Fabricio Silva Ufpel

  • October 2019
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A VIDA COMO OBRA DE ARTE E A ARTE COMO CAMPO DE EXPERIMENTAÇÃO: A ESCRITA PARA O TEATRO COMO PROCESSO DE FORMAÇÃO Fabrício Tavares Santos Silva* [email protected]

Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2007, entreguei-me inteiramente a escrever um texto para a peça teatral As Estações na Cidade – exercício teatral em 4 movimentos. O projeto foi idealizado pelo ator Moisés Vasconcellos, de quem partiu o convite para que eu fizesse a orientação filosófica do trabalho. Assim, no início de janeiro, integrei a equipe assumindo o papel de orientador, função essa, até então, estranha para mim, tendo em vista minha condição atual de orientando do Prof. Jarbas Vieira no Curso de Mestrado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas. Licenciei-me

em

filosofia

no

ano

de

2004

pela

mesma

universidade. Mas até então, além de nunca ter pensado na possibilidade de orientar um trabalho tão cedo, também, não havia tido nenhuma experiência anterior em teatro, o que, a princípio, me incapacitava, já, antes mesmo de começar. No entanto, venho cultivando uma relação com a escrita desde cedo em minha vida, pesquisando em filosofia autores que fizeram da arte uma espécie de pré-texto para a criação de seus pensamentos. Nietzsche, Foucault e Deleuze são esses autores que vem a muito me instigando para o exercício do pensamento como potência criadora na vida, na filosofia e na arte. Mas que relação estabelecer entre a filosofia e a temática proposta por Moisés para o espetáculo que começávamos a criar? Absolutamente, vi cair por terra a formalidade da função de orientador quando me propus a escrita e criação do texto do espetáculo. Minha vontade de criação estava

*

Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Mestrando em Educação pela Faculdade de Educação da UFPel.

2

irremediavelmente

indissociada

de

minha

função

de

orientar

conceitualmente aquele trabalho. Naquele momento, percebia uma nuance confundindo a vida (minhas vontades e desejos), a filosofia (o suporte conceitual) e a arte. (o meu campo de experimentação) Deliciosa confusão essa! Na qual me deixava absorver. A vida como obra

de

arte,

o

pensamento

e

a

arte

como

campos

de

experimentação. Com essas sensações me vi inteiramente disposto a aprender tudo o que podia, naquele momento, sobre a escrita teatral e principalmente sobre a arte, sobre a arte de quem faz da vida uma obra sua. Então,

deslocado

de

minha

função

de

orientador,

e

desorientando-me inteiro nesse processo, me vi imerso nos dramas, nas tragédias e nos prazeres da existência vivida pelo homem da cidade contemporânea. O vazio, a solidão, a identidade, a miséria, o reconhecimento e o não-reconhecimento no outro, o imprevisível, o visionário, o sonhador, o trágico e outros fragmentos da relação do homem com a cidade, foram tomando forma no corpo das sensações que iam compondo a escrita para a temática do espetáculo, a saber, o homem na cidade sob a influência das quatro estações do ano. Um método colaborativo de trabalho1. A ausência da figura do diretor. Um processo de criação coletiva como objetivo metodológico, onde a cena, o texto, a música e as imagens constituiriam elementos desta narrativa do homem na cidade. Quatro narrativas: uma para cada estação do ano. Quatro estações: inverno, primavera, verão e outono,

a

produzir

um

universo

múltiplo

de

sensações

nos

acontecimentos que povoam as cidades. Quatro elementos para os quatro movimentos que comporiam o espetáculo: luz e cenário, música, texto e criação cênica.

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Além de intensa discussão sobre o que era produzido com os colegas de trabalho, fui conversando também, ao longo do processo, com minha companheira, Beatriz Ferreira, sobre o texto que estava ainda germinando. O que desencadeou a sua participação como co-autora nas Narrativas do Inverno e do Outono.

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Uma concepção cenográfica inovadora, a Caixa 96, um projeto do artista uruguaio Waldo Leon, que consiste numa caixa retangular para 96 espectadores coberta com um tecido branco que recebe imagens de um projetor multimídia e que vazam como única fonte de luz para dentro da caixa, compondo assim – com as imagens – ao mesmo tempo um vídeo e toda a iluminação da peça. Enfim, um desafio imenso o de criar um espetáculo em apenas dois meses de trabalho. Duplo desafio, para mim que nunca havia escrito um texto de teatro. Mas, me perguntava: o que seria mesmo um texto teatral? Como espectador, e a partir das conversas com Moisés, respondia: um texto baseado em conflitos, um texto dramático. No entanto, era também nosso objetivo construir uma narrativa sobre a vida na cidade, em que a figura de um narrador estaria presente em todas as quatro narrativas propostas. Desse modo, ia se constituindo aí, em relação ao texto da peça, uma pequena confusão sobre uma fórmula para a criação de um texto, sobre a utilização de formas pré-estabelecidas por nós para a construção de um texto híbrido, em que mais uma vez se misturariam a filosofia, a vida e a arte. Escolhemos, assim, como formato para o texto, uma narrativa das sensações em relação a cada uma das estações do ano; e a dramaticidade

para

a

criação

de

cenas

envolvendo

alguns

personagens em seus conflitos existenciais. Como por exemplo, o Poeta de uma estação de trem que conversa consigo próprio através da figura de sua mala. Os seus conflitos: o corpo, a verdade, a ilusão, o pensamento, a crise da modernidade, projetados na figura da Mala como personagem antagônico ao personagem do Poeta. Temática essencialmente nietzschiana, apresentada na Narrativa do Inverno, época em que o corpo se cobre, mesmo que jamais deixe de existir. Espécie de metáfora em relação à história do pensamento, em que o intelecto – na figura da razão – se sobrepõe, como um saber

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absoluto, em relação ao corpo que, mesmo encoberto, é visto assim como possibilidade e lugar para o pensamento e para a criação. Para expressar melhor essa idéia trabalhada no texto do espetáculo, assim como, também, defendida aqui nesse ensaio, apresento o texto da Narrativa do Inverno, composto por uma apresentação do espetáculo, feita pelo Narrador, e pela parte do diálogo entre os personagens do Poeta e da Mala.

Narrativa Inverno – O corpo Narrador - Entramos nas estações e na cidade em busca da memória de cada nuance. A vida dos homens e mulheres que fazem sua passagem, a rota das esquinas esquecidas e atormentadas. A arte, é aqui a arte de cada forma de vida, apresentada nas dimensões dramáticas dos acontecimentos que povoam as cidades. Aqui, nossos sonhos se confundem. E viver, são as muitas vozes que nos repartem em ecos. Tão distintos ecos quanto as quatro estações do ano. Tão múltiplos, como as vozes desta narrativa, que propõe olfatos, imagens e sons, nesta caixa que agora habitamos. Começamos assim, com a história de um ser melancólico, personagem das estações invisíveis, um habitante-multidão dos lugares de passagem, daqueles pouco notados. A estação de trem, é moradia deste homem, poeta e iniciado nos mistérios das vidas que atravessa. Ele não tem passagem, não tem lugar. Conversa consigo mesmo, criando um outro de si que põe em conflito com sua própria imagem. Assim, sob a atmosfera do inverno, e com suas palavras de acentos incertos, este homem se aventura em seus próprios pensamentos, a procura sempre de algum movimento. Cena Poeta – Os dias estão se abreviando... Sequer as folhas suportam tanto congelamento. Parece que tudo fica mais longe... Este é um período em que o dia já nasce dizendo adeus. Não tive a surpresa de ter a quem me despedir ou a quem encontrar. Mas isto é puro desfazimento! A mala - “Desfazimento?”, poeta. Essa palavra não tem no dicionário! Poeta – Mas por que usar somente palavras de dicionário? A mala– Porque o mundo hoje, poeta, é de matéria plástica. Poeta – Ah, entendi! Além de você carregar o peso de um passado, o peso de um futuro, o peso de um mundo que eu é que decido viver, você também fala. Quanta coisa trouxe nessa mala! E quanta coisa perdi. Tenho saudade do que não fui! A mala – Mas para que tanta enrolação, poeta? Por que complicar tanto? Por que você não se mexe? Por que você não?... Poeta – Como assim? “Por que você não se mexe?” E você aí parada, falando e falando, como se não precisasse de mim para se mexer? Somos tão dependentes uns dos outros, que não basta pensar, ou, simplesmente, falar, para existir. Chego como quem parte. Sozinho, como esse vento que me corta a face.

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Sinto que meu lugar é como um teatro sem platéia. Pois procuro na cidade o invisível... fragmentos de um público de olfatos. Os cheiros mais me convém do que as palmas. A mala – És um poeta sem rosto. Um sem nome, um sem papel. Pois não possuis a máscara que convém! Poeta – Mas quem de nós tem apenas uma máscara?! Somos todos muitos, no entreato de um abismo que nos desmente! Amo as verdades inventadas. Como desprezo a ilusão de verdades concebidas como se fossem idéias iluminadas! A mala – Falas como se não conhecesses os gênios da história, os grandes inventores da civilização moderna. Poeta – E você, se esquece dos grandes ditadores das verdades absolutas... não é mesmo? Não falo da verdade como uma coisa estanque! Não subestime as experiências que meu corpo já sofreu. A coisa mais leve que carrego, é a capacidade de sempre rever meus pesos. E isto, parece que você nunca se permitiu! A mala – Ah, entendi... buscar a cura onde já não há. Melancolia de prazeres movidos a anti-depressivos. Poeta – Não! Busco minha saúde na escrita. Prefiro a escrita! A mala – Não entendo. Aonde está a verdade nisso? Poeta – A verdade está no que sentimos, no que vivemos. O corpo, por mais encoberto que fique, por mais ocultado de todas as delícias, por mais vergonhoso que seja, é a grande razão de sentir, de existir e (por que não dizer?) de pensar. A mala – Mas como?! Tu pensas somente com a cabeça, com o cérebro. Poeta – Não me venha com essa conversa! Meu pensamento só é possível, só é posto em movimento, com as sensações de todo o meu corpo.

Narrador – Dessa forma, o corpo, para o poeta, tornou-se um abrigo e um peso. E em meio a tanto frio, parecia impossível faze-lo sorrir. Assim, o corpo se escondeu, porém, nunca deixou de existir.

O corpo, como a grande razão de existir e de pensar, em oposição ao intelecto. Em oposição ao intelecto como fonte única para o pensamento. Um antagonismo evidente entre o Poeta e a Mala. Nietzsche, na voz de seu personagem conceitual Zaratustra, dá um destaque especial para a idéia do corpo como a grande razão, dizendo: O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz [...] Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena

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razão, meu irmão, à qual chamas “espírito”, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão. “Eu” – dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior – no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu. [...] Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. (NIETZSCHE, 1977, p.51)

É possível perceber, na Narrativa do Inverno, a referência a discussões recorrentes ao pensamento nitszchiano e à história da filosofia. Há uma luta clara contra o pensamento cartesiano e as formas de pensamento do racionalismo moderno, quando o Poeta diz: “Somos tão dependentes uns dos outros, que não basta pensar, ou, simplesmente, falar para existir”. Isto é: o pensamento não basta como condição para a existência. Há sempre um jogo de lutas, das quais participamos diariamente, envolvendo regras, condutas morais e éticas2. Por exemplo, as instituições educacionais. Seriam elas, tão somente, o lugar de alguns aprendizados? Ou, também, de algumas lutas envolvendo discursos e saberes? Ou, mais ainda: o lugar onde os

aprendizados

se

constituem

a

partir

de

lutas

constantes

envolvendo discursos e saberes? Sobre essa questão, me parece que o que propõe a arte – em relação à Educação – como um campo de experimentação, ou, como um campo possível para a formação, é sempre uma resistência, uma linha de fuga. (DELEUZE & PARNET, 1998) Assim, proponho-me aqui, a um relato, sobre minha escrita para o teatro, como um campo aberto a metamorfoses em meu processo de formação, e, sobretudo, como um campo de resistência às coerções do poder.

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Para Foucault, a ética é também uma estética na medida em que produz modos de existência constituídos a partir de escolhas feitas por cada indivíduo.

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Escrita, leitura e formação

Para Foucault, a vontade de verdade constitui-se como um dos principais sistemas de exclusão em nossa sociedade. É a essa vontade de verdade que as instituições respondem com as suas lutas internas e suas coerções pelo poder. Vejamos uma citação do próprio Foucault: [...] essa vontade de verdade, como outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios de outrora, os laboratórios de hoje. Mas ela é também reconduzida, mais propriamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. Recordemos aqui, apenas a título simbólico, o velho princípio grego: que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as relações de igualdade, mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções na desigualdade. Enfim, creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte institucional tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. (FOUCAULT, 1996, p.17-8)

Minha idéia, neste ensaio, é a de que através da arte como um campo de experimentação, pude vivenciar, para além das malhas do poder, da coerção, tão presentes nas práticas pedagógicas em nossa sociedade, uma experiência de formação. Uma experiência de formação, com o que nos apresenta Jorge Larrosa sobre a educação literária. A educação literária não se baseia em nenhuma nostalgia, em nenhuma esperança, nem mesmo no consolo da cultura, esse lugar ao mesmo tempo acabado e inacabado, cada vez mais “rico”, no qual as obras existem como coisas duradouras, ordenadas, acumuláveis e transmissíveis. Sua única virtude é a sua infinita capacidade para a interrupção, para o desvio,

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para a “desrealização” do real e do dado (inclusive do real e do dado de alguém) e para a abertura ao desconhecido. A iniciação a leitura aparece, assim, como o início de um movimento excêntrico, no qual o sujeito leitor abre-se à sua própria metamorfose. (LARROSA, 2001, p.13)

Assim, percebo a minha escrita para o teatro como uma espécie mesma de iniciação a uma experiência de escrita nunca antes por mim

vivenciada.

E

transponho

para

a

minha

experiência

“o

movimento excêntrico, no qual o sujeito leitor”, nas palavras de Larrosa, e o sujeito-escritor, a partir de minha vivência e de minhas palavras, se abre à sua própria metamorfose. Talvez ainda um sujeito-escritor-leitor, pois que escrever, por vezes, converte-se numa atividade de leitura também de mundo.

A obra de arte como um dispositivo do ato de pensar

O texto que escrevi para a peça As Estações na Cidade, não é fruto de nenhuma observação, de nenhuma descrição objetiva da realidade. Diferentemente, o que se insinua como uma espécie de “princípio” dessa escrita é uma nuance de sensações envolvendo cada uma das estações do ano, numa relação. Um tanto quanto subjetiva, com a vida de homens e mulheres nas cidades. As sensações aparecem no texto como o sentido produzido por cada uma das estações do ano, por seu clima, por sua temperatura, etc. Incidindo, inevitavelmente, sobre a vida dos seres que habitam a cidade, como um lugar povoado por acontecimentos. Sendo assim, desenvolvemos no início do processo uma “metodologia” simples para chegarmos a uma leitura possível de nossas próprias sensações em relação a cada uma das estações do ano:

conversas

e

“confissões”

sobre

nossas

impressões

mais

espontâneas a respeito do assunto. Que ausências, que faltas, que desejos, a que atitudes nos levariam, por vezes, o verão ou o

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inverno, por exemplo? O que suportaria o corpo em cada uma das estações? Ou ainda, que prazeres poderíamos desfrutar em cada uma delas? Que acontecimentos elas poderiam suscitar? Ao contrário do que poderiam parecer inicialmente, as estações são vistas como signos dos acontecimentos que são propostos em cena. O desabrochar do amor entre um menino e uma menina traz consigo o signo da primavera. O corpo encoberto, pela vontade de verdade da razão moderna, na primeira narrativa da peça, carrega o signo do inverno, com suas temperaturas frias, razão pela qual precisa se cobrir. A pele, como a única profundidade possível, como “a superfície mais profunda”, aliada ao sufocamento do calor, nos sugere alguns signos do verão. O olhar, a leveza, o renascimento através da morte, a luminosidade sutil, a temperatura amena, o cair das folhas, trazem até nós alguns signos do outono. Enfim, a esse conjunto de signos sugeridos para cada uma das estações, é que quisemos relacionar uma forma de escrita que funcionasse talvez como uma espécie de narrativa das sensações. E então me arrisco a responder a uma pergunta que me fiz no início do processo, e que, também, a coloquei aqui, no início deste ensaio. Do que seria composto mesmo um texto teatral? Sem dúvida, de características dramáticas e narrativas. Mas, no entanto, ao compormos uma narrativa das sensações, pergunto-me, em que medida não estaríamos alterando as características básicas de um texto teatral, sendo que a figura central do texto está no personagem do Narrador? Isto porque o próprio Narrador emerge, no espetáculo, como uma figura, como um personagem, que responde as próprias sensações e signos correspondentes às estações e ao texto da peça. E mais: na figura do Narrador emergem boa parte dos conflitos que constituem o texto do ponto de vista dramático. Porém, os conflitos, ao contrário daqueles que caracterizam comumente a dramaturgia – conflitos entre dois ou mais personagens – , neste caso, são conflitos

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internos que aparecem no seio de cada um dos personagens em cena. Para ilustrar essa questão, apresento aqui o texto da Narrativa do Verão, na parte em que fala o Narrador, seguido do texto da Narrativa do Outono, este último, o texto final da peça. Narrativa Verão – O sufocamento (O narrador não consegue dormir por conta do calor e dos mosquitos. Levanta-se abruptamente e começa a correr. Tira a roupa e a recoloca do avesso. Começa a falar). Narrador - É assim que eu me sinto no verão... Do avesso! O verão é a desilusão da primavera. Sufocante é o calor com seus restos de morte no sobressalto de um pesadelo. Oh sol, grande astro! Por que escapas à noite, com tua luz, a mim que tenho que ver, com a escuridão, com as estrelas e com o luar, acertar as contas o desejo? Sonho o calor das vísceras – asfixia de um verão de pedra –, as marcas do suor, a memória da pele. Vinte e cinco, trinta anos, até mais! Tempo de úlceras e de câncer. Tempo de chagas sangrando no peito. Tempo que não acaba. Tempo que não passa. O verão, em suas efêmeras e voluptuosas tempestades, recobre a densidade da carne à superfície da pele... Com a profundidade de um corte. Tanta alegria essa estação exprime... Tanta alegria boba, superficial... Mas o que é a vida senão aquilo com o qual podemos ver um primeiro plano? O que é a vida senão o próprio olhar? Uma primeira casca ou a única que existe? É...! Talvez esta alegria diga a si própria: “A pele é a superfície mais profunda!”. Por isso, quem sabe, consiga ser alegre de si mesma. A sensação foi sempre o norte da razão. Chega! Parece que o calor deixa também os ânimos exaltados... É como um deslizamento... Passar de um extremo a outro sem contar até zero. Caos é a lei! Mas isto que digo é lógico até... Se estivermos num extremo, é fácil passar para outro. O equilíbrio anda em cima de uma corda bamba de euforia e de tristeza. É assim o verão: trágico, como a vida nas cidades... Estúpido! Como a beleza das ruínas em desalinho no tempo e no espaço. Tão nítido, quanto a morte que ronda a fervura do asfalto. É assim mesmo que sinto o verão. Como uma bomba prestes a explodir e a transformar em cinzas uma multidão. Não mais nos é dada a chance de morrer como heróis... Morremos como vítimas. Como vítimas de um noticiário triste e astucioso, porém, pobre. Morremos a cada instante do trabalho para casa... De casa para o trabalho. Maldito tornou-se o ócio! Trabalho concreto... Trabalho abstrato... Trabalho nenhum! Será que não percebem? A reprodutividade do mesmo... A criatividade, no olhar de um vagabundo? A repetição ensurdece como um bate-estaca! Aaaaaaaaaáá!!! (Faz uma pausa, olha para o público e diz). Lembro-me de uma mulher que no sufocamento do abandono de seu companheiro tomou para si a luz e o calor do fogo, libertando-se assim do aprisionamento da espera.

Cena (Entra a mulher se adornando com brincos e maquiagem, porém preparando o seu leito de morte).

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Mulher - Há sete dias espero. Há sete dias não como. Há sete dias não dou comida aos meus. Há muito que morro de tantas faltas! O desejo... Gostaria de reencontrálo numa grande festa. Mas minha vida se tornou um baile de poucas máscaras. Repleto de carências... Repleto de ausência... Como pude tornar-me repleta de tua ausência? Mas não espero mais! Não quero mais a tua falta! Tampouco viver matando-me de esperanças. Hei de exaltar o fogo em tua memória e à consagração de minha liberdade! De que me vale a vida em meio ao nada de minha própria vontade? Sinto-me a própria ruína do abandono... Perdida no centro da tua espera. Hei de fugir à lembrança do teu calor que me consome, consumindo-me na luz e no calor do fogo que me libertará da morte de arruinar-me contigo! (Arde no fogo e morre ao som de um tango). (Ao som da música inicia a passagem para o outono). (Começa a rastejar. Vai renascendo aos poucos até ficar ereta novamente e ressurgir como outra mulher, agora como Fenícia, já no outono).

Narrativa Outono – O olhar Narrador - Enquanto no outono as folhas secavam, Fenícia renascia das cinzas para uma nova vida. A temperatura amena e a delicada fotografia do outono lhe proporcionavam a liberdade antes tão sonhada. Agora a memória da sua coragem a impulsionava aos mais ousados vôos. Fenícia partiu então em busca da luz mais leve, percorrendo, com o registro de sua visão mais singular, todas as imagens possíveis em todos os parques da cidade.

Cena (Entra Fenícia ressurgindo em seu próprio corpo, olhando-se com algum espanto e admiração, mas com uma incondicional vontade de viver). (Toca a música Agosto para introduzir a primeira Cena do outono. Fenícia começa dançando com o corpo ereto). (Depois diz...). Fenícia - Dourado... É a tua cor mais linda! Hei de viver em tua luz mais leve. E percorrer todos os teus entardeceres com um sorriso nos olhos. Minha voz há de cantar-te sempre com a harmonia mais simples e a melodia do olhar. Nos caminhos que faço, mesmo que tuas folhas sequem, é em ti que sinto minha longevidade aflorar. Hei de escrever contigo a oração de nunca roubar-me o olhar. Tenho a vontade do olhar eterno. O desejo de minha memória mais doce, mais viva. Ver-te colocando a cidade em sintonia com tuas cores leves me faz sorrir de felicidade. E mesmo que dures pouco, tua vida reflete a minha que renasce em ti. (narrativa com música, Agosto – versão 2, e imagens). Fenícia - Tua pele-seca árvore genealógica da folha que se despede para dar lugar a uma outra vida... Carne que geme sem ferir, angústia, para quê? As despedidas também devem ser naturais, a morte é tão certa quanto este minuto que “tic tac” bate insistentemente ao meu redor, e destas cinzas farei o meu ninho, troco minha

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pele agora e refaço a pluralidade de máscaras que outrora perdi. Sou outras. Ter outro nome não me basta, a vida não é um nome. Que mania a de nomear tudo. As sensações mais me convêm... Sou pele desencanto de um amor passado, mas esta pele virou folha, e com o outono me desfaço em ciclo, porque ninguém pode agüentar morrer todos os dias, calado. (Pega a mala e diz). Revirar as malas! Levar consigo somente aquilo que se precisa... (Pensa). Mas o que se precisa, além de um pouco de desrazão? É deste desalinho que me produzo em versos, tão desafinados quanto puder. A imperfeição é muito difícil de ser alcançada. E para quê o correto? Se a chama do verão já se apagou, e agora posso trilhar caminhos mais incertos? Encanta-me, sim, o sem rumo deste outono. Ele pode durar pouco, mas eu já não serei a mesma.

(refaz a mala e parte). (narrativa com música e imagens rumo ao fim do espetáculo).

Deleuze, em seu livro Proust e os Signos, em que analisa a obra de Marcel Proust, Em busca do Tempo Perdido, mais propriamente, na passagem em que descreve o aprendizado do herói proustiano, nos põe a pensar, em relação à arte e à filosofia, com a seguinte citação: Um amor medíocre vale mais do que uma grande amizade: porque o amor é rico em signos e se nutre de interpretação silenciosa. Uma obra de arte vale mais do que uma obra filosófica, porque o que está envolvido no signo é mais profundo que todas as significações explícitas; o que nos violenta é mais rico do que todos os frutos de nossa boa vontade ou de nosso trabalho aplicado; e mais importante do que o pensamento é “aquilo que faz pensar.” (DELEUZE, 2003, p.29)

Não pretendo atribuir assim qualquer juízo de valor em relação a dissonâncias ou a diferenças flagrantes entre a filosofia e a arte. No entanto, o que quero pontuar é o fato de que a arte, como campo de experimentação – no sentido foucaultiano da experiência de si –, ou ainda: no sentido que nos coloca Nietzsche, em sua autobiografia, Ecce Homo, de como nos tornamos aquilo que somos – pode, muito bem, nos por a pensar sobre a nossa própria experiência de

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formação. Em outras palavras, me parece que a obra de arte pode ser vista aqui, sobretudo, como um poderoso dispositivo nos processos de formação, como uma fissura, como um desvio daqueles de que nos fala Larrosa em referência ao caráter de formação da educação literária. Nesse sentido, é que defendo a idéia, não só da arte como campo de experimentação de si, mas, também, da vida como uma obra que, tomada pela experiência e seus acontecimentos, possa suscitar, as singularidades da experiência como meio de formação do olhar para a escrita, ou, ainda, para uma escrita como leitura criativa dos acontecimentos e das singularidades de um mundo sempre porvir.

Bibliografia

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