo menos seis câmeras diferentes produzidas comercialmente na década de 1980. A técnica passa a ser incorporada às práticas experimentais das mais diversas. O corpo é utilizado como câmera, como nos trabalhos de Thomas Bachler (Figura 107 e Figura 108, p. 176), Paolo Gioli (Figura 98, p.169) e Jeff Guess (Figura 96 e Figura 97, p.168). Objetos diversos são transformados em câmera (Figura 101, p.170; Figura 104, p.171; Figura 95, p.167), e a própria câmera passa a fazer parte da obra. (Figura 43, p.134 e Figura 102, p.171) Os artistas/fotógrafos contemporâneos não se utilizam da fotografia estenopeica em busca apenas dos resultados plásticos que ela pode permitir – como as distorções de perspectiva, a dissolução das imagens pelos longos tempos de exposição, ou a possibilidade de grande profundidade de campo. O que se percebe é que a técnica tem sido, cada vez mais, adotada por suas potencialidades em questionar, criticamente, a fotografia tradicional com lentes e os
109
conceitos que estão nela arraigados. Tendência esta que pode ser observada através dos trabalhos dos diferentes artistas apresentados ao longo desta dissertação.
1.4
CONTEXTO ARTÍSTICO CONTEMPORÂNEO Não cabe aqui, fechar questão sobre a abrangência do termo Arte Contemporânea, nem
discutir seus limites temporais, ou mesmo a relevância da utilização do termo arte contemporânea para designar as tendências artísticas mais atuais, menos ainda avaliá-la, uma vez que não existe um consenso sobre o assunto. Apenas se buscará trazer o contexto da produção artística produzida nas últimas décadas, que convencionalmente se costuma chamar “arte contemporânea”. A arte sempre refletiu os valores, as concepções de mundo e as inquietações humanas que ocorrem no decorrer da história e no interior da sociedade. As inúmeras transformações e alterações entre os diferentes estados da arte56 não resultam de atitudes isoladas de artistas ou grupos, mas são decorrência das modificações em outros campos da atividade humana, do pensar e do fazer. O contexto cultural e artístico das últimas décadas, ao menos nas sociedades ocidentais urbanizadas, reflete os rumos instáveis e complexos do pensamento e da vida contemporâneos. Transformações decorrentes, por um lado, das alterações nos cenários: econômico, político, e tecnológico pós segunda guerra – a mundialização da economia, o novo modelo de produtividade capitalista, as novas redes de comunicação; e, por outro, resultado da evolução do pensamento científico - com a teoria da relatividade, a mecânica quântica e a teoria da incerteza. O estreitamento das noções de tempo e de espaço, a visão de mundo estático e sujeito a leis imutáveis e deterministas é substituído por outro instável e dinâmico, onde predominam a incerteza, o acaso e a multiplicidade (FOGLIANO, 2002). O comportamento instável do universo e a nova divisão política e social do planeta fazem com que os valores desse novo período – o instável, o transitório, o fragmentário, o descontínuo, o caótico - sejam incorporados à vida e ao pensamento humano. 56
Quando se fala de estado da arte se está referindo às características de um modo de ser e fazer artístico: arte figurativa, arte abstrata, arte construtiva, arte performática entre outros. As escolas ou movimentos artísticos – ismos podem apresentar mais de um estado da arte; “a arte cinética, por exemplo, tem aspectos construtivos e tecnológicos” (MORAIS, 1991, p. 15).
110
Esses valores que passam a ser objetos da discussão de alguns dos principais movimentos artísticos desse período: a liberdade do gesto do Expressionismo Abstrato57, a aproximação entre obra de arte e cultura de massa da Pop Arte58 e a priorização do conceito e da atitude mental em relação à aparência da obra da Arte Conceitual.59. A participação do observador na construção da obra foi uma preocupação estética e cultural que fez parte, sob as mais variadas formas, da maioria dessas correntes artísticas do final da década de 1950 até a década de 70. A participação do observador é fundamental na obra de arte de qualquer tempo. Retomando as idéias do Círculo de Bakhtin, a comunicação artística é um tipo especial de comunicação que depende profundamente da relação que se estabelece no diálogo entre autor e espectador. “Ela se torna arte apenas no processo de interação entre criador e contemplador” (VOLOSHINOV, 1976, p.4). Vista do lado de fora desta comunicação, a obra se torna apenas um artefato que não pode se tornar um “médium”, o meio de sua comunicação, não pode igualmente ser recipiente de valor artístico (VOLOSHINOV, 1976). Para Bakthin e Voloshinov, uma obra só se completa com a participação ativa do que Bakhtin chama de “compreendente ativo”, um ser humano ou uma cultura toda que, ao se deparar com a obra responde a ela, renovando seu sentido, compreendendo-a, dando-lhe acabamento. (JALLAGEAS, 2007) 57 Expressionismo Abstrato refere-se a um movimento artístico que tem lugar em Nova York, no período imediatamente após a 2ª Guerra Mundial. Numa explicação simplificada, no Expressionismo Abstrato a racionalidade é substituída pela subjetividade e pelo inconsciente. A obra de arte passa a ser fruto de uma relação corporal do artista com a obra que nasce da liberdade de improvisação, do gesto espontâneo, da expressão de uma personalidade individual. Diante da diversidade de obras produzidas algumas figuras e técnicas acabaram diretamente associadas ao expressionismo abstrato como a “action painting” de Jackson Pollock e a “color field painting” de Mark Rothko. Dentre outros artistas, se destacam também, Adolph Gottlieb, Willem de Kooning, Ad Reinhardt, Arshile Gorki, Robert Motherwell, Barnet Newman e Isamu Noguchi. (MORAIS, 1991; Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008) 58
A expressão Pop Art criada pelo crítico britânico Lawrence Alloway (1926 – 1990) batiza um movimento que segue a idéia de uma “arte popular” que se comunique diretamente com o público por meio de signos e símbolos retirados do imaginário que cerca a cultura de massa e a vida cotidiana. A defesa do popular traduz uma atitude artística contrária ao hermetismo da arte moderna. Um de seus traços característicos é a incorporação das histórias em quadrinhos, da publicidade, das imagens televisivas e do cinema. Entre os artistas mais destacados cita-se: David Hokney, Richard Hamilton, Eduardo Luigi Paolozzi, Richard Smith, Peter Blake, Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg, James Rosenquist e Tom Wesselmann. No Brasil, são citados trabalhos de Antonio Dias, Rubens Gerchman, Claudio Tozzi e Wesley Duke Lee. (MORAIS, 1991; Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008)
59
Para a Arte Conceitual, vanguarda surgida na Europa e nos Estados Unidos no fim da década de 1960 e meados dos anos 1970, o conceito ou a atitude mental tem prioridade em relação à aparência da obra. O mais importante para a arte conceitual são as idéias, a execução da obra fica em segundo plano e tem pouca relevância. A arte deixa de ser primordialmente visual, feita para ser olhada, e passa a ser considerada como idéia e pensamento. Muitos trabalhos que usam a fotografia, xerox, filmes ou vídeo como documento de ações e processos, geralmente em recusa à noção tradicional de objeto de arte, são designados como arte conceitual, como as performances do Grupo Fluxus, apesar do grupo ser descrito por Maciumas como Neo-Dadá. Entre os artistas citados se destacam: Robert Barry, Joseph Kosuth, Lawrence Weiner, Douglas Huebler, Vito Acconci, Chris Burden e Bruce Nauman. Do Grupo Fluxos – George Maciunas, Joseph Beuys, Wolf Vostell, John Cage, Nam June Paik e Yoko Ono. No Brasil são citados: Cildo Meireles, Antonio Dias e Waltércio Caldas. (MORAIS, 1991; Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008)
111
Esse conceito, trazido para as obras contemporâneas, se expande para além dos limites da recriação pela interpretação, a ponto de converter o receptor em co-criador da obra. A intervenção ativa do espectador, que pode agir sobre a obra, transformando-a através da manipulação, é fundamental para sua plena realização. Pode-se citar os mais diversos exemplos dentro da produção artística da década de 1960, como os happenings do Grupo Fluxos, os parangolés de Hélio Oiticica60 ou os bichos de Lígia Clark (1960), para citar apenas alguns exemplos. Essa preocupação participacionista retorna com maior intensidade e com formas de participação muito mais elaboradas e expandidas pela introdução das novas tecnologias “numéricas” na arte recente. “A interação não se produz mais somente entre a obra e o espectador, mas entre a coletividade dos espectadores, através da obra” (COUCHOT, 2002, p. 102). A obra deixa de ser fruto exclusivo da autoridade do artista, para se estender a um diálogo em tempo real com o espectador, que se torna em certa medida seu co-autor. A arte participacionista cede seu lugar para a arte interativa. (COUCHOT, 2002) A diminuição progressiva das fronteiras homem-máquina/arte-ciência, trazida pelas novas tecnologias, evidenciam a interdisciplinaridade dos conhecimentos e ampliam a discussão sobre as novas posturas perceptivas e os novos problemas de representação que poderão, talvez, dar conta das novas formas de compreender e de se relacionar num mundo com um número crescente de recursos e mediações tecnológicas. Essas inquietações, refletidas nas artes, são traduzidas nos trabalhos dos artistas contemporâneos cada vez mais envolvidos pelas novas tecnologias digitais tanto na produção como na veiculação de suas obras. Ao discutir as poéticas tecnológicas contemporâneas, Arlindo Machado (1997) cita algumas tendências gerais e características estruturais que estão presentes no terreno recente das “artes midiáticas”: a “multiplicidade” – com a desintegração de qualquer unidade ou homogeneidade; a “mestiçagem/hibridação” das linguagens – que dissolve as fronteiras formais e materiais entre os diferentes suportes e as linguagens; “processamento e síntese” – com a manipulação e a edição digital que colocam em xeque a questão referencial e o valor documental das imagens técnicas; a “metamorfose” – as imagens anamórficas desconstruídas pela infinita manipulação eletrônica e a “interatividade” – que pressupõe a intervenção ativa do espectador para a plena realização da obra, abolindo as fronteiras entre autor e espectador. Características que 60
Sobre Hélio Oiticica, a poética participacionista e Arte Tecnológica Contemporânea ver SPRICIGO (2004)
112
reproduzem o pensamento complexo que trabalha com um número elevado de interações, incertezas, ambigüidades, indeterminações, interferências de fatores aleatórios e com a imprevisibilidade do acaso. A descrição de Machado (1997) segue pelo caminho das mídias eletrônicas e computacionais, mais especificamente da hipermídia, entretanto, pode-se perceber a presença dessas características em diferentes manifestações artísticas recentes, inclusive na produção imagética através da fotografia, a qual será tratada a partir daqui.
1.4.1 A Fotografia Dentro da vasta e complexa produção fotográfica contemporânea coexistem as mais diferentes posturas que lhe conferem uma grande variedade temática e conceitual. Sem desconsiderar o campo da fotografia jornalística e documental, neste trabalho, o olhar será voltado para a produção fotográfica de expressão artística de caráter mais experimental e conceitual. Nessas propostas busca-se questionar e romper, mais intensamente, com os limites conceituais e estéticos da linguagem fotográfica tradicional. A forte ligação da fotografia com a realidade, calcada em conceitos como a indicialidade - que lhe conferem valor de documento, de evidência que atesta a existência do referente -, tem sido fortemente abalada nas últimas décadas com a introdução da eletrônica e da computação no processamento das imagens. As possibilidades de manipulação desses novos meios desafiam tanto os conceitos mais ingênuos, que se detém na gênese mecânica como garantia de objetividade da imagem fotográfica, até as concepções mais “puristas”, que se prendem ao instante do registro da imagem como momento emblemático da fotografia. A não manipulação da imagem, manifestada pela idéia do “momento decisivo” que desconsidera a intervenção humana nas escolhas e ajustes do equipamento, o preparo da cena antes do “clique” e todo o processamento posterior a ele, ainda se faz presente entre muitos fotógrafos contemporâneos, apesar da crescente digitalização do processo fotográfico. As manipulações e intervenções sobre a imagem sejam elas da ordem da encenação da pose ou das possíveis interferências no processamento ou posteriores a ele ainda são contestadas. Entretanto, após mais de 150 anos de restrições técnicas, conceituais e ideológicas, subvertidas apenas pelos artistas de vanguarda, esse conceito de fotografia tradicional está sendo
113
questionado, e a fotografia começa a se emancipar e derrubar as barreiras que limitam sua linguagem. (MACHADO, 2001) Nas palavras de Machado: A eletrônica força hoje a fotografia a viver a sua hora da verdade e a livrar-se das convenções e das idéias preconcebidas que entravam o seu pleno desenvolvimento como arte e como meio de comunicação. À medida que o público for se acostumando às imagens digitalmente alteradas, à medida que essas alterações se tornarem cada vez mais visíveis e sensíveis, até como uma nova forma estética, e que os próprios instrumentos dessas alterações estiverem ao alcance de um número cada vez maior de pessoas, também para a manipulação no plano doméstico, o mito da objetividade e da veracidade da imagem fotográfica desaparecerá da ideologia coletiva e será substituído pela idéia muito mais saudável da imagem como construção e como discurso visual. (MACHADO, 1997, p. 246)
Estas observações de Machado sobre o mito da objetividade fotográfica têm, no presente momento, mais de 10 anos. A evolução nos recursos digitais e seu acesso a eles cresceram vertiginosamente nesse período. No entanto, observa-se que ainda não foram suficientes para mudar a idéia de “fotografia” que está impregnada no senso comum. As manipulações e intervenções em todas as fases do processo marcam a produção fotográfica não só no meio artístico. Até mesmo as fotografias veiculadas pelos meios de comunicação, de caráter jornalístico ou documental, cujo objetivo seria mostrar a “realidade”, são de tal forma manipuladas, que, muitas vezes, já não são reconhecidas se comparadas ao seu registro original. Não apenas um profissional, mas qualquer usuário pode ter a seu alcance ferramentas de edição digital capazes de alterar profundamente suas fotografias com um nível de qualidade bastante alto, a ponto das alterações feitas não serem detectadas. As mídias impressas, principalmente as revistas semanais, trazem retratos tão manipulados que chegam a desfigurar a pessoa retratada. Ainda assim, raramente o espectador se incomoda com isso e, paradoxalmente, apesar da consciência da possibilidade de manipulação da fotografia, ela ainda carrega o estigma de “espelho do real”. Já no meio artístico experimental, a fotografia passa cada vez mais a interagir com as distintas expressões artísticas, já não se consegue mais estabelecer claramente as fronteiras entre as diferentes formas de expressão e de produção das imagens61. As linguagens se fundem: a fotografia se mistura com a pintura, com a escultura e com o desenho; o uso de processos artesanais, a 61
Sobre a diluição das fronteiras ver: MACHADO, 1997, p. 240; MAGALHÃES & PEREGRINO, 2004, p. 103 e FERNANDES JÚNIOR, 2006, p. 10.
114
introdução das mídias eletrônicas com a inclusão do vídeo, da holografia e da infografia em diversas instalações, ampliam as possibilidades expressivas da fotografia. Cada vez mais híbridas, produzidas e veiculadas por meios e suportes dos mais diversos, a fotografia não depende mais da câmera fotográfica convencional para gerar suas imagens. Câmeras de vídeo são utilizadas para obter imagens eletrônicas “fotográficas” – still vídeo62; assim como programas de computador –
rendering - modelam digitalmente imagens, sem o auxilio da câmera. (Figura 31)
Figura 31: Andréas Muller-Pohle, Face Codes 2096, Kyoto, 1989/99. Fonte: Revista European Photography, 1999. 63 O trabalho Face Codes de Muller-Pohle é composto por fotografias eletrônicas feitas com câmera de vídeo digital (still vídeo). Todas as imagens foram remodeladas utilizando os mesmos parâmetros. O texto que corre na parte inferior da imagem representa o código alfanumérico da respectiva imagem traduzido em ideogramas da língua japonesa.64
Para tratar, mais especificamente, da produção fotográfica experimental e conceitual, que busca questionar e romper com os limites da fotografia tradicional, será abordada, em seguida, a idéia de “fotografia expandida”. Na seqüência, será apresentado, de forma breve, o contexto fotográfico contemporâneo no Brasil. 62
Still vídeo é o termo usado para a imagem fotográfica que, ao invés de ser registrada em um material físico como o filme ou papel, é gravada diretamente em um suporte magnético ou ótico.
63
Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2008.
64 Tradução livre do texto em ingles: “The Face Codes, taken in Kyoto and Tokyo, are digital video stills that were later reworked and typified using identical parameters. The text running along the lower edge of the image, similar to subtitles in a non-synchronized film, represents the alphanumeric code of the respective image, which has been translated “back” into the Japanese code. (AMELUNXEN, 2008)”.
115
1.4.2 A Fotografia Expandida O processo de expansão das possibilidades expressivas da fotografia vem acompanhado de mudanças com relação à sua conceitualização teórica: agora ela não mais se limita a ser apenas indicial e/ou icônica, mas flutua entre as três categorias sígnicas de Peirce – ícone, índice e símbolo. Essa produção fotográfica contemporânea, cuja ênfase está na importância do processo de criação e nos procedimentos utilizados pelo artista, recebeu a denominação de fotografa
expandida65 (FERNANDES JÚNIOR, 2006, p. 11). O termo é atribuído a Andreas Muller Pohle, fotógrafo, crítico e editor da revista
European photography, que escreveu, em 1985, um texto intitulado Information Strategies, no qual discute algumas questões relativas a essa nova fotografia que “pressupõe hoje uma gama praticamente infinita de possibilidades de intervenção não só na produção [...] como também na
circulação e no consumo social de fotografias” (MACHADO, 2001, p. 134). O pesquisador e crítico brasileiro Rubens Fernandes Júnior (2006) traça uma ampla discussão sobre o termo como estratégia para compreender os processos de criação na fotografia contemporânea66. Segundo ele, a denominação fotografia expandida tem como base teórica o texto Sculpture in the expanded field, de 1979, de Rosalind Krauss – que discute a Escultura
Expandida, e o texto Expanded Cinema de Gene Youngblood, de 1970, que discute sobre o Cinema Expandido, além do texto de Müller-Pohle citado anteriormente.67. Para Fernandes Júnior (2006), a finalidade da fotografia expandida é subverter os modelos e desarticular as referências, produzindo imagens que sejam essencialmente perturbadoras: A fotografia expandida existe graças ao arrojo dos artistas mais inquietos, que desde as vanguardas históricas, deram início a esse percurso de superação dos paradigmas fortemente impostos pelos fabricantes de equipamentos e materiais, para, aos poucos, fazer surgir exuberante uma outra fotografia, que não só questionava os padrões impostos pelos sistemas de produção fotográficos, com 65
Existem outras denominações para designar esse tipo de produção fotográfica: fotografia experimental, construída, contaminada, manipulada, criativa, híbrida, precária, entre tantas outras. Opta-se pelo termo fotografia expandida, utilizado por Arlindo Machado (2001) e Rubens Fernandes Júnior (2006). 66
Rubens Fernandes Júnior discute a questão da fotografia expandida em sua tese de Doutoramento em Comunicação e Semiótica, pela PUC/SP, defendida em 2002, sob o título A fotografia Expandida. Em breve, será publicado também o livro: A fotografia expandida, do mesmo autor pela editora Cosac & Naify.
67
KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the expanded field. In: Revista October, n. 8, primavera de 1979; YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. Dutton Paperback, 1970. (FERNANDES JÚNIOR, 2006)
116
também transgredia a gramática desse fazer fotográfico (FERNANDES JÚNIOR, 2006, p.11).
O fotógrafo que produz a fotografia expandida, além de buscar romper com as barreiras que tradicionalmente definem as categorias ontológicas da fotografia, procura uma postura interventora, trabalhando com categorias não previstas na concepção do aparelho, penetrando no interior da caixa preta e subvertendo as regras estabelecidas, conforme as concepções de Flusser (2002), abordadas mais adiante, na seção 2.4.1. Dentro do conceito de fotografia expandida são considerados todos os tipos de intervenções que possam ampliar os limites da fotografia enquanto linguagem sem se deter em sua especificidade. Intervenções que ofereçam à imagem final um caráter perturbador, fazendo com que a fotografia deixe de se relacionar com o mundo visível imediato ligado às aparências, para provocar o estranhamento68 dos sentidos. Para Rubens Fernandes Júnior, trata-se de “compreender a fotografia a partir de uma reflexão mais geral sobre as relações entre o inteligível e o sensível, encontradas nas suas dimensões estéticas” (FERNANDES JÚNIOR, 2006, p. 17). Em sua pesquisa, ele sugere três níveis de interferência nas imagens a partir de uma conexão entre as estratégias propostas por Muller-Pohle e as propostas de intervenção no programa do aparelho de Flusser. Interferências que façam com que as imagens contemporâneas de base fotográfica, que se afastam cada vez mais de seu caráter de veracidade para se aproximar do mundo da ficção, superem as limitações do aparelho e alcancem resultados que ultrapassem suas próprias barreiras (FERNANDES JÚNIOR, 2006). O primeiro nível de interferência diz respeito ao “artista e o objeto”. Com o arranjo da cena, a construção da encenação, através de procedimentos como: a reapropriação de imagens; a encenação do auto-retrato; a nova natureza morta; as construções por miniatura; a direção das cenas; as instalações e as esculturas; a construção de “realidades”; os diários íntimos; entre outros. O segundo, diz respeito ao “artista e o aparelho”, se referindo diretamente às propostas de Flusser com relação ao rompimento com as funções pré-estabelecidas pelos programas dos aparelhos e a exploração de suas potencialidades escondidas, como: o movimento da câmera durante o registro; a câmera cega; a superposição de imagens; o desfoque como estratégia de representação; o uso de 68 A expressão estranhamento foi utilizada, nos anos vinte, pelos formalistas russos, sobretudo Chlóvski, para se referir a um “conjunto de técnicas desconstrução, cuja função seria perturbar as nossas percepções rotineiras forçar a sensibilidade a ‘estranhar’ o arranjo simbólico que lhe é apresentado”, impedindo o envolvimento inocente e exigindo o empenho do leitor/espectador para decodificar o “texto”. (MACHADO, 1984, p. 112-113)
117
câmeras artesanais, amadoras, sem lentes (estenopeicas), ou com lentes de baixa qualidade; a fotografia sem câmera, entre outros. No terceiro nível estão o “artista e a imagem” – “interferindo na própria fotografia”, ou seja, a intervenção no suporte após o registro da imagem, no negativo e/ou no positivo, misturando diferentes processos ou combinando-os com outras mídias, ou transferindo-as para outros suportes. Destacando: a solarização; o fotograma; as fotomontagens; os processos de revelação forçada ou alterada; a utilização de processos primitivos como o cianótipo, a heliografia, a fotogravura, o Van Dyke, a goma arábica, o platinótipo; e ainda a manipulação pós digitalização através de softwares variados. Para Fernandes Júnior (2006), todas essas interferências, além de outras mais, que caracterizam a chamada fotografia expandida, foram as respostas encontradas pelos artistas para suas inquietações com relação à prática fotográfica tradicional impregnada pela idéia de veracidade e de completude do momento decisivo. O projeto estético contemporâneo – e aqui se inclui a fotografia expandida – é exatamente a busca dessa diversidade sem limites e da multiplicidade dos procedimentos – novas formas do conhecimento humano onde o mundo passa a ser entendido como uma trama complexa, extraordinária e instável. (FERNANDES JÚNIOR 2006, p. 15)
A busca por novos sentidos perceptivos e interpretativos para suas imagens fez com que os artistas passassem a fazer uma releitura de seus meios de expressão. Nesse caminho, a fotografia, quando operada no contexto de produção contemporânea de maneira mais conceitual, tem, muitas vezes, suas qualidades estéticas e seus procedimentos formais, tão importantes para o fotógrafo contemporâneo, deslocados para estabelecer um outro ponto de vista acerca da arte e de sua inserção cultural e ideológica. Ponto de vista este, articulado pelo poder que a imagem fotográfica tem em complementar e requalificar o mundo, devido à sua vinculação com a realidade. Ao mesmo tempo, a mestiçagem e a hibridação entre os diferentes processos produtivos caminham, cada vez mais, na direção de um entrelaçamento entre os procedimentos tradicionais, as posturas das vanguardas históricas e os processos alternativos, resultando em experimentações que desestabilizam as convenções. Nesse sentido, a fotografia contemporânea se apresenta como uma obra em aberto que se oferece ao espectador em seus sentidos múltiplos e provisórios (MAGALHÃES & PEREGRINO, 2004).
118
1.4.3 Contexto Brasileiro Traçar o contexto da fotografia brasileira contemporânea implicaria estabelecer limites para a abrangência da fotografia moderna. Além disso, não se pretende, com este trabalho, fazer um resgate histórico, além do que, parte-se do pressuposto de que tanto os limites quanto as fronteiras são fluídas e instáveis. Assim, busca-se identificar, entre as inúmeras tendências predominantes nas últimas décadas, aquelas que se identifiquem com as propostas estéticas contemporâneas. A trajetória recente da fotografia brasileira apresenta uma variedade de posturas estéticas e conceituais que mostram tendências de expressão claramente moderna que se mesclam com proposições mais contemporâneas, paralelamente ao domínio de uma produção de caráter fotojornalístico, deixando clara a complexidade da experiência estética atual. As temáticas tradicionais se transformam pela hibridização e associação de vários meios e pela a inserção de novos domínios: o universo fotográfico se estende aos arquivos, aos bancos de dados, aos cenários criados para serem fotografados e às instalações. A partir da década de 1980, algumas questões ganham destaque: a relação entre a cultura popular e a tecnologia; a posição do artista como criador; as articulações entre o simbólico, o mítico e os clichês da sociedade midiática; o estatuto da imagem nas sociedades contemporâneas e a relação natureza-artifício. Essas questões, não necessariamente abordadas nas imagens, atuam como pano de fundo na produção artistica. Essa tendência da fotografia brasileira contemporânea tem, como antecedente, o legado da fotografia concreta da década de 1950, com José Oiticica Filho e Geraldo de Barros69, e mais recentemente os trabalhos realizados a partir de fotografias de artistas como Waltércio Caldas, Ana Bella Geiger, Iole de Freitas e Antonio Dias. (FATORELLI, 2007) Para tratar desse vasto e complexo panorama da fotografia brasileira atual, opta-se por mencionar o trabalho realizado por Angela Magalhães e Nadja Fonseca Peregrino no âmbito do resgate da produção fotográfica brasileira que resultou na publicação do livro Fotografia no Brasil:
um olhar das origens ao contemporâneo, publicado, em 2004, pela Fundação Nacional de Arte FUNARTE. Testemunhas ativas da história da fotografia brasileira, ao menos dos últimos vinte
69
Sobre o trabalho fotográfico de Geraldo de Barros ver: BATISTA, 2006.
119
anos, as autoras traçam a história visual da fotografia com a propriedade necessária para que se sinta segurança em apresentar o contexto da fotografia contemporânea a partir de suas pesquisas. Entre os múltiplos caminhos da fotografia brasileira nas últimas décadas, Magalhães & Peregrino apresentam, de forma referencial, diferentes estratégias artísticas da fotografia contemporânea que oscilam entre uma postura documental e uma tendência neopictorialista com a utilização de procedimentos antigos70, o uso de câmeras estenopeicas71; passa pela utilização de
polaroids, por vezes alterados ou destruídos72, a utilização de novas mídias73, a apropriação de fotos e uso de textos74, além da utilização de procedimentos pictóricos75 e da construção de objetos e ou instalações76 e de ações performáticas77. Essas propostas estéticas procuram mostrar a complexidade e o poder projetivo da imagem, sua capacidade de criar realidades, além de discutir sobre a presença da subjetividade, da aura, da autonomia, da imanência e da originalidade da imagem. (MAGALHÃES & PEREGRINO, 2004). Paralelamente a essas estratégias artísticas, um número expressivo de fotógrafos desenvolvem trabalhos voltados a outras temáticas, como a fotografia de natureza, o fotojornalismo e a fotografia documental, buscando a legitimação de seu trabalho através de uma atitude autoral.78 Entretanto, este trabalho se deterá em apresentar apenas alguns exemplos de trabalhos de fotógrafos, cuja postura estética e conceitual rompem mais diretamente com a linguagem da fotografia tradicional e ajudam a compreender o atual processo de expansão da fotografia. A fotógrafa inglesa, Maureen Bisilliat, fez parte de uma geração de fotógrafos estrangeiros que se estabeleceram no Brasil entre o final da década de 1950 e o final da década de 1960. Essa geração contribuiu para “a criação da imagem de um país de identidade própria, com 70
Via os trabalhos de: Ana Duães, Kenji Ota, Marie Iwariki, Marta Viana.
71
Via os trabalhos de: Paula Trope, Raquel Stolf, Regina Alvarez, Tiago Rivaldo.
72
Via os trabalhos de: Gal Oppido, Cláudio Feijó, Jair Lanes, Márcia Xavier, Marcos Bonisson, Regina Stella, Rose Van Lengen.
73
Via os trabalhos de: Arthur Omar, Carlos Fadon Vicente, Levindo Carneiro, Luis Monforte, Mickele Petruccelli, Milton Montenegro.
74
Via os trabalhos de: Rosângela Rennó, Odires Mlászho, Rogério Ghomes, Cristina Miranda, Cristina Guerra.
75
Via os trabalhos de: Alex Flemming, Sinvall Garcia, Ana Farache.
76
Via os trabalhos de: Arthur Leandro, Flávya Mutran, Miguel Rio Branco, Rochelli Costi, Rubens Mano.
77
Via os trabalhos de: Amílcar Packer, Brígida Baltar, Hudnilson Jr., Lenora de Barros, Ynaiê.
78
Para informações mais completas sobre os fotógrafos que trabalham com essas temáticas, consultar: MAGALHÃES & PEREGRINO, 2004.
120
suas idiossincrasias, mas sem preconceitos e o ranço folclórico que durante anos nos caracterizou no exterior” (FERNANDES JÚNIOR, 2003, p.154). Com um olhar documental, Maureen buscou compreender as raízes culturais brasileiras por meio de um diálogo com a literatura. Seu trabalho registra a cultura brasileira com imagens que fogem do padrão estético da fotografia documental tradicional, que preza pela qualidade técnica de iluminação, foco e reprodução cromática, para se aproximar de posturas mais radicais que buscam provocar o estranhamento. (Figura 32)
Figura 32: Maureen Bisilliat, sem título , déc. 1960. Da série: A Bahia Amada Amado, 61 x 44cm. Fonte: Fernandes Júnior, 2003 “Suas imagens são fantasmagóricas, realizadas nas baixas luzes, com foco crítico, buscando ora a singeleza de um povo, ora a sua dignidade perdida [...] A transformação das cores, a imprecisão do foco, os cortes pouco convencionais, assombras expressionistas, as imagens monocromáticas, as luminosidades exageradas, as ausências, tudo isso para elaborar um fio condutor lógico e mágico, que é a sua sintaxe, na maioria das vezes instigante, para provocar inquietações.” (FERNANDES JÚNIOR, 2003 p.154)
Alguns artistas discutem conceitualmente a fotografia sem, necessariamente, fotografar. É o caso de Rosangela Rennó, que se considera uma fotógrafa que não fotografa. Rennó apropriase de fotografias desprovidas de valor estético, como negativos encontrados aos milhares em arquivos de ateliers fotográficos populares, fotografias de jornal, fotogramas de cinema, fotos de obituários e de identificação criminal que estavam em geral destinadas ao esquecimento ou ao descarte. Utiliza essas imagens para falar de um mundo saturado de imagens e esvaziado de
121
sentido. Em alguns casos, as imagens são manipuladas por ranhuras e ataques químicos que dificultam ainda mais a identificação dos personagens. Depois essas imagens são rearticuladas e colocadas num outro contexto, dando a elas outro sentido. “As imagens resultam apenas em traços opacos e sem sentido de singularidades perdidas, que atestam não só a imperfeição da fotografia como documento ou revelação de realidade, como também a impossibilidade de uma memória verdadeira” (MACHADO, 2001, p. 136). Rennó busca forçar o espectador a buscar a imagem no limite de sua visibilidade. A falsa opacidade das imagens dificulta sua decodificação por parte do espectador, que precisa se voltar para seus próprios referenciais para reconstruir a imagem (TVARDOVSKAS, 2006). Em alguns casos, ela nega a fotografia através da subtração da imagem. Na série Arquivo Universal, a imagem é substituída por notícias sobre fotografia ou dramas fotográficos. A imagem visual fotográfica é substituída pela imagem concebida pela percepção visual de cada um a partir da leitura do texto. As referências imagéticas transitam/transportam-se de visuais em imagens verbais (FABRIS, 1996).79 (Figura 33)
Figura 33: Rosangela Rennó, Cicatriz, 1996. Fonte: Rennó, 1997. Neste trabalho, da série Cicatriz, Rennó utiliza trechos de notícias retiradas de jornal (de seu Arquivo Universal), subtrai as identidades de seus personagens e associa a fotografias de tatuagens de detentos, resultado de um trabalho de recuperação de negativos de vidro do acervo do Museu Penitenciário Paulista no Carandiru. “Algumas imagens foram propositadamente associadas a textos, no intuito de criar
79
Sobre o trabalho de Rosangela Rennó ver: BATISTA, 2003; FABRIS, 1998; RENNÓ, 1998 e TVARDOVSKAS, 2006.
122
uma intertextualidade, de forçar uma associação duplamente ilustrativa: texto ilustrando imagem e imagem ilustrando texto” (RENNÓ, 1997, p.8). “O projeto [Arquivo Universal] nasceu de duas constatações com relação ao texto jornalístico. A primeira, da grande freqüência com que no jornal aparecem referências a uma fotografia em particular, mas a imagem que é publicada é outra, de arquivo. A segunda [...] da freqüência com a qual o sentimentalismo é explorado”. As imagens tornam-se banalizadas e transformam-se em clichês. (RENNÓ, 1997, p. 18)
Outro artista brasileiro que busca aprofundar e ampliar os limites da linguagem fotográfica é Carlos Fadon Vicente. Ele utiliza imagens de base fotoquímica e suportes eletrônicos para repensar a criação, a veiculação e o consumo de imagens. Em suas experimentações, ele produz e interfere nas imagens eletrônicas, inserindo diferentes texturas, alongamentos e distorções, e utilizando programas que envolvem interatividade e imprevistos do acaso. (Figura 34 e Figura 35)
Figura 34 (esq): Carlos Fadon Vicente, Medium, 1991. Figura 35 (dir): Carlos Fadon Vicente, Medium, 1991. Fonte: Coleção Pirelli / MASP de fotografia.80 Neste ensaio, Fadon mistura o processo químico e o eletrônico para obter imagens que se caracterizam pela aleatoriedade. Ele faz múltiplas exposições num mesmo fotograma– com negativo em cores – de imagens provenientes de uma mistura de sinais de televisão recebidos fora de sintonia e elementos de natureza eletrônica (virtuais) e não eletrônica (concretos), trazidos por desenhos, computação gráfica ou mesmo fotografias. “O acaso e os imprevistos produzem imagens fotográficas com diferentes cores e texturas, com estranhos alongamentos e distorções. Como num princípio de colagem e montagem aleatória, Fadon consegue criar um mundo visível cujo resultado é uma trama, uma superposição de retículas, tomadas em diferentes aproximações” (FERNANDES JÚNIOR, 2003, p. 170).
80
Disponível em: ; . Acesso em 26 mar. 2008.
e
123
Por trás da experimentação conceitual e estética, desses e de outros fotógrafos, está uma proposta questionadora com relação à representação fotográfica, uma reflexão sobre a natureza intrínseca da imagem fotográfica, seus limites e suas ambigüidades. Através do estranhamento provocado pelas imagens, seus trabalhos buscam denunciar que os meios técnicos – como a fotografia - não são transparentes, muito menos neutros. Ao contrário, são opacos, resultados de uma elaboração cultural e intelectual. A partir dessa reflexão, o próximo capítulo procura se aproximar da fotografia estenopeica como artefato, buscando um olhar que relacione a técnica e os resultados formais da imagem para que se possa compreender como os aspectos técnicos construtivos da câmera influenciam na representação simbólica das imagens. Para isso, inicialmente serão abordadas as características técnicas do aparelho: a formação da imagem no interior da câmera; a ausência da objetiva; os longos tempos de exposição; as opções construtivas e de formato da câmera. Na seqüência, serão observadas algumas experiências artísticas que mostram diferentes opções construtivas de apropriação do artefato: a mudança de ponto de vista; a experimentação e o acaso, para em seguida apresentar outras posturas estéticas e conceituais de artistas contemporâneos que trabalham com a técnica. Finalizando o capítulo, será discutido o conceito de “caixa preta” de Vilém Flusser para logo depois demonstrar como o artista, ao construir a câmera estenopeica, está penetrando no interior da caixa e desvendando seu programa.
124
2
IMAGEM E ARTEFATO: A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS
COM A CÂMERA ESTENOPEICA
É sempre muito divertido despertar a curiosidade das pessoas. Eu brinco enquanto construo a minha câmera pinhole. [...] Eu brinco com as pessoas que testemunham o meu fazer e duvidam dessa fotografia. Eu brinco com a surpresa. Cleber Falieri
125
O capítulo anterior trata das relações simbólicas que se estabelecem entre a percepção da imagem fotográfica e os vínculos que, a partir delas, são estabelecidos com a realidade. A partir daqui, lança-se um olhar sobre a imagem fotográfica a partir e seus aspectos mais objetivos, ou seja, como os artefatos utilizados para construir as imagens interferem e estão relacionados com a realidade e, consequentemente, com a maneira como se constrói a noção de mundo e de realidade. Busca-se, então, neste momento, entender a fotografia como artefato. Caminhando nesta direção, usa-se a fotografia estenopeica como uma possibilidade de evidenciar que a imagem é construída culturalmente, assim como são também construídos culturalmente outros artefatos, como a fotografia tradicional. No decorrer do capítulo, mostrar-se-á, através da discussão de cada um dos aspectos técnicos da fotografia estenopeica – da câmera, do processo e da imagem final -, que ela não é um artefato neutro, muito menos transparente, assim como não o é a fotografia tradicional com lentes. Para isso analisam-se inicialmente as características técnicas da câmera estenopeica, suas possibilidades construtivas e a formação da imagem em sua relação óptica e de registro do tempo. Em seguida, fala-se como a estrutura espacial da câmera pode alterar a representação do espaço. A partir daí, discute-se como as características técnicas desse meio podem significar novas possibilidades expressivas para as imagens e, ao mesmo tempo, ser uma opção estética, que permite o rompimento com as determinações do processo tradicional da fotografia com lentes. Ao longo do capítulo e em especial na seção 2.3.2, apresenta-se a produção estenopeica de alguns artistas contemporâneos, que mostram as diferentes posturas e os diferentes resultados imagéticos possibilitados pelo uso dessa técnica: imagens miméticas; anamorfoses ópticas e cronotópicas; distorções cromáticas e espaciais. A opção pela experimentação é do artista/fotógrafo que passa a construir não só a representação, como também o artefato. O resultado das imagens é fruto de suas escolhas e da mediação de um artefato que possibilita um distanciamento das convenções estéticas e conceituais da fotografia tradicional. Ao construir a câmera ele estará buscando resultados formais para a imagem a partir de suas opções estéticas e conceituais, de sua visão de mundo e de sua cultura.
126
2.1
ARTEFATO: CARACTERÍSTICAS TÉCNICAS “A pinhole questiona os padrões, reinventa a relação do homem com a técnica, incluindo outras possibilidades de uso, para além da lógica cibernética, instantânea, presumida como infalível.” Ana Elizabeth Lopes Luciana Becker Sander81
O pensamento mais comum sobre a fotografia estenopeica é que ela é inferior à fotografia tradicional. Com todos os sofisticados recursos hoje disponíveis nos novos equipamentos fotográficos, fotografar com uma câmera “primitiva” pode parecer apenas uma “brincadeira de criança”. Entretanto, a simplicidade e a ludicidade deste aparelho semiótico talvez sejam seus aspectos mais importantes. Qualquer ambiente vedado de luz pode ser utilizado para construir uma câmera estenopeica. De forma simples, pode-se dizer que se trata de uma câmera que não possui um conjunto ótico baseado em refração (lente). As lentes das câmeras convencionais são substituídas por um orifício, denominado estenopo, encarregado de formar a imagem em uma superfície sensível. Uma câmera estenopeica pode ser construída em casa, com um pouco de paciência, uma caixa de papelão, de madeira ou mesmo uma lata de leite em pó. Quando se fotografa, se esta, basicamente, controlando a quantidade de luz que chega a um material sensível. As câmeras convencionais consistem basicamente de um diafragma, que controla a quantidade de luz que chega ao material sensível; e, um obturador, que controla o tempo de exposição desse material à luz. A maior parte dos demais controles, disponíveis nas câmeras convencionais, se relacionam ou com a manipulação de fatores responsáveis pela qualidade do resultado final da imagem, ou com a facilidade de manuseio – fotômetro, seletor de sensibilidade (ISO), visor para a pré-visualização, sistema de avanço do filme (automático ou manual), botão de disparo e, normalmente incorporado às objetivas, um sistema de ajuste de foco e uma escala indicativa de profundidade de campo. Dentre todos esses dispositivos da câmera, o mais importante é o sistema ótico que, entretanto, não é imprescindível para a formação da imagem.
81
Lopes & Sander, 2000, p. 164.
127
Na câmera estenopeica, a gênese fotográfica, ou seja, o processo de formação e registro da imagem se mantém. Suas diferenças mais importantes estão na ausência do fenômeno óptico da refração, e nas características construtivas espaciais da câmera. As possibilidades de construção da câmera são infinitas, pois pode-se usar uma câmera convencional sem a objetiva, uma caixa de papelão, uma lata, um ônibus, uma sala, enfim, qualquer objeto ou ambiente vedado de luz. O material sensível pode ter superfície curva, inclinada, redonda, pode-se inclusive utilizar múltiplas superfícies, gerando imagens anamórficas. A estrutura espacial da câmera influencia a representação do espaço, foge do padrão da fotografia tradicional - da caixa retangular com um orifício central no lado oposto ao material sensível delimitado por uma janela também retangular. As opções se ampliam a cada pequena alteração da câmera, distância do objeto, tempo de exposição, material sensível. Cada escolha do fotógrafo traz um resultado diferente, aproximando o usuário/construtor da câmera do processo de realização da imagem, na medida em que suas escolhas irão determinar grande parte das características da imagem. No processo de formação da imagem estenopeica não há limitação do enquadramento, e a definição da imagem irá depender do tamanho e da precisão do furo. O pequeno tamanho do furo, por sua vez, faz com que os tempos de exposição sejam bastante longos, modificando formal e conceitualmente a relação de registro do tempo na fotografia estenopeica. A imprevisibilidade do resultado se amplia pelo distanciamento entre o olhar do fotógrafo e o olhar da câmera. A imagem que a câmera capta difere, em certa medida, da visão do fotógrafo. Numa câmera estenopeica, o fotógrafo, normalmente, não tem condições de prévisualizar exatamente como a imagem será captada. Cada um desses aspectos será abordado mais detalhadamente a seguir, de forma a esclarecer de maneira mais objetiva, como se estabelece a construção da imagem através da utilização da câmera estenopeica, evidenciando a participação do usuário na construção da representação.
128
2.1.1
Formação da Imagem Prestando atenção, pode-se observar a formação de imagens através da passagem da luz
por pequenos orifícios em uma série de situações. Essas imagens se formam “naturalmente” em salas escurecidas invadidas por pequenos fachos de luz, ou mesmo na sombra de árvores, quando a luz passa entre as folhas. (Figura 36 e Figura 37)
Figura 36: Abelardo Morell, projeção do sol sobre mesa coberta, 2000. Fonte: Homepage Lens Culture: Contemporary Photography Magazine. 82
Figura 37: Abelardo Morell, eclipse solar, Brookline, MA, 1994. Fonte: Homepage Abelardo Morell.83 As fotografias mostram pequenas imagens do sol formadas pela projeção da luz que atravessa as folhas de uma árvore. Normalmente, quando se olha para os círculos de luz que se formam sob as árvores não se dá conta de que, na verdade, eles são projeções da imagem circular do sol. (Figura 36) Durante um eclipse solar, isso fica evidenciado pelo formato em meia lua das projeções. (Figura 37) 82
Disponível em: . Acesso em: 03 fev. 2008.
83
Disponível em: < http://abelardomorell.net/camera46.html >. Acesso em: 03 fev. 2008.
129
Os princípios óticos responsáveis pela formação dessas imagens através dos orifícios que se formam entre as folhas das árvores são os mesmos observados na câmera obscura e na câmera estenopeica.
Figura 38: Formação da imagem através de um orifício. Fonte: Gatton, 2007. 84 A luz que ilumina o objeto é refletida em todas as direções. Apenas uma pequena porção dos raios refletidos por cada ponto do objeto atravessa o orifício e forma uma imagem na superfície oposta a ele. A imagem aparece invertida na horizontal e na vertical devido à trajetória retilínea da luz. Assim, a parte superior do objeto aparece na porção inferior da imagem, da mesma forma, a parte esquerda do objeto aparece na lateral direita da imagem.85
O conhecimento sobre a formação de imagens pela projeção da luz ao atravessar pequenos orifícios acompanhou descobertas científicas, como a utilização da camera obscura para estudar os comportamentos ópticos da luz e a observação de eclipses. Ao mesmo tempo, foi base para o desenvolvimento de instrumentos ópticos que, com o auxilio de lentes, passaram a ser utilizados como ferramentas auxiliares de desenho pelos pintores renascentistas e, posteriormente, serviram de base para a descoberta/invenção da fotografia. No campo científico, a fotografia com câmeras de orifício é utilizada em estudos de física de alta energia. A partir a década de 1940, com o desenvolvimento da energia nuclear, ela passou a ser usada para a observação do comportamento de partículas de alta energia provenientes do sol, de buracos negros e explosões de estrelas, como raios X e raios gamma, que normalmente são absorvidos pelo material ótico das lentes. Recentemente, a técnica também tem sido usada para
84
Disponível em: . Acesso em 20 set. 2007.
85
Informações mais detalhadas na seção 2.1.1.1 Luz: propriedades ópticas, p.130.
130
registrar altas energias em simulações sobre as reações nucleares no interior do sol (RENNER, 2000). No meio artístico, depois de ter sido abandonada e retomada uma série de vezes, a fotografia estenopeica tem sido redescoberta por inúmeros artístas como ferramenta para a construção de imagens fotográficas, justamente, por suas particularidades na formação das imagens. Algumas características específicas da formação da imagem na câmera estenopeica são extremamente importantes de serem observadas. Isso, para que se possa compreender o resultado final de suas imagens, principalmente quando comparadas às características das imagens formadas pelas câmeras fotográficas convencionais (com lentes) disponíveis comercialmente no mercado. Para entender como se dá a formação dessas imagens, se lança, inicialmente, um breve olhar sobre as propriedades ópticas da luz; em seguida, observa-se como a imagem é projetada no interior da câmera estenopeica, as conseqüências da ausência do fenômeno óptico da refração e dos longos tempos de exposição sobre as características finais das imagens.
2.1.1.1 Luz: propriedades ópticas Neste momento, serão esclarecidos alguns dos fenômenos ópticos envolvidos na propagação da luz a fim de compreender como se dá a formação da imagem na câmera estenopeica e na fotografia com lentes. Para isso, a propagação da luz é representada por meio do conceito de “raio de luz”, que é um seguimento orientado que indica a trajetória percorrida pela luz num determinado meio. (TRIGO, 1998) Os raios de luz são independentes e, num material homogêneo, sua trajetória é retilínea. Quando a luz atinge uma determinada superfície ou quando passa de um meio para outro (como do ar para o vidro, por exemplo) ela pode ser transmitida, absorvida, refletida ou refratada. A quantidade de luz que é transmitida por um meio, ou seja, que atravessa um determinado meio, como o vidro, por exemplo, depende das características dessa luz, do meio e da superfície que ela atinge, principalmente da cor dessa superfície. Ao atingir um vidro colorido, por exemplo, uma parte da luz é transmitida e outra parte é absorvida, dependendo de sua cor (comprimento de onda) Trata-se do princípio dos filtros utilizados em fotografia. Numa
131
explicação bastante simplificada, os filtros deixam passar a luz de sua própria cor e absorvem as cores opostas. Para absorver o excesso de luz amarela emitida por uma lâmpada incandescente, por exemplo, utiliza-se um filtro de cor azul. A energia luminosa que é absorvida será transformada em um outro tipo de energia qualquer, como o calor. Outra parte da luz que atinge essa mesma superfície pode ser refletida, ou seja, pode voltar para seu meio de origem. (Figura 39). A reflexão da luz é um dos fenômenos ópticos mais importantes presentes nas câmeras fotográficas convencionais. Além de ser observado no interior das objetivas, nos espelhos e no prisma, a reflexão permite que a imagem seja vista na sua posição correta.
Figura 39: Reflexão da luz.
Quando a luz é refletida, o ângulo formado entre o raio que incide sobre a superfície (ângulo de incidência – i) em relação a uma reta perpendicular ao plano (reta normal – N) é igual ao ângulo formado pelo raio refletido (ângulo de reflexão - r ) Quando a superfície refletora é muito polida, diz-se que a reflexão é especular (do latin speculo que significa espelho) Se a superfície for rugosa, a reflexão é difusa.
Em alguns casos, a luz que atinge uma superfície pode atravessá-la, mas mudar de direção, ou seja, a luz pode ser refratada. Neste caso, a luz muda de direção porque passou de um determinado material óptico para outro de densidade diferente, o que provocou uma alteração na velocidade de propagação da luz, desviando-a de seu percurso original. (Figura 40)
132
Figura 40: Refração da luz.
O ângulo de incidência do raio de luz (i) que atravessou de um meio para outro (passou do ar para a água), sofreu uma alteração, ou seja, foi refratado pelo meio. Neste caso, o índice de refração da água é maior do que o índice de refração do ar. Se por acaso, o ângulo de incidência (i) do raio de luz coincidir com a reta normal (N), a mudança da velocidade não vai significar desvio na direção do raio.
Figura 41: Reflexão total da luz.
Quando a luz passa de um meio cujo índice de refração é maior para outro de índice de refração menor, pode ocorrer a reflexão total dos raios de luz, ou seja, todos os raios de luz retornam para o meio de origem, sem transmissão, refração ou absorção de nenhum raio.
O fenômeno da refração da luz é responsável pela formação do arco-íris – quando um raio de luz branca incide sobre um prisma de vidro ou uma gotícula de água, as diferentes cores que compõe a luz branca se separam. Cada porção da luz branca sofre um desvio (refração) diferente, por isso vêem-se todas as cores.
133
2.1.1.2 No interior da câmera a imagem se forma A imagem formada através do orifício tem algumas características importantes que irão determinar o resultado final da imagem. Normalmente, quando se pensa em câmera escura, ou mesmo quando se pensa na fotografia tradicional com lentes, se imagina a imagem sendo formada apenas na superfície oposta ao orifício ou lente, no interior de uma caixa retangular. No entanto, quando a luz atravessa o orifício (ou lente), ela forma imagem em todo o interior do compartimento (Figura 42). A delimitação de uma porção, normalmente retangular, para a formação da imagem é uma das convenções que se estabeleceu com a fotografia tradicional. Nessa porção delimitada, a imagem normalmente aparece com maior definição, sem grandes distorções ópticas ou de luminosidade.
Figura 42: Formação da imagem no interior da camera obscura.
Desenho mostrando que a imagem se forma em todo o interior do ambiente escuro, independentemente de seu formato.86
86
Os desenhos esquemáticos apresentados nesta seção tomam como base as ilustrações de RENNER, 2000.
134
Figura 43: Thomas Hudson Reeve, Brooklyn Bridge, s.d. Fonte: Reeve, 2008. Esta imagem de Thomas Hudson Reeve demonstra a formação da imagem em todo o interior do ambiente escuro. Ele construiu a câmera usando uma folha de papel fotográfico colorido. A câmera é o próprio material sensível, depois de usada, ela deixa de existir como câmera e passa a ser a própria imagem. O papel fotográfico colorido (sensível a todas as cores) é recortado e dobrado na ausência total de luz e guardado em um ambiente (saco) escuro até o momento da exposição. Além do orifício por onde entra a luz para a formação da imagem, algumas frestas da câmera deixam que raios de luz entrem, provocando interferências na imagem final. Depois de exposta, a câmera é levada ao laboratório, onde é retirada a fita que cobre a face onde fica o orifício juntamente com um pequeno pedaço dessa face (pequeno quadrado preto na parte superior da imagem), por onde são introduzidos, com a ajuda de um funil, os produtos químicos de revelação. Diferenças de temperatura ou irregularidades provocadas pelo vazamento dos químicos durante o processamento passam a fazer parte da proposta. Depois do processamento (revelação e fixação) a superfície interna da câmera pode ser exposta à luz. A câmera é então desmontada e o papel volta ao seu formato plano. O resultado é uma imagem formada em todo o interior da caixa, com as distorções de perspectiva provocadas pela projeção da imagem nos diferentes planos.
Segundo Eric Renner (2000), a imagem que se forma no interior da câmera tem um diâmetro de 3,5 vezes a medida da distância entre o furo e o material sensível. Por exemplo: uma câmera retangular com 10 cm de profundidade (distância entre furo e material sensível) formará uma imagem com 35 cm de diâmetro (Figura 44). No entanto, a imagem formada não é uniforme. À medida que se afasta da parte central, a imagem vai “sumindo” gradativamente. Nessas bordas, a luz vai perdendo intensidade devido ao aumento da distância entre o orifício e o ponto onde se formará a imagem. (Figura 45 e Figura 46)
135
Figura 44: Proporção da imagem estenopeica.
O desenho mostra a proporção da imagem formada no interior de uma câmera estenopeica em relação à profundidade da câmera. A imagem que se forma tem um formato circular com diâmetro de 3,5 vezes a distância entre o orifício e o plano do material sensível e um ângulo de aproximadamente 125º.
Figura 45: Luminosidade da imagem estenopeica.
À medida que se afasta da parte central da imagem, a distância entre o furo e o material sensível aumenta, provocando a diminuição da intensidade da luz, por isso, a imagem se atenua a medida que se aproxima das bordas. Vale ressaltar que pequenas variações na distância provocam redução acentuada na intensidade luminosa. Dobrar a distância significa reduzir a quantidade de luz para ¼ da intensidade inicial. Ou seja, se a distância entre uma fonte luminosa aumenta de 1m para 2m, a energia luminosa se reduz a ¼ do valor obtido para a distância de 1m.
136
Figura 46: Danilo pedruzzi, s. d. Fonte: Homepage de Danilo Pedruzzi.87 Nesta imagem, observa-se o centro da imagem bastante claro e as bordas escurecendo gradativamente. O fotógrafo optou por manter a imagem completa formada pela câmera 4”x5”. A distorção perspectiva que se observa nas bordas da imagem se deve ao grande ângulo de visão possibilitado pelas câmeras estenopeicas. Nas câmeras fotográficas tradicionais o recorte do fotograma se limita à área central com exposição mais equilibrada. Por exemplo, numa câmera 35 mm (35 mm é a bitola do filme), usando uma objetiva normal que tem 50 mm de distância focal, a imagem total formada teria um diâmetro de 150 mm. No entanto, o recorte do fotograma limita o enquadramento a um retângulo de 24 x 36 mm (diagonal 43,3 mm). Nessa área a exposição da imagem é mais uniforme. Ainda assim, quando se utilizam objetivas com um ângulo de visão muito grande (super grande-angulares) também se pode observar o escurecimento das bordas da imagem.
Da mesma forma que a fotografia tradicional delimita uma pequena porção retangular para o registro da imagem, também se convenciona que o material sensível deve estar disposto numa superfície plana, exatamente oposta ao orifício, perpendicular ao eixo central da objetiva e paralela ao objeto a ser fotografado para que a imagem se forme. No entanto, numa câmera estenopeica, a imagem se forma com relativa nitidez, seja qual for sua posição. O material sensível pode estar inclinado, dobrado ou mesmo curvado que, ainda assim, registrará a imagem. Nestes casos, a imagem se forma de maneira distorcida, com diferentes deformações que irão depender da posição e da curvatura do material (Figura 49). A seguir, são descritos alguns exemplos de diferentes formatos de câmera e de posicionamento do material sensível e as respectivas deformações que podem ocorrer, segundo descrições de RENNER (2000).
87
Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2008.
137
Câmera retangular e material sensível plano:
Figura 47: Material sensível paralelo.
Quando o material sensível é colocado paralelamente ao objeto fotografado, numa superfície plana e exatamente oposta ao orifício, a imagem se forma sem distorções lineares. As distorções que se percebem se devem apenas ao fato de não se costumar ver imagens com o ângulo de visão tão grande quanto as imagens obtidas nessas situações. (Figura 46)
Figura 48: Peter Zirnis, Backyard, 1998 Polaroid 4 x 5. Fonte: Homepage The Pinhole Format Co.88 Para se obter imagens sem distorções de perspectiva, deve-se utilizar uma câmera com profundidade (distância entre o orifício e o material sensível) equivalente à medida da diagonal do filme que se pretende utilizar. (Figura 48)
88
Disponível em: . Acesso em 20 abr. 2008.
138
Material sensível com formato irregular:
Figura 49: Joaquín Casado, Hotel Arts - Port Olímpic, Barcelona, 2003. Fonte: Homepage Estenopeica. 89 Nesta imagem, Joaquin Casado utilizou o material sensível de forma ondulada, provocando a distorção da estrutura metálica do prédio.
Material sensível curvo:
Figura 50 e Figura 51: Material sensível côncavo.
Quando se utiliza uma superfície curva, a imagem se forma de maneira distorcida. Ao utilizar uma câmera cilíndrica côncava a imagem se forma sobre um ângulo de aproximadamente 160º no material sensível colocado em torno de todo seu interior. Nas extremidades mais próximas ao furo a imagem é mais intensa e menor. (Figura 52) 89
Disponível em:. Acesso em: 20 mar. 2008.
139
Figura 52: Kenneth Ransom, Rockport, ME, 1991. Fonte: Homepage de Kenneth G. Ransom.90
Figura 53: Câmera panorâmica côncava.
Figura 54: David Van Zandt, 2006. Fonte: Homepage Nick Dvoracek. 91 Uma possibilidade da disposição do material sensível numa superfície curva é a obtenção de imagens panorâmicas sem a distorção de perspectiva ou diferenças de exposição. Se a distância entre o orifício e o material sensível se mantiver constante, a imagem será formada de maneira homogênea, sem perder intensidade nas bordas. (Figura 54) 90
Disponível em: http://www.geocities.com/ransomk/PINHOLE/pic16.html>. Acesso em 18 abr. 2008.
91
Disponível em; < http://idea.uwosh.edu/nick/rotary/index.htm>. Acesso em 10 abr. 2008.
140
Figura 55: Material sensível convexo.
Quando se utiliza uma superfície convexa, a intensidade da luz nas bordas diminui rapidamente, fazendo com que a imagem “suma” de forma abrupta. Essa diminuição repentina na intensidade do registro da imagem é vantajosa quando são utilizados vários furos, como nas imagens feitas com câmeras cilíndricas em que o material sensível é colocado internamente também de forma cilíndrica.
Figura 56: Câmera estenopeica 360°.
É muito comum a utilização de latas redondas de biscoito para fazer fotografias que cobrem 360º e utilizam vários furos. O desenho da Figura 56 mostra uma câmera com seis furos, cada um deles forma uma porção de 60º da imagem. A diminuição repentina da iluminação nas bordas de cada porção imagem faz com que a imagem completa final apresente uma exposição equilibrada. Para isso, o raio do cilindro interno deve ter a mesma medida que a distância entre o furo e o material sensível. (Figura 57 e Figura 86, p. 159)
141
Figura 57: Jürgen Lechner, Schloss weibenstein1, Eckental Alemanha, 2006. Fonte: Homepage Joaquin Casado. 92
Figura 58: Ana Angélica Costa, Janelas, Brasília, 2003. Fonte: Costa, 2008. A Figura 58 faz parte da série Janelas da brasileira Ana Angélica Costa. Ela utiliza uma câmera cilíndrica com quatro furos que é posicionada na janela de diferentes ambientes e moradias. A imagem resultante é composta por quatro imagens que se fundem: uma do interior do ambiente que abriga a janela; uma do parapeito do lado direito; uma do exterior, mostrando a paisagem vista da janela; e a última do parapeito do lado esquerdo.
92
Disponível em: . Acesso em: 15 fev.. 2008.
142
Material sensível inclinado:
Figura 59: Material sensível inclinado. A imagem pode ser feita com o plano do filme inclinado, ou praticamente perpendicular ao furo. Nesses casos, a diferença de luz entre as extremidades laterais da imagem é bastante grande.
Figura 60: Eric Renner, Stretch Marilyn, 1997. Fonte: Carvalhal, 2006. A utilização do plano do filme inclinado provoca uma diferença de exposição muito grande entre as duas laterais da imagem. Para conseguir um equilíbrio, a imagem de Marilyn feita por Eric Renner foi trabalhada posteriormente em laboratório. O fotógrafo expôs as laterais da imagem a quantidades diferentes de luz para compensar as diferenças de exposição do negativo (burning e dodging). Para observar a imagem sem distorções ela deve ser vista com apenas um dos olhos aproximando-o do canto esquerdo da imagem.
As possibilidades de construção da câmera e de posicionamento do material sensível são incontáveis. A imaginação e a experimentação podem levar a resultados inesperados, mas que, aos poucos vão sendo divulgados e repetidos entre os usuários da técnica, fazendo com que, em alguns
143
casos, também essas câmeras que provocam deformações e anamorfoses sejam fabricadas (artesanalmente) para serem comercializadas via internet.
Figura 61: Câmera tubular 360°
Figura 62: Cleber Falieri, Imagem anamórfica 360°. Fonte: Falieri, 2006. 93 Nesta câmera o plano do filme esta paralelo ao eixo central do orifício; ao contrário das câmeras fotográficas tradicionais com lentes, onde o plano do filme é perpendicular ao eixo central da objetiva. Aqui a imagem se forma em toda a extensão lateral da câmera, formando uma imagem com uma cobertura que pode chegar a 360°. Dependendo da posição escolhida para fazer a fotografia, a imagem apresenta anamorfoses que desconstroem a lógica de construção da imagem em perspectiva. As diferenças de exposição são provocadas pela variação de distância entre o furo e o material sensível. (Figura 62)94 93 94
Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2008.
A câmera “ominiscope” é vendida pela internet e segue esse mesmo princípio de construção. Maiores detalhes sobre a câmera no link: . A câmera pode ser comprada na
144
Figura 63: Cleber Falieri, Imagem anamórfica 360°. Fonte: Falieri, 2006.. 95 Nesta imagem a câmera foi posicionada apoiada no chão, com o orifício voltado para cima. O registro mostra um predomínio de céu, e a distorção da imagem é mais sutil. Note-se o alongamento da imagem que se percebe mais claramente no prédio que parece ter sido “esticado” verticalmente.
Um aspecto interessante dessas imagens anamórficas é que elas podem ser visualizadas sem distorções se observadas por apenas um único olho exatamente da mesma posição do furo que formou a imagem. (Figura 64 e Figura 65)
Figura 64: Julian Beever, c. 2004. Fonte: Homepage Mighty Optical Illusions.96
Homepage: Pinhole Resource: Disponível . Acesso em: 27 abr. 2008. 95 96
em:
Disponível em: . Acesso em 20 abr. 2008.
Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2008.
145
Figura 65: Julian Beever, Ilustração vista de outro ângulo. Fonte: Homepage Mighty Optical Illusions.97 Neste exemplo, Julian Beever reproduz de forma inversa a anamorfose provocada pela inclinação do plano de formação da imagem. Para provocar a ilusão de tridimensionalidade, ele desenha no chão, cenas completamente distorcidas que, quando observadas exatamente de um determinado ponto de vista, por um único olho, se apresentam perfeitas. Para construir as imagens e para visualizá-las sem distorções ele utiliza uma câmera (fotográfica ou de vídeo), que é colocada exatamente no ponto de vista que teria formado a imagem.
No decorrer deste capítulo se apresentam, ainda, outros exemplos de imagens obtidas com câmeras de diferentes estruturas espaciais. As características na formação das imagens através do orifício fazem com que a câmera possa adotar praticamente qualquer formato: retangular, redonda, oval, triangular ou completamente disforme. Se existirem as mínimas condições, ou seja, se o ambiente for escuro o suficiente e existir um orifício para a entrada da luz, a imagem será formada no interior da câmera independente de sua forma. Isso reforça uma das características mais interessantes da fotografia estenopeica: a estrutura espacial da câmera influencia na forma como se dá a representação do espaço fotografado, fugindo do padrão clássico - caixa retangular com um orifício central no lado oposto ao material.
97
Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2008.
146
2.1.2
Orifício: Ausência da Objetiva, Refração e Difração Neste momento, discute-se a refração como fenômeno óptico que representa uma das
características mais importantes do processo de formação de imagens que distingue as câmeras estenopeicas das câmeras tradicionais com lentes. Nas câmeras fotográficas convencionais, a luz refletida pela cena, antes de atingir a superfície sensível, tem que atravessar um conjunto de lentes, chamado objetiva, que é composta normalmente por vidros especiais denominados vidros ópticos. Como comentado anteriormente, ao passar de um meio para outro, os raios de luz são desviados de seu percurso original, ou seja, sofrem refração. Portanto, ao atravessar a objetiva, os raios de luz são refratados e mudam de direção. Na câmera estenopeica, a luz que chega até o material fotossensível para formar a imagem atravessa apenas um pequeno orifício. Nenhum material se interpõe entre a cena e a superfície sensível, ou seja, na câmera estenopeica os raios de luz refletidos pela cena formam a imagem sem sofrer desvio em seu percurso. Para entender como a definição das imagens obtidas pela câmera de orifício as diferenciam das imagens formadas com a utilização das lentes da câmera fotográfica convencional, é fundamental compreender como o fenômeno óptico da refração opera na formação da imagem. A utilização de lentes nas câmeras se deve principalmente ao aumento da intensidade de luz que pode entrar na câmera para formar a imagem sem perda da nitidez. Por definição, uma lente é “um sistema óptico onde ocorre predominantemente refração, e tem pelo menos uma superfície curva” (TRIGO, 1998, p. 51). O comportamento óptico das lentes depende de seu formato e do meio no qual está imersa. No caso da fotografia, as lentes estão imersas no ar, ou seja, a luz passa do ar para a lente e depois volta para o ar. A diferença de espessura entre a parte central e as bordas determina o comportamento da lente: ao atravessar uma lente com bordas finas os raios de luz convergem – lente convergente; ao atravessar uma lente com bordas espessas esses raios divergem – lente divergente.
147
Figura 66 (esq): Lente convergente. Figura 67 (dir): Lente divergente. Ao atravessar uma lente convergente os raios de luz são refratados e se aproximam do eixo central da lente. Numa lente divergente, os raios de luz que a atravessam sofrem refração e se afastam do eixo central da lente.
O desvio dos raios de luz, que ocorre na lente por causa da refração, pode provocar ao mesmo tempo a separação das cores. Para reduzir esses efeitos, utiliza-se uma associação de lentes que minimiza as aberrações cromáticas. Ainda assim, esse conjunto de lentes, que é a objetiva, funciona como um sistema óptico convergente. Da mesma forma que nos olhos, onde o cristalino faz convergir os raios de luz que irão formar a imagem sobre a retina, na câmera fotográfica as objetivas são convergentes, para que os raios de luz se concentrem, formando no material sensível um único ponto. (Figura 68)
Figura 68: Imagem formada por uma lente simples. Fonte: Adams, 1996. A luz é refletida por cada ponto do objeto em todas as direções. Parte desses raios refletidos atingem a lente, que irá convertê-los novamente em um único ponto na imagem. A imagem final é composta por todos esses pontos, que no limite, correspondem cada um a um ponto da imagem.
148
Esse ponto deve estar numa distância determinada, denominada distância focal. É nessa distância que deve estar o plano do material sensível para que a imagem tenha foco, ou seja, é apenas nesse plano que a imagem se forma perfeitamente focalizada. Objetos posicionados em diferentes distâncias formam a imagem em planos diferentes. Esses diferentes planos podem aparecer com foco na imagem de acordo com a profundidade de campo que é determinada por uma série de fatores como a abertura do diafragma, a distância focal da objetiva, a distância do objeto à objetiva e o diâmetro do círculo de confusão, mas não convém, neste trabalho, um aprofundamento nestes fatores. Nas câmeras fotográficas com recurso de focalização, a distância entre o centro óptico da objetiva e o plano do material sensível pode ser alterada, permitindo ajustar o foco para objetos situados a diferentes distâncias. Quando a imagem se forma sem o auxilio das lentes, como na câmera estenopeica, os raios não convergem para um ponto; no interior da câmera eles continuam divergentes. Isso faz com que o furo tenha que ser bastante pequeno para que se obtenha uma imagem definida. (Figura 69)
Figura 69: Imagem formada por um orifício e detalhe. Fonte: Adams, 1996. Cada parte do objeto reflete luz em todas as direções. Desses raios, alguns atravessam o orifício para formar a imagem. Assim, de cada ponto no objeto, alguns raios atravessarão o orifício e formarão não exatamente um ponto, mas uma pequena área circular na imagem. A sobreposição de todos esses círculos formará a imagem total.
A imagem obtida com o auxilio das objetivas possui sempre uma nitidez maior, entretanto, essa nitidez se limita ao plano de foco. Numa imagem formada através de um orifício,
149
sem o uso de lentes, a nitidez é menor, já que os raios de luz não convergem para um único ponto, mas para um pequeno círculo, que irá se misturar ao pequeno círculo correspondente ao ponto adjacente do objeto. Pode-se dizer que na imagem formada pelo orifício, não existe “foco”, mas uma nitidez relativa. No entanto, na imagem formada pela objetiva, a nitidez se limita ao plano de foco; o que estiver fora desse plano irá perdendo a nitidez gradualmente, à medida que se afastar dele.
Figura 70: Formação da imagem através de um orifício.
Figura 71: Formação da imagem através de uma lente convergente. Na comparação da imagem formada através do orifício com a imagem formada através de uma lente (ou sistema) convergente, nota-se que a alteração do plano de formação da imagem (plano do material sensível) na câmera de orifício (Figura 70) não produz grandes alterações no tamanho do “ponto” formado na imagem. Na câmera com lentes (Figura 71) qualquer pequena alteração na posição do plano onde se forma a imagem (plano do material sensível) provoca uma grande mudança no tamanho do “ponto” formado na imagem.
150
A nitidez da imagem na fotografia estenopeica depende da precisão e do tamanho do orifício. Dependendo do tamanho da câmera se recomenda um tamanho de orifício. Por exemplo: Renner (2000) recomenda um furo de 0,3150mm para uma câmera de 3” de comprimento; Trigo (1998) recomenda um furo de 0,4mm para uma câmera construída com uma lata de leite em pó, que tem, aproximadamente, 12cm de comprimento. Existem fórmulas e tabelas que auxiliam na determinação do tamanho do orifício, inclusive programas de computador, no entanto, a dificuldade maior ainda está em medir o furo. É verdade que quanto menor o orifício, maior a definição da imagem. Entretanto, um furo muito pequeno não vai gerar, necessariamente, uma imagem de melhor qualidade. Neste caso, outro fenômeno ótico, a difração, passa a atuar, provocando a perda da definição. Quando a luz passa através de uma abertura ou uma fenda muito pequena, devido à sua natureza ondulatória, uma parte da luz sofrerá um desvio e atingirá a região da sombra geométrica. (Figura 72 e Figura 73)
Figura 72: Luz passando através de uma fenda sem apresentar difração. 98
Figura 73: Luz passando através de uma fenda apresentando difração.99 98
Desenho com base em TRIGO (1998)
99
Desenho com base em TRIGO (1998)
151
A difração é uma distorção causada numa onda eletromagnética que incide sobre um obstáculo. Estes obstáculos podem ser aberturas num anteparo, objetos opacos tais como esferas, discos e outros. Em todos esses casos, o caminho seguido pelo raio não obedece às leis da óptica geométrica, sendo desviado sem haver mudanças no índice de refração do meio. A difração ocorre com qualquer tipo de onda e pode ser percebido mais facilmente quando o obstáculo tem dimensões comparáveis ao seu comprimento de onda. Nas ondas sonoras, por exemplo, permite que se escute a voz de uma pessoa chamando, mesmo que esta pessoa esteja atrás de um obstáculo. Com a luz também ocorre a difração, porém é mais difícil perceber, porque os obstáculos e aberturas em que a luz incide são normalmente bastante grandes em relação ao seu comprimento de onda. Nas bordas do orifício a luz vai sempre difratar: se o orifício é pequeno, a fração de luz que desvia por difração é uma parte considerável da luz. Quando o orifício é grande, a difração também acontece, mas a porção de luz que passa sem difratar, isto é, sem encontrar as bordas é muito maior e os efeitos da difração passam a ser pequenos e irrelevantes. Por isso, ao fazer com que a luz passe por orifícios cada vez menores, a parcela de luz que sofrerá difração será mais significativa. Na fotografia, a difração passa a ser relevante quando as aberturas são muito pequenas. Cabe ressaltar também que, na fotografia, não se trabalha com um comprimento de onda único, mas sim com uma banda de diferentes comprimentos (luz branca). Assim, a difração é mais acentuada quanto maior for o comprimento de onda e quanto menor for o tamanho da fenda pela qual ela vai passar. Por exemplo: o comprimento de uma onda sonora varia em média de 1,7cm (som agudo) até 17m (som grave). Já o comprimento de uma onda luminosa varia de 0,4 X 10-9 m (luz violeta) até 0,7 X 10-9 m (luz vermelha). Ou seja, quando se lida com a luz, fala-se em ondas realmente muito pequenas. Portanto, para se perceber a difração da luz, é necessário que as fendas sejam de tamanho comparável ao do comprimento de uma onda luminosa, isto é, fendas de tamanho microscópico.100
É importante ressaltar que, apesar da nitidez da imagem formada pelo orifício ser menor, ela não se limita a um plano específico, como na fotografia com lentes. Pode-se dizer que, em qualquer plano no interior da câmera estenopeica a imagem será formada relativamente com a mesma nitidez. (Figura 74) Por isso o material sensível pode adotar qualquer posição ou formato no interior da câmera. Além disso, na fotografia com câmera de orifício, objetos próximos e objetos afastados são registrados com a mesma nitidez relativa, ou seja, com uma profundidade de campo maior se comparada com as câmeras convencionais com lentes.
100
Informações disponíveis em: ; ; . Acesso em: 9 abr. 2008.
152
Figura 74: Veijo Vilva, s.d. Fonte: Homepage Estenopeica.101 Esta imagem apresenta uma boa nitidez do primeiro plano até o último, apesar da diferença de luminosidade nas bordas. Para se conseguir uma imagem com essa nitidez, todo o processo deve ser extremamente cuidadoso, desde a escolha da cena e da iluminação; a precisão do orifício, que deve ter o tamanho exato para o formato da câmera e deve ser feito em um material metálico de ótima qualidade sem apresentar rebarbas; e o processamento químico posterior do material, buscando o maior rendimento possível.
A fidelidade da imagem conseguida com a utilização das câmeras convencionais com lentes é, sem dúvida, maior que a conseguida com as câmeras estenopeicas. Contudo, além das deficiências com relação ao plano focal, na fotografia tradicional com lentes, as características ópticas de formação da imagem limitam as possibilidades de intervenção na construção da imagem a partir do momento que determinam a posição e a conformação do material sensível. Alguns usuários de câmeras estenopeicas buscam alcançar o máximo de nitidez para as imagens. Motivados pelo fascínio e pelo desafio de obter, com uma câmera de orifício, imagens de qualidade equivalente às imagens obtidas com as câmeras fotográficas convencionais com lentes. Para isso recorrem a câmeras de construção sofisticada, matematicamente calculadas, e com orifícios produzidos com ferramentas especiais. No entanto, para boa parte dos usuários, a liberdade de experimentação proporcionada pela fotografia estenopeica chama mais a atenção do 101
Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2008.
153
que a fidelidade de suas imagens. A possibilidade de participação e intervenção no processo de construção da câmera acaba sendo mais importante do que o resultado final de suas imagens.
2.1.2.1 Outras possibilidades: Slits e Zone Plates O termo estenopeica se refere a “buraco de agulha”, entretanto, ao se considerar o termo câmera de orifício, ou ao se pensar dentro da classe de imagens obtidas com câmeras sem a utilização de lentes, pode-se obter imagens formadas através não apenas de pequenos furos redondos, mas também de frestas (slits) e de zone plates (conjunto de várias frestas circulares concêntricas) Embora sejam pouco conhecidas, e de construção mais elaborada, essas diferentes conformações de aberturas para formar imagens fotográficas sem a utilização das câmeras e lentes convencionais disponíveis no mercado, permitem, também, uma imensa gama de possibilidades imagéticas que tem sido bastante explorada por artistas e fotógrafos contemporâneos. A utilização de frestas, para formar imagens, ao invés de orifícios circulares é conhecida antes mesmo do surgimento da fotografia. No início do século XIX, William H. Pickering sugeriu a utilização de dois slits: um vertical e um horizontal, no lugar das lentes, para obter imagens distorcidas (RENNER, 200 p. 162).
Figura 75: Uso de slit vertical e slit horizontal. Desenho esquemático do uso de dois slits, o primeiro vertical e segundo horizontal. Figura 76: Doris Markley, sem título, 1987. Fonte: RENNER, 2000, p. 163.
154
Figura 77: Uso de slit horizontal e slit vertical. Desenho esquemático do uso de dois slits, o primeiro horizontal e segundo vertical. Figura 78: Doris Markley, sem título, 1987. Fonte: RENNER, 2000, p. 163.
A combinação de dois slits diferentes permite inúmeras possibilidades de distorção, dependendo da forma e da posição de cada um deles. A forma do slit pode ser reta, curva, zig-zag, etc. Pode ser usado sozinho ou em conjunto com outro. A distorção resultante ao combinar dois
slits, é a soma das duas formas. O slit mais próximo do plano do material sensível determina a forma global da imagem e o mais afastado determina a distorção dentro dessa forma (CASADO, 2007). (Figura 75 a Figura 80)
Figura 79: Formas de slits . Fonte: Homepage Joaquín Casado. 102 A figura mostra alguns exemplos de slits. Neste caso, estes slits são vendidos prontos em um kit que inclui todos os acessórios para serem adaptados no lugar das objetivas de diferentes câmeras fotográficas convencionais.
102
Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2007.
155
Figura 80: Joaquin Casado, Franz Kafka, s.d. Polaroid 4x5, double slit Fonte: Homepage Joaquín Casado. 103
Figura 81: Claudia Rojas, Desnudo n°2 , s.d. Fonte: Homepage Joaquín Casado. 104
103
Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2005.
104
Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2008.
156
O zone plate consite em uma série de anéis concêntricos, alternados entre transparentes e opacos. (Figura 82) A luz que atravessa os vários anéis transparentes se sobrepõe formando uma imagem difusa e suave, com a tendência de formar halos nos limites de maior contraste da imagem. (Figura 84) Sua construção é bastante complexa e, como a imagem se forma com melhor qualidade em um determinado plano, como com as lentes, seu diâmetro e sua conformação dependem do comprimento da câmera.
Figura 82: Desenhos de zone plates. Fonte: Homepage Photography w/o lenses. 105
Figura 83 (esq): Imagem com câmera de orifício. Figura 84 (dir): Imagem com zone plate no lugar do orifício. Fonte: Homepage Zero Image.106
105
Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2008.
106
Disponível em: . Acesso em 10 abril 2008.
157
Figura 85: Nancy Spencer, Beth, 1996 Zone plate 11” x 14” Fonte: Homepage Pinhole Resourse. 107
2.1.3
Tempo Expandido. Para registrar corretamente uma imagem, o material sensível deve receber uma
determinada quantidade de luz. Nas câmeras fotográficas, essa quantidade de luz é controlada de duas maneiras: pelo tamanho da abertura do orifício ou diafragma da câmera por onde a luz entra e pela quantidade de tempo que se deixa a luz atingir o material sensível, que é controlada pelo obturador. Um aumento na quantidade de luz que entra pelo diafragma, deve ser acompanhado de uma diminuição no tempo que a luz atinge o filme ou, ao contrário, aumenta-se o tempo de exposição e diminui-se o diâmetro do diafragma. Como visto anteriormente na seção 2.1.2, para garantir a qualidade da imagem na fotografia estenopeica, o orifício deve ser o menor possível. O pequeno tamanho do furo faz com que os tempos de exposição sejam bem mais longos do que na fotografia tradicional. Dependendo do material sensível utilizado, este tempo é maior ainda (papéis fotográficos preto e branco, por exemplo). As frações de segundo, dos registros proporcionados pelos equipamentos fotográficos convencionais com lentes, transformam-se em longos minutos numa câmera de orifício. Durante esse período, a luz se modifica, se movimenta, assim como as pessoas. Esses longos tempos de 107
Disponível em: . Acesso em 18 fev. 2008.
158
exposição também podem ser conseguidos com a fotografia tradicional com lentes, mas, no caso da fotografia estenopeica, são características quase que determinantes do processo. Existem várias fórmulas para calcular o tempo de exposição nas câmeras estenopeicas. No entanto, a dificuldade em precisar o tamanho do furo faz com que o método tentativa e erro seja o mais utilizado. Na rede mundial de computadores, estão disponíveis várias tabelas que podem servir como ponto de partida para estimar o tempo de exposição para uma determinada câmera. Da mesma forma, algumas câmeras, vendidas prontas, fornecem tabelas indicativas para diferentes situações de luz: normalmente, informam o diafragma equivalente para que o usuário possa aferir, com maior precisão, o tempo de exposição para qualquer situação de luz utilizando um fotômetro de mão. A inscrição do tempo108 na imagem fotográfica é bastante complexa. A fotografia traz consigo a idéia de imagem congelada, de fragmento instantâneo e único da realidade. Todo o seu desenvolvimento se deu na busca por materiais fotográficos mais sensíveis e câmeras com obturadores mais rápidos, justamente para eliminar a anotação do tempo que desestabiliza e deforma a imagem. Mas, no limite, caso se pense matemática e fisicamente, mesmo a menor fração de segundo corresponde a um intervalo de tempo; a suspensão absoluta do tempo significaria trabalhar com a velocidade da luz, o que está muito longe da prática fotográfica. Assim, mesmo com as maiores velocidades de obturação, o intervalo de tempo da exposição é longo o bastante para registrar uma duração. “Isso quer dizer que em toda imagem fotográfica há necessariamente inscrição do tempo” (MACHADO, 1993, p. 103). O que acontece, normalmente, é que se busca controlar a velocidade do obturador e do objeto, de modo a suprimir do registro fotográfico qualquer referência à duração desse intervalo. Na fotografia estenopeica isso é muito mais difícil; em minutos, até mesmo as nuvens de uma paisagem deserta podem se movimentar. Por outro lado, o longo tempo de exposição pode provocar o efeito contrário: imagens desertas que registram apenas os objetos concretamente estáticos. Pessoas ou objetos que se movimentam diante da câmera não ficam gravados na imagem.
108
Entler (2004) cita três formas distintas de representação do tempo na fotografia. O tempo inscrito traduz, de forma contínua, o deslocamento no espaço, de um objeto ao longo de uma duração de tempo. Esse registro aparece sob a forma de um “borrão” do movimento, que Arlindo machado chamou de anamorfose cronotópica (ver nota 45, p.90). O tempo denegado, como num “instantâneo” que tem o movimento “congelado”. A percepção desse tempo é denunciada, justamente, pelo esforço em seu ocultamento, pela interrupção abrupta do movimento. Como terceira forma Entler define o tempo decomposto, como aquele em que as diferentes etapas do movimento são fracionadas e representadas em um conjunto de imagens estáticas, como no cinema ou nos quadrinhos.
159
Figura 86: Jochen Dietrich, Cine São Jorge, Lisboa, 1996/97. Fonte: Homepage Galerie Gerhard.109 Em sua série de fotografias do projeto Cine-Teatros de Portugal Jochen Dietrich comenta a dificuldade em fotografar com câmeras que registram 360º. Se o fotógrafo não quiser aparecer na imagem, ele precisa se mexer permanentemente, ou deixar a câmera sozinha durante o tempo de exposição. “Todos os locais que fotografei eram movimentados. [...] havia carros e pessoas passando, assim como uma centena de pombos [...]. Obviamente não ficaram gravados na imagem, pois o tempo da foto é um tempo próprio.” (DIETRICH, 2000, p. 150)
O que se pode observar, é que a questão do tempo faz parte de muitas das discussões daqueles que utilizam câmeras de orifício. A postura, principalmente por parte dos artistas, é, justamente, de uma aproximação com a fotografia estenopeica por conta da relação temporal estabelecida por suas imagens. Os artistas tiram partido da fotografia estenopeica e de seus longos tempos de exposição para evidenciar a representação do tempo nas imagens. Além disso, a fotografia estenopeica permite questionar a passagem do tempo, pois expressa de maneira diferenciada a passagem imperceptível do tempo, tornando visível o que é invisível para o olhar humano, e, vice-versa, em alguns casos, tornando invisível o que é comumente visível pela visão humana.
109
Disponível em: . Acesso em: 04 out 2007.
160
Figura 87 e Figura 88: Ana Angélica Costa, Duração, 2004-2005. Fonte: Homepage Projeto Subsolo.110 Na série Duração, Ana Angélica registra o desenvolvimento de determinadas ações durante um certo período de tempo.
Os efeitos e as distorções provocados pelos longos tempos de exposição já se fazem presentes desde o início da fotografia. Se na vista de Paris de Daguerre só fica registrado um homem engraxando seus sapatos é porque o tempo de exposição de um daguerreótipo é demasiado longo para congelar o movimento das pessoas andando ou mesmo dos veículos (Figura 89). Com a evolução constante dos materiais sensíveis, esse tipo de efeito deixou de ser um acidente para ser uma opção do fotógrafo, pelo menos na fotografia tradicional com lentes, o fotógrafo tem muito mais controle sobre o resultado: ele pode “congelar” o movimento, ou registrá-lo borrado.
110
Disponível em: . Acesso em: 10 mar 2007.
161
Figura 89: Louis Daguerre, Paris Boulevard, 1839. Fonte: Carvalhal, 2006. Este daguerreótipo de Louis Daguerre de 1839 mostra uma rua de Paris aparentemente deserta. A sensação deve-se ao longo tempo de exposição, cerca de 20 minutos, o que fez que tudo o que se movesse não ficasse registrado na imagem. No canto inferior esquerdo pode-se observar, de forma bastante clara, a figura de um homem em pé que tem seus sapatos engraxados por um engraxate. Ele provavelmente permaneceu imóvel durante todo o tempo da exposição. Supõe-se que seja a primeira pessoa a ser fotografada.
Com a câmera estenopeica, os movimentos borrados, as imagens múltiplas e os fantasmas das imagens são ainda mais comuns. A representação do tempo é mais evidente; a câmera já não capta apenas o instante em que os objetos tendem ao repouso, mas o percurso desses objetos no espaço no passar do tempo. O registro do movimento inscreve na imagem uma dimensão temporal que desconstrói e questiona o conceito da imagem fotográfica como registro realista, e possibilita mais facilmente a obtenção de imagens que apresentam o que Arlindo Machado chama de “anamorfoses cronotópicas”. Em muitas imagens estenopeicas, a idéia de movimento aproxima-se das experiências da cronofotografia de Étienne-Jules Marey ou da
fotodinâmica dos futuristas como Anton Giulio Bragaglia (Figura 20, p.91; Figura 28, p.102; Figura 90).
162
Figura 90: Anton Giulio Bragaglia, Change of Position, 1911. Fonte: The Metropolitan Museum of Art, New York.111
Figura 91: Paolo Gioli, Dire No, 1974. Fonte: Homepage Paolo Gioli.112 Utilizando diferentes procedimentos, Bragaglia, Gioli, exploram a idéia de registrar percursos no decorrer de um intervalo de tempo. Bragaglia utiliza longos tempos de exposição, e Gioli utiliza uma câmera 35mm transformada em câmera de orifício e altera o sistema do obturador de forma similar aos experimentos de Davidhazy (ver Figura 126, p. 208).
111
Disponível em: . Acesso em: out 2007.
112
Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2008.
163
O registro e a fusão do movimento provocam uma dissolução dos objetos no decorrer de sua trajetória no espaço e no tempo. A imperfeição da imagem causada pelas anamorfoses e pela presença de “fantasmas” que decorrente do longo tempo de exposição transmite uma sensação de fantasia, de irrealidade, afastando-a do registro mimético do real. (Figura 92 e Figura 87)
Figura 92: Dirceu Maués, Ver-o-Peso Pelo Furo da Agulha, 2004. Fonte: Homepage do Projeto Ver-o-Peso pelo furo da agulha.113 Os longos tempos de exposição necessários para captar as imagens faz com que a presença temporária do vendedor deixe impressa na imagem apenas um “fantasma”. Como resultado, Dirceu Maués obtém um ensaio documental no mercado Ver-o-peso cujas imagens “transitam entre a solidez e a desmaterialização, a opacidade e a translucidez, a dureza e a fluidez, sonhos e realidade”. (MAUÉS, 2008)
Algo mais pode ser observado nessa relação de duração que existe no registro da imagem pela câmera estenopeica. Nas câmeras da fotografia tradicional com lentes, o tempo de sensibilização da imagem é curtíssimo, e normalmente não passa de frações de segundo. O disparo do botão e o pequeníssimo período de tempo durante o qual a luz impressiona o material sensível confundem-se e tornam-se um só. Esse apertar automático do botão pode levar a crer que o ato de registro da imagem é uma realização do fotógrafo. Ao mesmo tempo, de certa forma, o momento específico da exposição da imagem carrega consigo a idéia da ausência do usuário/fotógrafo: nesse instante, não há a intervenção humana e a fotografia é então, nas palavras de DUBOIS, “um índice quase puro” (1994, p.51).114 113
Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2007.
114
Essa questão é discutida na seção 1.2.4.1 Referente. Ver p. 68.
164
Figura 93: Danilo Pedruzzi, Auto-Retrato, c. 2000. Fonte: Homepage Estenopeica.115
Se esses dois aspectos se confundem na fotografia tradicional, na fotografia estenopeica a questão se acentua. É inegável que existe a possibilidade de interferir na formação da imagem durante o processo de exposição, por exemplo: movimentando a câmera, os objetos ou mesmo o material sensível (Figura 91, Figura 93, ver também: Figura 123, p. 204 e Figura 126, p. 208). Com os tempos maiores da fotografia estenopeica essas possibilidades se ampliam. Ao mesmo tempo, o processo da fotografia estenopeica evidencia que, depois que é disparado o botão e o obturador se abre para expor a superfície sensível, o processo de impressão da luz sobre o material sensível, que acontece no interior da câmera, não carece, necessariamente, nem da presença nem da interferência humana. O tempo de exposição da camera obscura obriga o fotógrafo a tomar conta do fato de que a formação da representação é um processo quase independente do sujeito, do indivíduo, de si mesmo. Sim, foi ele quem construiu a máquina, abriu-a, escolheu o local, etc., mas exatamente a partir do momento de tirar a fita que tapa o diafragma, o fotógrafo encontra-se fora do acontecimento. A máquina é que produz a imagem (ou, por que não: a imagem penetra a máquina. Ou [...] digamos: Dá-se a representação). (DIETRICH, 1998, p. 66)
Algumas propostas de artistas como Dominique Stroobant, Tarja Trigg e Michael Wesely evidenciam a possibilidade de independência do processo com relação à intervenção humana. (Figura 94, Figura 109, p. 186 e Erro! Fonte de referência não encontrada., p. 223) Na década de 1980, Dominique Stroobant construiu uma série de câmeras que, expostas em ambientes externos, poderiam resistir às intempéries por longos períodos. Num projeto de 1982,
115
Disponível em Acesso em: fev. 2007.
165
ele utilizou quatro câmeras estenopeicas colocadas em quatro ângulos diferentes para registrar o movimento do sol por um período de seis meses. Cada máquina gravou as linhas brancas do percurso do sol durante seis meses em uma única imagem. Ele abriu a máquina em dezembro de 1981 e fechou-a em junho do ano seguinte. Durante o tempo de exposição da imagem (seis meses) a máquina ficou sozinha, “fotografando”, sem a sua presença. “O autor não tem que estar presente, nem pode estar presente neste caso, porque o tempo necessário para esta exposição não é o mesmo que o do nosso ritmo, da nossa vida” (DIETRICH, 2000, p. 149).
Figura 94: Dominique Stroobant, fotografia com exposição de 6 meses. Fonte: RENNER, 2000. Nesta imagem a exposição foi iniciada em 22 de Dezembro de 1981 e terminou em 22 de junho de 1982. O tempo de exposição de seis meses foi possível porque ele utilizou como material sensível um filme de baixíssima sensibilidade. O curioso é que mesmo com uma exposição de seis meses, a imagem também registrou a paisagem.
Os longos tempos de exposição são características quase que determinantes da fotografia estenopeica, é como se o tempo estivesse representado de forma mais intensa, evidenciando uma sensação de desaceleração, num movimento contrário a todo o desenvolvimento histórico da fotografia tradicional. Ao mesmo tempo, as distorções, provocadas por esses longos períodos de exposição, possibilitam um distanciamento das imagens como registro mimético do real. O que essas imagens apresentam desconstrói, simbólica e conceitualmente, uma série de concepções tradicionais acerca da imagem fotográfica.
166
2.2
CONSTRUINDO A CÂMERA ESTENOPEICA: A EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA
O orifício, como uma metáfora, proporciona a transparência necessária à compreensão do fazer fotográfico Fabio Goveia116
A construção de uma câmera estenopeica é extremamente simples. Pode-se construir uma caixa, exclusivamente, para ser utilizada como câmera ou, então, aproveitar diferentes embalagens, ou qualquer objeto que vede a entrada da luz. O interior da “caixa” deve ser inteiramente preto, para evitar a reflexão da luz no interior da câmera. Numa das extremidades da “câmera” será feito o furo por onde passará a luz. Como a precisão do furo é extremamente importante para a qualidade da imagem, normalmente, faz-se um furo maior (redondo ou quadrado) de dois ou três cm de diâmetro, no qual coloca-se um material que permita um furo de maior precisão, como uma folha de alumínio, por exemplo. O furo é feito com uma agulha, ou um alfinete, e a folha de alumínio é fixada no furo maior da câmera. Para controlar a entrada da luz pelo orifício, o mais comum é a utilização de um tampão de material totalmente opaco sobre o furo (como fita isolante, por exemplo). Esse tampão funciona como um obturador, e será retirado somente no momento da exposição da foto à luz. O tempo de exposição varia conforme a luminosidade da cena, o tamanho do furo e a sensibilidade do material utilizado (filme, papel fotográfico, ou sensor digital). Com certeza serão necessárias várias tentativas até se estabelecer o tempo ideal para o melhor registro da imagem. Várias fórmulas e tabelas estão disponíveis para calcular o tamanho ideal do furo, com relação ao tamanho da câmera e o tempo de exposição, mas, a dificuldade em precisar o tamanho do furo torna os testes imprescindíveis.117 As possibilidades de construção da câmera são infinitas, e as opções ampliam-se a cada pequena alteração da câmera, distância do objeto, tempo de exposição, tipo ou posição do material sensível, etc.
116 117
GOVEIA, 2005, p. 66.
Sobre o tempo de exposição consultar: ; . Sobre o tamanho do furo: ; ; . Existe um programa para o sistema operacional windows que ajuda a calcular o diâmetro do furo e o tempo de exposição: Programa “PinholeDesigner 2.0”. Disponível em: . Páginas acessadas de fev. a jul. de 2008.
167
A construção da câmera pode ser incrementada com a inclusão de um visor para prévisualização, ou um sistema de avanço, quando se utiliza um filme em rolo como material sensível, permitindo a obtenção de várias imagens. Também, podem ser compradas câmeras prontas. Hoje, com as facilidades de comunicação via internet, pode-se entrar em contato com diversos fabricantes, espalhados em diferentes países, que produzem câmeras de construção refinada, já testadas, e que produzem imagens de altíssima qualidade.118 No entanto, a possibilidade de construção de sua própria câmera é a característica mais atraente da fotografia estenopeica. O fotógrafo pode partir do zero, ou seja, construir a “caixa” em todos os seus detalhes para ser a câmera, ou, pode re-utilizar uma lata ou caixa, de uma embalagem, por exemplo, e transformá-la em uma câmera. No entanto, a liberdade de construção permite uma gama tão extensa de experimentações que levam os artistas a utilizar os mais diferentes materiais como câmera, desde seu próprio corpo até construções arquitetônicas. “Tudo que é oco pode se transformar numa máquina fotográfica: um depósito de lixo, um ovo, um quarto, um caracol, um despertador, uma casca de coco, um pimentão vermelho.” (DIETRICH, 2000, p. 144)119
Figura 95: Ilan Wolff, Red Pepper Used Like a Camera Obscura, s.d. Fonte: Homepage de Ilan Wolff.120
118
Páginas que vendem câmeras e acessórios: ; ; ; ; . Acessos: de jun. 2007 a jun. 2008.
119 120
Ver da Figura 95 a Figura 106.
Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2008.
168
Entre artistas que utilizaram seu próprio corpo como câmera, citam-se os trabalhos do alemão Thomas Bachler entre as décadas de 1980 e 1990 e do americano Jeff Guess na década de 1990. Ambos os artistas utilizaram a boca como câmera e os lábios como orifício para formar a imagem (Figura 96, Figura 97, e a Figura 107 e Figura 108, da página 176). O italiano Paolo Gioli utilizou sua mão para obter imagens estenopeicas. Com a mão fechada e o material sensível em seu interior, ele deixou passar a luz através do pequeno orifício que se forma pelo dedo mindinho quando se cerra o punho. (Figura 98 e Figura 99)
Figura 96: Jeff Guess, From Hand to Mouth ,1994. Figura 97: Jeff Guess, From Hand to Mouth ,1994. Fonte: Homepage de Jeff Guess.121 Jeff Guess fez imagens estenopeicas utilizando sua própria boca como câmera e os lábios como orifício, sem conhecer o trabalho de Thomas Bachler, que já havia registrado imagens estenopeicas com a boca na década anterior.
121
Disponível em: . Acesso em: 20 de jan. 2008.
169
Figura 98: Paolo Gioli, Pugno Contro me Stesso, 1989. Cópia positiva em papel fotográfico de negativo fotografado com a mão fechada, 18 x 13 cm. Figura 99: Imagem do punho utilizado como câmera, 1989. Fonte: Homepage Paolo Gioli.122 Paolo Gioli fez imagens estenopeicas utilizando o próprio punho como câmera, orifício e obturador, para produzir imagens intituladas “Janela no meu punho” (Window in my Fist – La finestra in pugno) e “punho contra mim” (Fist Against Myself – Pugno contro me stesso)
A utilização e transformação de objetos diversos em câmeras estenopeicas é bastante comum entre os usuários da técnica, e acaba por configurar um de seus aspectos mais lúdicos. Para falar da utilização de objetos diversos como câmera, cita-se novamente o italiano Paolo Gioli, que nas décadas de 1970 e 1980, transformou uma série de objetos em câmeras estenopeicas. Numa concepção “Duchampiana” dos “ready-mades”123, ele utilizou objetos que já tem furos para que estes funcionassem como os orifícios das câmeras. Por exemplo: uma flauta, biscoitos “cream cracker”, botões de roupa, conchas, ou mesmo utensílios de cozinha como uma escumadeira e um ralador, entre outros (RENNER, 2000; GIOLI, 2008) (Figura 100 e Figura 101). Outra experiência interessante é a do americano Jeff Fletcher que produziu imagens estenopeicas utilizando um frasco de porta-pimenta como câmera e cascas de ovos como suporte para o 122
Disponível em: . Acesso em 02 mar. 2008.
123 O termo ready-made é criado por Marcel Duchamp para designar um tipo de objeto, por ele inventado, que consiste em um ou mais artigos de uso cotidiano, produzidos em massa, selecionados sem critérios estéticos e expostos como obras de arte em espaços especializados (museus e galerias). Seu primeiro ready-made, de 1912, é uma roda de bicicleta montada sobre um banquinho. (Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008)
170
material sensível (Figura 102). O alemão Jochen Dietrich transformou despertadores mecânicos em câmeras estenopeicas para obter uma seqüência de doze imagens estenopeicas num intervalo de 1 hora. Mais recentemente, Steve Pippin transformou máquinas de lavar de uma lavanderia, um chuveiro e até mesmo o vaso sanitário de um trem, em câmeras estenopeicas. (Figura 129, p. 211)
Figura 100: Paolo Gioli, Imagem feita com a Câmera Crackerstenopeica, 1980. Figura 101: Paolo Gioli, câmera Crackerstenopeica, 1980. Fonte: Homepage de Paolo Gioli124 Nesta imagem obtida com o uso da câmera Crackerstenopeica os vários furos da bolacha funcionam como orifícios que formam imagens múltiplas que se sobrepõe.
124
Disponível em: . Acesso em 07 abr. 2008.
171
Figura 102: Jeff Fletcher, Bromide Eggs, 1989. Fonte: Homepage Pinhole Resource. 125 Jeff Fletcher desenvolveu uma série de auto-retratos utilizando um “porta pimenta” como câmera e cascas de ovos como suporte sensível. Fletcher teve a idéia de utilizar os ovos por seu aspecto simbólico de regeneração, ciclo de morte/vida, origem de uma nova vida. Para isso, ele sensibilizou cascas de ovos com uma emulsão fotográfica líquida, que pode ser utilizada em qualquer suporte, assim, as imagens ficaram gravadas nas próprias cascas dos ovos. As cascas eram colocadas no interior de um “porta pimentas”. No fundo do “porta pimenta” ele fez um orifício para formar a imagem, e os furos em forma de “P” por onde saía a pimenta foram tampados. Depois de muitos problemas e muitos testes, ele conseguiu registrar as imagens. O resultado são dezoito aspectos de sua intimidade mostrados em imagens anamórficas nas cavidades de dezoito cascas de ovos. (RENNER, 2000, p. 77-78)
Figura 103 (esq): Jochen Dietrich, Auto retrato, 1993. Fotografia estenopeica utilizando câmera relógio, 3,5”x 3,5”. Figura 104 (dir): Jochen Dietrich, Câmera relógio, 1994. Fonte: Homepage Pinhole Resource. 126
125
Disponível em: . Acesso em 4 nov. 2007.
172
Jochen Dietrich transformou despertadores mecânicos em câmeras estenopeicas. Ele adaptou um disco com uma pequena janela no eixo do ponteiro dos minutos. O disco gira junto com o ponteiro de minutos, que demora uma hora para dar a volta completa. Os números das horas foram substituídos por pequenos furos. Quando a janela do disco se encontra com um dos furos, sai uma foto. No término de uma hora são registradas 12 imagens, “portanto a máquina grava em doze tiragens numa única chapa redonda tudo que acontece em frente ao relógio (DIETRICH, 2000, p. 154).”
Outra prática comum entre os artistas contemporâneos é a utilização de espaços e ambientes vazios como câmera, tanto para o registro fotográfico quanto para a observação ou demonstração da formação da imagem através do orifício. Marcos Kaiser transformou alguns buracos feitos durante a queda do muro de Berlim em câmeras estenopeicas (Figura 121, p.195). Grandes ambientes também são utilizados como câmera: desde veículos, como caminhões e ônibus, até quartos ou edificações. Em alguns casos, esses ambientes são especialmente construídos para serem utilizados como câmera estenopeica e registrar as imagens, em outros, são usados para instalações127. Essas grandes câmeras permitem que o artista e/ou o observador entrem em seu interior e, depois da adaptação do olho à baixa luminosidade, observem a formação da imagem agregando, de certa forma, outros sentidos perceptivos, além da visão (RENNER, 2000). Numa instalação em Porto Alegre, Jochen Dietrich adaptou doze “câmeras relógio” em doze janelas de uma torre. Ao entrar na “torre dos relógios”, o observador poderia ver a formação de uma nova imagem a cada cinco minutos, alternadas com períodos de escuridão, somadas ao tic-tac dos relógios (DIETRICH, 2000, p. 155). O próprio Dietrich, conhecedor do fenômeno da formação de imagens em ambientes escuros, descreve a sensação de surpresa ao entrar em um antigo cinema de Portugal e perceber que, em seu interior, completamente vazio, passavam-se imagens da rua. Quando entrei e fechei a porta atrás de mim, passavam-se imagens lá dentro. [...] Fiquei transtornado e só algum tempo depois pude perceber que o dispositivo de projeção era uma janelinha no meio da fachada [...]. Este cinema, mesmo abandonado há décadas, nunca deixou de ser cinema. Ali há filme todos os dias (DIETRICH, 2000, p. 145-146).
126
Disponível em: . . Acesso em 2 mar. 2008.
127
e
O termo instalação é incorporado ao vocabulário das artes visuais na década de 1960, designando ambientes construídos nos espaços das galerias e museus. Modalidade de produção artística que lança a obra no espaço, com o auxílio de materiais muito variados, na tentativa de construir um certo ambiente ou cena, cujo movimento está dado pela relação entre objetos, construções, o ponto de vista e o corpo do observador. Para a apreensão da obra é preciso percorrê-la, passar entre suas dobras e aberturas, ou simplesmente caminhar pelas veredas e trilhas que ela constrói por meio da disposição das peças, cores e objetos. (Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, 2008)
173
Alguns artistas, como Marja Pirilä e Abelardo Morell, transformam quartos ou outros grandes ambientes em cameras obscuras e fotografam as imagens que se formam no seu interior (Figura 105 e Figura 106). Em sua série Bom voyage, Thomas Bachler transformou um caminhão em câmera estenopeica. Uma única imagem registrava todo o trajeto da viagem, que poderia percorrer, até 100 km, dependendo da luminosidade. Ilan Wolff usa um furgão transformado em câmera para produzir imagens estenopeicas de grande formato da cidade de Paris (Figura 122, p. 196).
Figura 105: Abelardo Morell, Philadelphia Museum of Art, 2005. Imagem da entrada do museu no interior da galeria n° 171 com pintura de DeChirico. Fonte: Homepage Abelardo Morell.128 Abelardo Morell trabalha com a formação de imagens em camera obscura desde 1991. Em seu trabalho recente, ele utiliza negativo colorido de grande formato (8 x 10”) para registrar as imagem formadas no interior dos grandes ambientes transformados em camera obscura. Segundo ele, obter a imagem no interior da sala é simples, basta um ambiente escuro com uma pequena entrada de luz. A maior dificuldade está em registrar fotograficamente a imagem que se forma. Normalmente são necessárias até 8 horas de exposição (MORELL, 2008).
128
Disponível em: . Acesso em: 03 fev. 2008.
174
Figura 106: Marja Pirilä, Interior/exterior , 1996-2002. Fonte: http://www.backlight.fi/bl02/pirila.htm Neste trabalho da série Sleeping Rooms, Marja Pirilä registrou, com uma câmera fotográfica convencional, a imagem externa projetada no interior do quarto. A imagem invertida ocupa todo o ambiente, desde o chão até às paredes, o teto e os objetos no interior do quarto.
Com a construção da câmera, o fotógrafo aproxima-se do processo de realização da imagem. Na fotografia tradicional com lentes, a tendência é privilegiar o momento do “clique” – o “momento decisivo”, como se o apertar do botão fosse mais importante do que tudo que está antes e depois do “clique” (como o ajuste da câmera, a preparação da cena, ou o processamento posterior do material). Na fotografia estenopeica, o pré-clique está muito presente. A construção da câmera mostra, com muita intensidade, que a representação também é uma construção. Apesar do processo de preparação da câmera e todos os seus ajustes já existirem na fotografia tradicional, eles não estão tão evidentes; talvez, porque, em alguns casos, eles possam, aparentemente, ser anulados por equipamentos cada vez mais automáticos. Ao construir a câmera e definir suas características estruturais (anatomia da câmera; formato da imagem; quantidade de orifícios e sua conformação), o artista/fotógrafo expressa de maneira muito clara suas opções estéticas e conceituais e, principalmente, sua presença como construtor da representação. Esta explicitação da construção evidencia que não se trata de um processo neutro nem isento de subjetividade. Pelo contrário, a produção das imagens fotográficas – estenopeicas ou com lentes -, é uma construção simbólica que resulta das intenções de um sujeito e de sua cultura.
175
2.2.1
Uma Outra Perspectiva Como é o mundo, visto deste olho? Jochen Dietrich129
A formação da imagem na câmera estenopeica segue os princípios de formação da imagem em perspectiva da camera obscura, de maneira simples e sem a necessidade de lentes ou qualquer outro tipo de artifício. Ela “realiza de uma maneira mais pura que todas as outras máquinas o sistema da perspectiva central de um ponto de fuga” (DIETRICH, 1998, p. 65). Ao mesmo tempo, a câmera estenopeica propicia uma reestruturação do espaço fotografado. Isso, porque, a conformação da câmera e a disposição do material sensível não estão presas às limitações da camera obscura ou mesmo das câmeras fotográficas tradicionais com lentes disponíveis no mercado – uma caixa retangular com um orifício central do lado oposto a um material sensível disposto em plano paralelo à cena. Como observado até aqui, a câmera estenopeica pode assumir praticamente qualquer formato, assim como o material sensível, e, ainda assim, pode-se ter a formação da imagem no interior da câmera. Assim, entende-se que ela não é neutra, pois, ao mesmo tempo em que a imagem se forma em seu interior, ela própria influencia, modifica e altera a forma como a representação é construída, perturbando de maneira muito intensa o sistema clássico da perspectiva renascentista. Além disso, a imagem captada pela câmera de orifício não corresponde, necessariamente, à visão do fotógrafo. Ao contrário, a ausência da objetiva e, na maioria dos casos, a ausência de um visor para a pré-visualização da imagem, fazem com que o resultado seja, em grande parte, imprevisível. De certa forma, a câmera deixa de ser uma prótese do olho humano, e o “olhar” da câmera passa a ser tão importante quanto o do fotógrafo. “A contradição entre o olhar da câmera e do próprio olhar pode ser o núcleo de uma nova maneira de ver o mundo.” (DIETRICH, 1998, p. 65). Dietrich defende que o sistema da fotografia estenopeica tem uma estrutura dialógica. Ao utilizar a câmera estenopeica, é estabelecida uma troca entre o usuário - no ato de construir e de fotografar - a câmera e suas imagens. Dessa troca resulta a construção de conhecimento a partir
129
DIETRICH, 1998, p 62.
176
do processo de produção do imaginário, possibilitado a cada nova câmera construída, a cada nova imagem. Nas palavras de Dietrich: Quem cria um imaginário usando uma câmera obscura está inserido em um diálogo complexo com o mundo (a parte da realidade que ele quer representar), com sua cultura, que lhe forneceu aquele artefato (o sistema da câmera obscura), consigo mesmo, pois foi ele quem concretizou o sistema construindo sua máquina, e com o próprio artefato, a caixa. No triângulo Sujeito –Meio – Objeto (realidade), o meio específico câmera obscura é capaz de se inserir em qualquer uma das três posições. Sendo um olho artificial, a câmera obscura representa, sobretudo outra subjetividade, vale dizer, cada máquina construída significa uma subjetividade virtual. (DIETRICH, 2000, p. 156)
Como exemplo de uma outra subjetividade possível, Dietrich cita o trabalho O Terceiro
olho, do alemão Thomas Bachler, que utiliza a própria boca como câmera (Figura 107 e Figura 108). “Ele próprio, seu corpo, era ao mesmo tempo sujeito, objeto e a ‘câmera’. Através da fotografia ele viu o mundo segundo um novo olhar.” (DETRICH, 2000, p. 156). O que chama a atenção, no trabalho de Bachler, não é o resultado formal das imagens que ele obteve, que não possuem qualidade técnica (definição, contraste, nitidez, equilíbrio de iluminação, etc), mas sim sua postura diante do ato de fotografar.
Figura 107 (esq): Thomas Bachler, O Terceiro Olho, 3.5 x 5 cm, 1999. Figura 108 (dir): Thomas Bachler, O Terceiro Olho – Nus, 1999. Fonte: Bachler, 2008. Em 1986, Bachler colocou pequenos pedaços de filme 35mm dentro da boca. As imagens eram feitas diante de um espelho, os lábios funcionavam como orifício e obturador ao mesmo tempo. O resultado foi uma série de 63 auto-retratos intitulada The Third Eye, ou O Terceiro Olho (RENNER, 2000, p. 74). Em 1999 ele fez outras duas séries, uma de auto-retratos e outra de modelo, com papel fotográfico P&B seguindo o mesmo princípio. “Usando minha própria boca, eu caminhei até a frente de um espelho com
177
um pedaço de papel fotográfico em minha boca. Meus lábios, levemente abertos, funcionaram como o orifício de uma pinhole e eu fotografei a imagem do espelho – uma fotografia minha de dentro de mim.” (BACHLER, 2008).130
Na fotografia estenopeica, em geral, não é a qualidade técnica que prevalece, principalmente, comparada à qualidade técnica das imagens obtidas com a utilização de câmeras tradicionais com lentes. O que chama a atenção é a possibilidade de interferir no processo de construção da representação de maneira mais intensa e interventora. A construção da representação pela fotografia estenopeica permite ao usuário observar a influência da estrutura espacial da câmera na forma como o espaço “real” é representado; rompendo com o modelo clássico da perspectiva central que, de certa forma, “domesticou” o olhar. A liberdade na construção da representação, apesar das limitações ópticas de formação da imagem, permite inventar novos olhares e, também, novos modelos de percepção, questionando e, ao mesmo tempo, rompendo, de forma bastante intensa, com os conceitos homológicos da fotografia tradicional com lentes. Esse rompimento com a homologia deixa claro o processo de construção cultural da representação.
2.3
EXPERIMENTAÇÃO:
AS
POSSIBILIDADES
EXPRESSIVAS
DA
CÂMERA
ESTENOPEICA O processo de formação das imagens na câmera estenopeica - sem a interferência das objetivas que, na fotografia tradicional, interpõe-se entre o objeto e a representação, refratando os raios luminosos - e a liberdade com que a luz invade e preenche todo o interior da câmera, promovem uma tal naturalidade na construção da representação, que poderiam sugerir uma “revelação do real” ou uma “objetividade essencial”, nas palavras de Bazin (2005). Apesar disso, algumas fotografias estenopeicas parecem ter sido obtidas por processos sofisticados de manipulação e intervenção digital; mesmo nos casos em que não houve uma interferência posterior - ao menos direta e física - sobre o registro efetuado pela câmera. A gênese fotográfica 130
Tradução livre do texto em inglês: “Using my own body as a camera, I stepped in front of a mirror with a piece of photo paper in my mouth. My slightly opened lips worked as a pinhole aperture and took a picture of the mirror image – a picture of me in me.” (BACHLER, 2008)
178
tradicional se mantém: a luz refletida pelos objetos penetra num ambiente escuro e atinge um material sensível, que se altera quimicamente e registra uma imagem. No entanto, o resultado formal, muitas vezes, ao invés de perpetuar o realismo especular, a que se está acostumado na fotografia tradicional com lentes, assemelha-se muito mais à linguagem estética dos novos meios digitais. Principalmente considerando-se a experiência de um observador que tem como referência apenas as alterações de imagens realizadas por meio de softwares e aparatos fotográficos, construídos com funções pré-estabelecidas, e desconhecendo outras alternativas técnicas, que precedem essas possibilidades de forma mais interventora e, porque não, expressiva. É possível encontrar nas imagens estenopeicas características presentes em imagens produzidas por artistas contemporâneos, que utilizam as mais diferentes tecnologias, desde a fotografia eletrônica (still vídeo), até a manipulação digital. No entanto, ao invés de interferências e manipulações sobre o registro inicial, na fotografia estenopeica a imagem registrada pela câmera pode apresentar essas características anamórficas e imprecisas, distanciando, ainda mais, suas imagens dos aspectos formais herdados do Renascimento. Essas características não são intervenções/edições posteriores, mas constituídas no próprio registro, no instante mesmo da captação da imagem. Determinadas, em parte, pelo fotógrafo, no momento que constrói a câmera e, em parte, pela imprevisibilidade intrínseca ao próprio processo da fotografia estenopeica. A imprevisibilidade, na formação das imagens, é ampliada pelas características de formação da imagem no interior da câmera estenopeica: a luz que penetra a câmera, forma imagem em todo o seu interior, sem a delimitação de enquadramento; a ausência de um plano focal faz com que a imagem se forme com relativa nitidez, em qualquer ponto, no interior da câmera, e o pequeno tamanho do furo faz com que os tempos de exposição sejam mais longos do que na fotografia tradicional com lentes. Além disso, normalmente, as câmeras estenopeicas não contam com um visor para a pré-visualização da cena. Outro aspecto marcante na fotografia estenopeica é a multiplicidade de opções que o fotógrafo tem no momento que constrói a câmera. As possibilidades multiplicam-se a cada pequena alteração na câmera, a cada escolha do fotógrafo, distância do objeto, tempo de exposição, suporte sensível. Seguir o mesmo caminho e tentar repetir o resultado, será, única e exclusivamente, uma escolha do fotógrafo. Ainda assim, podem aparecer deformações inesperadas, uma vez que, a indeterminação e a descontinuidade são traços mais do que presentes na fotografia
179
estenopeica. Cada percurso escolhido pelo fotógrafo traz um resultado diferente e, de certa forma, imprevisto. Poder-se-ia dizer percursos e resultados infinitos, uma vez que, como comentado anteriormente, a câmera pode ser construída com qualquer material: de uma casca de ovo a um pimentão ou sapato, ou mesmo usando a própria boca como câmera. A imprevisibilidade, a descontinuidade dos resultados e o acaso fazem parte das “escolhas” desses artistas/fotógrafos que buscam, na fotografia estenopeica, a experimentação. Ao optar pela técnica da fotografia estenopeica eles sabem que estas são características intrínsecas ao processo. Entretanto, deve-se ressaltar que as possibilidades expressivas da fotografia estenopeica não se devem, exclusivamente, às diferenças técnicas e formais com relação à fotografia tradicional, mas principalmente à conceitualização teórica que está por trás da postura daquele que constrói e usa a câmera. Sua participação no ato de produzir a câmera, mais do que uma atitude ativa perante a construção da representação, está em sua procura por uma nova visualidade; na consciência de estar caminhando, de certa forma, na contramão das convenções representativas da fotografia tradicional: buscando expandir os limites da fotografia, procurando romper com suas restrições técnicas, colocando em evidência o processo de construção do artefato-câmera, evidenciando a construção da representação, conseqüentemente, a construção da mensagem simbólica; mostrando que a mensagem simbólica resultante desse ato não é apenas uma janela transparente para o real, mas o resultado de um processo complexo de escolhas e posturas que refletem sim, mas não necessariamente o real. Posturas que expõem os valores e os sentimentos que estão por trás, não só da construção ou da manipulação do aparelho, mas de todo o imaginário simbólico/cultural daquele que constrói e daquele que interpreta a representação. A postura crítica não está simplesmente no uso de uma câmera construída artesanalmente, mas na busca, por parte do usuário, em lançar novos olhares, novas formas expressivas que questionem não apenas a gênese da imagem, mas que possibilitem se distanciar dos conceitos que estão cristalizados na construção dos aparelhos semióticos. A câmera estenopeica e a câmera fotográfica com lentes, assim como a câmera de vídeo e os demais meios técnicos de produção de imagens, não podem ser responsabilizados, sozinhos, pela construção da representação ou por seu resultado simbólico. Ao mesmo tempo, eles não são artefatos transparentes ou neutros. Atribuir a eles neutralidade seria responsabilizá-los por todo e qualquer resultado, que ratifica a analogia da imagem ou que rompe com ela. Se a imagem rompe ou não
180
com a homologia convencionalmente atribuída às imagens técnicas, isso se deve, também, a uma opção do usuário e não apenas ao meio. O que um meio pode trazer, como no caso da utilização da câmera estenopeica, é uma maior facilidade em romper com esse estatuto homológico das imagens técnicas. Não se quer dizer com isso que, por trás da construção do aparelho, já não estejam presentes ideologias que conformam seu modo de representar. Mas, voltando às idéias de Machado (2002b) e Flusser (2002), é na postura interventora do usuário diante dos aparelhos que se coloca a possibilidade de rompimento com os padrões, caso contrário se estará sendo apenas “funcionário”. A experimentação e a liberdade possibilitadas pela fotografia estenopeica permitem, mais facilmente, o rompimento de certas amarras impostas ao artefato fotográfico, principalmente, com relação à idéia de homologia que a fotografia tradicional carrega consigo desde seu surgimento. Isso não significa que a fotografia estenopeica esteja isenta de limitações, ou que a fotografia tradicional com lentes não permita a experimentação, significa, apenas, que a fotografia estenopeica não está presa às convenções técnicas e de construção do olhar moldados pela perspectiva da mesma forma que a fotografia tradicional com lentes. Arlindo Machado (2001) afirma que, na fotografia, para se obter o efeito indicial e a homologia icônica, é necessário um controle preciso de todos os elementos envolvidos no processo fotográfico - exposição correta à luz, qualidade do material sensível, tempo e temperatura de processamento, natureza da luz no registro e na ampliação, etc. (MACHADO, 2001, p. 136). Se a fotografia tradicional com lentes depende da precisão desse processo, na fotografia estenopeica, controlar todos esses elementos, principalmente na captação da imagem, é ainda mais difícil, o que não quer dizer impossível. O fotógrafo pode, mediante cálculos e testes, avaliar a quantidade de luz necessária para a melhor exposição de uma determinada câmera; pode prever a distorção que será provocada por um determinado formato da câmera ou do material sensível; pode até mesmo supor os efeitos do longo tempo de exposição em uma determinada cena. Como já acontece na fotografia tradicional com lentes, ele pode simplesmente evitar as situações que possam perturbar a precisão homológica do processo, ou então, como comenta Machado, descartá-las: Os acidentes do acaso são muito mais freqüentes do que se possa imaginar, mas o espectador ou usuário da fotografia não chega a tomar consciência disso,
181
porque as fotos que ele vê cotidianamente nos álbuns, nas revistas, nas galerias, são quase sempre as fotos felizes, aquelas em que o controle estocástico surtiu efeito, reconciliando a imagem com o modelo figurativo da pintura; as demais são simplesmente destruídas ou negligenciadas ainda sob a forma de contato (MACHADO, 1984, p. 44).
Novamente, é a opção do fotógrafo que irá determinar se a imagem seguirá por um caminho que confirme a homologia icônica ou, por outro, que rompa com ela. Na verdade, as possibilidades de experimentação e de desordem estão impregnadas na técnica da fotografia estenopeica, uma vez que ela permite um maior distanciamento das regras e dos padrões estabelecidos para a fotografia tradicional, incorporando a imprecisão, a descontinuidade, a instabilidade e o acaso em sua gênese. A câmera estenopeica estimula o usuário, muito intensamente, a manipular, a experimentar e a interferir na construção da representação. A multiplicidade de opções construtivas, o grau de imprevisibilidade dos resultados e o acaso trazem para a fotografia estenopeica elementos especiais: o lúdico e a surpresa. Se a fotografia tradicional com lentes pode, também, trazer esses elementos, na fotografia estenopeica eles se evidenciam de forma muito intensa. Ao explicitar a experimentação, o múltiplo, o imprevisto, o descontínuo, a fotografia estenopeica faz com que os acidentes e os erros sejam incorporados à sua linguagem e deixem de ser descartados e o acaso passa a ser uma opção estética. A partir daqui, a questão do acaso será discutida mais detalhadamente, para, em seguida, apresentar outros trabalho de artistas contemporâneos, que utilizam a fotografia estenopeica.
2.3.1
Acaso Na fotografia estenopeica, a dificuldade em prever todas as possíveis variações na
formação da imagem; a falta de controle sobre os resultados, ou mesmo a dificuldade em repetilos, faz com que o acaso, esteja presente de forma ainda mais intensa do que na fotografia tradicional. Na fotografia estenopeica, o processo de construção da câmera faz com que exista um diálogo, uma cumplicidade entre o usuário construtor e a própria câmera: a cada alteração que o usuário faz na câmera, ela responde com uma imagem diferente que não corresponde,
182
necessariamente, às expectativas do usuário construtor. A resposta da câmera incorpora o jogo com o acaso, os acidentes e os erros. Normalmente, quem fotografa com uma câmera estenopeica não tem como prévisualizar a imagem final. Por mais que se adapte algum dispositivo de mira, ou visor, ele somente ajuda a prever, de forma aproximada, que porção da cena será fotografada. A formação da imagem no interior da câmera não é limitada por um enquadramento, como nas câmeras convencionais, a imagem se forma de maneira irregular e em todo seu interior. Além disso, qualquer característica da câmera que se distancie do formato das câmeras convencionais – como, por exemplo, uma câmera curva ou o material sensível num plano inclinado - não vai ser enxergado pelo visor. O visor não tem condições de reproduzir exatamente as distorções que essas variações na construção da câmera, vão provocar na imagem, pelo menos nas câmeras produzidas artesanalmente. Nas adaptações de câmeras convencionais, como uma câmera “reflex”, na qual se substitui a objetiva pelo orifício, o visor apresenta o enquadramento exato, uma vez que o que o visor reproduz é exatamente o que será projetado no material sensível. No entanto, mesmo usando uma câmera adaptada, o fotógrafo continua não tendo condições de prever outras variáveis, como as deformações provocadas pelo longo tempo de exposição. A questão do tempo de exposição é bastante complexa, uma vez que, na fotografia tradicional, o “instantâneo” fotográfico não passa de uma ilusão. Mesmo numa fração de segundo muito pequena, podem acontecer situações em que o centésimo de segundo da captação da imagem foge ao controle do fotógrafo. Os fotógrafos de casamento sabem bem disso: ao fotografar a família ao redor dos noivos, nunca fazem uma única “chapa”, sempre pode acontecer de um dos fotografados piscar, exatamente, no instante em que se abre o obturador. Para Machado, as imagens obtidas pela câmera têm certo caráter aleatório. Segundo ele: “pode-se dizer que o obturador que torna visível a luz na película é ele próprio cego e governado pelo acaso” (MACHADO, 1984, p. 44). Na fotografia estenopeica o tempo é dinâmico, e prever exatamente como vai ficar a imagem é muitíssimo mais difícil; quiçá, impossível. Não apenas o movimento do fotografado, mas, também, a possibilidade do movimento da câmera, estão presentes de forma mais intensa. Em muitos casos, é esse, justamente, o aspecto da fotografia estenopeica que mais interessa aos fotógrafos/artistas.
183
Essas características de imprevisibilidade e descontinuidade colocam a fotografia estenopeica num caminho oposto ao dos valores clássicos de uma obra artística. Segundo Entler (1996), ainda se percebe, no senso comum, que o valor estético de uma obra está na habilidade e destreza do artista e em sua capacidade em controlar os resultados, garantindo que o artista alcance seus objetivos (ENTLER, 1996). A fotografia estenopeica, ao incorporar o acaso, não apenas como um acidente criativo, mas como uma opção estética, aproxima-se das posturas artísticas dos movimentos de vanguarda. Esses movimentos têm, no acaso, tanto uma base conceitual, que transformou os procedimentos artísticos, quanto um critério de garantia da originalidade da obra (ENTLER, 1998). As posturas experimentais de inúmeros artistas, que optam pela utilização da fotografia estenopeica, apresentadas até aqui, neste trabalho, podem demonstrar que o acaso, presente na prática da fotografia estenopeica, mais do que um acidente criativo, é uma opção estética de rompimento com a tradição figurativa e com os valores clássicos da obra de arte que invadem a prática da fotografia tradicional. A seguir, serão apresentados outros trabalhos de artistas que buscam, por meio do uso da fotografia estenopeica, uma maneira de questionar o meio fotográfico.
2.3.2
Produção Estenopeica Artística Contemporânea: outras possibilidades No contexto da fotografia contemporânea, as múltiplas linguagens e tecnologias de
produção de imagens convivem ao mesmo tempo. A cada novo recurso tecnológico se soma a bagagem de experiência adquirida no contato com diferentes meios, procedimentos e materiais. Ao mesmo tempo, esses novos meios provocam, nos anteriores, o questionamento de sua linguagem. A imagem digital trouxe essa inquietação para a fotografia (DIETRICH, 2003; MACHADO, 1997; SILVEIRA, 2003). Nas últimas décadas, o interesse de artistas e fotógrafos pela experimentação fotográfica tem crescido, inclusive, com o uso de processos fotográficos históricos, numa postura de pesquisa crítica da linguagem das imagens técnicas, de sua gramática e significação. A retomada de técnicas como a fotografia estenopeica, a fotografia sem câmera (fotograma, luminograma, quimograma) e outros processos históricos fazem parte desse movimento, que aborda os antigos meios com um novo olhar. Jochen Dietrich, numa discussão
184
sobre as imagens digitais, afirma que a experiência da diferença do digital está trazendo para a fotografia a possibilidade de se repensar. O surgimento de um novo meio não substitui os anteriores, mas transforma seu contexto, criando para eles uma nova configuração. “[...] quando surge um meio novo, não é nele próprio que observamos algo novo, é nos meios antigos à sua volta, nos quais reparamos mudanças e alterações. [...] Em conseqüência, o novo vai aparecer
primeiro no meio antigo” (DIETRICH, 2003, p. 6; p. 9). Diante disto, a fotografia estenopeica é retomada pelos artistas contemporâneos não só por suas características expressivas, mas, também, por seu potencial crítico, questionador dos conceitos que se estabelecem com relação à fotografia e sua ligação com o real. Para Dietrich: Atualmente, a supremacia da imagem digital libera a fotografia para uma pesquisa profunda acerca de suas condições, de suas capacidades, de suas leis, de suas diferentes linguagens; em suma, ela redimensiona as relações entre a realidade e o sujeito. Neste sentido, a câmera obscura [fotografia estenopeica], como sistema paralelo à fotografia com lentes, pode contribuir bastante para esta pesquisa ao pôr em questão todos os preconceitos que temos a respeito das características da fotografia e das mídias visuais em geral. (DIETRICH, 2000, p.140).
Neste contexto, o uso da câmera estenopeica tem sido retomado como uma opção de rompimento estético e conceitual com relação às práticas convencionais da fotografia tradicional com lentes. Não é, necessariamente, o resultado plástico das imagens que os artistas contemporâneos, que utilizam a fotografia estenopeica, têm procurado questionar e colocar em evidência, mas sim, o próprio ato fotográfico e os conceitos ontológicos que estão enraizados nas imagens fotográficas. Além dos trabalhos, com fotografia estenopeica, de alguns artistas apresentados no decorrer da dissertação (Thomas Bachler, Eric Renner, Paolo Gioli, Ilan Wolf, Marja Pirilä, Joaquin Casado, Jochen Dietrich, Jeff Guess, e dos brasileiros Dirceu Maués, Ana Angélica Costa, entre outros), neste momento, apresentam-se mais algumas propostas artísticas que, além do resultado plástico das imagens, procuram explorar a fotografia estenopeica em seu potencial crítico com relação aos conceitos da fotografia tradicional com lentes. A simplicidade da técnica e o baixo custo das câmeras viabilizam propostas de alguns artistas como Jochen Dietrich e Tarja Trigg, que transformam o trabalho de autor em obra coletiva distribuindo câmeras que serão utilizadas por diferentes pessoas ao redor do mundo. Essas
185
propostas se abrem para a participação do outro, de outra cultura, de outro lugar, às vezes até de outra época. Dietrich partiu da figura histórica do Infante de Sagres, Henrique o “Navegador”, para desenvolver um projeto iniciado em 1996 e sem prazo para se encerrar. Ele construiu 120 câmeras estenopeicas, utilizando os potinhos pretos que embalam os filmes 35 mm. Colocou-as em garrafas plásticas, à prova de água, juntamente, com um folheto contendo um texto explicando, em várias línguas, como tirar uma foto com aquela câmera e lançou-as ao mar. No texto, ele pede para que as pessoas que encontrarem as máquinas, tirem uma foto e devolvam a máquina pelo correio. As câmeras foram jogadas no Oceano Atlântico, na costa de Portugal, para retornar dias, meses, ou mesmo anos depois. Mais do que jogar cento e vinte câmeras no mar, este trabalho de Dietrich pode permitir conectar diferentes culturas, em diferentes épocas. Don Henrique, apesar de ser chamado de o “Navegador”, não realizou as viagens; ele mandou que outros fossem em seu lugar. Dietrich, da mesma forma, espera que outros enviem para ele, as imagens do além mar. Nas palavras de Dietrich: “mandar meus barcos para me trazerem imagens do além do horizonte (2000, p. 151) Até o ano de 2000, Dietrich recebeu de volta apenas quatro câmeras; uma delas sem imagem, mas, com uma carta de um pescador agradecendo e explicando que não fez a fotografia, pois utilizou a câmera para salvar seu dedo, cortado num acidente durante uma pescaria. O pescador utilizou a Câmera para guardar o pedaço do dedo e levá-lo para que fosse costurado novamente. No projeto “World Map of Solargraphs”, Tarja Trygg pretende traçar um mapa dos trajetos do sol em todas as regiões do globo terrestre. Para isso, ele conta com amigos e voluntários do mundo todo, que instalam as câmeras nas suas cidades e, depois, as enviam de volta para ele. Muitos dos voluntários (can-assistents) entram em contato com Trygg graças à rede mundial de computadores. Usuários da rede e aficionados por pinhole tomam conhecimento do projeto e se candidatam como voluntários. Trygg utiliza câmeras estenopeicas para obter imagens que registram o trajeto do sol durante longos períodos de tempo. Da mesma forma que Dominique Stroobant, na década de 1980 (Figura 94, p165), Trygg utiliza a técnica estenopeica para registrar o movimento aparente sol, durante períodos de três ou seis meses, nos intervalos entre os solstícios e equinócios. Nesses
186
intervalos, o sol traça um percurso que vai de uma curva mais próxima ao horizonte à mais afastada, ou vice-versa, dependendo da época do ano e do hemisfério. Em cada região, o sol traça um percurso diferente, dependendo das coordenadas geográficas de cada localidade (latitude e longitude). O projeto foi iniciado em maio de 2002, e continua por tempo indeterminado. As imagens do projeto podem ser vistas em uma página na internet, que reúne as várias “grafias solares”, em grupos separados por ano ou por região.
Figura 109: Tarja Trygg, Solargraphy, Helsinki, 2003 “Solargraph” com exposição de seis meses. Fonte: Homepage Solargraphy.131 A cada dia, fica registrado o trajeto do nascer ao por do sol. No final do período as várias linhas mostram o percurso do sol durante todo o período que o material sensível foi exposto. As falhas nas linhas brancas se devem à presença de nuvens. As fotografias são feitas utilizando papel fotográfico preto e branco como material sensível. Devido ao longo tempo de exposição, a imagem se forma no papel e é visível sem a necessidade de processamento químico. Se a imagem for processada quimicamente, o papel ficará completamente preto devido à exposição excessiva. Por outro lado, sem o processamento químico o papel continua sensível à luz. Ao retirar o material sensível da câmera, ele é digitalizado antes que a imagem desapareça por completo ao ser exposta à luz. O aparecimento das cores, mesmo com a utilização de papel P&B se deve também è exposição prolongada à luz.
∗ ∗ ∗ Outro artista que desenvolve trabalhos com câmera estenopeica, com um cunho bastante experimental, é Thomas Bachler. Em seu trabalho com câmeras estenopeicas, ele explora os conceitos e as características da fotografia, ora utilizando a boca como câmera (The Third Eye, década de 1980-90 - ver Figura 107 e Figura 108, p. 176), ora transformando veículos em
131
Disponível em: . Acesso em 10 mar. 2008.
187
grandes câmeras de orifício para registrar o trajeto entre diferentes cidades (bon voyage!, década de 1990 - Figura 110), ou mesmo, postando, pelo correio, pacotes transformados em câmeras que registram seu trajeto de uma cidade a outra (Travel Memoires - Figura 111, Figura 112 e Erro! Fonte de referência não encontrada., p.225).
Figura 110: Thomas Bachler, Bon Voyage!, 1998. Fonte: Bachler, 2008. As fotografia da série Bon Voyage! foram feitas em um caminhão reconstruído especialmente para funcionar como câmera estenopeica. As fotografias eram tiradas durante o percurso. Dependendo da quantidade de luz e da rota, uma foto pode registrar um percurso de até 100m. (BACHLER, 2008)
Figura 111 (esq): Thomas Bachler, From Nuernberg to Kassel, Travel Memories, 1985. Figura 112 (dir): Thomas Bachler, Pinhole Parcel, Travel Memories, 1985. Fonte: Bachler, 2008. Bachler transformou vários pacotes em câmeras estenopeicas e os enviou pelo correio de cidades diferentes. A exposição durou todo o trajeto. “[...] enviada como um pacote, a câmera traz consigo uma
188
longa exposição de seu caminho de volta pra casa. Tentar entender essas imagens, ou lê-las, é como ouvir palavras familiares ditas em uma língua completamente estranha.132
Na série Scenes of Crime (cenas do crime), caixas fechadas, com material sensível no seu interior, são transformadas em câmeras de orifício, quando atingidas por balas de revolver. Ao atirar na caixa, o furo da bala permite a entrada da luz que irá formar a imagem. “Apenas o tiro transforma a caixa em uma câmera e o lugar em cena do crime” (BACHLER, 2008, s.p.). (Figura 113)
Figura 113: Thomas Bachler, Scenes of Crime, 1995. Fonte: Bachler, 2008.
A Figura 114 mostra uma imagem feita por Bachler, seguindo a mesma idéia de Scenes
of Crime, utilizando o que ele chamou de “shot” pinhole câmera. Nas palavras de Bachler: Eu “abri” uma (ainda fechada) câmera estenopeica com um tiro de pistola. A minha fotografia foi feita pelo furo por onde a bala entrou. A bala atravessou a câmera e saiu por um buraco no lado de trás. É por isso que existe um furo exatamente onde meu olho deveria estar. Portanto, a fotografia foi feita com a ajuda da bala, que ao mesmo tempo destruiu a parte mais importante da imagem, meu olho. (RENNER, 2000, p. 170)133
132
Tradução livre do texto em inglês: “A pinhole camera, sent as a package brings a long exposure of its trip back home. The attempt to understand these pictures, to read them, is similar to trying to listen for familiar words in a completely alien tongue. (BACHLER, 2008) 133 Tradução livre de um depoimento feito por Bachler: I “opened” a (still closed) pinhole câmera with a pistol shot. The picture of me has been made through the entry hole of the bullet. The bullet went through the pinhole camera and left through a hole at the back side. That is why there is a hole exactly where my eye is supposed to be. The photograph has thus been made with the help of the bullet, which at the same time destroys the most important part of the picture, my eye. (RENNER, 2000, p. 170)
189
Segundo Renner (2000), não se trata de uma metáfora de auto-destruição, mas, uma metáfora para que os olhos se abram o máximo possível para uma visão artística.
Figura 114: Thomas Bachler, Shot in a Head, 1993. Negativo, papel fotográfico, 20 x 25 cm. Fonte: Bachler, 2008.
∗ ∗ ∗ A artista brasileira Neide Jallageas se interessa pela fotografia estenopeica, pelo questionamento sobre as construções espaciais e imagéticas que a técnica proporciona. Na série
Vestígios, ela utiliza a técnica da fotografia estenopeica para desenvolver um trabalho que explora o diálogo entre texto literário e texto visual, ao mesmo tempo em que discute a questão do gênero feminino. No projeto Realidades meramente superficiais, da série Vestígios, Jallageas interpreta a personagem “Laura” de um conto chamado A Imitação da Rosa, de Clarisse Lispector. Sete câmeras diferentes registram a personagem “Laura”, como se fossem sete olhares distintos. O resultado de cada câmera é completamente diferente, como se fossem sete personalidades.
190
Figura 115: Neide Jallageas, Realidades Meramente Superficiais, 2000. Instalação montada no Paço das Artes de São Paulo, em maio e junho de 2000. Fonte: Novaes, 2008
Figura 116: Câmeras usadas em Realidades Meramente Superficiais Fonte: Falieri, 2006. 134
Da esquerda para a direita o nome de cada uma das câmeras é: Cunhatã 2, Iraci, Minha Mãe, Laurinha, Maria Luiza, Paula, Carlotinha.
O trabalho com o personagem “Laura” foi iniciado durante estudos no grupo Clara Cena135, que trabalhava especificamente com câmeras de orifícios e textos de Clarice Lispector, e
134
Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2006.
135
O projeto Clara Cena foi concebido depois da oficina O Olhar e a Percepção de mundo com textos de Clarice Lispector, coordenado por Paulo Angerami e Neide Jallageas, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em 1998, com a proposta de criação de imagens através da intertextualização de imagens fotográficas com textos literários, utilizando de câmeras de orifício. Além de Jallageas e Angerami, participaram do projeto: Adriana Di Benedetto, Andréa Santana, Delci Rosa Sales, Isabella Carnevale, Marise Rangel e Wilma Yabiku.
191
culminou com o desenvolvimento de sua dissertação de mestrado136, da qual resultou a instalação fotográfica Realidades meramente superficiais. A primeira câmera construída foi “Laurinha”, que representava o olhar de Laura; em seguida Jallageas construiu “Carlotinha”, outro personagem do conto, amiga de Laura, mas, com uma personalidade completamente diferente. Com essas duas câmeras, ela desenvolveu o projeto I Movimento, também da série Vestígios. Jallageas construiu mais cinco câmeras, todas elas também com nomes femininos, representando cinco personalidades diferentes. Cada câmera com tamanho, distância focal e tamanho do orifício diferentes, para representar as diferentes personalidades, os diferentes olhares. Juntamente com Laurinha e Carlotinha, as câmeras foram utilizadas na instalação Realidades meramente
superficiais. Segundo Jallageas, a câmera de orifício funciona como uma metáfora do olhar humano: “uma particularidade do olhar, que me permite expressar que o olhar de cada um de nós é muito particular” (JALLAGEAS, apud NOVAES, 2008, s.p.).
.
.
.
.
Figura 117: Neide Jallageas, fotogramas de Realidades Meramente Superficiais, 2000. Fonte: Falieri, 2006. 137
136
VESTÍGIOS: a leitura fotografada, Ano de Obtenção: 2002. Mestrado em Ciências da Comunicação. Universidade de São Paulo, USP, Brasil. Orientador: Fredric Michael Litto.
137
Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2006.
192
Através da desmaterialização da imagem figurativa provocada pela contenção da luz e pela formação da imagem na câmera de orifício, Jallageas procura registrar em cada câmera uma das personalidades de “Laura”. “A partir da escuridão, a luz prenuncia um corpo de mulher e ensaia desenhos, volumes fragmentária. A latência das imagens secretas, íntimas, pulsa onde a luz silencia. A contenção da luz tem sido minha opção de linguagem e é fruto de um trabalho persistente e investigativo sobre técnica e poética visual, caracterizando-se, sobretudo, por longas exposições, tanto para o negativo, quanto para o positivo; o que acaba por provocar um estranhamento intencional ao espectador (JALLAGEAS, 2008, s.p.)”
∗ ∗ ∗ Paula Trope, artista plástica brasileira, trabalha com câmeras de orifício desde a década de 1980. No cenário brasileiro é uma das mais importantes artistas a utilizar a técnica. A opção pela câmera estenopeica faz parte de uma estratégia de estranhamento adotada em seus trabalhos. “A imagem produzida é turva, muitas vezes indefinida, com aberrações de perspectiva, contrariando as normas da boa imagem” (TROPE, 2004, p.128). Trope assume uma postura crítica diante do meio e de sua temática e afirma que seus trabalhos: Procuram sempre uma dimensão metalingüística, assumindo uma postura crítica em relação aos meios utilizados, seus critérios de representação, de memória, de subjetividade, de invenção. Isso define ainda o caráter híbrido dessas pesquisas, tratando-se de uma fotografia que não é bem fotografia ou de um cinema que não é bem cinema, oscilando entre objetividade e subjetividade, público e privado, documentação e ficção. (TROPE, 2004, p. 125)
Suas propostas procuram tratar da representação visual da realidade, discutindo questões que envolvem o indivíduo e a sociedade de forma documental, sem, no entanto, pretender uma representação objetiva do real. “A preocupação em não se prender na questão figurativa da imagem não deixa escapar o caráter de denúncia e crítica social presente no trabalho de Trope (GOVEIA, 2005).” Entre seus trabalhos está o projeto Contos de Passagem, trabalho experimental em vídeo, que lida com a questão da alteridade. Trata-se de um arquivo audiovisual, composto por depoimentos de crianças e jovens que vivem e trabalham nas ruas da cidade do Rio de Janeiro e que narram suas histórias. (Figura 118)
193
Figura 118: Paula Trope, Contos de Pasagem, 2000. Bruna, 10 anos. Still do vídeo “Contos de Passagem”, Rio de Janeiro, 2000/2001 – 2003. Fonte: Homepage AGRA Frame Class. 138 Em Contos de Passagem, a captação de imagem e som foi realizada com diferentes câmeras em diferentes formatos (super-8, VHS, high-8 e 16mm). Todas as câmeras foram alteradas internamente com a retirada das objetivas originais e a introdução de um orifício através do qual se formaria a imagem. Posteriormente o material foi transposto para a mídia digital, tratado e editado. A pequena definição e as imagens no contra luz fazem aparecer apenas as silhuetas dos entrevistados. (TROPE, 2004)
A questão da alteridade está presente também no projeto Os Meninos, da década de 1990 (Figura 119). Realizado em parceria com meninos de rua do Rio de Janeiro, o projeto propunha uma espécie de jogo: ao se deixar fotografar, a criança era convidada a participar fotografando qualquer objeto a sua escolha. A criança passa a ser, ao mesmo tempo, objeto da fotografia na qual era retratada e agente do processo criador, assumindo o papel de sujeito. “Dessa forma, os meninos foram também criadores, colaboradores do trabalho” (TROPE, 2004, 127)
138
Disponível em: . Acesso em: 3 fev. 2007.
194
Figura 119: Paula Trope, Os Meninos , 1993/1994. Muller, aos 8 anos, guardador de carros. Fotografia com câmera de orifício 136 X 107,6 X 3,8 cm. Fonte: Homepage Galeria Vermelho.139
∗ ∗ ∗ Inúmeros artistas usam a fotografia estenopeica associada a outros processos fotográficos históricos, ou manipulações químicas. Claudia Wornum registra paisagens com câmeras construídas com latas, alterando o processamento químico e usando solarização, para alterar as imagens, mas, ao mesmo tempo, mantendo algum registro figurativo.
Figura 120: Claudia Wornum, Eletric Montains, Walker Lake, Eastern Sierra Nevada, 1999. Fonte: Homepage Pinhole Visions.140 Na série Eletric Montains, Claudia Wornum trabalha com câmeras panorâmicas e filme cromo (positivo direto) em rolo. Para saturar as cores ela revela o filme positivo como se fosse um filme negativo colorido (cross-processing). Além disso, ela altera as temperaturas, os tempos do processamento, e a formulação dos químicos. Cada imagem é processada de uma forma diferente, aleatoriamente, fazendo com que os resultados dificilmente se repitam. Nas palavras de Wornum: “Meu fascínio é por buscar criar imagens ao mesmo tempo inesperadas e referenciais”. (WORNUM, 2005)
∗ ∗ ∗ 139
Disponível em: . Acesso em: 5 fev. 2007.
140
Disponível em: . Acesso em 25 set. 2005.
195
Um pouco antes da queda do Muro de Berlin, em novembro de 1989, Marcelo Kaiser registrou o evento utilizando a fotografia estenopeica. Ele transformou os buracos, que as pessoas fizeram no muro, em câmeras que registraram a visão de cada lado do muro. Numa imagem, Berlin Ocidental olhando para Berlin Oriental, na outra, o contrário, o lado Oriental olha para o Ocidental. De um lado, ele colocou uma placa com o orifício e do outro o material sensível; depois de fotografar um lado, ele invertia o orifício e o material sensível, para obter a imagem do outro lado do muro. Mais do que uma documentação, Kaiser fotografou a queda do muro de uma maneira diferenciada: através da câmera, cada lado do muro pôde olhar para o outro. “Como um símbolo do conflito entre o leste e o oeste, o muro se tornou permeável” (HIRNER, 2008, s.p.).
Figura 121: Marcus Kaiser, sem título, 1990. Fotografia estenopeica formato 5” x 7” Cópia em papel fotográfico 60 x 100 cm Fonte: Homepage Marcus Kaiser.141
Cada díptico (dupla de imagens) mostra as duas imagens feitas no mesmo buraco. Na imagem da esquerda a câmera olha para Berlin Ocidental; o lado direito mostra o olhar da câmera para Berlin Oriental. A irregularidade dos buracos se repete na imagem.
∗ ∗ ∗
141
Disponível em: . Acesso em 07 maio 2008.
196
O fotógrafo israelense, Ilan Wolff, dedica-se, desde 1981, à criação de imagens com a técnica da fotografia estenopeica. Inicialmente, ele reaproveitava caixas e latas velhas para construir suas câmeras. Recentemente, seu trabalho está voltado para a produção de imagens de grande formato. Para isso, ele usa um furgão, com o qual circula pela cidade de Paris, registrando cenas urbanas. Segundo ele, estar dentro da câmera permite que ele manipule e transforme a imagem enquanto ela se forma. Ele começou a produzir grandes imagens em 1992, quando transformou seu ateliê em Paris em uma câmera obscura onde viveu durante seis meses, e passou a registrar fotograficamente as cenas externas projetadas no seu interior. Enquanto fazia essas grandes imagens estenopeicas, ele começou a colocar objetos que estavam no interior do ateliê, inclusive seu próprio corpo, sobre a projeção da imagem, produzindo um misto de fotografia estenopeica e fotograma, que ele chamou de sténogramme.
Figura 122: Ilan Wolff, Concorde, Paris, 1997. Sténogramme, tamanho 168 x 127 cm Fonte: Homepage de Ilan Wolff.142 Wolff processa suas grandes imagens manualmente com esponja, esfregando os produtos químicos pedaço por pedaço, o que provoca grande irregularidade na revelação, além disso, ele altera os químicos e os padrões do processamento, como tempo e temperatura.
A experimentação sempre fez parte de seu trabalho: ele utiliza emulsão líquida para poder sensibilizar diferentes superfícies, transforma objetos diversos em câmera – como o 142
Disponível em: . Acesso em 20 mar. 2008.
197
pimentão citado na seção 2.2 (Figura 95, p. 169) ou, simplesmente, um buraco no chão. Ele altera o plano do material sensível e usa câmeras com diferentes formatos para obter imagens anamórficas; manipula o processamento químico e processa o material manualmente, provocando irregularidades e manchas nas imagens; faz fotogramas, utilizando apenas a luz da lua (lunagramme); ou, então, cria imagens, utilizando o calor do fogo e o frio do gelo, para obter formas pela alteração química no processo de revelação (calorigramme). (F295, 2008) ∗ ∗ ∗ As diferentes posturas estéticas desses artistas diante das imagens, utilizando uma técnica, aparentemente primitiva, rudimentar ou mesmo ultrapassada, diante da avançada tecnologia dos recentes aparatos produtores de imagens técnicas, são apenas mais alguns exemplos de que a fotografia estenopeica representa um meio alternativo às câmeras convencionais. Essas posturas configuram uma expectativa de busca de novas formas de expressão da imagem e desenvolvimento da criatividade dentro do processo fotográfico. Isso vem corroborar a hipótese desta dissertação, ao acreditar que a fotografia estenopeica permite aos artistas expressar suas inquietações e questionamentos com relação ao universo das imagens, principalmente as fotográficas; possibilitando, até mesmo, o rompimento com os conceitos e com as práticas da fotografia tradicional. Não apenas pelo resultado plástico das imagens, mas, principalmente, na mediação que se estabelece no ato de fotografar. Desde a construção da câmera até o processamento final da imagem, o fotógrafo pode dispor da técnica com a liberdade e a consciência necessárias para utilizar o meio na construção simbólica de imagens, que respondam às suas expectativas conceituais e formais, tirando partido das características intrínsecas ao processo. Assim, a partir das experiências desses e de outros artistas citados anteriormente, pode-se dizer que a fotografia estenopeica não é transparente. Ela não reproduz a realidade de forma neutra, é uma construção simbólica, que não pode ser separada das intenções de quem a utiliza, muito menos ser isolada da realidade social, na qual se insere. Desse modo, ela figura como um modelo para se pensar a técnica e a tecnologia. A técnica, como o processo da fotografia estenopeica em si, e a tecnologia, como o modo que a técnica é utilizada e a forma como ela responde aos anseios dos artistas, ambos – processo e artista - inseridos num complexo contexto sócio-cultural.
198
2.4
(DES)CONSTRUINDO A CAIXA PRETA [...] aparelhos são caixas pretas que simulam o pensamento humano, graças a teorias científicas, as quais, como o pensamento humano, permutam símbolos contidos em sua “memória”, em seu programa. Caixas pretas que brincam de pensar. Vilém Flusser143
A construção da câmera estenopeica permite uma intervenção concreta no processo de constituição das imagens. No momento em que o usuário escolhe a configuração da câmera e do material sensível, ele está interferindo, diretamente, nos resultados formais da imagem. Ele está, dessa forma, rompendo com os padrões tradicionais e comercialmente estabelecidos para o aparato fotográfico. Essa postura, desconstrutora com relação ao determinismo dos aparelhos fazse cada vez mais presente na postura estética dos artistas contemporâneos. Entre as inúmeras vozes que defendem essas propostas interventoras, a mais contundente é a de Vilém Flusser. (MACHADO, 2002b) Flusser (2002) discute a produção de imagens por meio da mediação de aparelhos de codificação, as quais ele chama de imagens técnicas. Ele questiona a aparente transparência dessas imagens, já que elas não são traduções automáticas do mundo físico, mas, materializam os conceitos que nortearam a construção dos aparelhos que as produzem. O usuário, ao utilizar esses aparelhos para obter as imagens técnicas sem conhecer seu funcionamento interno, atua como um “funcionário”, lidando apenas com as opções disponíveis e limitadas pelo programa da máquina. Para que esse “funcionário” consiga novas possibilidades, não previstas na construção do aparelho, ele precisa desvendar seu programa, ou seja, branquear a caixa. O processo de construção da câmera estenopeica faz com que o usuário, inevitavelmente, entre na caixa preta e desvende seu funcionamento, criando novas opções, subvertendo as funções previstas para os aparelhos fotográficos e, com isso, produzindo imagens que rompem com a estética da fotografia tradicional com lentes. Para compreender como a fotografia estenopeica pode desconstruir o aparato fotográfico, discute-se, a seguir, a idéia de “branqueamento da caixa preta”, de Flusser, e mostra-se
143
FLUSSER, 2002, p. 28.
199
a postura estética de alguns artistas com relação ao rompimento com as funções pré-determinadas pelos programas dos aparelhos.
2.4.1
Decifrando o Aparelho Na história da arte, até o século XIX, o que predominava eram os meios de produção
artesanal de imagens. Com a revolução industrial, além de máquinas capazes de ampliar a força física do homem, surgiu outra capaz de produzir imagens: a máquina fotográfica. A partir de então, as máquinas semióticas, como a máquina fotográfica, assim como outros aparatos mecânicos, acabam por seguir os mesmos princípios de produtividade e racionalidade, dentro da lógica capitalista de produção industrial em larga escala. Entretanto, o uso que o artista faz desses artefatos não segue necessariamente os mesmos princípios que seu uso por outros setores da sociedade, que os utilizam como meros bens de consumo. Uma das características e possibilidades da apropriação desses artefatos nas artes é, justamente, seu questionamento como mediação simbólica. Os artistas buscam decifrar seus códigos e romper com a lógica de sua produção, contrapondo-se ao determinismo das máquinas semióticas na busca por outras possibilidades, além daquelas previstas e programadas pelo projeto industrial.
Assim,
tentam
escapar
aos
objetivos
de
produtividade
da
sociedade
industrial/tecnológica. Nas palavras de Machado: Talvez até se possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funções e finalidades. (MACHADO, 2002b, p. 151)
O século XX é marcado pelo desenvolvimento tecnológico, e junto com esse desenvolvimento, a idéia de que a tecnologia determina a vida social, ao ser responsável pelo progresso e pelo desenvolvimento da sociedade. Recentemente, os rápidos avanços tecnológicos podem levar à falsa idéia de que se é privilegiado por viver num momento especial: a era das novas tecnologias, das “tecnologias de ponta”. Na verdade, pode-se dizer que sempre foi assim, artistas e cientistas sempre usaram “tecnologia de ponta” para desenvolver suas obras, cada época com seus meios. Basta rever a história e os estudos de Leonardo da Vinci, Platão, Sócrates, ou Erastótenes,
200
que calculou a circunferência da Terra 200 anos antes de Cristo. Erastótenes mediu a sombra projetada por um bastão, fincado no chão, em Alexandria e comparou com a medida da sombra de um bastão, idêntico, fincado numa cidade distante - Cirene, exatamente no mesmo horário. Com a inclinação das sombras, e a distância entre as cidades, por meio de uma regra de três, ele chegou à medida da circunferência da Terra com apenas 15% de erro com relação ao que se consegue medir hoje com a mais “alta tecnologia”. (TAS, 2000) Álvaro Vieira Pinto diz que “Toda época teve as técnicas que podia ter. A humanidade, especialmente em tempos mais próximos, sempre acreditou em cada momento estar vivenciando uma fase de esplendor” (PINTO, 2005, p. 234). Para ele a idéia de “era tecnológica” tem um caráter marcadamente ideológico: O conceito de “era tecnológica” encobre, ao lado de um sentido razoável e sério, outro tipicamente ideológico, graças ao qual os interessados procuram embriagar a consciência das massas, fazendo-as crer que têm a felicidade de viver nos melhores tempos jamais desfrutados pela humanidade. (PINTO, 2005, p. 41)
Da mesma forma, a arte sempre foi produzida com os meios de seu tempo, (MACHADO, 2000a). As discussões mais recentes se concentram em estudar a inserção das novas tecnologias no campo das artes - a era multimídia, a convergência e hibridação dos meios, a interação da arte com a ciência e a tecnologia - numa nova modalidade, a “arte tecno-científica”. Segundo Machado, “o atravessamento da arte pela tecnologia está permeado de acontecimentos cuja natureza é muito mais complexa e muito mais problemática do que querem nos fazer crer apocalípticos e integrados” (MACHADO, 1996, p. 23). Por isso, é necessário todo o cuidado ao discutir esse assunto, já que, não se trata apenas de desconsiderar os avanços tecnológicos ou desprezar as manifestações artísticas recentes que trabalham com esses novos meios, mas contemporizar o atual deslumbramento tecnológico que faz com que seja necessário o uso sempre crescente de “novas tecnologias” para dar conta de obras criativas. (TAS, 2000). Existe, sem dúvida, muito de fetiche na atual relação do homem com as máquinas. À medida que estas últimas se tornam cada vez mais atraentes e cada vez mais “amigáveis” [...] o seu efeito tende a se tornar sedutor, talvez mesmo lisérgico, sobretudo a um público desprovido de inquietações intelectuais e de um lastro cultural mais amplo. [...] A multiplicação do aparato tecnológico à nossa volta pode nos dar a falsa impressão de que estamos experimentando algo novo, quando na verdade nós podemos não estar experimentando coisa alguma. (MACHADO, 1996, p. 13)
201
Ou como comenta Couchot: “Uma obra mais sofisticada tecnologicamente não é uma obra mais artística” (COUCHOT, 1997, p. 141). Esse deslumbramento, provocado pela crença de que se vive um momento especial, com uma explosão criativa possibilitada por meios cada vez mais modernos colocados à disposição dos usuários pela indústria da eletrônica e a corrida por avanços e inovações, muitas vezes, impede atitudes mais questionadoras e criativas por parte dos usuários. Algumas reflexões a partir das idéias de Vilém Flusser (2002) e de Edmond Couchot (1997) ajudam a pensar na importância e na necessidade do artista em desvendar os códigos e conceitos que orientaram a construção e que estão inscritos nas máquinas e aparelhos, combatendo dessa forma, a automação das “máquinas semióticas”. Assim, a postura de rompimento com a prática dos meios tecnológicos por parte de alguns artistas pode ser vista como uma possibilidade de questionamento desses mesmos meios. Ao não se submeter às determinações desses aparatos técnicos, atuando apenas como um “funcionário”, encarregado de ativar os mecanismos previstos para que as máquinas cumpram o programa para o qual foram projetadas, esses artistas estão agindo de forma crítica e criativa: numa discussão que vai para além do uso, questionando a atitude passiva de somente “usar” esses mecanismos, sem a consciência das transformações sociais e artísticas desencadeadas por eles e que implicam uma nova maneira de pensar o mundo e se relacionar socialmente. Flusser discute em seu livro Filosofia da Caixa Preta de 1983144 algumas questões relativas à produção de imagens por meio da mediação de aparelhos de codificação, as quais ele chama de imagens técnicas. Para Flusser, as imagens têm o propósito de representar o mundo, são mediações entre homem e mundo. As imagens técnicas, por sua vez, são símbolos abstratos, já que, nos aparelhos semióticos como a câmera fotográfica, conceitos científicos (óptica, química) são transcodificados em imagens, ou seja, “o que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo” (FLUSSER, 2002, p.14). Flusser alerta justamente para o perigo dessa aparente condição de transparência das imagens técnicas, que leva a crer que elas não precisam ser decifradas, já que seu significado se imprime de forma automática. A gênese 144
Em língua portuguesa, as edições editadas no Brasil são: Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo, Hucitec, 1995 e Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2002. A versão da mesma obra editada em Portugal tem o título: Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D’água, 1998, com apresentação de Arlindo Machado.
202
automática, a indicialidade fotográfica e a fundamentação científica de seu processo fazem com que as imagens não sejam percebidas como símbolos, e, portanto, não precisem ser decifradas para captar-lhes o significado. Aparentemente, o significado das imagens técnicas se imprime de forma automática sobre suas superfícies, como se fossem impressões digitais onde o significado (o dedo) é a causa, e a imagem (o impresso) é o efeito. [...] O mundo a ser representado reflete raios que vão sendo fixados sobre superfícies sensíveis, graças a processos óticos, químicos e mecânicos, assim surgindo a imagem. (FLUSSER, 2002, p.13-14)
Por seu caráter aparentemente não simbólico e objetivo, as imagens técnicas são percebidas pelo observador como se fossem janelas e não imagens. “O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia nos seus próprios olhos” (FLUSSER, 2002, p. 14). Essa aparente transparência das imagens técnicas parece dispensar o observador do deciframento dos códigos presentes nessas imagens. Nas imagens tradicionais como na pintura, a presença da subjetividade humana está clara com a presença do artista, que codifica a imagem ao elaborar os símbolos que serão transferidos para a superfície da imagem. Ao olhar para as imagens técnicas, é como se o observador eliminasse o conjunto “aparelho-operador” que se interpõe entre a imagem e o significado. Isto se deve, justamente, à complexidade desse conjunto e ao desconhecimento de todo o processo codificador que se passa no interior do aparelho. (FLUSSER, 2002). As máquinas contemporâneas de produção simbólica são construídas com base na definição semiótica e tecnológica da fotografia, e Flusser, em sua obra, aborda a fotografia com base, sobretudo, em conceitos da cibernética, utilizando-a como modelo básico para analisar o modo de funcionamento de todo, e qualquer, aparato tecnológico ou mediático. Ele considera a fotografia o primeiro e mais simples exemplo de imagem técnica e toma a câmera fotográfica como modelo para a compreensão essencial de todos os aparelhos, desde os maiores, como os “aparelhos administrativos”, até os menores como os chips. Segundo Flusser: aparelhos são caixas pretas que simulam o pensamento humano, permutam símbolos contidos em sua “memória”, em seu programa. Caixas pretas que brincam de pensar. O aparelho fotográfico é o primeiro, o mais simples e o relativamente mais transparente de todos os aparelhos. O fotógrafo é o primeiro “funcionário”, o mais ingênuo e o mais viável de ser analisado. (FLUSSER, 2002, p. 28)
203
Ao buscar uma definição para “aparelho”, Flusser considera que, os aparelhos são instrumentos que “informam, simulam órgãos, recorrem a teorias, são manipulados por homens e servem a interesses ocultos” (FLUSSER, 2002, p. 21-22). Mas, mais do que objetos trazidos da natureza pelo homem, esses instrumentos passam a se chamar “máquinas” por serem técnicos ao recorrerem a teorias científicas na sua concepção. Assim, o que caracteriza os aparelhos é o fato de estarem programados com funções inscritas previamente por aqueles que os produziram, constituindo as estruturas de determinadas culturas e conferindo, a eles, parte de suas características ideológicas. Atualmente, são os aparelhos que exercem a função de produzir, manipular e armazenar símbolos. Considerado sob tal prisma, o que caracteriza o aparelho fotográfico é o fato de estar programado. “As superfícies simbólicas que produz estão, de alguma forma, inscritas previamente (‘programadas’, ‘pré-escritas’) por aqueles que o produziram” (FLUSSER, 2002, p. 23). Assim, para Flusser, as fotografias são realizações de algumas das potencialidades inscritas no aparelho e o fotógrafo manipula o aparelho, a fim de descobrir suas potencialidades, novas possibilidades de utilização que, porventura, estejam “ocultas” em seu programa (FLUSSER, 2002). (Figura 123) Para se relacionar com o aparelho, o usuário deve estar consciente de toda a codificação cultural e ideológica que está por trás de sua concepção e de sua construção. Se, ao invés disso, ele se relacionar com o aparelho de forma transparente, como se ele fosse apenas uma prótese, sem buscar entender, interferir, ou ao menos compreender todo o complexo processo que está por trás de seu programa, ele estará atuando simplesmente como um “funcionário” que aperta botões e se submete às limitações determinadas pelo projeto industrial da máquina. Como “funcionário”, o usuário utiliza esses aparelhos sem conhecer seu funcionamento interno e lida apenas com as opções disponíveis e limitadas pelo programa da máquina. Ser “funcionário” significa submeter-se ao aparelho e a todo o complexo código que está por trás de sua construção. Assim, a intenção do aparelho se sobrepõe à intenção do fotógrafo, e a técnica se sobrepõe à imagem, como adverte Machado ao comentar as imagens técnicas: Por “imagens técnicas” designamos em geral uma classe de fenômenos audiovisuais em que o adjetivo (“técnica”) de alguma forma ofusca o substantivo (“imagem”), e que o papel da máquina (ou seja lá qual for a mediação técnica) se torna tão determinante a ponto de muitas vezes eclipsar ou
204
mesmo substituir o trabalho de concepção de imagens por parte de um sujeito criador. (MACHADO, 1997, p. 224)
Ao manipular o aparelho (câmera fotográfica), o fotógrafo trabalha com os conceitos pré-estabelecidos em seu programa. A codificação científica e ideológica que está por trás da construção do aparelho determina a imagem final. Ao fotografar, o usuário tem que adaptar suas intenções aos conceitos inscritos no aparelho para que ele transforme esses conceitos em imagem. “O aparelho foi programado para isso. As fotografias são imagens de conceitos, são conceitos transcodificados em cenas”. (FLUSSER, 2002, p. 32).
Figura 123: Robert Doisneau, Dancers, s.d. Fonte: Davidhazy, 2008.145 Nesta imagem, Robert Doisneau, tira partido da distorção naturalmente provocada por obturadores de plano focal quando se fotografa objetos em movimento. Um obturador de plano focal funciona como uma cortina que se abre para a passagem da luz no momento da tomada da foto. A partir de determinada velocidade (que varia conforme o modelo do obturador), ao invés de uma abertura total, se abre apenas uma estreita faixa que se movimenta varrendo toda a extensão do fotograma, como um escaner. A distorção da imagem é causada pela movimentação da imagem no plano do filme em relação à direção do movimento de “varredura” da cortina. Assim, uma porção da imagem é exposta com uma pequena fração de tempo de diferença com relação à outra (ADAMS, 1996). Na foto, Doisneau reduz intencionalmente a velocidade do movimento de varredura para acentuar a distorção, e fotografa um casal dançando sobre uma plataforma circular que se movimenta durante o registro da imagem. Há uma diferença de tempo entre o instante do registro da porção superior da imagem e da inferior. Nesse intervalo de tempo o casal continua em movimento, causando o efeito em espiral da imagem. (DAVIDHAZY, 2008)
145
Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2008.
205
Apesar do programa do aparelho apresentar um número limitado de possibilidades, Flusser admite que as possibilidades fotográficas são praticamente inesgotáveis: Há regiões na imaginação do aparelho que são relativamente bem exploradas. Em tais regiões, é sempre possível fazer novas fotografias: porém, embora novas, são redundantes. Outras regiões são quase inexploradas. O fotógrafo nelas navega, regiões nunca dantes navegadas, para produzir imagens jamais vistas (FLUSSER, 2002, p. 32).
Machado cita o fotógrafo Andréas Müller-Pohle, cujo trabalho foi reconhecido, pelo próprio Flusser, como um exemplo de como o gesto do fotógrafo pode se desviar do jogo programado das tecnologias da câmera e da película (MACHADO, 1996). (Figura 124)
Figura 124: Andreas Müller-Pohle , Transformance 3590, 1980. Fonte: Revista European Photography.146 No projeto Transformance (transformação/performance), desenvolvido de 1979 até 1982, Pohle fez um total de 10.000 fotografias com a câmera em movimento e sem olhar pelo visor da câmera (blind camera). Num ato de fotografar determinado deliberadamente pelo acaso. O termo Transformance designa uma intervenção ativa, mas óticamente indiferente, na continuidade do tempo e do espaço. (AMELUNXEN, 2008)147 Ao comentar o livro de Müller-Pohle com as imagens do projeto Transformance, Flusser afirma que Pohle rompe com as convenções impostas ao processo de fotografar, que determina uma simultaneidade entre o ato de olhar e disparar o obturador numa seqüência específica. Suas fotos são feitas “cegamente” e a “mão livre”. São fragmentos de milhares de futuros e milhares de possibilidades que só se fazem presentes e reais com uma interpretação posterior do autor. Ao
146 147
Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2008.
Tradução livre do texto em inglês: “The decision was to take a total of 10,000 photographs, in motion and without looking through the viewfinder. The photographic act is thus deliberately determined as an act of chance, and chance itself is caught between movement and photographic fixing. The neologism Transformance (transformation/performance) designates the active but optically impassive intervention in the space-time-continuum (AMELUNXEN, 2008)”.
206
invés de hesitar ou calcular o momento exato de disparar o botão, Pohle dá a si mesmo e ao acaso uma chance, sem preconceitos. Para Muller-Pohle, é no acaso que está a liberdade. (FLUSSER, 1993) 148
Para que o usuário possa conseguir novas possibilidades, não previstas na construção do aparelho, ele precisa desvendar seu programa, penetrar no interior da caixa preta a fim de buscar suas potencialidades escondidas. Flusser reconhece que essa busca por desviar o aparelho de sua função programada, evitando a redundância e favorecendo a invenção, ocorre de forma intensa no campo das artes experimentais. Desvendando o programa do aparelho, subvertendo as funções da máquina, os chamados fotógrafos experimentais “tentam, conscientemente, obrigar o aparelho a produzir imagem [...] que não está em seu programa” (FLUSSER, 2002 p. 76). Entretanto, não tarda muito para que as subversões no programa do aparelho sejam incorporadas a ele: Na sua situação-limite, a relação entre usuário e aparelho aparece como um jogo, em que o primeiro usa toda a sua astúcia para submeter a intenção do aparelho à sua própria, enquanto o segundo trabalha no sentido de resgatar as descobertas do primeiro para os seus próprios propósitos. [...] mais cedo ou mais tarde, o universo tecnológico acabará por incorporar as descobertas e os desvios dos artistas para os seus fins programados. Toda invenção, toda rota nova descoberta será acrescentada ao universo de possibilidades do(s) aparelho(s), de modo que se pode dizer que, no fim das contas, as máquinas semióticas se alimentam das inquietações dos artistas experimentais e as utilizam como um mecanismo de feed-back para o seu contínuo aperfeiçoamento. (MACHADO, 2002b, p. 151)
Ainda sobre a afirmação de Flusser, a respeito da limitação e conseqüente esgotamento das possibilidades das máquinas e programas, Arlindo Machado propõe que esses limites estão em contínua expansão. Ele considera que, para produzir um trabalho criativo, o artista não precisa necessariamente esgotar as possibilidades de um meio, mas buscar redefinir a forma de entender e de lidar com esse meio, reinventando a maneira de se apropriar das máquinas, subvertendo suas funções programadas. O artista da era das máquinas é, como o homem da ciência, um inventor de formas e procedimentos; ele recoloca permanentemente em causa as formas fixas, as finalidades programadas, a utilização rotineira, para que o padrão esteja sempre em questionamento e as finalidades sob suspeita. (MACHADO, 1996, p. 15)
148
Tradução livre do texto em inglês de Vilém Flusser sobre o trabalho Tranformance de Andreas Muller-Pohle. (For
Muller-Pohle, chance is the ground on which freedom stands.)
207
Pode-se dizer sem dúvida que, entre os artistas, principalmente entre os experimentais, o estranhamento, as inquietações e incertezas encontram um espaço bem maior do que entre o grande número de usuários leigos, público-alvo do mercado industrial, para quem, normalmente, são produzidas essas máquinas. Em alguns casos, o questionamento constante com relação aos meios tecnológicos, por parte de alguns artistas experimentais, os leva a um claro afastamento do projeto inicial desses aparelhos. Esses artistas reapropriam-se dos meios tecnológicos, colocando-os a serviço de suas propostas estéticas. Desviar-se do caminho esperado para a utilização desses artefatos é, ao mesmo tempo, reafirmar que eles não são ferramentas inertes e autônomas e perceber que essa mediação é extremamente complexa, e depende profundamente de uma postura consciente e crítica diante desses meios. Dentre os inúmeros artistas que apresentam essas posturas interventoras com relação aos aparelhos e seus programas, destaca-se Andréas Muller Pohle, já citado anteriormente (Figura 124); as experiências de Frederic Fontenoy (Figura 125, p. 208) e do artista e pesquisador Andrew Davidhazy, que subvertem o funcionamento da câmera fotográfica para obter anamorfoses de tempo e espaço; as experimentações do vídeo-artista Nam June Paik, com o aparelho de TV e seus elementos (Figura 127), e, também, o trabalho The Fourth Dimension (1988) do videoartísta Zbigniew Rybczynski, que utiliza o computador para desconstruir a imagem eletrônica do vídeo (Figura 128, p.210), gerando anamorfoses que partem da mesma lógica de decomposição do tempo e do espaço dos retratos desdobrados de Davidhazy (Figura 126, p. 208) e da imagem distorcida pelo obturador de plano focal de Doisneau (Figura 123, p. 204). Estes são apenas alguns, entre os inúmeros exemplos que poderiam ser citados, de experiências estéticas de artistas que se desviam de tal forma do projeto tecnológico original, reinventando a maneira apropriação da tecnologia, que se pode dizer que estão reinventando o meio. (MACHADO, 2002b).
208
Figura 125: Frederic Fontenoy, Métamorphose, 1988-1990. Fonte: Homepage de Frederic Fontenoy.149 Frederic Fontenoy utiliza o mesmo princípio de distorção provocada pelos obturadores de plano focal, associado a uma exposição lenta e ao movimento muito rápido dos corpos, para criar imagens que desmaterializam as figuras. “As criaturas de Fontenoy são, na verdade, seres elásticos, aéreos, de formas estilizadas, que evoluem na paisagem como serpentes rastejates” (MACHADO, 1993, 104)
Figura 126: Andrew Davidhazy, Peripheral Portrait de Bruce Made, c. 1967. Fonte: Homepage do Rochester Institute of Technology.150 Andrew Davidhazy provoca o que Arlindo Machado chama de “anamorfose cronotópica”. Ele parte das distorções provocadas por obturadores do tipo plano focal, como a utilizada para na fotografia de Doisneau (Figura 123, p.204), para desenvolver um dispositivo que ele chamou de “slit-scan” que altera o funcionamento do mecanismo do obturador da câmera fotográfica. Através de uma pequena fenda a imagem será registrada durante um determinado intervalo de tempo, como se fosse um escaner, que “varre a imagem”. Ao mesmo tempo, o mecanismo de avanço da câmera permite que o filme avance ininterruptamente. Durante o intervalo de tempo do registro (varredura), a câmera pode se deslocar em torno do objeto, ou ao contrário, o objeto pode girar em torno de seu próprio eixo, permitindo o registro de todas as suas faces de maneira contínua, num mesmo suporte bidimensional. “No caso das fotos de Davidhazy, o que se tem é, simultaneamente, uma anamorfose de tempo e de ponto de vista: de tempo porque o que se registra na foto é o desenrolar no tempo de uma ação de revolução diante da câmera; de ponto de vista porque o que se acumula no tempo é o conjunto de todos os ângulos de visualização de uma figura (MACHADO, 1993 p. 105).”
149
Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2008.
150
Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2008.
209
Figura 127: Nam June Paik, TV Magnet, 1965. Fonte: Página do Nam June Paik Studios. 151 Paik intervém na maneira estabelecida convencionalmente para o funcionamento do aparelho de TV. Ele procura alterar as imagens dos televisores para mostrar que a imagem da televisão não é algo imutável e pode ser transformada. No trabalho TV Magnet de 1965, Paik utiliza um poderoso imã que é colocado nas laterais do aparelho que distorce completamente, objetiva e subjetivamente, as imagens da TV. (SANTOS, 2007, p. 136). Esta experiência não trata de um simples gesto de distorcer imagens, mas representa as primeiras imagens não figurativas ou abstratas da televisão, sintetizadas através do tratamento eletrônico do fluxo de partículas no iconoscópio e, o que é o mais importante, sem a utilização de uma câmera. (MACHADO, 1997b, p.119)
151
Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2008.
210
Numa referência explícita à dimensão do tempo da relatividade de Einstein, neste trabalho Rybczynski altera a seqüência das linhas a partir das quais se forma cada quadro da imagem, provocando uma hipertrofia de sua dimensão temporal. A imagem foi concebida segundo o padrão do vídeo analógico com a exposição de 30 quadros (frames) por segundo. Cada frame é composto por 480 linhas horizontais. Após a gravação normal, com o auxílio de um computador, ele visualiza a imagem em 480 linhas e a reproduz atrasando cada frame em uma linha, ou seja: a primeira linha do novo frame é uma cópia da primeira linha do quadro original; a segunda linha desse mesmo frame é uma cópia da segunda linha do segundo quadro original, e assim sucessivamente. Assim, a última das 480 linhas desse novo frame é a última linha do 480º quadro da gravação original. Ou seja, se a primeira linha aconteceu no instante 0, a de número 480 aconteceu 16 segundos depois. Em cada quadro, as diferentes linhas de varredura representam diferentes estágios do movimento do objeto, uma vez que foram obtidas de diferentes quadros da fita original. “Dessa forma, Rybczynski dá expressão visual ao deslocamento que ocorre entre uma linha e outra, fazendo o tempo desenrolar-se no espaço e obtendo, como resultado plástico, figuras elásticas, que se contorcem em espirais ao redor de um ponto de referência ou ao redor de si mesmas” (MACHADO, 1993, p. 115). Pode-se dizer que Rybczynski inscreveu na linguagem de captação do tempo do vídeo, a mesma lógica de “anamorfose cronotópica” que Doisneau e Davidhazy inscreveram nas imagens obtidas pela câmera fotográfica da Figura 123, p. 204 e Figura 126, p. 208.
Figura 128: Zbigniew Rybczynski, The Fourth Dimension, 1988. Fonte: Homepage Zbig Vision; Homepage Eventos culturales de Mar del Plata.152
No caminho inverso, alguns artistas apropriam-se de artefatos, cujo projeto inicial prevê sua utilização como bens de consumo, e os transforma em máquinas semióticas. Questionam desta forma, não só a determinação industrial imposta aos artefatos em geral, mas, também, os pré-conceitos com relação às máquinas de produção simbólica. Rompem, assim, com a concepção tradicional de como deve ser uma câmera fotográfica. (Figura 129) 152
Disponível em: ; . Acesso em: 19 mar. 2008.
211
Figura 129: Steve Pippin, Laundromat-Locomotion (Horse & Rider) 1997. Doze fotografias preto e branco, 76,2 x 76,2 cm. Fonte: Galeria TATE Britain, Londres. 153 Em Laundromat-Locomotion, Steven Pippin (1960- ) inspira-se no trabalho de Muybridge e transforma uma série de 12 máquinas de lavar roupas de uma lavanderia em máquinas fotográficas para registrar o movimento de pessoas e animais. Em seu trabalho, ele transforma objetos de uso comum (um vaso sanitário de um trem, uma máquina de lavar) em câmera escura. Sua preocupação não é com o resultado final, mas com a possibilidade de criar imagens que experimentem diferentes percepções, utilizando as características básicas do processo fotográfico que resultem em imagens, por vezes, indecifráveis e misteriosas, e, ao mesmo tempo, tirando partido da própria estrutura de funcionamento desses aparatos. No caso das máquinas de lavar, por exemplo, Pippin as transformou em câmeras de orifício com o obturador na tampa frontal. O material fotográfico é colocado no interior da máquina, como numa câmera convencional, e após o registro da imagem, o próprio programa da máquina se encarrega do processamento químico da fotografia: depois de exposta, o revelador é introduzido na máquina pelo compartimento de sabão e a máquina é ligada; o ciclo de “lavagem a quente” é ajustado pela temperatura de revelação; na etapa seguinte, os programas de enxágüe se encarregam do banho de fixação e da lavagem; e por fim, o material passa pela etapa de secagem. Terminado o processo a imagem está pronta e seca. (RENNER, 2000; DARR, 1998)
Essas atitudes, que buscam enxergar os meios técnicos por um outro viés, que não o convencionalmente esperado pelo projeto industrial, mostram a existência da possibilidade de desvio dos padrões, de intervenção na construção das políticas e das práticas tecnológicas. Consciente da mediação que se estabelece entre aparato técnico e usuário, assim como de todas as implicações que estão por traz da concepção e da utilização destes aparatos, o artista deixa de ser 153
Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2008.
212
somente um “funcionário”. Percebe, assim, sua responsabilidade na construção da mediação, que implica em sua responsabilidade na construção das suas formas de percepção da realidade e de convivência em sociedade e, conseqüentemente, na produção das relações sociais. Ao considerar que a tecnologia está nos artefatos, ou mesmo que esses artefatos são neutros e transparentes, está-se compactuando com as determinações impostas a eles e aceitando a posição de espectador passivo, ou, segundo as colocações de Flusser, a posição de “funcionário”. Aos artistas contemporâneos, fortemente envolvidos pelas mediações técnicas, se coloca o desafio de tirar partido desses meios e, ao mesmo tempo, romper com o determinismo tecnológico embutido na concepção desses aparatos, ao produzir trabalhos criativos, penetrando no interior da caixa preta e dominando os complexos códigos de seu interior para fugir da padronização da escala industrial. Retomando Flusser, cabe ressaltar que, por meio da arte, com estratégias que se dirigem contra o aparelho, os artistas experimentais estão tentando, mesmo inconscientemente, dar resposta ao problema da liberdade em um contexto dominado por aparelhos. (FLUSSER, 2002)
2.4.2
Estenopeica: Dentro da Caixa Preta A partir do exposto, no decorrer deste segundo capítulo, sobre as características da
formação da imagem, as diferentes alternativas construtivas da câmera e suas possibilidades expressivas, pode-se perceber que a fotografia estenopeica permite uma aproximação do aparelho fotográfico. A “simplicidade” da técnica da fotografia estenopeica permite que o usuário desvende o processo de formação da imagem. Ao compreender o funcionamento de uma câmera “básica” como uma pequena caixa quadrada com um único furo oposto ao material sensível - ele pode, aos poucos, ir modificando as características da câmera e do material sensível, experimentando e complexificando o processo de forma consciente. Essa compreensão não requer os conhecimentos profundos de um profissional experiente. Muito pelo contrário, o aspecto lúdico e a liberdade infantil da experimentação levam a resultados que, muitas vezes, fotógrafos experientes não conseguem alcançar, simplesmente porque estão de tal forma comprometidos com as questões formais e técnicas, convencionalmente impostas à fotografia, que não se permitem experimentar.
213
No processo de construção câmera, o usuário passa a conhecer seu funcionamento interno, o que significa que, ao invés de atuar como um “funcionário”, que lida apenas com as opções disponíveis e limitadas pelo programa da máquina, o usuário, literalmente, constrói a câmera. O usuário/construtor não se submete ao programa do aparelho, ao contrário, ele é quem programa o aparelho. Dominando os códigos que estão por trás da construção da imagem, a intenção do fotógrafo passa a ser fundamental para a construção da imagem. Assim, a fotografia estenopeica se apresenta como uma possibilidade de branqueamento da caixa preta fotográfica, desvelando-se por completo para o mais ingênuo dos usuários. Entretanto, para que o artista/fotógrafo possa tirar partido das possibilidades expressivas da câmera estenopeica, ele precisa se permitir experimentar e buscar romper com as “amarras” da fotografia tradicional. Na câmera estenopeica, a postura criativa do artista fica evidenciada, na medida em que ele reinventa o artefato fotográfico, subvertendo suas funções, ao mesmo tempo em que participa mais ativamente das etapas de realização da imagem. Os “limites” não estão no programa do aparelho, mas na postura do usuário ao utilizar a técnica. Cada câmera é única. O usuário pode construir o aparelho de acordo com as suas necessidades. É ele quem define suas potencialidades. Ele não precisa submeter-se às limitações impostas pelo mercado ao aparato fotográfico, ainda que existam câmeras estenopeicas, já prontas, disponíveis para compra. O usuário tem condições de construir uma câmera capaz de produzir imagens, cujo resultado plástico/estético vá ao encontro de suas expectativas e anseios. Reproduzindo suas inquietações e suas idéias de acordo com sua forma de ver o mundo. Ele pode construir uma câmera, buscando aproximar-se das características homológicas da fotografia tradicional: com uma perspectiva perfeita e um nível de resolução ainda maior do que o da fotografia tradicional. Isso, porque, como visto anteriormente, a formação da imagem através do orifício, apesar de não apresentar a mesma qualidade de foco da fotografia com lentes, permite uma imagem com definição do primeiríssimo plano, ao plano mais distante. (Figura 74, p. 152) Da mesma maneira, ele pode construir uma câmera de modo a obter imagens que questionem ou até mesmo rompam com as características formais e estéticas da fotografia tradicional, ao mesmo tempo questionando os conceitos ontológicos que se colocam a respeito da
214
fotografia, principalmente com relação à objetividade e à homologia de suas imagens. (Figura 49, p. 138; Figura 60, p. 142; Figura 62, p. 143; Figura 80, p. 155; Figura 120, p. 194, entre outras) Na medida em que subverte o padrão convencionalmente imposto ao aparato fotográfico, o artista tem condições de utilizar a fotografia estenopeica como uma alternativa de expressão criativa. Ele não depende mais das alternativas limitadas, oferecidas ou impostas pela indústria fotográfica. A opção estética do artista já se expressa no momento em que ele constrói sua câmera, criando um “sistema” subjetivo, expressivo e único de constituição de imagens. Podese dizer que, ao mesmo tempo em que o artista constrói a caixa preta – câmera estenopeica, ele a está desconstruindo - na concepção de Flusser. No próximo capítulo, serão observadas algumas imagens para demonstrar como a fotografia estenopeica permite ao usuário obter imagens com diferentes características formais e conceituais, de acordo com suas opções estéticas e sua postura interventora ou não no processo fotográfico.
215
3
A P O N TAM E N T O S
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. [...] porque este é o dia de ver não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos. José Saramago
216
Este capítulo apresenta alguns apontamentos, em forma de uma breve exposição escrita, das impressões sobre um olhar para as imagens estenopeicas completamente contaminado pelo envolvimento com o objeto de estudo. Na impossibilidade de estabelecer o distanciamento necessário para fazer uma análise “fria”, isenta de julgamentos pessoais, e despida de qualquer conceito ou pré-conceito acerca da fotografia, opta-se, neste momento, por lançar um olhar para a imagem que, além de “ver”, procure “reparar” o que nela chama a atenção, o que nela incomoda e desestabiliza o olhar, já domesticado pelo fotográfico. Entre os inúmeros conceitos, acerca da imagem fotográfica, apresentados no decorrer da dissertação, opta-se pela escolha de apenas três, a partir dos quais se apresentará um breve comentário, por meio da observação de três imagens que, de alguma maneira, os materializa. Nenhum desses conceitos é exclusivo da fotografia estenopeica, mas é através dela que serão observados, pela capacidade que ela tem em evidenciá-los. A escolha partiu da observação das imagens e das posturas dos artistas contemporâneos com relação à fotografia estenopeica. Ao buscar compreender os motivos que levam esses artistas a escolherem a fotografia estenopeica como meio de expressão, percebe-se que algumas inquietações são recorrentes, e estão presentes nas discussões e nos depoimentos de grande parte deles. Talvez, o primeiro aspecto que chame a atenção nas imagens estenopeicas seja a facilidade de obter imagens anamórficas. As distorções de perspectiva, possíveis graças às características ópticas de formação da imagem e ao uso câmeras de formato diferente daquele imposto convencionalmente à fotografia com lentes, provocam o estranhamento da imagem. Se o observador já se habituou às diferentes deformações provocadas pela fotografia com lentes, a fotografia estenopeica pode provocar tantas outras, que dificilmente passariam despercebidas. Outro aspecto importante, e que não poderia deixar de ser notado, é a questão do tempo. Impregnada na fotografia e na imagem fotográfica, essa questão se torna mais aguda na fotografia estenopeica. Se a imagem fotográfica já registra um tempo que não equivale àquele da percepção humana, a fotografia estenopeica evidencia isso por meio de seus longos períodos de exposição. A dificuldade do registro instantâneo da fotografia estenopeica, acaba chamando a atenção para a discussão do tempo na própria fotografia. Por fim, aquele que, sem dúvida, pode ser considerado o aspecto mais instigante da fotografia estenopeica: a possibilidade de construção do próprio aparelho. Os usuários que
217
desconhecem, ou mesmo aqueles que não se preocupam com o conceito de “caixa preta” de Flusser, estão, de alguma maneira, “desconstruindo” o aparelho. Assim, a observação das imagens se dará a partir desses três aspectos: a anamorfose, o tempo e a desconstrução da caixa preta. Essas características já puderam ser observadas, de diferentes formas e em inúmeras imagens no decorrer da dissertação. Neste momento, se buscaram imagens que, independentemente de um apelo estético, apontam a presença, em maior ou menor grau, desses três conceitos, e apresentam, explicitamente, pelo menos um deles.
218
As imagens
1. Figura 130: Joaquín Casado, Port Olímpic, Barcelona, 2003. Fonte: Homepage Estenopeica. 154
2. Figura 131: Michael Wesely, Postdamer Platz, Berlin, 5.4.1997 a 3.6.1999. Fonte: Homepage Blog de Raul Gutierrez.155
3. Figura 132: Thomas Bachler, From Frankfurt to Kassel, Travel memories, 1985. Fonte: Bachler, 2008.
154
Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2007. 155
Disponível em: . Acesso em 10 maio 2008.
219
As três imagens procuram se relacionar com os conceitos ontológicos da fotografia de maneira diferente. Cada uma delas parte de uma idéia distinta, e, através da gênese fotográfica, chegam a resultados completamente diversos. As três dependem do conhecimento profundo do aparato fotográfico. Nas três imagens, o “branqueamento da caixa preta” foi fundamental para desvendar o aparelho fotográfico. Sem a intervenção do usuário, no aparelho e no processo, nenhuma delas seria possível. Na primeira imagem, de Joaquin Casado, o estranhamento maior é provocado pela “deformação” da perspectiva. O tempo se faz presente pela ausência de registro do movimento, ele não é congelado, nem “borrado”. A desconstrução da caixa preta se apresenta como fator fundamental, já que o fotógrafo intervém no processo, construindo sua câmera e colocando o material sensível de maneira irregular. Na imagem 2, de Michael Wesely, a questão do tempo é acentuada pela exposição demasiadamente longa. Período de tempo capaz de anotar na imagem, não apenas a trajetória do sol, mas toda a alteração do espaço. A imagem guarda a memória da transformação urbana de Berlin numa única imagem, mostrando um “tempo” jamais percebido, desta forma, pelo olho humano. O resultado é uma imagem que se dissolve pela acumulação de passado e presente. O que se percebe claramente é apenas aquilo que “permanece”. A última imagem, cuja aparência se aproxima muito mais da pintura do que da fotografia, questiona o fotográfico em todos os seus aspectos. A representação espacial, não guarda qualquer relação com a representação em perspectiva. O tempo faz parte da construção da imagem, mas também não se percebe representado. É o processo, mais do que o resultado plástico/estético final, que constrói a imagem, que representa muito mais uma idéia, um conceito, do que, simplesmente, um objeto “real”.
220
IMAGEM 1
Joaquín Casado, Port Olímpic, Barcelona, 2003.
O primeiro aspecto que chama a atenção ao olhar para a fotografia de Joaquin Casado é a anamorfose da imagem. A deformação da perspectiva, com a curvatura da linha do horizonte e a torção dos prédios, provoca o estranhamento diante da imagem. No primeiro plano, as faixas da rua e a própria rua estão curvadas, numa distorção oposta àquela que normalmente se observa em decorrência, por exemplo, de um grande ângulo de abertura da imagem (como as distorções provocadas por lentes super grande-angulares). Nos prédios, a distorção segue a mesma lógica. Na perspectiva central da câmera fotográfica convencional com lentes, os objetos diminuem de tamanho na medida em que se afastam da câmera: numa fotografia com lentes feita de dois edifícios próximos e tomada a partir do ponto de vista da rua, por exemplo, o que se teria, seria o afunilamento e a aproximação do topo dos edifícios. Na imagem de Casado, ao invés de um afunilamento, o topo dos prédios se alarga; ao invés de se aproximarem em direção a um ponto, os prédios se afastam. Nenhum sistema óptico da fotografia tradicional com lentes, a que se está acostumado, consegue reproduzir esse tipo de desvio da perspectiva. Cada observador demora um tempo diferente para reconhecer os elementos da imagem. Inicialmente os prédios, em seguida a rua e os demais elementos vão sendo reconhecidos. Não
221
fosse o fato de se saber que se trata de uma fotografia, se pensaria que a imagem é um desenho, uma ilustração, propositadamente distorcida. Saber que se trata de uma fotografia, seja qual for a técnica utilizada para obtê-la, faz com que se procure nela o reconhecimento do referente. Por se tratar de uma fotografia, sabe-se que os prédios existem na realidade, porque a gênese fotográfica indica que a imagem foi formada pela luz refletida pela cena. A partir do momento em que se reconhece o referente da imagem, os sentidos e a memória estabelecem diretamente uma conexão entre o que seriam os prédios reais e suas imagens, mesmo que distorcidas. No entanto, o que a imagem apresenta não é um espelho do real: a ilusão de realidade garantida pelo modelo perspectivo se destrói com a desconstrução da perspectiva e da estrutura dos edifícios. Se a característica mimética de algumas imagens fotográficas poderia dar a impressão de se estar olhando através de janelas, as distorções desta imagem não deixam dúvidas de que ela é apenas uma representação dos dois prédios: uma imagem construída pelo fotógrafo e pela câmera. A representação não se deu, de maneira alguma, de forma automática. Mesmo que se pense que se trata de uma distorção obtida por meio de manipulação digital, a imagem não mais perpetua a noção do “fotográfico” que está impregnada no senso comum. Fica evidente a presença de algum tipo de intervenção no processo fotográfico. Com relação ao tempo, o que se repara na imagem é que nenhum movimento foi registrado, nem dos objetos, nem da câmera. A imagem não apresenta nenhum elemento “borrado”, muito provavelmente por conta do longo tempo de exposição, que não permitiu que qualquer objeto que se movimentasse fosse registrado. Aparecem apenas os objetos da cena que estão completamente parados, como os edifícios e alguns veículos no canto inferior esquerdo da imagem. Certamente, no momento de captação da imagem, circulavam veículos e pessoas pela rua que aparece em primeiro plano. Mas, o deslocamento desses corpos não foi o suficientemente lento para deixar marcado na imagem, qualquer registro de sua passagem. O tempo que se percebe aqui é também diferente daquele da percepção humana. Como um olhar seletivo que se fixa numa imagem, tentando escapar dos “ruídos” que se interpõem entre os olhos e a paisagem. As características formais da imagem são resultado da intervenção do fotógrafo na configuração da câmera. O fotógrafo se propôs a colocar o material sensível de forma irregular, porque conhece o processo de formação da imagem no interior da câmera, e, mais do que isso, sabe que quando a imagem se forma, apenas por um orifício, ela não mais depende de um “plano
222
focal”. Ou seja, ela se forma com um “foco” relativo em todo o interior da câmera. A escolha da configuração estrutural da câmera e do material sensível depende do conhecimento do processo. Casado precisou “branquear” a caixa preta da câmera estenopeica para construir sua imagem. Obtendo um resultado estético que, a princípio, pode parecer apenas um acidente, ou um acaso, ou ainda, efeito da manipulação digital. Sem dúvida, a construção da imagem dependeu de uma série de escolhas, dentre as inúmeras possibilidades que a fotografia estenopeica permite, inclusive incluindo a indeterminação e o acaso como ingredientes.
223
IMAGEM 2
Michael Wesely, Postdamer Platz, Berlin, 5.4.1997 a 3.6.1999.
A fotografia de Michael Wesely retrata a reconstrução da praça Potsdamer Platz, em Berlin, entre os anos de 1997 e 1999. Num primeiro olhar, vê-se uma imagem que aparenta estar se dissolvendo, mas, na verdade, o que acontece é que ela foi lentamente construida. O registro da reconstrução da praça de Berlin está entre os muitos projetos de Wesely que registram transformações urbanas por meio de fotografias com longas exposições. O tempo de exposição é dilatado, chegando, no caso desta imagem, a mais de dois anos. Para isso, ele utiliza câmeras estenopeicas e material fotográfico de baixa sensibilidade. A câmera registra um período de tempo, no qual se acumula o conjunto de todas as transformações do espaço. A imagem vai sendo construída em sincronia com a transformação do espaço urbano. A seqüência cronológica da atividade de construção da praça é transformada numa ação simultânea. Como se todas as cenas de um longo filme se condensassem num único fotograma. A infinidade de momentos individuais se soma e forma uma estrutura complexa de
224
fragmentos da realidade. O que se vê são construções inacabadas se sobrepondo, como se diferentes paisagens fossem justapostas e sintetizadas num mesmo momento. O antes e o depois se fundem. O que se percebe inalterado é apenas o horizonte que se deixa ver por entre as novas construções. Essa dissolução da imagem confunde o olhar. Não se consegue perceber com clareza os contornos dos prédios, como se perdessem sua materialidade. O trajeto percorrido pelo sol, durante as estações do ano, ao contrário, se materializa pelo traçado das linhas brancas no céu. A própria reconstrução da praça Potsdamer Platz já carrega consigo todo o valor simbólico da reconstrução de Berlin após a unificação da Alemanha. E a imagem de Wesely, condensa e ao mesmo tempo dilata esse acontecimento. O estranhamento provocado pelo resultado formal da imagem exige que se olhe para ela com um olhar mais atento, reflexivo. Se a fotografia está impregnada pela idéia do “instante”, a imagem de Wesely parece dizer mais sobre o “movimento”, sobre o que está em transformação. Talvez, falando do que está em transformação, e materializando isso em imagem, a fotografia de Wesely diga mais sobre a realidade urbana de Berlin, naquele momento, do que qualquer outra. Sua proposta foi guiada pela necessidade de um registro com um longo tempo de exposição. A opção não foi alterar formalmente a imagem, pervertendo a perspectiva, mas sim, pervertendo o registro do tempo. Uma câmera fotográfica convencional também permite longos tempos de exposição, mas, no caso de exposições tão longas quanto as usadas por Wesely, a utilização da câmera estenopeica se torna imprescindível. Wesely constrói uma câmera de grande formato, e utiliza apenas um pequeno orifício no lugar da lente para formar a imagem, com o claro objetivo de transgredir a lógica do registro do tempo da fotografia tradicional com lentes, rompendo com as limitações impostas, conceitual e tecnicamente ao aparato fotográfico.
225
IMAGEM 3
Thomas Bachler, From Frankfurt to Kassel, Travel memories, 1985.
Como terceira e última imagem, foi escolhida uma fotografia de Thomas Bachler do projeto Travel Memories. Como comentado anteriormente, neste projeto, Bachler utilizou pacotes de correio transformados em câmeras estenopeicas para registrar o trajeto de uma cidade a outra. O estranhamento que esta imagem provoca está justamente em não ser reconhecida como uma fotografia tradicional. O resultado plástico/estético a aproxima da pintura e das experiências com fotografia sem câmera das vanguardas históricas – fotogramas e luminogramas. Neste, como em outros trabalhos de Bachler, o resultado, a princípio, não é o mais importante. Muito provavelmente, esta imagem seria mais aceita como pintura do que como fotografia. Ela não possui nenhuma das características encontradas numa imagem “fotográfica”, no senso comum do termo. Trata-se de uma imagem abstrata, na qual não se percebe qualquer elemento que indique uma representação espacial “fotográfica”, que procura reproduzir no espaço bidimensional, as três dimensões da realidade. Na verdade, ela não representa nenhum objeto, é
226
impossível encontrar nela, o referente. Se o apego for pelo resultado estético, e não por uma representação do real, a imagem pode ser considerada expressiva e agradável plasticamente. Por outro lado, se o apego for por uma descrição simplificada do processo, ela pode ser entendida como uma fotografia tradicional, já que ela é resultado da gênese fotográfica, por meio da utilização de uma câmera. Assim como buscaram as vanguardas, num processo de desconstrução e ao mesmo tempo de construção da imagem, Bachler subverte a lógica da práxis fotográfica. O mais importante, neste trabalho, é a maneira como a imagem é construída, ultrapassando a questão do resultado para tocar numa outra, do conceito. O resultado estético é uma conseqüência. Neste caso, o ato fotográfico não se limita ao “clique” ou à escolha de uma cena por parte do fotógrafo. O ato fotográfico é quase performático. Sem ampliar a discussão para outros processos artísticos, limitando apenas ao fotográfico, pode-se dizer que esse trabalho envolve outros elementos, como a autoria coletiva e a independência do processo, que o distanciam da práxis tradicional da fotografia. Ao mesmo tempo que a imagem não apresenta qualquer característica formal que remeta a uma representação fotográfica de espaço, também não se percebe, ao menos visualmente, nenhuma indicação da passagem do tempo. No entanto, o tempo é um elemento fundamental na construção do resultado da imagem. Se o tempo de exposição se aproximasse do “instantâneo”, provavelmente, o resultado não teria as características formais de abstração que a imagem apresenta. A sobreposição de imagens, decorrente do longo tempo de exposição, associada à movimentação da câmera, provoca o não reconhecimento de qualquer relação figurativa na imagem. Se a câmera se movimenta, o assunto, além de se movimentar, se alterna. Na fotografia da praça Potsdamer Platz de Michael Wesely, a câmera assume uma postura passiva, aguardando os acontecimentos e a transformação do espaço. Nesta imagem de Bachler, tanto a câmera quanto a cena são inconstantes. Tudo é imprevisível. As condições de formação da imagem são tão abstratas quanto o seu resultado estético. Mesmo de modo inconsciente e involuntário, existe uma condição de co-autoria na construção dessa imagem. Todos aqueles que se interpuseram no trajeto da câmera – desde o balconista que recebeu a carta, os funcionários internos do correio e até o carteiro – de alguma maneira, participaram de sua construção.
227
Por mais impreciso ou sem controle que isso pareça, é justamente essa a opção do fotógrafo. Sua opção se manifesta em todo processo, desde a construção da câmera, até a forma de captação da imagem. A câmera estenopeica, mais do que qualquer outra, tem condições de se travestir em pacote postal e viajar de uma cidade a outra registrando a imagem. Ela não traz nenhum traço que a identifique como uma câmera fotográfica, podendo assim passar despercebida. Na verdade, pode-se dizer que é um pacote postal transformado em câmera. Ou seria o contrário? Como pode ser observado neste e em outros trabalhos mostrados no decorrer da dissertação, a postura assumida por Bachler com relação à fotografia, longe de ser convencional, se identifica com as práticas artísticas interventoras, desconstruindo física e conceitualmente a caixa preta na concepção de Flusser. A maneira como ele utiliza a câmera estenopeica não apenas questiona, mas rompe com os conceitos e convenções fotográficas. Como na caixa que ele transforma em câmera atirando nela, ou quando coloca um pedaço de filme fotográfico na boca e faz seu auto-retrato no espelho, utilizando os lábios como obturador. A observação dessas imagens permite afirmar que, além da postura experimental desses artistas/fotógrafos, o que se quer mostrar é que a fotografia estenopeica possibilita, facilita, e provoca essas atitudes. Mesmo quando mantém a gênese de uma fotografia feita com uma câmera convencional com lentes, ela pode trazer resultados muito diferenciados daquela. E, mais do que trazer resultados diferenciados, ela desestabiliza os conceitos que se têm com relação à fotografia tradicional, pautados pela homologia, e reforça a consciência crítica que o artista deve ter com relação ao meio fotográfico e ao processo de produção de imagens.
228
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitas vezes, quando alguns fotógrafos (profissionais) se encontram, não numa reunião entre amigos, mas por acaso, durante um trabalho, por exemplo, surgem certas atitudes, no mínimo, curiosas. Talvez, numa tentativa de auto-afirmação, alguns fotógrafos começam a fazer comentários a respeito de seu equipamento, e a especular sobre o equipamento dos colegas. Nessas ocasiões, ao menos uma pergunta é recorrente:
— Que “equipo” você usa? Um equipamento mais sofisticado, com mais recursos (ou, simplesmente, mais caro) se transforma em símbolo de “status”, como se a “qualidade” do fotógrafo e da fotografia fosse determinada pela sofisticação do equipamento. Atitude curiosa e, ao mesmo tempo, contraditória, já que, no senso comum, se tem a idéia de que a imagem fotográfica é fruto do gênio criativo do fotógrafo, ou seja, uma boa imagem é mérito exclusivo do fotógrafo, independente do “equipo” que ele estiver usando. Por outro lado, é também comum o comentário:
— Nossa! Que “bela” foto! Seguida de um outro:
— Também, com aquela “super” câmera! Aqui, o discurso se inverte, e a boa foto volta a ser determinada pela “qualidade” do equipamento. Na verdade, todo o movimento da indústria fotográfica se direciona ao aperfeiçoamento técnico do aparato fotográfico, fazendo com que, cada vez mais, os equipamentos sejam capazes
229
de produzir “boas fotos”, independente da ação do fotógrafo. Chegando ao ponto de uma câmera fotográfica, recém lançada comercialmente, garantir que é capaz de selecionar o momento exato do sorriso, para registrar o retrato. O fabricante garante, ainda, que “a tecnologia de ‘Obturação por Sorriso’” tem três níveis de sensibilidade, do sorriso mais discreto até a mais sonora gargalhada. Ou seja, agora, o fotógrafo não precisa nem mesmo se preocupar com o “momento decisivo”. Começar as considerações finais de uma dissertação contando um “causo” pode parecer estranho. No entanto, esse pequeno comentário, sobre algumas atitudes comuns no meio fotográfico, tanto entre fotógrafos, quanto por parte da indústria fotográfica, traz um elemento fundamental para a abordagem que se procurou estabelecer com relação à fotografia, à tecnologia e, mais especificamente, com relação à fotografia estenopeica: a necessidade, antes de tudo, de ultrapassar as limitações conceituais e técnicas enraizadas, convencionalmente, na fotografia, na imagem fotográfica e no aparato fotográfico. A determinação do aparelho sobre a ação do fotógrafo, ditando os resultados estéticos da imagem e confinando o ato criativo às opções disponíveis no aparato fotográfico, restringem as possibilidades de intervenção no processo de construção das imagens. Se, a cada dia, os “funcionários” da fotografia contam com mais uma opção: um novo botão que garante os “melhores” resultados para suas imagens, os artistas/fotógrafos experimentais, como bem pontuou Flusser (2002), ao contrário, subvertem essas funções previamente programadas ao construir sua própria câmera e quebrar a cadeia de consumo, questionando conceitual e formalmente seus meios. Dessa forma, esses artistas caminham na direção oposta ao determinismo tecnológico contido na concepção do aparato fotográfico, buscando, conscientemente, alternativas para produzir imagens que não estão em seu programa. A simplicidade da fotografia estenopeica e a possibilidade de construção da própria câmera fazem com que o usuário se aproxime e desvende o aparato e o processo de formação da imagem fotográfica. Por meio de uma infinidade de resultados formais, capazes de provocar o estranhamento e evidenciar o seu processo de construção, as inúmeras imagens estenopeicas apresentadas no corpo deste trabalho demonstram que a fotografia estenopeica permite desconstruir conceitos e questionar “convenções” e “padrões” impostos à fotografia tradicional. Ela desestabiliza, principalmente, a noção de fotografia como uma imagem análoga do “real”, como uma
230
representação homológica. É fácil confirmar essas afirmações, bastando, para isso, observar os inúmeros exemplos de imagens anamórficas, como as obtidas, por exemplo: pelos fotógrafos Cleber Falieri e Eric Renner, através, apenas, da alteração do padrão convencional que se estabelece com relação ao formato e a disposição do material sensível; na utilização de múltiplos orifícios das imagens de Ana Angélica, Jochen Dietrich e Jürgen Lechner; ou das imagens de Joaquin Casado, que dispõe irregularmente o papel fotográfico; ou ainda nas distorções obtidas pelo sistema de double slits de Casado e de Claudia Rojas. Essas imagens subvertem a construção perspectiva, o que as distancia da idéia de janela transparente, comumente associada à imagem fotográfica. Nesse contexto, observar a diversidade da produção imagética de artistas contemporâneos, que se utilizam da fotografia estenopeica no desenvolvimento de seus trabalhos, permitiu confirmar que, por meio desta técnica, é possível estabelecer um intenso questionamento acerca dos conceitos e dos pré-conceitos, cristalizados, no senso comum, sobre a fotografia como reprodução fiel da realidade e, ao mesmo tempo, da tecnologia como sinônimo de progresso técnico. Observar as atitudes do usuário ao transgredir a lógica do aparato fotográfico, por meio da utilização de uma câmera rudimentar, como a câmera estenopeica, confirma, também, a dimensão relacional da tecnologia, já que essas atitudes demonstram que, não é apenas o artefato que determina o processo, mas a postura do usuário e todo o complexo conjunto de relações e conceitos que convencionaram sua construção e utilização. Essas posturas críticas diante do aparato fotográfico, suscitadas pela prática da fotografia estenopeica, e que podem ser verificadas nos trabalhos desses artistas, evidenciam o processo de construção da imagem por parte do usuário, e a importância de questionar os determinismos – estético, conceitual, simbólico, econômico, tecnológico, etc. – que estão por trás da concepção dos artefatos. A retomada desse aparato, aparentemente primitivo, que é a fotografia estenopeica, muito distante das “novas” tecnologias, traz a tona a questão da fotografia como uma construção simbólica que resulta de uma elaboração cultural e intelectual humana, sem, no entanto, desconsiderar os avanços que se incorporam à técnica fotográfica. No decorrer da dissertação, demonstrou-se, também, que algumas características próprias ao processo da fotografia estenopeica - como a ausência do fenômeno óptico da refração, os longos tempos de exposição, a multiplicidade de opções de construção da câmera e a
231
incorporação do acaso na imprevisibilidade dos resultados -, facilitam a experimentação e incitam uma série de posturas que rompem também com características conceituais, plásticas e estéticas das imagens fotográficas. A questão da refração, tão cara aos “amantes” da fotografia estenopeica, foi discutida amplamente, com o intuito de explicitar que tipo de refração se mostra ausente desta técnica. Se, na fotografia tradicional, a refração óptica provocada pela objetiva limita a disposição do material sensível a um único plano – o plano focal -, no qual a imagem se forma com nitidez, na fotografia estenopeica, a ausência do fenômeno óptico da refração faz com que a imagem se forme com uma relativa nitidez em todo o interior da câmera, permitindo que o material sensível seja disposto de maneira irregular – o que garante extrema liberdade na construção da câmera e na deformação das imagens. A discussão do conceito de refração de Voloshinov se fez necessária, não apenas para explicar o processo de transfiguração dos signos que se dá por meio da re-interpretação que se faz da realidade, como, também, para elucidar eventuais confusões que possam ter sido causadas pela comparação dos dois termos no discurso da “fotografia como transformação do real”. A comparação dos termos, feita por Arlindo Machado, ao comentar que, na fotografia tradicional, o fenômeno óptico da refração opera uma transformação dos raios luminosos, que equivale à transfiguração dos signos do conceito de refração de Voloshinov, pode provocar interpretações equivocadas com relação à fotografia estenopeica, levando a crer, erroneamente, que, por estar isenta da refração óptica, a fotografia estenopeica estaria também livre da refração ideológica. A fotografia estenopeica, assim como a fotografia tradicional ou quaisquer dos demais sistemas simbólicos – como a linguagem, a ciência, a religião, o direito, etc. -, são construções culturais que representam o mundo a partir da interação social, e por isso, cada um deles se relaciona com a realidade de uma maneira diferente, refletindo-a ou refratando-a de acordo com o papel de cada sistema na vida social. A maneira como cada grupo humano significa (dá sentido ao mundo) é marcada pela diversidade de experiências desse grupo, incluindo suas contradições e seus conflitos de interesse. Por isso, o processo de significação está sempre, e ao mesmo tempo, descrevendo (refletindo) e interpretando (refratando) o mundo. Cabe então ressaltar que, nestes termos, mesmo que a fotografia estenopeica não dependa de um conjunto óptico baseado na refração da luz, ela continua refratando a realidade.
232
Importante, também, foi observar a maneira como os artistas/fotógrafos tiram partido dos longos tempos de exposição da fotografia estenopeica para discutir, questionar e repensar a percepção humana de tempo. A questão da representação do tempo, intrínseca ao processo fotográfico, se acentua na fotografia estenopeica, suscitando, por parte dos artistas, uma série de reflexões e intervenções no processo de captação das imagens. Ao invés de se aproximar do registro instantâneo, as longas exposições da fotografia estenopeica permitem, aos artistas, evidenciar a passagem do tempo de maneiras distintas. Desde propostas que procuram demonstrar sua duração, registrando o movimento dos corpos no decorrer do tempo, diluindo a imagem ou “borrando” o movimento, como nas imagens de Ana Angélica (serie Duração), de Paolo Gioli, Dirceu Maués e Danilo Pedruzzi; ou pela completa eliminação do registro dos corpos que se movimentam, como nas imagens desertas dos Cine-Teatros de Jochen Dietrich; até o extremo de registrar movimentos que, normalmente, não se consegue perceber, como o percurso do sol durante as várias estações do ano, observada nas imagens de Dominique Stroobant, Tarja Trigg e Michael Wesely. Essas e outras experiências explicitam a passagem e revelam um “tempo” imperceptível ao olhar humano. Outros inúmeros trabalhos, apresentados no decorrer da dissertação, demonstraram que, entre os artistas, o resultado plástico da fotografia estenopeica não é, necessariamente, o mais importante. Ainda assim, as características de formação da imagem e a facilidade com que a fotografia estenopeica deforma/desfigura a imagem, pervertendo a representação do espaço em perspectiva e gerando anamorfoses de tempo e de espaço, além de provocarem um estranhamento, reconfiguram a imagem e possibilitam resultados estéticos que impressionam por sua expressividade. Expressividade que se percebe, não apenas no resultado plástico, mas que se manifesta na atitude do artista perante o processo de exprimir e dar significado à imagem - a postura diante de todas as etapas de constituição da imagem: a construção da câmera, a maneira como a imagem é captada, até as possíveis intervenções posteriores ao registro da imagem. Perante todo o processo, essas posturas já configuram um ato expressivo: nas caixas/câmeras que registram a imagem após serem atingidas por um tiro, ou nos pacotes postais transformados em câmera, ou nas fotografias feitas com a boca, todas do artista Thomas Bachler; nas câmeras jogadas ao mar ou na câmera relógio de Jochen Dietrich; na transformação dos objetos mais inusitados em câmera estenopeica, como os biscoitos cream cracker de Paolo Gioli, os ovos de Jeff Fletcher ou os
233
pimentões de Ilan Wolff. O que esses artistas buscam não é apenas o resultado plástico final. Suas posturas de experimentação questionam o meio e transformam a práxis da fotográfica. A questão da representação “fotográfica”, seja ela fiel ou não à realidade, fica em segundo plano. O que esses artistas mostram com esses trabalhos é uma completa desconstrução do conceito de aparato fotográfico, rompendo profundamente com o processo convencional de constituição da imagem fotográfica, e com convenções limitadoras, impostas ao aparato fotográfico por questões simbólicas, históricas, econômicas, tecnológicas, culturais e estéticas. Por todos esses exemplos, acredita-se ter atingido o objetivo deste trabalho, que foi evidenciar as dimensões sócio-culturais da tecnologia, através da desconstrução e do rompimento da homologia no processo da fotografia tradicional, por meio do uso da câmera estenopeica no contexto da produção fotográfica artística contemporânea. Antes de finalizar, algumas considerações devem ser feitas sobre possíveis encaminhamentos a esse estudo, que não foram contemplados neste trabalho, obedecendo a um recorte, inicialmente proposto, e necessário, devido às limitações de tempo do mestrado e, principalmente, porque significariam um demasiado alargamento do objeto de estudo. No decorrer da pesquisa, sentiu-se a necessidade de aprofundar um olhar específico sobre a produção estenopeica artística contemporânea brasileira. Talvez pela possibilidade de troca de informações e de experiências, facilitada pela língua e pela geografia. Talvez pela curiosidade de comparar a postura desses artistas “brasileiros” e especular as necessidades e inquietações que os movem, diferentemente das que movem outros artistas, de outras culturas. Contraditoriamente, no decorrer da pesquisa, constatou-se uma maior facilidade em conhecer a produção estenopeica artística estrangeira, do que a brasileira. Provavelmente pela possibilidade de difusão da técnica e da troca de experiências entre usuários do mundo todo por meio da internet. Ou porque se tenha mais informações sobre o perfil da produção estenopeica brasileira voltado para a inclusão social e a arte-educação. De qualquer maneira, esse aprofundamento se mostra como uma rica possibilidade para trabalhos futuros. Outro caminho, certamente interessante, seria buscar localizar, no universo de expressão artística, referências de posturas conceituais e experiências estéticas, que se aproximem daquelas observadas na produção estenopeica enfocada neste estudo. Atitudes de rompimento e de
234
experimentalismo que fazem parte da complexa produção atual de imagens, independente da especificidade de um meio – fotografia, cinema, vídeo, pintura, etc. E, talvez, aquele que se mostrou como o maior dos desejos durante todo o percurso da pesquisa: construir diferentes câmeras estenopeicas e fotografar, arriscar, experimentar, “brincar” com elas. Depois do aprofundamento dos conceitos que fazem parte das discussões sobre a linguagem fotográfica; depois de conhecer, mais intimamente, as características técnicas da formação da imagem através de orifícios, e de tomar contato com a diversidade da produção artística contemporânea, se intensificou a necessidade de retomar uma produção pessoal com fotografia estenopeica. Produção que pode, agora, partir de uma atitude intuitiva com bases mais sólidas, resultado das informações digeridas e absorvidas durante todo este trabalho. Por fim, retoma-se o pensamento de Philippe Dubois presente na epígrafe que inicia esta dissertação, para traçar uma última consideração: Abordar a imagem fotográfica através de uma porta lateral (ou talvez fosse melhor dizer, por uma porta marginal), como a imagem produzida pela câmera estenopeica, mostrou ser realmente mais agudo, mais intenso, do que olhar para ela de frente. Quiçá, porque, de lado, se tenha que prestar mais atenção, olhar com mais cuidado para corrigir as distorções provocadas pelo ponto de vista.
235
REFERÊNCIAS ADAMS, Ansel Easton. The câmera. The Ansel Adams photography series/Book 1. Boston: Little, Brown and Company, 1996. ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. Tradução de A. S. Mendonça. Campinas, SP: Editora Unicamp, 1989. AMELUNXEN, Hubertus von. Transformance. Homepage de Andréas Muller-Pohle. Disponível em: . Acesso em 18 mar. 2008. ARAÚJO, Renato. O conceito de mimesis na poética de Aristóteles. Revista Férrea Vox. Revista eletrônica de Filosofia e Cultura. Disponível em: . Acesso em 20 out. 2007. AUMONT, Jacques. A imagem; tradução Estela dos Santos Abreu. Campinas, SP: Editora Papirus, 1993. BACHLER, Thomas. Homepage Thomas Bachler. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2008. BAKHTIN, Mikhail. Discourse in the novel. In: The dialogic imagination: four essays by M. M. Bakhtin. Trans. By Caryl Emerson and Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 1981, p. 259-422. Título em português: O discurso no romance. BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHINOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995. BARROS, Geraldo de. Fotoformas: Geraldo de Barros: fotografias = photographies. São Paulo: Raízes, 1994. BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. ______. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. Título original: La chambre claire: note sur la photographie. BASTOS, João A.S.L.A. Educação e Tecnologia. Revista Educação & Tecnologia, Publicação do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do CEFET-PR, Curitiba, ano 1. n. 1, p. 05-29, jul. 1997. Disponível em: . Acesso em: nov. 2005. ______. O diálogo da Educação com a tecnologia. Revista Tecnologia e Interação. Curitiba, CEFET, 1998. Cap. 1, p.1-15.
236
BASTOS João A.S.L.A. et al. Apropriações do conhecimento tecnológico. In: Desafios da apropriação do conhecimento tecnológico: publicação do Programa de Pós Graduação em Tecnologia – PPGTE/CEFET-PR / João Augusto de Souza Leão de Almeida Bastos, org.; Y. Shimizu, rev. – Curitiba: CEFET-PR, 2000. 99p. 07- 23. BATISTA, Paulo H. C. A imagem fotográfica como linguagem artística na produção de Rosângela Rennó. 2003. 46 f. Monografia (Especialização em História da Arte do Século XX) Escola de Música e Belas Artes – EMBAP, Curitiba, PR, 2003. ______. Fotoformas: A poética do processo interventor de Geraldo de Barros na práxis fotográfica. 2006. 181 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia), UTFPR Curitiba, PR, 2006. BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica. In: Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Les Editions du Cerf, 1987. Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2005. BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de Suas Técnicas de Reprodução. In: Os pensadores. Textos escolhidos: Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Juergen Habermas, trad. José Lino Grunnewald, São Paulo, Abril Cultural, 2a ed., 1980. CARTIER-BRESSON, Henri. The decisive moment. New York: Simon&Schuster, 1952. CAIVANO, José Luis. La representacion del mundo visual em la fotografia y post-fotografia. In: Visio, vol. 4, n. 1, p. 37-42, 1999. CANTÃO, Renato. Abu Ali al-Hasan ibn al-Haytham. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2005. CARANI, Marie. Au-Delá de la Photo Positiviste: de la photo post-moderne à la postphotographie. Visio, vol. 4, n. 1, p. 67-91, 1999. CARVALHAL, António. História da fotografia, 2006. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2008. CARVALHO & FEITOSA & ARAÚJO. Tecnologia, disponível em: . Acesso em 22 fev. 2008. CARVALHO, Marília Gomes de. Relações de gênero e tecnologia: uma abordagem teórica. In: Relações de Gênero e Tecnologia: Publicação do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia – PPGTE/CEFET-PR/Marília Gomes de Carvalho, org.; Y. Shimizu, ver. – Curitiba: Editora CEFET-PR, 2003. – (Coletânea “Educação e Tecnologia” CEFET-PR) CASADO, Joaquín. Doble Slit. Homepage de . Acesso em 20 jun. 2007.
Joaquín
Casado.
Disponível
CHAUI, Marilena. O mito da caverna. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2007.
em:
237
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo, Editora Ática, 2000. Disponível em: < http://br.geocities.com/mcrost02/index.htm>. Acesso em: 03 out. 2007. COSTA, Ana Angélica Teixeira Ferreira da. Imagens precárias. 2008. 2v. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. COSTA, Helouise. Entrando por uma porta lateral. In: Foto Grafia: a experiência alemã dos anos 50. Catálogo da exposição. São Paulo: A. S. Studio, 1995. COSTA, Helouise. Pictorialismo e Imprensa: O caso da Revista O cruzeiro (1928-1932). In: FABRIS, Annateresa (Org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. 2ª Edição. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. COSTA, Helouise; SILVA, Renato Rodrigues da. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2004. COUCHOT, Edmond. A Arte pode ainda ser um relógio que adianta? O autor, a obra e o espectador na hora do tempo real. In: DOMINGUES, Diana. A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1997. ______. O tempo real nos dispositivos artísticos. In: LEÃO, Lúcia (org). Interlab: labirintos do pensamento contemporâneo. São Paulo, Iluminuras, 2002. DIETRICH, Jochen. Câmera obscura: algumas idéias sobre a fotografia pinhole – nas artes, na estética, na educação. Porto Arte Revista de Artes Visuais. Publicação do Instituto de Artes/UFRGS, Porto Alegre, v.9, n.17, p.61-72, nov. 1998. ______. Câmera obscura: convidando o mundo a falar. In: SOUZA, Solange Jobim e (org). Mosaico: imagens do conhecimento. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. ______. Vinho velho em pipas novas: anotações sobre rupturas na história dos mídia. Revista TEIAS. Publicação eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Educação – ProPEd [UERJ], Rio de Janeiro, ano 4, n. 7-8, p.1-10, jan/dez 2003. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2008. DARR, Jen. Steven Pippin turns a NJ coin laundry into a playful investigation of the photographic process. CityPaper, Philadelphia, 12 a 19 novembro de1998. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2008. DAVIDHAZY, Andrew. Introduction to panoramic, peripheral and scanning photography. Disponível em: . Acesso em 18 fev. 2008. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Editora Papirus, 1994.
238
ENTLER, Ronaldo. Fotografia e Acaso: a expressão pelos encontros e acidentes. In: SAMAIN, Etienne (org). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998. ______. O corte fotográfico e a representação do tempo pela imagem fixa. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 27, 2004. Porto Alegre. Anais... São Paulo: Intercom, 2004. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2007. ______. Entre a memória e o esquecimento: realismo na fotografia contemporânea. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 28, 2005. Rio de Janeiro. Anais... São Paulo: Intercom, 2005. CD-ROM. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2007. ______.Perspectiva e ilusão. Apresentação audiovisual (10 min.). Adobe Flash. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2007. ______. Iconofilia e iconoclastia. Texto de aula. Disponível em: . Acesso em 10 fev. 2008. ______. Acaso e arte: introdução ao problema. Homepage Arte Acaso. 1996. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2008. FABRIS, Annateresa. Entre o estético e o artístico: o uso da imagem fotográfica nas tendências desmaterializadas. In: Panoramas da Imagem - Seminários. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1996. p 03-09 (Caderno de textos do seminário). ______. Identidades Seqüestradas. In: SAMAIN, Etienne (org). O fotográfico. São Paulo: CNPq – HUCITEC, 1998a. ______. (Org.). A invenção da fotografia: repercussões sociais. In: ______. Fotografia: usos e funções no século XIX. 2ª Edição. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998b. p. 11-37. ______. A fotografia e o sistema das artes plásticas. In: ______. Fotografia: usos e funções no século XIX. 2ª Edição. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998c. p. 173-198. FALIERI, Cleber. Homepage Manual prático de fotografia pinhole. Disponível em: < http://www.eba.ufmg.br/cfalieri/frame.html>. Acesso em 20 set. 2006. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo – as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba, PR: Criar Edições, 2003. FATORELLI, Antonio Pacca. O híbrido nacional. Boletim. Publicação do Grupo de Estudos do Centro de Pesquisa de Arte & Fotografia do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, ano 2, n. 2, maio de 2007. São Paulo: ECA/USP, 2007.
239
______. Fotografia e subjetividade. In: SOUZA, Solange Jobim e (org). Mosaico: imagens do conhecimento. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. FERNANDES JÚNIOR, Rubens. Labirinto e identidades: panorama da fotografia no Brasil [1946-98]. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. ______. Processos de criação na fotografia: apontamentos para o entendimento dos vetores e das variáveis da produção fotográfica. FACOM – Revista da Faculdade de Comunicação da FAAP, n. 16, p.10-19, 2º semestre de 2006. Disponível em: <www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_16/rubens.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2008. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Eletrônico Aurélio. Versão 5.0. Curitiba, PR: Positivo Informática. CD-ROM. s.d. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora Relume Dumará, 2002. ______. “Introduction” In Transformance, photographs by Andreas Müller-Pohle. Göttingen: European Photography, 1983. Disponível em: . Acesso em 19 mar. 2008. FOGLIANO, Fernando. Fotografia e complexidade. In: LEÃO, Lúcia (org) Interlab - Labirintos do pensamento contemporâneo. São Paulo: Iluminuras e FAPESP, 2002. FRAGOSO, Suely. Perspectivas: uma confrontação entre as representações perspectivadas, o conhecimento científico acerca do espaço e a percepção espacial cotidiana. Galáxia. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PEPGCOS-PUC-SP, vol. 3, n. 6, p. 105-119, out. 2003. Disponível em: < http://www.pucsp.br/pos/cos/galaxia/num06/index.htm>. Acesso em: 21 ago. 2007. ______. Caleidoscopia midiática: da criação à ressignificação das imagens em perspectiva. InTexto. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGCOM, vol. 2, n. 11, segundo semestre 2004. Disponível em: <www.intexto.ufrgs.br>. Acesso em: 21 ago. 2007. GAMA, Ruy. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Nobel/Edusp, 1986. GATTON, MATT. The Paleo-camera. Disponível em: . Acesso em 20 set. 2007. GIOLI, Paolo. Paolo Gioli. Homepage do artista. Itália. Disponível em: . Acesso em 10 fev. 2008. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. ______. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Título original Local Knowledge; tradução de Vera Mello Joscelyne. – Petrópolis, RJ: Vozes, 5ª edição, 2002.
240
GOVEIA, Fabio. A decomposição imagética na pinhole: a imagem pelo buraco de uma agulha. 2005. 139 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura), Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Escola de Comunicação, Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: . Acesso em: 05 ago. 2006. GREPSTAD, Jon. Pinhole photography: history, images, cameras, formulas, 1996. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2006. HABERMAS, J. Técnica e Ciência enquanto ideologia. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, Rosângela. Rosângela Rennó. São Paulo: EDUSP, 1998. HIRNER, René. Marcus Kaiser: Fotografische Arbeiten, 1993. Catálogo da exposição. Kunstmuseum Heidenheim. Disponível em: . Acesso em: 07 maio 2008. HOCKNEY, David. O conhecimento secreto: redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. Título original: Secret Knowledge JALLAGEAS, Neide. Estratégias de construção no cinema de Andrei Tarkóvski: a perspectiva inversa como procedimento. 2007. 281f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. ______. Vestígios. Depoimento da autora. Disponível em: . Acesso em: 05 maio 2008. JANSON, H.W. História geral da arte. Adaptação e preparação do texto para a edição brasileira Maurício Fontes. São Paulo: Martins Fontes, 1993. KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 1999. LAURENTIZ, Paulo. A holarquia do pensamento artístico. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1991. LIMA FILHO, Domingos Leite; QUELUZ, Gilson Leandro. A tecnologia e a educação tecnológica: elementos para uma sistematização conceitual. Educação & tecnologia, Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 19-28, 2005. LOPES, Ana Elizabete; SANDER, Luciana Becker. Legendas fotográficas. In: SOUZA, Solange Jobim e (org). Mosaico: imagens do conhecimento. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. MACHADO, Arlindo. A ilusão especular - introdução à fotografia. São Paulo: Editora Brasiliense e FUNART, 1984. ______. Anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da imagem. In: PARENTE, André (org). Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
241
______. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. ______. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997. ______. A arte do vídeo. São Paulo: Brasiliense, 1997b. ______. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. ______. Arte e mídia: Aproximações e distinções. Galáxia. Revista do Programa de Estudos PósGraduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PEPGCOS-PUC-SP, vol. 2, n. 4, p.19-32 , 2002a. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2007. ______. Repensando Flusser e as imagens técnicas. In: LEÃO, Lúcia (org) Interlab - Labirintos do pensamento contemporâneo. São Paulo: Iluminuras e FAPESP, 2002b. MAGALHÃES, Ângela; PEREGRINO, Nadja. Fotografia no Brasil: um olhar das origens ao contemporâneo. Rio de Janeiro, FUNARTE, 2004. MAUÉS, Dirceu. Ver-o-peso pelo furo da agulha: a exposição. Disponível em: . Acesso em: 17 fev. 2008. MASKELL, Alfred. Artistic Focus and the supression of the lens. Photographic Quaterly. London, v.II, n. 05. outubro de 1890. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2006. MELLO, Maria Tereza Bandeira de. Arte e fotografia: o movimento pictorialista no Brasil. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998. MONFORTE, Luiz Guimarães. Fotografia Pensante. São Paulo: Editora SENAC, 1997. Versão eletrônica disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2008. MORELL, Abelardo. Outside-in, upside-down — and now in color! Lens Culture: Contemporary Photography Magazine. Entrevista concedida a Jim Casper. Áudio, 9 min 30 seg. Disponível em: . Acesso em: 3 fev. 2008. NEWHALL, Beamunt. The history of photography – from 1839 to the present day. Revised and enlarged edition. 15ª Edição. Boston: The Museum of Modern Art New York, 1993. NOVAES, Rebeca, Pinhole. Fotosite on line. Especiais, arquivo: 2000-20002. Disponível em: < http://fotosite.terra.com.br/especiais_arquivo/pinhole.htm#>. Acesso em: 07 maio 2008. OLIVEIRA, Jandro Dimer de. Observações sobre o conceito de Mimesis em Platão e Aristóteles. Revista Eletrônica Ousia. Resumo. Disponível em:
242
app=JIC_PUBLICACAO_TRABALHO&ano=2005&codigo=565&buscas_cruzadas=ON>. Acesso em: 20 out. 2007. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Título original – The collected papers of Charles Sanders Peirce. Tradução: José Teixeira Coelho Neto. Editora Perspectiva. São Paulo, 2003. 3º edição. PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. PLATÃO. Diálogos: o banquete - Fedon - Sofista – Político. Traduções de Jose Cavalcante de Souza (O Banquete), Jorge Peleikat e João Cruz Costa. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, v.3. 1972. ______. A República: Livro VII. Tradução de Elza Moreira Marcelina. Brasília, DF: Ed. Universidade de Brasília, 1996. ______. A República. São Paulo: Livraria e Exposição do Livro, s.d. (p.280-81 e 289). Disponível em: . Acesso em: 29 fev. 2008. REEVE, Thomas Hudson. Handmade pinhole paper câmeras. Disponível em: . Acesso em: 02 jun. 2008. RENNÓ, Rosângela. Rosângela Rennó – série Artistas da USP, n. 9. São Paulo: EDUSP, 1998. ______. Cicatriz. Memorial descritivo do protótipo do livro. 1997. 80 f. (Tese de Doutoramento). Escola de comunicação e Artes USP, 1997. RENNER, Eric. Pinhole photography: rediscovering a historic technique. 2 edição, Boston/London: Focal Press, 2000. SAMAIN, Etienne. Redescobrir a antropologia visual fotográfica: um projeto de pesquisa. In: Cadernos de Pós-Graduação. Instituto de Artes/Unicamp. Ano 1, vol. 1, n. 2, 1997. SANTAELLA, Lucia. A teoria geral dos signos: semiose e autogeração. São Paulo: Editora Ática, 1995. SANTAELLA, Lucia; NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. 3 edição, São Paulo: Iluminuras, 2001. SANTOS, Luis Carlos dos. Imagem na videoarte: referências estéticas de vanguardas artísticas do século XX, em forma e conceito, mediadas pela tecnologia. 2007. 241 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia), UTFPR Curitiba, PR, 2007. SHAEFFER, Jean-Marie. A imagem precária. Campinas: Papirus, 1996. SILVA, José Lourenço Pereira da. A definição de imagem no Sofista de Platão. Caderno de Atas da ANPOF, n. 1, 2001. Disponível em: . Acesso em: 29 fev. 2008.
243
SILVEIRA, Luciana Martha. A interação entre texto visual e texto verbal sob o olhar da ontologia da imagem fotográfica. In: QUELUZ, Gilson Leandro (org). Tecnologia e Sociedade: (im)possibilidades. Curitiba: Torre de Papel, 2003. p.159-187. SONESSON, Göran. Post-Photography and beyond: from mechanical reproduction to digital production. In: Visio, vol. 4, n. 1, p. 11-36, 1999. SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Tradução de Joaquim Paiva. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. SOUGEZ, Marie-Loup. Historia de la fotografía. 3ª Edição. Madri: Ediciones Cátedra, 1988. SPRICIGO, Vinicius Pontes. Arte e tecnologia: A poética participacionista de Hélio Oiticica e a arte tecnológica contemporânea. 2004. 138f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia), UTFPR Curitiba, PR, 2004. STRAUHS, Faimara do Rocio, et al. Normas de formatação e apresentação de trabalhos acadêmicos. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia. UTFPR. Curitiba, 2005. TAS, Marcelo. ABC da gramática televisiva. In: SOUZA, Solange Jobim e. Mosaico: imagens do conhecimento. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. TRIGO, Thales. Equipamento fotográfico: teoria e prática. São Paulo: Editora SENAC, 1998. TROPE, Paula. Tempo, corpo, alteridade. Concinnitas. Revista do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, ano 5, n.7, p. 124-131, dez. 2004. Disponível em: <www.concinnitas.uerj.br/revs/rev7.html>. Acesso em: 12 nov. 2007. TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Corpo e gênero em Rosângela Rennó - arquivo universal e outros arquivos. Seminário Internacional Fazendo Gênero 7: Gênero e Preconceitos – UFSC. Florianópolis – SC, 2006. Disponível em: <www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/L/Luana_Saturnino_Tvardovskas_49.pdf>. Acesso em: 10 out 2007. (verificar se referência ta certa) VOLOSHINOV, V.N. Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica. Tradução por: Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Versão inglesa: Discouurse in life and discourse in art – concerning sociological poetics, In: VOLOSHINOV, V. N. Freudism. New York: Academic Press, 1976. Original em Russo: Slovo v zhizni i slovo v poesie, na revista Zvezda, n. 6, 1926. Trabalho não publicado. WESELY, Michael. Potsdamer Platz. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2008. WORNUM, Claudia. Depoimento da artista. Pinhole visions. . Acesso em: 25 set. 2005.
Disponível
em:
244
Documentos eletrônicos: A evolução da fotografia no tempo. Instituto Politécnico do Cávado e do Ave – IPCA, Portugal. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2008. Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2008. F295: The art of lensless imaging and the craft of alternative photographic processes. Disponível em: . Acesso em: 05 maio 2008.
Epígrafes: DUBOIS, Philippe. A foto-autobiografia: a fotografia como imagem-memória no cinema documental moderno. Revista Imagens, Campinas: Editora da Unicamp. n. 4, p. 64-76, abril 1995. p. 64. FALIERI, Cleber. Brincando na cidade. Disponível em: . Acesso em: 15 abr .2008. ROSA, João Guimarães. O espelho. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 65. Disponível em: . Acesso em: 16 ago. 2008. SARAMAGO, José. Livro dos conselhos. In: Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Epígrafe. ______. Memorial do convento. São Paulo: Bertrand Brasil, 2004. p. 70.
245
GLOSSÁRIO Este glossário se destina a esclarecer alguns termos específicos, ou ligados a técnica fotográfica que, eventualmente, não sejam do conhecimento comum. Bromóleo Procedimento fotográfico histórico que consiste basicamente no branqueamento das zonas sombrias de uma cópia em papel de brometo e seu posterior revestimento com um pigmento oleoso. O processo resulta em imagens com uma textura semelhante ao da pintura a óleo. Câmera reflex Numa câmera reflex, o fotógrafo tem condições de enxergar o enquadramento exato da imagem que vai ser registrada no filme. Um espelho e um prisma localizados no interior da máquina fazem com que a imagem que atingirá o filme seja refletida várias vezes até poder ser visualizada no visor. Cianótipo Procedimento fotográfico histórico que tem sido retomado intensamente por fotógrafos e artistas contemporâneos. Uma emulsão líquida é preparada com sais de ferro e em seguida espalhada sobre papel ou outro tipo de suporte. A impressão é feita por contato e o material deve ser exposto a uma luz muito intensa, normalmente se usa a luz do sol. Depois da exposição à luz, a imagem deve ser lavada em água corrente para fixar a imagem. O resultado são imagens em tons de azul profundo. Círculo de confusão Termo que designa o diâmetro do maior círculo que pode ser observado como um ponto a uma determinada distância (TRIGO, 1998) Coordenadas Cartesianas Descartes, matemático e filósofo francês, desenvolveu um sistema de representação geométrica em eixos chamado Sistema de Coordenadas Cartesianas ou espaço cartesiano que permitia localizar e especificar num plano bidimensional, pontos num determinado "espaço" com n dimensões. Equinócio O equinócio é definido como um dos dois momentos em que o Sol, em sua órbita aparente (como vista da Terra), cruza o plano do equador celeste (a linha do equador terrestre projetada na esfera celeste. A palavra equinócio vem do Latim e significa "noites iguais". No hemisfério norte o equinócio da primavera ocorre no dia 20 de março, e o equinócio do outono ocorre no dia 23 de setembro. Estas datas marcam o início das respectivas estações do ano neste hemisfério. No hemisfério sul é o contrário, o
246
equinócio da primavera ocorre no dia 23 de setembro, e o equinócio de outono ocorre no 20 de março. Fotograma Fotograma é um processo pelo qual se obtém imagens fotográficas sem a utilização de câmera. A imagem se forma pela incidência direta da luz sobre um material sensível sobre o qual são colocados diferentes objetos, transparentes ou opacos. Os objetos opacos barram toda a luz registrando na imagem apenas sua silhueta; objetos transparentes deixam passar parte da luz e gravam na imagem as diferentes nuances de acordo com sua opacidade. Depois de exposto à luz, o material sensível é processado quimicamente para fixar a imagem. O processo recebeu vários nomes no decorrer da história: foi chamado de “perfis agenciados pela luz” por Wedgwood; “desenhos fotogênicos” por Fox Talbot, “heliografia” por Nicéphore Niépce; e mais recentemente ficou conhecido como “rayograma”, numa derivação do nome do fotógrafo Man Ray, que utilizou amplamente a técnica (MONFORTE, 1997). Fotogravura Procedimento fotográfico histórico, a fotogravura, ou etchings, é um processo bastante complexo, que envolve procedimentos de gravação e impressão semelhante ao das gravuras em metal por corrosão ácida. A particularidade do processo é que a imagem é feita através da transferência de uma emulsão de gelatina a base de dicromato de potássio, que foi preparada sobre um papel, exposta à luz e depois umedecida e pressionada contra a chapa metálica já preparada com breu. Depois de corroída, a chapa é “entintada” e impressa como uma gravura em metal tradicional. A técnica permite registrar sobre a chapa os meios-tons e os detalhes mais finos da imagem original, mas com uma textura diferenciada. (MONFORTE, 1997) Fotômetro Fotômetro é um instrumento que mede, por meio de uma célula fotoelétrica, a quantidade de luz que incide ou é refletida por um objeto. Os fotômetros embutidos nas câmeras medem apenas a luz refletida pelos objetos. Os fotômetros de mão podem ler a luz refletida e/ou a luz que incide nos objetos. Fótons Partículas quânticas da luz. Pela teoria quântica, os fótons são definidos como as partículas elementares transmissoras de força eletromagnética. Como todas as partículas, os fótons exibem uma natureza dualística: onda e partícula, ou seja, em alguns fenômenos exibem mais claramente a natureza ondulatória e em outros se torna mais evidente a natureza de partículas. Fotossensibilidade Fotossensibilidade quer dizer literalmente “sensibilidade à luz”. É a propriedade que alguns compostos químicos possuem de se modificar quando expostos à luz. Exemplos bastante conhecidos são: o bronzeamento da pele quando exposta ao sol; o enegrecimento da prata; o esmaecimento das cores de um pintura ou de um tecido
247
depois de longo tempo de exposição à luz do sol. Nestes casos houve o escurecimento ou esmaecimento das cores. Os materiais fotográficos, de maneira geral, são constituídos por um composto fotossensível - que enegrece quando exposto à luz - à base de sais compostos de prata. Esses sais, associados a uma gelatina animal, formam o que se conhece por emulsão fotográfica. Geometria euclidiana A geometria euclidiana é a geometria sobre planos ou em três dimensões. Foi desenvolvida por Euclides, considerado o pai da geometria, três séculos antes de Cristo, em um conjunto de livros chamados Elementos. Neles, Euclides formaliza as proposições fundamentais que dominaram a geometria durante milênios. Goma-arábica Procedimento fotográfico histórico cuja emulsão é preparada com uma mistura de goma-arábica, bicromato de potássio ou de amônia e um pigmento. A emulsão é espalhada sobre papel ou outro tipo de suporte. Em seguida, se faz a impressão por contato e o material deve ser exposto a uma luz muito intensa, normalmente se usa a luz do sol. Depois da exposição à luz, a imagem deve ser lavada em água corrente para fixar a imagem. O processo possibilita várias camadas sucessivas, podendo resultar numa imagem monocromática, ou policromada, dependendo do número de impressões e de pigmentos empregados. Heliografia A impressão heliográfica é feita por contato do original com o suporte e a revelação, por meio de vapores de amônia. O cheiro muito acentuado desses vapores constitui uma das desvantagens do processo, outra é a instabilidade de permanência da imagem, ainda que preservada em local sombrio. O baixo custo do papel heliográfico pode ser fator estimulante para a prática de fotogramas. As imagens, normalmente, são nas cores azul, violeta, laranja e vermelho. Luminograma Processo de impressão no qual não se utiliza câmera para formar a imagem. No luminograma, utilizam-se diferentes feixes de luz, como de uma lanterna, diretamente sobre o material sensível que é em seguida processado quimicamente. Platinótipo O platinótipo, ou platinum, é um procedimento fotográfico histórico que utiliza cloreto de platina na solução fotossensível. A imagem deve ser impressa por contato, sob luz intensa. A revelação envolve vários químicos, e o resultado são imagens muito estáveis e com grande definição de detalhes. Profundidade de campo Região de uma cena (com diferentes planos) que se estende à frente e atrás do plano focalizado que aparece na imagem com focalização nítida. Ou seja, os diferentes planos da cena (que formam a imagem em diferentes planos de foco no interior da câmera) são
248
vistos com a mesma nitidez. Isto se deve ao poder de resolução do olho, que não é capaz de diferenciar uma imagem puntiforme de um círculo desfocado de diâmetro menor do que o círculo de confusão. Quimigrama Processo fotográfico no qual não se utiliza câmera para formar a imagem. No quimigrama, ou pintura química, os químicos utilizados no processo de revelação, fixação ou tonalização são usados para “desenhar sobre o papel”, durante o processamento químico. O procedimento é feito sob luz ambiente e o material sensível reage imediatamente. Pode-se “desenhar” com o revelador: após a fixação, os locais que entraram em contato com o revelador ficam pretos e o restante do papel permanece branco. Se for utilizado o fixador, ele é aplicado ao material sensível antes da passagem pelo revelador e em seguida é processado normalmente (interruptor e fixador). As áreas cobertas pelo fixador aparecem brancas sob um fundo preto. Satori Nos dizeres de Suzuki, autor de Introdução ao Zen Budismo: O Satori é uma espécie de percepção interior - não naturalmente a percepção de um objeto específico, mas, por assim dizer, a faculdade de sentir a verdadeira realidade. É uma percepção de ordem mais elevada. Solarização Conhecido também como “efeito Sabattier”, a solarização consiste na inversão dos valores tonais de algumas áreas da imagem fotográfica, que pode ser obtido através da rápida exposição à luz da imagem durante seu processamento. Solstício Em astronomia, solstício é o momento em que o Sol, durante seu movimento aparente na esfera celeste, atinge o seu maior afastamento em latitude, da linha do equador. Os solstícios ocorrem duas vezes por ano: em 21 de dezembro e em 21 de junho. No hemisfério norte o solstício de verão ocorre no dia 21 de junho, e o solstício de inverno ocorre no dia 21 de dezembro. Estas datas marcam o início das respectivas estações do ano neste hemisfério. No hemisfério sul é o contrário. O solstício de verão ocorre no dia 21 de dezembro, e o solstício de inverno ocorre no dia 21 de junho. Van Dyck Processo fotográfico histórico também conhecido como Marron Van Dyck ou Kalitipo, O processo é semelhante ao do cianótipo. A emulsão é preparada com ácido tartárico e nitrato de prata e espalhada sobre o suporte. A impressão é feita por contato e o material deve ser exposto a luz intensa. Em seguida a imagem é lavada em água corrente. O resultado final é uma imagem de tons de marrom-escuro. O emprego de nitrato de prata na fórmula sensibilizadora torna o processo pouco econômico. (MONFORTE, 1997)
249
Vidros ópticos Os vidros ópticos representam o principal material utilizado para a fabricação de lentes. Pequenas alterações nas proporções entre os elementos químicos de sua composição (óxidos de silício, alumínio, cálcio, potássio, chumbo e sódio) permitem obter diferentes vidros, modificando suas características e permitindo uma grande variedade de vidros ópticos que são combinados na produção das objetivas. Materiais plásticos também podem ser utilizados para a produção de lentes, no entanto, sua pequena resistência à abrasão faz com que sejam normalmente usados em associação com o vidro. Algumas objetivas modernas são mistas, ou seja, o primeiro elemento é vidro, e os elementos internos são moldados em material plástico (TRIGO, 1998, p. 52) Vodu No texto, o termo vodu está sendo utilizado como referência a bonecos utilizados em cerimônias da religião vodu, ou vodum. O Vodu é uma manifestação religiosa de tradição afro-americana. O culto religioso popular de caráter sincrético incorpora aspectos do ritual católico-romano. O termo deriva de vodun, "deus" ou "espírito" na língua dos fons. O culto tornou-se espécie de religião oficial da comunidade camponesa do Haiti. O vodu possui uma imensa galeria de deuses aos quais denomina-se genericamente de loas. Muitos adeptos urbanos acreditam que os loas podem ser benévolos, os loas Rada, ou mesmo malévolos, os loas Petro. Cada grupo de praticantes tem seu local para realizar as cerimônias, que envolvem cantos, toque de tambores, danças, preces, preparo de alimentos e o sacrifício ritual de animais. Existem também os paket, que são bonecos feitos em madeira ou cera, representando as pessoas que se quer fazer mal, ou até mesmo em certos casos, eliminar. A esses bonecos, costuma-se atear fogo ou então espetar alfinetes enferrujados em regiões do corpo consideradas vitais, como por exemplo, na área relacionada ao coração.