Fernando E Outroos Pessoas

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Fernando e outros Pessoas Sofia Almeida Janeiro de 2007

Fernando e outros Pessoas

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I Corria o ano de 1888. Era o dia 13 de Junho e o relógio marcara três horas da tarde, havia vinte minutos. No quarto esquerdo do nº 4 do largo de S. Carlos, na cidade de Lisboa, depois de cerca de nove meses de expectativa e de um parto doloroso, nasce, finalmente, um bebé do sexo masculino, filho de Maria Madalena Pinheiro Nogueira e de Joaquim Seabra Pessoa. O menino era pálido, os seus poucos cabelos eram pretos, bem como os olhos. Seria baptizado de Fernando António Nogueira Pessoa. Os seus familiares não tinham consciência disso, mas tinham mais razões para agradecer a Deus e a Santo António – cuja festa se celebrava naquele mesmo dia – do que apenas o de terem tido um filho lindo e aparentemente saudável. Maria Madalena acabara de trazer ao mundo um dos maiores poetas portugueses, e, talvez, mundiais, num país que continuaria a celebrar o santo (ele apenas falava aos peixes!) e a ignorar o génio. Um ano antes, na cidade do Porto, no dia 19 de Setembro, passados cinco minutos das quatro da tarde, nascera outro rapazinho, de pele morena e cabelo castanho escuro, de nome Ricardo Reis, filho de Joana Santos e Pedro Reis, que, no futuro, quando fosse adulto seria grande amigo de Fernando. Trezentos e sessenta e cinco dias depois do nascimento de Pessoa, em Lisboa, em dia e mês desconhecidos, era trazido ao mundo um bebé pálido, magro, de olhos azuis. Ainda tinha pouco cabelo, como é natural, mas já se percebia que era loiro. O seu nome era Alberto Caeiro. Era filho de dois agricultores de nome João Caeiro e Maria da Conceição Teixeira. Este também seria não Fernando e outros Pessoas

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só próximo, não sendo propriamente os centímetros que mediriam essa proximidade, mas também seu Mestre, bem como de Ricardo e de Álvaro, o terceiro grande elemento desta corte mítica. Esse nasceu no ano seguinte, em Tavira, no Algarve no dia 15 de Outubro, do ventre de Elisa Seabra, que o concebeu com a ajuda de José Miguel de Campos. Um rapazinho magro, de pele não muito clara nem muito morena, arruivado, um pouco cabeludo para recém-nascido, mas com um espírito azul. Assim nasceram, entre 1887 e 1890 inclusive, quatro grandes poetas que, apesar de bons amigos, poucos pontos de unidade partilhavam, em vários aspectos. Tinham um único em comum – desapareceram quase todos ao mesmo tempo. Em tudo o resto, eram muito diferentes. Antes de mais nada, tinham tido infâncias e educações díspares.

Fernando aprendera a ler e a escrever ainda em Portugal. Com seis anos recebe cartas de um amigo da sua idade, chamado Chevalier de Pas, que vivia em Évora. Fernando conhecera-o enviando uma carta por brincadeira para uma morada que vira num anúncio de jornal. Chevalier respondeu à missiva em que Fernando dizia procurar um amigo com quem conversar, já que o único irmão que até à altura tivera já morrera, tuberculoso. Assim começaram a trocar cartas regularmente, falando das famílias de ambos. Chevalier era filho de uma senhora portuguesa chamada Ana Maria Salgueiro. O pai de Chevalier era francês, chamava-se Julien de Pas, nascera em Paris. Ana Maria conhecera-o cerca de dez anos antes, quando fora a França visitar um primo doente de quem muito gostava. Esse primo acabara por morrer, cerca de três meses Fernando e outros Pessoas

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depois da sua chegada a Paris. Ana Maria não regressou logo a Portugal, pois estava noiva de Julien. Casaram quatro meses depois, quando ela tinha já ultrapassado o luto. Dois anos decorridos, tiveram um filho a quem chamaram Chevalier. Três anos mais tarde vieram viver para Portugal, regressando à terra natal da qual Ana Maria já não suportava as saudades. No ano seguinte nasceu-lhes uma filha que foi baptizada de Maria Luísa, tal como a avó materna. O nome dela não é exactamente esse, dissera Chevalier, numa das suas cartas. Minha mãe, que fala quase sempre português, chama-lhe Maria Luísa e meu pai, que fala quase sempre francês, chama-lhe Marie Louise. Eu chamo-lhe Maria à frente de minha mãe e Marie à frente de meu pai. É um pouco ao acaso, consoante as circunstâncias. Fernando invejava-o um pouco por ter, ao menos, uma irmãzinha pequena com quem podia brincar e a quem podia ensinar tudo, cumprindo rigorosamente a sua função de irmão mais velho. Tinha imensas saudades de seu irmãozinho, morto de tanto sangue que deitara pela boca. Fernando e Chevalier trocaram cartas, como num mesmo corpo, durante mais de um ano. Entretanto, a mãe de Fernando ficara noiva de João Miguel Rosa, que trabalhava como cônsul em Durban, na África do Sul. Fernando teve de mudar de continente aquando do casamento. Escreveu a sua última carta a Chevalier poucos dias antes da partida. Vou ter imensas saudades tuas, escreveu ele. Quem me dera poder escrever-te de Durban, como fazia aqui em Lisboa. Mas, como sabes, é muito mais dispendioso fazê-lo de tão longe. A realidade nunca alimentou o espírito. O mito será sempre o nada que é tudo! Fernando e outros Pessoas

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Em Durban, Fernando fez a Primária no convento de West Street e entrou, três anos mais tarde, para a High School. Torna-se um excelente aluno. Entretanto, durante o liceu, conheceu outro amigo com quem podia trocar cartas. Chamava-se Alexander Search e era um ano mais velho do que Fernando. Seu pai chamava-se Richard Search e era inglês. Era violinista e durante os primeiros anos da vida adulta ganhara a vida tocando violino a bordo dos navios que ligavam Londres a Durban. Conhecera a primeira mulher numa noite em que acabara de chegar a Durban e fora pernoitar numa hospedaria. Esta chamava-se Katherine Jones. Fora bastante difícil casar com ela pois seu pai estava muito reticente, no início, em dar a mão da única filha que tinha a um simples violinista. Assim, só conseguiram casar dois anos depois de se terem conhecido. Richard e Katherine passaram a viver dos rendimentos da hospedaria, que o pai de Katherine, entretanto, lhes deixara quando morreu. Tiveram três filhos. Dois rapazes, Arthur e Alexander e uma menina Elizabeth, a mais nova. Alexander era o filho do meio, Katherine, contudo, morreu dois anos depois do nascimento da filha com uma pneumonia, Richard casou, dois anos mais tarde com uma senhora inglesa, chamada Sarah Corner, de quem teve dois filhos gémeos: um rapaz, Thomas e uma menina, Helen. Alexander tinha uma grande queda para a poesia. O que motivou outros desentendimentos com a madrasta. Além de Sarah ser diferente da sua progenitora, esta detestava poesia. Desde pequeno que alinhava versos, alguns deles nos bancos da escola primária e que, já na altura, faziam as delícias de seus professores. Fora através da poesia que conhecera Fernando. Alexander tinha o hábito de enviar os seus poemas a vários jornais, na esperança de estes serem publicados, reconhecidos. Uma vez, Alexander Fernando e outros Pessoas

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enganara-se a escrever a morada no envelope um dos seus poemas fora parar a casa de Fernando. Este ficou admirado com a composição poética. Escreveu de imediato para a morada constante do remetente. Assim conheceu Alexander. Os dois passaram a trocar cartas regularmente. Alexander enviou ao seu novo amigo outros poemas que ele escrevera. Falavam, por isso, não só de poesia, mas também dos escritores ingleses que ambos liam, tais como Charles Dickens e Edgar Alan Poe. Entretanto, Fernando continuava a estudar, revelando-se um excelente aluno. Quando fez o exame de admissão à Universidade do Cabo ganhou o Prémio Rainha Vitória pelo seu ensaio em inglês, no ano de 1904. Que mal fizera em não se nacionalizar inglês! Ao menos, os ingleses dar-lhe-iam mais valor enquanto vivo do que os ingratos dos portugueses, que só lhe reconheceram o mérito depois de morto. Infelizmente,

no

ano

seguinte,

Fernando

regressou

definitivamente a Lisboa. Matricula-se no Curso Superior de Letras, que abandona ao fim de pouco tempo. Passou, então, a trabalhar como correspondente estrangeiro, ganhando com a tradução de cartas comerciais apenas o essencial para sobreviver.

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II Entretanto, no Porto, Ricardo Reis crescia. Tivera apenas um irmão mais velho, chamado David. Seus pais eram católicos e conservadores, portanto matricularam ambos os filhos num colégio jesuíta. Sob a disciplina rígida dos jesuítas, Ricardo cedo se revelou uma criança calma, sossegada e obediente. Graças à prioridade que era dada ao latim, esta tornou-se a sua segunda língua. Quando terminou a primária e passou para o liceu, fascinou-se com a cultura latina, que estudava nas aulas, sobretudo com o poeta Horácio. Entretanto, nos seus tempos livres, ia até à Biblioteca Municipal e perdia-se a estudar a cultura grega. Estudou a mitologia, a literatura e a filosofia. Interessou-se bastante pelo Estoicismo de Zenão e pelo Epicurismo. A par disto coleccionava arcaísmos que atirava aos amigos, surpreendendo-os: “o ósculo maduro de um pôr-do-sol salva-nos, numa jornada na meta de Caronte.” Em sequência da polémica gerada pelo Mapa Cor-de-Rosa e pelo Ultimato – polémica que na altura teve um impacto tão grande quanto hoje têm o escândalo Casa Pia ou o Processo Apito Dourado com umas quantas Carolinas Salgado – que colocou em crise os valores e a identidade nacional e em que se pôs a hipótese de acabar com a Monarquia e implantar a República, Ricardo seguiu o exemplo de seu pai e tomou uma posição conservadora, monárquica. Tal como ele, defendia os valores tradicionais: respeito, obediência, disciplina, comedimento, acatamento; desde os dezasseis anos acompanhava o pai nas actividades cívicas, nas discussões, nos cafés e no Grupo Associativo do bairro. Fernando e outros Pessoas

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Ao terminar o liceu, formou-se em Medicina e abriu um pequeno consultório na Ribeira do Porto.

O terceiro elo da corte mítica, mais conhecido por Alberto Caeiro, viveu os primeiros quatros anos da sua vida em Lisboa. Os pais eram agricultores mas mudaram-se para a capital com o objectivo de alcançar melhores condições de vida. O pequeno Alberto parecia não gostar muito de viver na cidade. O único local que lhe agradava verdadeiramente era o Jardim da Estrela. Aqui, o menino divertia-se correndo atrás dos pardais e dos pombos, colhendo e coleccionando folhas e flores, bem como brincando com as outras crianças da sua idade. Contudo, a tragédia espreitava. João Caeiro sucumbiu devido à tuberculose, pouco depois do quarto aniversário do filho e quando a mulher se encontrava nos primeiros meses da sua segunda gravidez. Maria da Conceição também morreu, poucos meses depois, ao dar à luz uma menina a quem chamaram Eduarda. As duas crianças foram, então, viver com a tia-avó, Elvira Seabra, na Quinta de Santo Estêvão, perto de Benavente, no Ribatejo, onde nos dias de hoje se localiza, entre outros, um condomínio de luxo, com golfe e uma escola de equitação. Foi adiada, sem data prevista de conclusão, a construção de uma rotunda com uma estátua no centro homenageando Caeiro, enquanto que o abate dos sobreiros que o poeta plantou não precisou de adiamento. É a crise… A tia Elvira ensinou ambas as crianças a ler, tanto as letras como as estrelas, a escrever e a contar, não pelos dedos mas pelas bolotas, pelas azeitonas e pelas maçãs. Os seus estudos limitavamse a isso. Fernando e outros Pessoas

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O pequeno Alberto adorava a vida campestre. Passava os dias a correr pelos campos, a rebolar na erva verde, a trepar aos sobreiros para colher bolotas, a brincar com os animais. À medida que crescia, ia aprendendo com os empregados de sua tia a cultivar todo o tipo de legumes e árvores de fruto – incluindo os pobres sobreiros que seriam abatidos cem anos mais tarde, sem dó nem piedade, por empresários sem escrúpulos, com objectivos meramente económicos, indiferentes ao carinho com que Alberto lançara à terra as sementes que se transformaram naquelas belas árvores. Vivia humildemente, da pequena herança deixada pelos pais falecidos. Durante o dia comungava com a Natureza, observando tudo o que o rodeava, desde as pequenas formigas que juntavam migalhinhas para o Inverno que se avizinhava até aos fortes touros a que se dedicava o seu primo Manuel. À noite, reflectia sobre tudo o que vira durante o dia. Quando regressou definitivamente a Portugal, Fernando passou a visitar o seu amigo regularmente. Alberto ajudava-o a abstrair-se da sua lucidez obsessiva que o acompanhava noite e dia.

Também Álvaro de Campos se tornara um homem, por essa altura. Passou a infância na sua terra natal, Tavira, Algarve, vivendo com seus pais e sua irmã mais velha, chamada Filipa. Cedo mostrou possuir um grande amor pelo mar. Passava dias e dias sentado na areia quente do sol, de olhos pregados no horizonte, sonhando com barcos, navios, viagens. De todos os géneros. Embarcações, desde as simples canoas dos povos Fernando e outros Pessoas

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primitivos até aos paquetes modernos. Álvaro preferia claramente os últimos. Quando não podia ir à praia, em dias de chuva, o pequeno Álvaro pegava em restos de materiais e construía pequenos barcos de papel (este foram os primeiros que ele construiu) e, mais tarde, de restos de madeira e cortiça, com pedacinhos de pano presos a pauzinhos a fazerem de velas e mastro. Estes barquinhos eram, depois, postos a navegar nos bravos mares da pia de lavar roupa. Alguns anos mais tarde, tornou-se o sócio número um milhão da Escola de Marear de Sagres, cumprindo um sonho antigo de seguir as pisadas do Infante D. Henrique. Contudo, a mente curiosa de Álvaro não se limitava aos navios. O menino interessava-se por máquinas, veículos e por tudo o que se relacionasse com o progresso e as novas tecnologias, sendo

mesmo

considerado

um

profeta

do

futuro

choque

tecnológico. Sentia um fascínio especial pelos automóveis, veículos em ascensão. Foi até responsável pelo fabrico do primeiro carro de brinquedo, o TAV I, criado a partir de restos de cartão, arame e rolhas de cortiça para os pneus, na prestigiada oficina de Tavira. O quarto de Álvaro, para os amigos. Com os testes ao seu recém construído TAV I, Álvaro também inaugurou os caminhos de terra batida como pistas de corridas de automóveis. Pistas estas que, nos dias de hoje, são incluídas nas etapas do rali Lisboa-Dakar, com índice de dificuldade máxima. Há quem diga que o menino profetizara a realização de tão importante evento em Portugal, com um século de antecedência. Claro que o poeta foi devidamente homenageado por Macário Correia no início das edições de 2006 e 2007 e, certamente, o voltará a sê-lo no ano que vem.

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Ao terminar o liceu, Álvaro viajou para a Escócia, a fim de se formar em Engenharia Mecânica. Foi-lhe complicado adaptar-se ao clima frio do norte da Grã-Bretanha, habituado como estava ao sol do Algarve. O pior fora ter chumbado logo no primeiro ano por acumulação de faltas. Acontece que Álvaro faltava às aulas do seu curso para ir assistir às cadeiras de Engenharia Naval, sem estar matriculado. Ao fim de vários anos, lá se tornou engenheiro dessa especialidade. Como engenheiro naval, correu o mundo de ponta a ponta. Explorou várias colónias em África, conheceu os ascendentes Estados Unidos da América – no nível em que actualmente se encontram, é arriscado considerar os acontecimentos do último século uma “ascensão”. É preferível considerar o oposto – navegou nos mares das Caraíbas, explorou as ilhas da Indonésia. Ao fim de seis anos, contudo, reformou-se compulsivamente, acusado de tráfico de estupefacientes. Para mais detalhes, consultar o poema “O Opiário”, se faz favor. Vem, então, viver para Lisboa, onde deambula pelas ruas da cidade, observando minuciosamente, a mando da sua mente curiosa, automóveis, comboios, navios e aviões. Há quem diga que Álvaro ainda vagueia pela cidade, atento aos navios, alguns bastante prestigiados, que entram pelo Tejo adentro. Dizem que lê revistas de automóveis, como a AutoFoco, que está atento aos novos modelos de veículos, que segue os Grandes Prémios de Fórmula 1 e o Lisboa-Dakar, gritando por Tiago Monteiro e por Carlos Sousa, respectivamente, e que mal pode esperar pela construção do TGV.

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III Passaram-se alguns anos. Encontrávamo-nos, agora, no ano de 1914, no dia 17 de Abril. Chovera imenso durante toda a manhã e no princípio da tarde. Só ao fim do dia é que o Sol se atrevera a brilhar por entre as nuvens, algumas ainda acinzentadas e ameaçadoras. Como um interveniente mais tímido de uma discussão, que ouvira o outro emissor falar horas e horas a fio, sem ter hipótese de mostrar as suas ideias, e que agora, finalmente, tivera permissão para falar, ainda que hesitantemente, com o que estava na berlinda ainda muito desconfiado. Fernando saíra do trabalho pouco antes. Resolveu sentar-se na esplanada do café A Brasileira do Chiado. Veio um empregado. - O que deseja? O habitual? – perguntou ele, que já conhecia Fernando. - Sim, por favor, Sr. Gomes Salcede – respondeu o poeta. - Vem já a caminho. O empregado retirou-se. Fernando abriu a sua pasta de cabedal preta e retirou um pequeno livro, de capa cinzenta. Era um exemplar de “Os Sete Mistérios”, de Arthur Conan Doyle, um dos seus autores preferidos. Pousou-o em cima da mesa e pôs-se à procura do pacote de cigarros, que comprara nessa manhã. Encontrou-o do bolso do casaco. Acendeu um cigarro, ao mesmo tempo que Gomes Salcede regressava com uma chávena de café. - Vai querer pagar já? – perguntou o empregado. - Com certeza – respondeu Fernando tirando dois tostões do bolso e dando-os a Gomes Salcede. Fernando e outros Pessoas

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Mal o empregado saiu, Fernando abriu o livro e pôs-se a ler. Assim ficou, durante mais de meia hora, lendo o policial, ao mesmo tempo que bebericava o seu café e fumava o seu cigarro – estar assim era o seu ideal de felicidade. A certa altura, ouviu uma voz recitar: Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto, Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje? Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento, O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro, O Momento estridentemente ruidoso e mecânico, O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes De ferro e do bronze e da bebedeira dos metais. Fernando levantou os olhos do livro e olhou em seu redor. Viu um homem alto, de cabelo arruivado, pele bronzeada, cara redonda e olhos castanhos-claros, como avelãs. Olhava, com cara de entusiasmo, em seu redor. Estava tão entretido a observar o cenário que não caminhava direito, deslocando-se aos “ss”. Fernando pôs-se a observar o sujeito, com ar divertido. Este agora recitava, cada vez mais excitado: Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. Engatam-me em todos os comboios. Içam-me em todos os cais. Giro dentro das hélices de todos os navios. Eia! Eia-hô! Eia! Eia! Sou o calor mecânico e a electricidade! Eia! E os rails e as casas de máquinas e a Europa! Fernando e outros Pessoas

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Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia! Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá! Hup-lá, Hup-lá, hup-lá-hô, Hup-lá! Hé-há! Hé-hô! Ho-o-o-o-o! Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z! Ah não ser eu toda a gente e toda a parte! Declamado

o

último

verso,

Fernando

aplaudiu,

com

entusiasmo. O homem calou-se, parou de andar, e pôs-se a olhar em redor, como para descobrir a origem daqueles aplausos. Foi então que descobriu Fernando, sentado numa mesa a poucos metros de distância de si. - Belos versos! – elogiou este. - Muito obrigado! – agradeceu o sujeito, sorrindo. - Venha sentar-se aqui – ofereceu Fernando, apontando para a cadeira vazia à sua frente – Como se chama? - Álvaro de Campos! – exclamou este, estendendo-lhe a mão. - Fernando Pessoa – respondeu o que estava na berlinda, apertando a mão do companheiro. Álvaro pediu um café, tal como Fernando fizera. De seguida, os dois puseram-se a conversar acerca deles próprios. Álvaro contou-lhe tudo sobre as viagens que fizera, a bordo do navio Argonauta. - O amigo Fernando devia tê-lo visto! Belo barco, o Argonauta, belo barco! Pesa sessenta mil toneladas! – exclamava Álvaro. Fernando cedo percebeu que ele falava Fernando e outros Pessoas

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quase sempre por exclamações – Enfim, tive de o entregar ontem. Ah, que saudades terei dele! Transportava especiarias desde Sidney, até Londres. Enfrentou muita onda, muita maré, muita tempestade, aquele navio! É melhor do que o Titanic, mil vezes melhor! Não haverá icebergue que o faça naufragar! Hoje, o Argonauta foi convertido num navio frigorífico. Dedicase ao transporte de crustáceos, sardinhas e bacalhau entre a Escócia, Portugal e a Noruega. - Mas, como deve calcular, também tenho os meus passatempos! Quando não estava a navegar, ou a trabalhar nos meus projectos, dedicava-me a escrever poemas. - Ah, como aquele que estava a recitar? – perguntou Fernando, interessado. - Sim, sim! Chama-se Ode Triunfal! Quer lê-lo? Quer dizer… tem duzentos e quarenta versos, não sei se consegue lê-lo todo à primeira – avisou Álvaro, retirando da sua pasta uma pequena resma de folhas dactilografadas. - Com certeza – respondeu Fernando, aceitando as folhas que o seu novo amigo lhe estendia. Deu uma leitura rápida pela maioria das estrofes. Depois, sentenciou: - São versos muito interessantes, meu caro Álvaro. Muitas interjeições, muitas onomatopeias, muitas exclamações… Sabe, eu também escrevo poemas. Mas são diferentes do seu. O senhor não usa rimas, tem versos com métricas completamente diferentes… Eu preocupo-me bastante com isso nos meus textos… Fernando e outros Pessoas

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- Ora! Para que servem as rimas? A métrica? Não passam de formalismos, de gaiolas! Como se pode sentir nestas gaiolas? Fernando não respondeu, aproveitando para acender um novo cigarro. - O senhor também tem consigo algum dos seus poemas? – perguntou Álvaro. - Não, infelizmente não. Deixei-os em casa. Mas, se quiser, um dia destes trago-lhos para o Álvaro ler. - Ainda bem. Eh, olha quem vem lá! – exclamou Álvaro, de repente, vislumbrando um conhecido seu, por entre a multidão.

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IV O homem era muito pálido e muito magro, com ar frágil. Tinha cabelo louro rapado e dois olhos muito grandes, muito vivos, muito azuis. Vestia algo que se pode considerar um antepassado das actuais jardineiras, uma camisa meio desbotada às flores e um chapéu de palha da Tommy Hilfiger daquele tempo, mas com etiqueta falsa, comprado numa feira aos ciganos. - É um velho amigo meu, Alberto Caeiro! – informou Álvaro. Pôs-se a chamar – Alberto, Alberto, meu amigo! Venha cá! - Álvaro, há quanto tempo! – exclamou o sujeito, com um sorriso rasgado, apertando a mão ao seu amigo – Como está? - Muito bem, obrigado! – respondeu Álvaro – Olhe, Fernando, este é o meu amigo Alberto Caeiro. Alberto, este é Fernando Pessoa. - Prazer conhecê-lo. Não se quer sentar connosco? – convidou Fernando. - Claro – disse Alberto, sentando-se na única cadeira vazia da mesa, depois de Álvaro retirar a sua pasta que pousara nela. - De onde é que vocês os dois se conhecem? – quis saber Fernando. - Conhecemo-nos há cerca de dois anos – contou Álvaro – Vim passar umas férias a Portugal e aproveitei para conhecer melhor o nosso interior. Encontrei o Alberto a guardar rebanhos, perto da estrada por onde circulava no Fernando e outros Pessoas

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meu Chevrolet que estava sempre a piscar o farol. Lembrase do nosso primeiro diálogo? - Se me lembro – respondeu Alberto. Ele e Álvaro começaram a representar o primeiro diálogo que tinham travado. - Olá, guardador de rebanhos, aí à beira da estrada – começou Álvaro – Que te diz o vento que passa? - Que é vento, e que passa, e que já passou antes, e que passará depois – respondeu Alberto – E a ti o que te diz? - Muita coisa mais do que isso – garantiu Álvaro – Fala-me de muitas outras coisas. De memórias e de saudades e de coisas que nunca foram. - Nunca ouviste passar o vento – observou Alberto – O vento só fala do vento. O que lhe ouviste foi mentira, e a mentira está em ti. - Foi deveras interessante para primeira conversa – comentou Fernando. - Pois é, Fernando. Não sei se sabe mas este senhor é o meu Mestre! – anunciou Álvaro. - Oh, não diga isso – pediu Alberto, modestamente. - A sério? – interessou-se Fernando – Fale-me mais de si, Alberto, gostava de conhecê-lo melhor. E Alberto falou. Contou-lhe sobre a sua infância, que guardava rebanhos e que vivia em comum com a Natureza. Nos tempos livres escrevia, uma espécie de poemas, que não o eram bem. Chamou-lhes “prosas em forma de verso”. - Vim cá à cidade para visitar meu primo Luís, que adoeceu – explicou ele – Aproveitei para comprar sementes e um novo cajado. Como não estou muito abonado, fui a uma loja chinesa. O que comprei parecia muito bom, tinha Fernando e outros Pessoas

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bússola e tudo. Mas, uma semana depois, quando estava no meu quarto de hotel, ao mudar de sítio, bati acidentalmente num móvel e partiu-se logo. - Mais valia ter gasto um pouco mais, mas ter comprado um cajado com mais qualidade – comentou Fernando. - Eu sei, mas o que quer. Ás vezes mal tenho dinheiro para comer… Mas, de resto, não me consigo entender dentro da cidade. Sabe, em vim de carroça puxada pelo meu jumento, o Jeremias. No outro dia, deixei-o na Avenida Vítor Cordon. Roubaram-lhe as cenouras que eu lhe deixei para comer e, ainda por cima, levei uma multa por “conspurcar

a

via

pública

com

resíduos

sólidos

provenientes do propulsor do veículo com a matrícula 297 – PNV, com registo da Câmara Municipal de Benavente”. -

Tens é de arranjar um Chevrolet! – exclamou o Álvaro – Aquilo é que é veículo! Uma maravilha! Vruuuuuuuum!

Fernando e Alberto trocaram sorrisos cúmplices.

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V Nesse momento, um senhor vestido com um fato escuro e de ar sério, que estava sentado numa mesa ao lado meteu conversa. - Os senhores desculpem-me, mas não consegui evitar ouvir – começou ele – Ouvi-os a conversarem sobre poesia e eu levantei as orelhas, pois também escrevo poemas… - Então junte-se ao clube! – exclamou Álvaro – Puxe uma cadeira e sente-se connosco! Qual é o seu nome? - Ricardo Reis – respondeu o homem, sentando-se – Sou médico e vivo no Porto. - E o que é que o traz por Lisboa? – perguntou Fernando. - Uma

Conferência

Transmissíveis



sobre

Doenças

respondeu

Ricardo,

Socialmente com

visível

desagrado – Isto 60 anos antes do aparecimento dos primeiros casos de SIDA e de transmissão do VIH, não faz sentido! Este país não lembra a Plutão! – mal sabia o nosso

sábio

médico

que

o

planeta

referido

seria

despromovido de planeta passando a algo confuso, entre lua e asteróide – Ao menos, daqui a uns tempos saio daqui e vou para o Brasil. - Para o Brasil? – estranhou Alberto – Porquê? - Ora, porquê? Por causa da República, meu caro Alberto! - Estou a ver que o senhor é monárquico… – comentou Fernando. - Não consigo viver num país em que o povo governa – declarou Ricardo, com ar solene – Pelo andar da carruagem ainda vem aí democracia… - Eu, no início, tinha muitas esperanças de que a República fizesse o país renascer de uma vez – admitiu Fernando – Fernando e outros Pessoas

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Mas, até agora, a situação só tem piorado, começo a pensar se valeu a pena… - Eu nunca me deixei enganar por aqueles ignorantes disfarçados de políticos – atalhou Ricardo – Antes era só um governante, agora é uma súcia deles. Quando isto tudo cair de vez, só um republicano disfarçado de rei é que sobe ao poder. - Eu não concordo com o senhor – retorquiu Álvaro – A República foi a melhor coisa que nos aconteceu! Termos um Governo eleito pelo povo, eleva-nos ao nível dos outros países europeus! Teremos mais riqueza, mais cultura, mais progresso! Em suma, Lisboa feita Londres! - Era o que eu queria, mas não me parece que estejamos a caminhar para tal – confessou Fernando – Mas era o que eu queria! Portugal, um país minúsculo promovido a mundo! O apogeu pátrio de um povo com história! Só assim nos conseguíamos libertar desta miséria. - O Fernando ainda sonha demais – comentou Ricardo – Não vale a pena. Se os deuses quisessem, nunca teríamos deixado de ser grandes, de que serve cansarmo-nos? - Eu sou diferente de si – afirmou Fernando – Se já fomos grandes num passado distante, porque não haveríamos de voltar a sê-lo? Sei que é essa a vontade de Deus, falta é gente que faça por cumpri-la. - E o Alberto, não tem uma opinião sobre tudo isto? – perguntou Álvaro, voltando-se para o camponês – Tem estado calado há um bom bocado, não tem nada a dizer sobre isto?

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- Por acaso, tenho – respondeu Alberto – Acho que os senhores pensam demais, preocupam-se demais e vêem pouco. - Como assim? – interrogou Ricardo. - Os senhores nunca olharam em vosso redor como devem olhar, pois não? Deviam preocupar-se em ver tudo, o máximo que puderem, porque nunca há repetições de episódios na nossa vida (excepto nos Morangos com Açúcar, invariavelmente). Nunca há dois momentos iguais. Acredito que o Fernando vem cá à Brasileira muitas vezes, mas ela nunca está igual ao que viu da última vez, pois não? É como se nascêssemos constantemente para a eterna novidade do mundo. Outra coisa que os senhores fazem é deturpar a Natureza com pensamentos. Ela não foi feita para pensarmos nela, apenas para a olharmos e estarmos de acordo. Tenho pena que os senhores não se lembrem disso de vez em quando. Nem sequer sei porque é que o Fernando tem óculos se nem sequer usa os olhos como deve ser. Os outros três ficaram em silêncio, reflectindo. Fernando compreendia, agora, porque é que Álvaro considerava Alberto, o seu Mestre. - Sabe, nunca tinha pensado nisso dessa perspectiva – confessou – De facto, acho que penso demais. Gostava de ser um pouco como o senhor. - Pois. E há tantas coisas para ver! Carros! Máquinas! Navios! Aviões! – exclamou Álvaro. - Os olhos são o meu bem mais precioso – afirmou Alberto, com um sorriso – Não sei o que seria de mim sem os meus olhos. Costumo dizer que vejo que nem um danado. Fernando e outros Pessoas

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Anos mais tarde, seria criada uma empresa de óptica, que fabricaria óculos e lentes de contacto chamada Olhos de Caeiro. O slogan seria. “Porque o que você agora vê é o que nunca tinha visto antes. É preciso vê-lo bem.” - Mas se há coisa que eu gostava mesmo de ver era Portugal renascido – admitiu Fernando, com ar sonhador. - Oh meu amigo, não passa de um devaneio poético – retorquiu Ricardo – tudo isto tende para a anarquia e para o caos. - Mas porque é que o senhor é tão céptico? – perguntou Fernando – Um herói não se acomoda, não se resigna, rebela-se contra o destino, transcende-se, procura o invisível. Ricardo ia contra argumentar mas Álvaro não deixou: - Não seja assim, Ricardo! – exclamou – Talvez Fernando tenha razão! Talvez o futuro seja risonho para nosso lado! – entusiasmou-se – Portugal todo unido por uma causa! Uma ponte sobre o rio Tejo homenageando Vasco da Gama, com uma torre homónima! Olhos postos no Quinto Império! Feitos de outrora, despertai! Levado por aquela onda patriótica, Fernando recitou: Nem rei, nem lei, nem paz, em guerra, Define com perfil e ser Este fulgor baço da terra Que é Portugal a entristecer – Brilho sem luz e sem arder, Como o que o fogo-fátuo encerra. Ninguém sabe que coisa quer. Ninguém conhece que alma tem, Nem o que é mal nem o que é bem. (Que ânsia distante perto chora?) tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Ó Portugal, hoje és nevoeiro... É a Hora!

Valete, frates.

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VI Fernando sentia agora as suas palavras estranhamente distantes, como se tivessem saído de uma boca alheia, não da sua. Pestanejou. Uma única chávena com um resto de café no fundo, já frio, o pacote de cigarros com metade do seu conteúdo original e o exemplar d' Os Sete Mistérios eram as únicas coisas que estavam em cima da mesa. As três cadeiras, para além da sua, estavam vazias, embora Fernando fosse capaz de jurar que, ainda cinco minutos antes, estavam ocupadas. Era já quase noite. O movimento no Chiado aumentara, agora que muita gente tinha já saído do emprego e regressava a casa. Gomes Salcede veio ter com ele. - Aqui tem o seu troco - disse ele, pousando as moedas em cima da mesa. - Fique com ele – ofereceu Fernando. - Muito obrigado. O empregado retirou-se, guardando as moedas no bolso. Tudo não passara de uma ilusão, concluiu. De imaginação. Ainda assim, não consegui evitar ficar impressionado. Tinha sido uma ilusão bastante realista, bastante perfeita. Parecia mesmo que o Álvaro de Campos, o Alberto Caeiro e o Ricardo Reis tinham mesmo estado ali sentados com ele a conversar. Até se lembrava perfeitamente da Ode Triunfal, como se a tivesse escrito. No fundo, era exactamente isso. Aparentemente, ao conversar com três pessoas diferentes, com origens diferentes, opiniões diferentes, estilos poéticos diferentes, dialogara apenas consigo próprio. Afinal, Fernando e outros Pessoas

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o sonho é a maior liberdade do homem, tudo é possível, nada é proibido. Fora tudo como um mito. Não fora nada, mas fora tudo... O frio começava a apertar. Fernando levantou-se. Enfiou o policial dentro da pasta e o pacote de tabaco dentro do bolso do casaco. Depois, misturou-se com a multidão. "Amanhã tenho encontro marcado com Ricardo Reis no Martinho da Arcada. E sou o único que o sei." pensou. "Tenho de ler um dos seus poemas. Aquele tipo é um típico. Céptico, resignado, moralista, fatalista... Monárquico!?!"

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