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Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte,  ano 4,  n. 47,  nov. 2005 

Dispensa de Licitação em face de Situação Emergencial do Contratado¹ Flávio Garcia  

Decisão interessante que se tomou no âmbito do Estado do Rio de Janeiro envolveu a possibilidade do Estado adquirir, para atendimento dos seus programas sociais, leite em pó diretamente da unidade industrial de Itaperuna e das cooperativas da região. Foi relatado que o Estado do Rio de Janeiro ajuizou ação civil pública na qual foi deferida liminar determinando a intervenção em uma fábrica de laticínios, que passou a ser gerida por um colegiado composto de representantes dos cooperados/fornecedores, da municipalidade e de funcionários do Estado. Informou­se que, por se tratar de uma unidade com características apenas fabris, estaria sendo muito difícil cumprir os pagamentos dos débitos existentes, mormente em relação aos fornecedores industriais e, principalmente, aos fornecedores de leite, que na sua absoluta maioria, seria composta de mini e pequenos proprietários rurais, que, juntamente com os empregados, envolveriam 85 mil famílias. Alegou­se, portanto, que o não pagamento dos débitos poderia provocar um verdadeiro caos social e que, tal situação, poderia ser considerada emergencial. A licitação é um princípio jurídico que tem sede constitucional no art. 37, XXI, da CF, verbis: XXI _ ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Da norma constitucional é possível extrair que apesar da licitação ser a regra nas contratações públicas, não pode ser encarada como um dever absoluto, já que o próprio legislador constitucional conferiu ao legislador ordinário a prerrogativa de ressalvar as hipóteses de não cabimento da licitação. Isto se dá por uma razão muito simples. A licitação é um instrumento da ação estatal, não constituindo um fim em si mesma.2 É apenas um meio para o atingimento de uma determinada finalidade pública prevista em lei ou na própria Constituição Federal. Se, no caso concreto, a licitação não se revelar como a forma apta ao atendimento desta finalidade, não há nenhuma razão para realizá­la, sob pena de não dar cumprimento a finalidade pública, objetivo a ser perseguido pelo administrador. Esta é a lógica da contratação direta, ou seja, aquela que é feita sem prévio procedimento licitatório e que foi expressamente reconhecida nos casos de licitação dispensada (art. 17, da Lei nº 8.666/93), dispensa (art. 24, da Lei nº 8.666/93) e de inexigibilidade (art. 25, da Lei nº 8.666/93). Com efeito, na dispensa, a competição é viável, mas se confere ao administrador público, diante do caso concreto, a possibilidade de afastá­la justamente para o atendimento do interesse público. Sobre o tema, vale mencionar a lição de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes:3

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O princípio constitucional da licitação, como todas as regras de Direito, não tem um valor absoluto, devendo ser coordenado com os outros princípios do mundo jurídico, conforme exposto.

Assim, em alguns casos previamente estabelecidos pelo legislador, o princípio da licitação cede espaço ao princípio da economicidade ou ao primado da segurança nacional, ou ainda para garantir o interesse público maior, concernente à necessidade de o Estado intervir na economia. Em todos os casos delineados pela Lei n.º 8.666/93, em que a licitação foi dispensada ou considerada inexigível, pelo menos no plano teórico, entendeu o legislador estar em confronto o princípio jurídico da licitação e outros valores igualmente tutelados pela ordem jurídica, tendo sido aquele subjugado por um desses. No caso ora em exame, é narrada situação de crise, que será acentuada caso os gestores do colegiado que assumiram a direção da fábrica de laticínios não produzam receitas para atender a todas as demandas, em especial, para regularizar os débitos com os fornecedores de leite, que são, na sua maioria, mini e pequenos proprietários rurais. Como sabido, uma das hipóteses de dispensa de licitação é, justamente, o caso de situações emergenciais. Leia­se, a propósito, o art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93: Art. 24 _ É dispensável a licitação:

(...)

IV ­ nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de cento e oitenta dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos. Deve­se lembrar que a emergência é um conceito jurídico indeterminado, a ser valorado única e exclusivamente pelo administrador público diante do caso concreto, observados, por óbvio, os princípios constitucionais e legais que limitam a discricionariedade nesta integração da norma. Poder­se­ia dizer que, in casu, a situação emergencial não é da Administração Pública contratante, mas sim do contratado e que, portanto, não estaria autorizada a utilização da norma insculpida no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93. No entanto, tal raciocínio se revela equivocado, na medida em que desconsidera a distinção entre interesse público primário e secundário, consagrada na doutrina pátria. Confira­se, neste sentido, a lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:4 Mas os próprios interesses públicos também se distinguiram em subcategorias de

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importância prática, como a diferenciação entre interesses públicos primários, que dizem respeito à sociedade, e os interesses públicos secundários, que se referem ao próprio Estado, enquanto pessoa moral a que se imputam direitos e deveres, valendo observar que os interesses públicos secundários só são considerados legítimos quando sejam instrumentais para o atingimento dos primários. Ora, no caso em tela, o objetivo é a tutela do interesse público primário da sociedade, seja na defesa de interesses coletivos de produtores rurais, como também, e, principalmente, na defesa do interesse difuso de toda a população fluminense ver preservada a atividade econômica em âmbito estadual, conforme salientado pelo Estado do Rio de Janeiro na peça exordial da ação civil pública mencionada. O que está em jogo, portanto, não é apenas a compra de leite em pó ­ que poderia ser feita com a utilização da via da licitação ­ mas "valores que transcendem a própria licitação", como a manutenção da atividade econômica de pecuária leiteira das regiões Norte e Noroeste do Estado e a repercussão social do não pagamento de débitos que atingiriam milhares de pessoas que dependem única e exclusivamente desta atividade para sua sobrevivência. Daí estar o administrador público autorizado a ponderar tais interesses e optar, no caso concreto, pela contratação direta, mormente se restar caracterizado que a licitação prestará um desserviço ao atendimento do interesse público. A hipótese comporta concurso de objetivos administrativos, conforme já assentado por Diogo de Figueireido Moreira Neto no ofício nº 40/88 _ DFMN,5 quando analisava a possibilidade da CONERJ (Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro) contratar diretamente com o estaleiro EMAQ _ Engenharia e Máquinas S/A, que estava em processo falimentar e que tinha no BANERJ seu principal credor e síndico. Confira­se: Com efeito, há um concurso de objetivos administrativos vinculados entre si, quais sejam: o reequipamento da frota da CONERJ, prestadora de serviços públicos, o amparo social aos empregados da EMAQ, o reequilíbrio das finanças do BANERJ, o aproveitamento de crédito específico aberto pelo BNDES, e a manutenção de uma atividade econômica importante, que é a construção naval, vocação industrial do Estado, em funcionamento no seu território, inclusive, evitando a dispersão da mão­ de­obra especializada.

(...)

Com efeito, a licitação torna­se impossível quando há essa contradição lógica entre valores a serem atendidos; no caso, a Administração tem absoluta discrição para atender aqueles que, a seu juízo de oportunidade e conveniência, lhe pareçam de maior relevância.

Por esse motivo, o concurso de objetivos administrativos tem sua peculiaridade doutrinária: ele ocorre quando o Estado visa a obter, seja num só ato ou contrato,

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seja em vários, vinculados entre si, o atendimento de distintos interesses públicos. Assim, o Estado do Rio de Janeiro, que tem a necessidade de adquirir leite em pó para os seus programas assistenciais, poderá utilizar seu poder de compra para atender outros valores de elevada e reconhecida importância, em efetivo concurso de objetivos administrativos. É a idéia de função regulatória da licitação. Frise­se, entretanto, que eventual opção pela contratação direta não afasta a necessidade de atendimento dos requisitos formais arrolados no art. 26, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, a saber, a caracterização da situação emergencial pelo administrador público, a razão da escolha do fornecedor e, principalmente, a justificativa do preço, que deve estar de acordo com os parâmetros do mercado, sob pena de ofensa ao princípio da economicidade. Ainda deve ser observado que o dimensionamento da compra deve levar em consideração a regra do art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93, ou seja, limitando­se apenas aos bens necessários ao atendimento da situação emergencial. Por fim, torna­se fundamental que, concomitantemente ao processo de contratação direta, seja instaurado procedimento licitatório para as futuras aquisições de leite, até porque a expectativa é que esta situação fática aqui descrita seja excepcional.   1 Baseado no Parecer 03/04 _ FAG proferido no âmbito da Procuradoria Geral do Estado e

aprovado pelo Exmo. Sr. Procurador­Geral do Estado do Rio de Janeiro. 2 Neste sentido, veja­se a lição de MARÇAL JUSTEN FILHO in Comentários à Lei de Licitações e

Contratos Administrativos. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2002, p. 63: "É necessário ter consciência de que a licitação tem natureza instrumental. É a via prevista pelo Direito para atingir certo fim, com observância de certos princípios e satisfação de valores específicos." 3 Contratação Direta Sem Licitação. 5. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p.178. 4 Curso de Direito Administrativo. 12. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 9. 5 Ofício expedido no âmbito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este conteúdo na versão digital: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Flávio Amaral. Dispensa de licitação em face de situação emergencial do contratado.  Fórum de Contratação e Gestão Pública ­ FCGP, Belo Horizonte, ano 4, n. 47, nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 28 jul. 2015.

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