Etnografia_etnografias_ensaios_sobre_a_d.pdf

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Etnografia, Etnografias Ensaios sobre a diversidade do fazer antropológico

Etnografia, Etnografias Ensaios sobre a diversidade do fazer antropológico

Daniela Moreno Feriani, Flávia Melo da Cunha e Iracema Dulley (Organizadoras)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP F393

Feriani, Daniela Moreno, Org.; Cunha, Flávia Melo da, Org.; Dulley, Iracema, Org.; Etnografias, etnografias: ensaios sobre a diversidade do fazer antropológico. / Organização de Daniela Feriani, Flávia Melo da Cunha e Iracema Dulley. Apresentação de Guita Grin Debert - São Paulo: Annablume; Fapesp, 2011. 222 p. 14 x 21 cm. ISBN 978-85-391-0318-8 1. Antropologia. 2. Antropologia Social. 3. Etnografia. 4. Pesquisa Etnográfica. I. Título. II. Ensaios sobre a diversidade do fazer antropológico. III. Feriani, Daniela Moreno, Organizadora. IV. Melo da Cunha, Flávia, Organizadora. V. Dulley, Iracema, Organizadora. VI. Debert, Guita Grin. CDU 572 CDD 301.2 Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

ETNOGRAFIA, ETNOGRAFIAS – ENSAIOS SOBRE A DIVERSIDADE DO FAZER ANTROPOLÓGICO

Produção e Finalização Coletivo Gráfico Annablume

Capa Carlos Clémen

Conselho Editorial Eduardo Peñuela Cañizal Norval Baitello junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam) Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D’Alessio Ferrara

1ª edição: outubro de 2011 © Daniela Moreno Feriani | Flávia Melo da Cunha | Iracema Dulley ANNABLUME editora . comunicação Rua M.M.D.C., 217. Butantã 05510-021 . São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax. (011) 3812-6764 – Televendas 3031-1754 www.annablume.com.br

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer aos colegas, funcionários e professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp pelo diálogo, incentivo e disponibilidade. Somos especialmente gratos aos orientadores das pesquisas aqui apresentadas: Bela Feldman-Bianco, Emília Pietrafesa de Godói, Guita Grin Debert, Heloísa Pontes, Maria Filomena Gregori, Omar Ribeiro Thomaz e Suely Kofes. Agradecemos ainda aos professores cujos cursos acompanhamos, John Manuel Monteiro, José Luiz dos Santos, Mariza Correa, Mauro William Barbosa de Almeida, Nádia Farage e Vanessa Lea, pelo papel central que tiveram em nossa formação. Finalmente, manifestamos nosso reconhecimento à professora Guita Grin Debert pelo incentivo e apoio fundamental na confecção deste livro.

Sumário

Apresentação................................................................................... 9   Guita Grin Debert Introdução – Notas sobre etnografias e métodos .......................... 15   Iracema Dulley e Flávia Melo da Cunha Etnografias do ciberespaço O universo simbólico neonazista na Internet: breve relato de   uma experiência etnográfica...................................................... 23   Adriana Dias ‘‘Não leve o virtual tão a sério’’? – uma breve reflexão sobre   métodos e convenções na realização de uma etnografia do e   no on-line................................................................................... 43   Carolina Parreiras Glossário........................................................................................ 59   Adriana Dias e Carolina Parreiras Etnografias da justiça Escolhas metodológicas e etnografia em um campo de   interlocução entre antropologia e direito................................... 65   Daniela Moreno Feriani Da investigação policial à investigação antropológica: da   proximidade e do distanciamento na pesquisa antropológica..... 87   Flávia Melo da Cunha

Etnografias da arte Um picadeiro na Praça Roosevelt – Os Parlapatões, Patifes e   Paspalhões................................................................................ 109   Cauê Kruger Etnografia, mediação e relações interculturais: entre o geral e o   particular na produção de ‘‘músicas do mundo’’....................... 139   Paulo Ricardo Müller Etnografias do colonial A missão de um ponto de vista relacional: um ensaio para a   apreensão da prática a partir dos documentos......................... 163   Iracema Dulley Visões do campo sobre o arquivo (e vice-versa)........................... 189   Marcelo Moura Mello Como qualquer etnografia: fundamentos para uma etnografia   dos documentos escritos........................................................... 201   Olivia G. Janequine Os autores.................................................................................... 217

Apresentação

Guita Grin Debert

Os ensaios que compõem este livro têm como objetivo alargar os horizontes da pesquisa antropológica. A obra é o resultado do encontro dos estudantes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp, empenhados na discussão dos caminhos trilhados em contextos e situações em que o repertório clássico do fazer antropológico não é plenamente adequado. As pesquisas aqui apresentadas exigiram um refinamento do fazer etnográfico - desse arsenal criado pela antropologia para descrever e analisar a cultura e a organização social de povos vivendo em contextos muito distantes e distintos da sociedade dos antropólogos e que requer o trabalho de campo, isto é, um período relativamente longo de convivência e observação de modo a compreender as particularidades dos grupos estudados, suas práticas e o simbolismo investido na organização do seu mundo social. Não se trata, aqui, de refundar a antropologia, como tem ocorrido periodicamente com muito alarde na antropologia norte-americana, mas de explorar, com graça e erudição, os desafios metodológicos em temáticas que envolvem o ciberespaço, as diferentes instâncias do sistema de justiça, o mundo das artes e os empreendimentos coloniais. Expandir o escopo das etnografias não é tarefa fácil. Uma das dimensões mais fascinantes da antropologia está no fato de suas pesquisas não se prenderem às fronteiras temáticas, metodológicas e geográficas. Por essa razão, é comum vermos antropólogos, orgulhosos de seu métier, citarem com entusiasmo o trocadilho de Clifford Geertz: “a antropologia é a mais indisciplinada das disciplinas”. Rever

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fronteiras promove espaços de encontro, mas também gera conflitos. Não faltam antropólogos ansiosos por manter limites, temerosos de que a ampliação de temas e instrumentos metodológicos possa levar à dissolução da essência e da identidade disciplinar. Numa conversa informal, Paul Rabinow contou que, em 1968, quando chegou ao Marrocos para fazer sua pesquisa de doutorado, dois temas atraíram seu interesse: a cultura judaica e a cultura colonial francesa. Mas sob a advertência severa de Geertz, seu orientador na época, de que a função dos antropólogos era salvar culturas ameaçadas de extinção, enfurnou-se no interior do país para um trabalho de campo entre as tribos berberes. O que vemos hoje, concluiu ele com humor e ironia, é o surpreendente florescimento da cultura berbere, enquanto os vestígios da cultura judaica no país estão desaparecendo e são poucos os estudos sobre os empreendimentos urbanos coloniais, cuja pesquisa ele só pôde realizar muito depois, quando já era um antropólogo consagrado. Não são apenas os antropólogos que erram nas previsões sobre o futuro. As grandes corporações movidas pela inovação também fazem projeções descabidas. Manuel Castells, um dos mais famosos estudiosos das redes sociais, conta que a internet tal como nós a conhecemos hoje esteve a ponto de não existir. Em 1970, um grupo de acadêmicos do Departamento de Defesa dos EUA, sem saber o que fazer com o que tinham construído, deu, gratuitamente, a internet à maior empresa de telefonia norte-americana, que não se interessou pela oferta por considerá-la uma descoberta sem nenhuma utilidade. A internet só se difundiu globalmente a partir dos anos 1990, em particular com a criação da World Wide Web, o conhecido www, por Tim Berners-Lee. Em forma de anedota, Castells relata que uma vez perguntou a Tim se ele sabia que poderia ter ficado milionário com essa descoberta, ao que ele respondeu que sim, sabia que poderia ter se tornado milionário, mas então não poderia dar prosseguimento ao que ele mais gostou de ter feito na vida: mudar o mundo. Sabemos que o mundo não é mais o mesmo depois da internet. Mas quais são as qualidades e as características das mudanças em curso? Contra os que aplaudem a democratização do mundo ou lamentam a perda dos controles próprios da democracia que a internet acarreta, as duas etnografias que abrem esta coletânea mostram como grupos e ideários muito distintos podem encontrar abrigo no mundo virtual: grupos implacáveis com a diferença, como são os neonazistas, estudados por Adriana Dias, ou grupos em luta por uma

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sociedade mais tolerante, como a comunidade gay do Orkut abordada por Carolina Parreiras. Como afinar o instrumental conceitual e metodológico da etnografia – criado para orientar o trabalho de campo, no qual a dimensão presencial é central – de modo a dar conta do universo virtual? Os caminhos encontrados e os desafios colocados são apresentados pelas autoras, que compartilham a certeza de que a antropologia dispõe de um cabedal analítico capaz de dar uma contribuição importante para a compreensão e a conceitualização deste universo culturalmente heterogêneo em que as pessoas e as coisas estão num fluxo constante. Os programas de pós-graduação na área têm sido marcados pela presença de alunos que, tendo trabalhado em organizações governamentais ou em organizações não governamentais voltadas para a garantia de direitos, buscam, na formação em antropologia, um aparato crítico da prática profissional desenvolvida. No entanto, as características deste público e o impacto dos estudos desenvolvidos na percepção que elaboram das organizações em que atuavam não têm sido objeto de reflexão. O artigo de Flávia Melo da Cunha, que foi investigadora da polícia civil em Manaus, traz reflexões instigantes sobre esse duplo pertencimento profissional e sobre os dilemas envolvidos na construção da relação de alteridade que o trabalho etnográfico requer. A certeza de que é preciso ter uma concepção mais ampla de etnografia está presente em todos os artigos, que mostram, por meio de exemplos muito particulares das pesquisas empreendidas, que há experiências que não podem ser compreendidas com base exclusivamente no trabalho de campo realizado em moldes tradicionais, e, da mesma forma, que a quantidade avassaladora de documentos escritos e imagens recheando arquivos pode ter sua análise enriquecida com a observação de comportamentos, entrevistas e conversas informais com seus produtores. Mas o que fazer quando o material escrito está em franca contradição com o que é dito e feito por seus produtores? As formas encontradas para refletir sobre essa questão e contornar os dilemas entre pesquisa de campo e pesquisa em arquivos são explicitadas com precisão por Daniela Moreno Feriani ao mostrar que a percepção dos juízes e advogados sobre a família e sobre os crimes em família está em oposição ao que aparece em seus discursos proferidos e documentados no Tribunal do Júri.

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O interesse da antropologia brasileira por pesquisas em contextos urbanos promoveu um reconhecido refinamento de suas técnicas e instrumentais analíticos. A etnografia da arte é, no entanto, um campo ainda pouco desenvolvido. Cauê Kruger, pesquisando o grupo teatral Parlapatões, Patifes e Paspalhões, aponta as formas encontradas para combinar a análise interna da produção artística com a análise de seus produtores e do contexto social em que eles operam. Na mesma direção, Paulo Ricardo Müller, refletindo sobre a construção do universal e do local no mundo da música, desenha o percurso realizado para dar conta dos constrangimentos sociais e dos espaços abertos às contingências, à originalidade e à criatividade de seus produtores. Todos os artigos fazem uma defesa da etnografia, das descrições cuidadosas empenhadas em evitar identificações apressadas e estranhamentos fáceis. Sabem que o detalhe etnográfico é um recurso importante para a compreensão da dinâmica social estudada, como também para a sofisticação do corpo conceitual da disciplina. Mas são a favor de uma etnografia renovada, que não se acanhe em atravessar as fronteiras disciplinares. A relação entre o trabalho de campo e a pesquisa em arquivos é explorada nos três artigos que fecham a coletânea. No primeiro deles, Iracema Dulley discute a importância da utilização de documentos escritos para apreender o modo pelo qual diferentes agentes foram constituídos, a prática por eles desenvolvida e as convenções criadas pelas missões católicas no Planalto Central angolano. É sobre o interesse da justaposição de fontes documentais e orais na garantia de direitos à titulação das terras que Marcelo Moura Mello se atém, expondo os rumos tomados para lidar com o caráter assimétrico dessas fontes e as possibilidades oferecidas pelo conjunto da documentação levantada para pensar distintos tempos e registros da história. O artigo de Olivia Janequine encerra a coletânea fazendo um apanhado rigoroso das discussões mais significativas em torno da etnografia e uma defesa veemente da análise etnográfica de documentos escritos. O treino e a familiaridade com que o antropólogo trabalha com o princípio de reciprocidade e com a dimensão cultural, quando focaliza práticas que não podem ser explicadas como frutos de cálculos racionais, agrega novas dimensões ao escrutínio de documentos escritos. Não se trata, nos artigos – que a seguir serão apresentados de maneira sistemática pelas organizadoras –, de oferecer receitas e mo-

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delos do que deveria ser a etnografia sobre qualquer tema, contexto ou situação. Não se trata também de fazer inovações conceituais, nem de cunhar novos termos para se referir às práticas disciplinares corriqueiras e banais. O que vemos aqui é uma crítica muito respeitosa à disciplina e, sobretudo, um convite para estender o seu instrumental, de modo que ele possa ir além dos scripts convencionalmente estabelecidos da pesquisa antropológica. Podemos, assim, compartilhar os desafios envolvidos em situações muito particulares, nas quais o interesse foi combinar o presencial com o virtual, a documentação escrita com a observação de comportamentos e análises de relatos orais, visando oferecer etnografias que procurassem articular a dimensão sócio-histórica à criatividade dos atores sociais. Eis aí um belo exemplo de uma iniciativa extracurricular de alunos que, de maneira autônoma, sem a interferência do corpo docente, fizeram este livro do qual só tive conhecimento quando ele já tinha sido aceito pela editora para publicação. Como vimos, é sempre muito arriscado fazer previsões, mas também é inevitável refletir sobre o que será a antropologia nas próximas décadas, dadas todas as polêmicas, críticas e reformulações empreendidas nos últimos tempos. Ler os artigos que compõem esta coletânea é, certamente, antecipar com muito otimismo e entusiasmo o futuro da nossa disciplina.

Introdução Notas sobre etnografias e métodos

Iracema Dulley e Flávia Melo da Cunha

A possibilidade de discutir ideias, expectativas e experiências de pesquisa é sem dúvida um elemento fundamental no desenvolvimento de qualquer percurso acadêmico. Os argumentos, posicionamentos e análises que desenvolvemos devem muito à disposição para a troca e para a crítica dos colegas com quem partilhamos esse caminho. Assim, em vez de proceder a uma recapitulação da tradição de pesquisa antropológica ou comentar o estado da arte da disciplina, gostaríamos de dedicar especial atenção aos ensaios reunidos nesta coletânea. Nossas reflexões particulares, com base em trabalhos específicos, apontam, contudo, para um horizonte de diálogos possíveis. Alguns questionamentos perpassam os diversos textos: como articular um determinado objeto de estudo a uma metodologia de pesquisa? O que certa escolha metodológica permite revelar? Quais ganhos podemos auferir de uma abordagem teórico-metodológica específica? Sem a pretensão de oferecer generalizações, os textos aqui reunidos pretendem refletir a posteriori sobre um percurso de pesquisa que necessariamente passou por escolhas desse tipo. Com respeito aos objetos de pesquisa, a diversidade de temas da coletânea reflete o alargamento das possibilidades abarcadas pelo campo antropológico, bem como das experiências de reflexão que podem constituí-lo. Os ensaios aqui reunidos foram produzidos a partir de pesquisas realizadas junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, contexto no qual se construiu uma profícua interlocução entre os autores. A coletânea Etnografia, etnografias: ensaios sobre a diversidade do fazer antropológico apresenta artigos sobre abordagens e temas

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diversos: as etnografias – voltadas para o ciberespaço, a justiça, a arte e o colonial – debruçam-se sobre tempos e espaços variados, no Brasil e no exterior, e trazem reflexões acerca de objetos como o universo simbólico neonazista na internet, os relacionamentos afetivos e sexuais entre homens numa comunidade do Orkut, os julgamentos de crimes de homicídio entre pais e filhos em Campinas/SP, a delegacia de mulheres em Manaus/AM, o cenário do teatro e da “música mundial” na metrópole paulistana, as missões católicas no Planalto Central de Angola, a comunidade negra rural de Cambará/RS. O livro está organizado em quatro partes: na primeira, Etnografias do ciberespaço, as autoras discutem os desafios enfrentados na constituição de um campo de pesquisa pouco convencional, que transita entre os limites do presencial e do virtual. Os textos discutem o modo como ambos estão imbricados e inter-relacionados em processos de produção de identidades, configurações de sexualidades, simbologias e discursos. As antropólogas do/no ciberespaço oferecem ainda um glossário de termos técnicos, favorecendo a compreensão da linguagem utilizada na rede mundial de computadores. Adriana Dias, autora de “O universo simbólico neonazista na Internet: breve relato de uma experiência etnográfica”, trata de sua etnografia de seis anos em ambiente hipermediado. Com amplo domínio da linguagem hipertextual, aborda os mecanismos através dos quais os sites neonazistas investigados interligam-se na rede mundial de computadores e tornam-se intencionalmente invisíveis. O ensaio coloca como desafio compreender o universo simbólico neonazista no Brasil a partir de sua atuação na internet e revela em que medida a categoria “sangue” e o mito de Thor aglutinam os integrantes do movimento e seu discurso de ódio. Nesse sentido, é relevante a discussão realizada pela autora acerca das similaridades e diferenças existentes entre uma pesquisa de campo tradicional e uma etnografia virtual: como pensar questões como identidade, experiência e formação de grupos nesse ambiente? Para dar conta da questão, o diálogo com ampla bibliografia acerca de estudos virtuais lhe dá subsídios para repensar a etnografia como prescindindo da noção de que uma comunidade deve se relacionar a um determinado espaço, compreendendo o ativismo político neonazista por meio da relação que os sites estabelecem entre si e com o restante da internet. Especialmente interessante é o detalhamento pela autora da metodologia de que se valeu para construir a rede de sites e compreender as estratégias neonazistas para desaparecer dos sistemas de busca.

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A construção, expressão e virtualização dos corpos e das homossexualidades são o problema investigado por Carolina Parreiras em “‘Não leve o virtual tão a sério’? Uma breve reflexão sobre métodos e convenções na realização de uma etnografia do e no on-line”. Baseada em etnografia realizada numa comunidade do Orkut composta por homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens, a autora busca desvencilhar-se dos pares de oposição utilizados nas definições do presencial e do virtual e procura alternativas analíticas para essas dicotomias. Entre suas conclusões, observa o quanto convenções, marcas e padrões do “mundo presencial” estão presentes no “virtual” de modo a questionar a rigidez dessas fronteiras. Trata-se de compreender a construção e expressão da homossexualidade no virtual e a relação estabelecida entre on-line e off-line no que diz respeito à experiência dessa identidade, manifesta de forma múltipla e em referência a categorias e convenções presentes no mundo presencial. A identidade virtual não é vista como descontextualizada e fragmentária, mas atravessada por diversos marcadores de diferença e traços contextuais presentes em qualquer identidade. A autora problematiza ainda sua inserção como mulher numa comunidade preocupada com “assuntos de homens”, apontando as implicações da conjuntura para a pesquisa. Os trabalhos que compõem a segunda parte do livro, Etnografias da justiça, alinham-se ao campo de estudos de gênero e violência. Daniela Moreno Feriani, em “Escolhas metodológicas e etnografia em um campo de interlocução entre antropologia e direito”, percorreu os tribunais de justiça criminal de Campinas/SP, monitorando processos de homicídio e tentativa de homicídio entre pais e filhos. Além da observação do ritual judicial, analisou os discursos dos processos criminais de modo a perceber como convenções de gênero e de geração surgem nos julgamentos. O texto esquadrinha habilmente como as estratégias jurídicas denominadas pela autora como “moral familiar” e “saúde mental” são acionadas no julgamento dos casos. Além da observação participante e do estudo documental dos processos criminais, os casos de crimes geracionais estudados foram comparados aos crimes entre cônjuges de modo a oferecer uma percepção mais refinada do modo como os crimes em família são interpretados no campo jurídico. A autora mostra como as categorias de masculino e feminino podem ser acionadas para explicar a polaridade estabelecida, por um lado, entre filhos e esposas e, por outro, entre maridos e pais. Interessante é a discussão sobre a metodologia duplamente comparativa: o

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recurso simultâneo à pesquisa de campo e em arquivo e à comparação entre os crimes geracionais e os crimes entre cônjuges. Os limites e conflitos entre duas experiências profissionais distintas que se entrecruzam no encontro etnográfico foram problematizados por Flávia Melo da Cunha no artigo “Da investigação policial à investigação antropológica: implicações da proximidade e do distanciamento na pesquisa antropológica”. A pesquisa, iniciada quando a autora trabalhava como policial numa delegacia de mulheres em Manaus/AM, voltou-se para os casos de lesão corporal grave registrados na delegacia. Proximidade, objetividade e a produção das alteridades no trabalho de campo são algumas das questões trazidas no debate sobre o processo de conversão de policial a antropóloga, as implicações do multipertencimento profissional na produção da etnografia da delegacia de mulheres e a relação forjada com os sujeitos da pesquisa: policiais e mulheres vítimas de violência. Entre outros aspectos, a autora analisa com propriedade as especificidades da atividade policial e a rotina de atendimento nas delegacias, bem como os desafios enfrentados para forjar sua identidade de antropóloga nesse campo. A análise passa, ainda, por uma tentativa de aproximação do ofício do antropólogo ao ofício do policial, buscando compreender as semelhanças e divergências inerentes às profissões constituintes de sua experiência de pesquisa. Etnografias da arte, a terceira parte do livro, tematiza a cena do teatro e da “música mundial” na capital paulistana. O ensaio de Cauê Kruger, intitulado “Um picadeiro na Praça Roosevelt – Os Parlapatões, Patifes e Paspalhões”, apresenta os pressupostos, as possibilidades e os limites da teoria da performance para a realização de uma etnografia que dê conta ao mesmo tempo de um fenômeno estético e do contexto no qual se insere. Através de uma descrição meticulosa, o autor analisa a trajetória e a atuação cênica do grupo de atores cômicos Parlapatões, Patifes e Paspalhões. A formação do campo teatral paulistano e as disputas que o constituem são apreendidas com o auxílio da teoria dos campos de Pierre Bourdieu, possibilitando olhar para a dimensão histórica e relacional do processo de consagração do grupo. A etnografia cumpre bem a proposta de inserir a atuação dos Parlapatões no contexto teatral paulistano, além de fazer uma bela defesa da necessidade de se compreender um fenômeno estético em relação com a sociedade onde é produzido. O ensaio de Paulo Müller, “Etnografia, mediação e relações interculturais: entre o geral e o particular na produção de músicas do

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mundo”, analisa a questão da mediação entre cenários etnográficos e contextos sócio-históricos. Geral, particular, trânsito, fronteiras, contato intercultural e mediação musical são questões debatidas pelo autor, que se debruça sobre as práticas de uma rede de músicos e produtores de “músicas do mundo” na cidade de São Paulo. O autor mostra como se configuram a valorização e a síntese das diferenças através das “músicas do mundo” e como as relações de poder determinam modos de enquadramento das experiências culturais e das percepções do que é geral e particular. A etnografia surge como método privilegiado para compreender as articulações entre a globalização e a produção da diferença em contextos interculturais. É iluminadora a comparação estabelecida entre as trajetórias de Luiz Gonzaga e Bezerra da Silva no Rio de Janeiro e os grupos de “música do mundo” Mawaca, Troupe Djembedon e Sexteto Mundano em São Paulo. A necessidade de se relacionar um fenômeno estético com seu contexto de produção faz-se presente também neste ensaio, ainda que através de um arcabouço teórico-metodológico distinto. A abordagem de documentos como fonte para a pesquisa antropológica é debatida nos três últimos ensaios, reunidos na seção Etnografias do colonial. No primeiro deles, “A missão de um ponto de vista relacional: um ensaio para a apreensão da prática a partir dos documentos”, Iracema Dulley parte de documentos produzidos nas missões católicas espiritanas do Planalto Central angolano para reconstituir as práticas de dois tipos de agentes: missionários e catequistas. O argumento do texto se desenvolve de modo a avaliar o quanto a constituição de agentes permitiu apreender a produção de uma convenção de significação no universo da missão. A autora considera os documentos, embora assinados pelos missionários, como produto de uma relação que se estabeleceu na prática e envolveu diversos agentes. Nessa medida, argumenta em favor do uso das fontes para analisar não só o ponto de vista missionário, mas as relações a partir das quais se deu o processo de textualização do qual os documentos são produto. Discutem-se, ainda, os limites e as possibilidades colocados pelas fontes para a constituição de cada agente. Em “Visões do campo sobre o arquivo (e vice-versa)”, Marcelo Mello trata de sua experiência de campo na comunidade negra rural de Cambará/RS e de seu trabalho no arquivo com fontes relativas à comunidade. Seu ensaio analisa a influência da experiência etnográfica na análise documental e vice-versa. A confrontação entre registros escritos e relatos orais aparece como uma forma profícua

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de captar a memória e a história da comunidade. O autor tematiza ainda as assimetrias presentes ao lidar simultaneamente com relatos orais e escritos e apresenta possibilidades de superação do caráter assimétrico dessa relação. É interessante observar a dimensão diacrônica da pesquisa, iniciada no contexto da elaboração de um laudo antropológico, que colocou a necessidade de se buscarem correspondências entre o que os habitantes de Cambará diziam e o que os arquivos apresentavam como “provas”, e finalizada com uma pesquisa sobre memória na mesma comunidade, que de certa forma acabou por privilegiar a leitura de seus moradores sobre sua própria história. Nesse sentido, defende-se o argumento de que se deve atentar para as formas de lembrar, e não para as deficiências da memória oral em relação ao arquivo, na tentativa de escapar ao risco de determinar o oral pelo escrito. Em estreito diálogo com os argumentos apresentados nos outros artigos da última parte da coletânea, Olivia Janequine apresenta uma original revisão da tradição antropológica no que diz respeito ao método etnográfico. Passando em revista os pressupostos de autores clássicos e contemporâneos, a autora busca consolidar fundamentos metodológicos e epistemológicos para uma análise etnográfica de documentos escritos, concluindo que os fundamentos de uma etnografia desse tipo seriam os mesmos de qualquer outra etnografia. De certa maneira, o texto reitera o argumento que interliga todos os ensaios, uma vez que estes, para além de apresentarem estudos etnográficos desenvolvidos em contextos distintos, discutem questões enfrentadas no decorrer de pesquisas que se valeram de metodologias diversas: o campo, o arquivo, a internet e combinações entre esses métodos. A transversalidade das etnografias, voltadas para a compreensão de diferentes aspectos da realidade social, articula-se nos textos a uma discussão metodológica surgida no trato com a empiria. O conjunto dos ensaios revela, ainda, o esforço dos autores para buscar alternativas analíticas e descritivas a classificações rígidas e dicotômicas, dando outro tratamento às tensões entre virtual e presencial, geral e particular, oral e escrito, campo e arquivo. Resulta dessa disposição um refinamento das perspectivas de análise, com recortes de pesquisa que buscam estabelecer uma relação entre universos simbólicos e práticas, relações de poder e história.

ETNOGRAFIAS DO CIBERESPAÇO

O universo simbólico neonazista na Internet: breve relato de uma experiência etnográfica

Adriana Dias

Introdução O presente artigo retoma minha experiência etnográfica a respeito do neonazismo na Internet1, realizada durante seis anos, cujo resultado foi apresentado primeiramente em minha monografia de conclusão de curso (Dias, 2005) e, posteriormente, em minha dissertação de mestrado (Dias, 2007). Primeiramente, fora preciso definir que material seria utilizado na análise. Quando comecei a pesquisa havia cerca de 8.500 sites neonazistas na rede, em língua espanhola, inglesa e portuguesa; quando defendi o mestrado, eles passavam de 13 mil2. Muitos deles ofereciam links para outras ferramentas da rede, que permitiam grande fluxo de interação e comunicação, como redes sociais, nas quais havia centenas de comunidades neonazistas, blogs, canais de comunicação como MUDs e IRC, listas de discussão, fóruns e chats. A etnografia no virtual me possibilitava um fio condutor de leitura de um movimento que, infelizmente, cresce em média 8% ao ano e se baseia num radicalismo: a eliminação de “seus inimigos”. É importante notar que os dados do tráfego foram crescentes 1.  Entende-se que o termo Internet engloba tanto a estrutura técnica da rede (servidores e dados) quanto aos usos dessa estrutura (Di Maggio et al, 2001). 2.  O ponto de partida para a localização destes sites foi a lista “Os 500 melhores sites Nacional-Socialistas”. A partir dos mesmos, por meio de seus links, era possível identificar dezenas de outros. Criei um banco de dados em Access para cadastrálos. Nesse banco de dados, além da URL principal do site, foram registrados dados de acesso, temas abordados e links que os sites estabeleciam. Esse banco de dados foi disponibilizado, em sua primeira versão, com cerca de 8.500 sites durante a defesa de minha monografia de conclusão de curso, em CD.

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durante toda a pesquisa e apontaram, sempre, para um número muito maior do que o aferido por outras pesquisas. Embora se estime o número de 150 mil neonazistas no Brasil, o site brasileiro Valhalla88, por exemplo, apresentou, segundo o Alexa, em março de 2006, mais de 400 mil visitas de IPs diferenciados. A impossibilidade de abarcar todo esse gigantesco material impôs a necessidade de definir quais sites e quais ferramentas seriam objeto da pesquisa. Entre os sites, escolhi os mais acessados nas línguas citadas, os que mais se relacionavam por meio de links com outros sites da Internet, os que ofereciam mais material para “ativismo”, disponibilizando livros, cartazes, selos, músicas e outros materiais, e os que eram reconhecidos pelos próprios neonazistas dos chats, fóruns, listas de discussão e comunidades das redes sociais3 como “referências”, ou seja, sites centrais para o movimento neonazista. Entre as redes sociais, escolhi o Orkut por três motivos: interessava-me acompanhar os processos movidos pelo Ministério Público e denunciados pela SaferNet contra as comunidades neonazistas, era a rede social4 que possuía a maior quantidade de comunidades neonazistas (durante a pesquisa chegaram a existir mais de 300; a média foi de 200) e a configuração da rede social me permitia consolidar os dados de uma forma que privilegiava os debates entre os participantes, por conta da estrutura das comunidades e de seus fóruns. Entre as outras ferramentas disponibilizadas pelos sites, escolhi alguns fóruns, como o fórum Stormfront, no qual há debates de internautas de todo o mundo (identificados pelo endereço de IP), privilegiando os que possuíam maior número de participantes, e seis blogs, os mais citados nos sites escolhidos. Além do material encontrado na rede, estabeleci, durante a pesquisa, contato com procuradores, promotores e juízes que lidaram com o crime de neonazismo, inclusive o mediado por computadores e acessei ações públicas a respeito dos crimes que se deram em território nacional e/ou que foram cometidos por brasileiros. Busquei dados a respeito desses crimes nos Estados Unidos, na Espanha, no Brasil e em Portugal; correspondi3.  Saliento que minha participação nos sites e comunidades neonazistas se deu como observadora (nunca postei nestas comunidades) e que os sites em questão foram apresentados como “referência” nas discussões observadas, como fonte “do melhor material nacional-socialista”. 4.  Rede Social se refere à forma de apresentação hipermediada. São exemplos o Orkut, o Facebook, o LinkedIn, entre dezenas de outras. Há opção para língua portuguesa em apenas um terço delas.

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me com dezenas de pessoas, de diversas entidades, governamentais e não governamentais, que objetivam medir e denunciar o neonazismo, inclusive o digital. Por fim, incluí também uma loja de “naziwear”, loja virtual que comercializa diversificado material a respeito do movimento, de camisetas com citações hitleristas a CDs de música de bandas neonazis. Esta busca externa, que ampliou minha etnografia, surgiu de minhas interrogações: o que era aquele movimento? Quanto de seu discurso de ódio aqueles internautas vivenciavam fora da rede? Que conexões suas estratégias revelavam? Para atender a essa contínua circulação entre contextos, fluxos e situações, como os apresentados pelos neonazistas na Internet, uma direção interessante se fez necessária: aquela proposta por George Marcus: uma etnografia multissituada. Como afirmou Marcus, o “objetivo é acompanhar conexões, associações e relações nos locais mais inesperados” para alcançar, nessa pluralidade, “traduções e aproximais” entre eles (Marcus, 1998: 80). O discurso neonazista dos sites pesquisados, ele mesmo uma prática central do movimento, denuncia, portanto, as condições sociais de sua produção e utilização; e como indicou Bourdieu, tal discurso deve ser pensado “procurando fora das palavras”, nos processos que produzem tal discurso e que conferem aos agentes “os princípios de um poder que uma certa maneira de utilizar as palavras permite mobilizar” (Bourdieu, 1998: 199-200). A respeito desta relação entre discurso e prática, uma abordagem interessantíssima está proposta por Dulley (2011). Nesta discussão, a autora aponta para a ideia de que “os diversos agentes em interação” por ela analisados “viram-se às voltas com a necessidade de forjar uma convenção de significação que lhes permitisse ao mesmo tempo comunicarem-se uns com os outros e perseguir, cada um, sua estratégia nessa disputa simbólica. Para tanto, fazia-se necessário um diálogo no plano das práticas e dos discursos – eles também práticas – que pusesse em relação os significados atribuídos a esses elementos pelos diversos agentes”. A etnografia em ambiente hipermediado Definido o objeto, era preciso pensar quais questões metodológicas seriam centrais na abordagem etnográfica do neonazismo. Com a emergência da Internet e sua exponencial expansão, em especial dos conteúdos produzidos por internautas, nas dezenas de redes so-

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ciais e nos milhões de blogs que se espalham pela WEB, novos tipos de sociabilidades e novas práticas comunicativas se tornaram objeto da atenção dos pesquisadores antropológicos. Mobilizando temas de interesses diversos, esses grupos oferecem para a apreensão antropológica várias questões, inclusive conceituais: uma comunidade virtual pode ser pensada no mesmo sentido em que usaríamos o termo comunidade em outra situação de campo? Como as questões de poder se manifestam na rede? O que é uma identidade virtual? Como a Internet, um “artefato cultural”, preenchido, portanto, de uma elástica dimensão simbólica, remodela as experiências? Muitos teóricos têm se preocupado em teorizar o quão “ocidental” são as implicações das novas tecnologias da comunicação para pensar, inclusive, como poderiam ser realizadas etnografias no ciberespaço.5 Um dos termos mais utilizados, “etnografia virtual”, foi amplamente discutido por Christine Hine (2005)6 para pensar diferentes aproximações metodológicas para o estudo qualitativo da Internet. Hine discute a relação entre pesquisador e pesquisados, traçando especificidades impostas pelo meio virtual; segundo a autora, a ideia é “interrogar o método tradicional”, afinal, argumenta ela, “numa reflexão sobre se uma entrevista virtual pode ser considerada uma verdadeira entrevista, nós também podemos pensar mais profundamente sobre o que é que temos valorizado como metodologia no que se refere a entrevistas” (idem: 10).

5.  Cf. Escobar, 1994; Hakken, 1999; Miller e Slater, 2000. As ideias de “etnografia virtual” (Hine, 2000, 2005 e 2006; Williams, 2005 e 2006; Mayan I Planells, 2006), de etnografia do ciberespaço (Hakken, 1999; Dimaggio et al, 2001), de etnografia por meio da Internet (Beaulieu, 2004) e de ciberetnografía (Escobar, 1994) desejam problematizar especificidades das interações hipermediadas, o uso de ferramentas particulares para obter e sistematizar dados, as definições imersas em alto grau de complexificação de “território virtual” e “temporalidade digital”, objetivando, finalmente, refletir como a experiência do investigador e sua relação com o objeto de estudo afetam os agentes analisados. No Brasil dois trabalhos importantes são os de Daniela Araújo (2004), a respeito dos blogs de meninas anoréxicas e bulímicas e o de Carolina Parreiras (2008), a respeito das relações interpessoais estabelecidas em uma comunidade da rede social Orkut composta por homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens. 6.  Em duas de suas obras principais: Virtual Methods: Issues in Social Research on the Internet (2005) e Virtual Ethnography (2000). Um resumo de sua pesquisa foi apresentado em 2006, durante o III Congreso Online del Observatorio para la Cibersociedad na conferência Virtual Ethnography.

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Para Hine, a etnografia no virtual é enriquecedora porque pode auxiliar a teoria antropológica no pensar-se, e ambas facetas do método poderiam “enriquecer-se mutuamente, por serem similares, em alguns aspectos, mas muito diferentes em outros”. Uma pergunta importante da autora, que durante muito tempo foi discutida por outros pesquisadores que desenvolveram etnografias na Internet é: “por que é mais fácil criar confiança nos relatos da vida real (idem: 55)?” Hine aponta, por exemplo, que para determinados temas sensíveis, como o estudo realizado por ela entre profissionais do sexo, o uso da etnografia virtual poderia facilitar o acesso etnográfico. Uma outra importante observação de Hine é que no estudo de sites é preciso problematizar como estes são significativamente construídos (incluindo aqui, ainda, as ferramentas utilizadas nesse processo) e de que forma esses sites podem servir às pesquisas. Outro autor que se vale do mesmo termo (etnografia virtual) é Matthew Williams (2007), no que denomina “the application of research methodology to the online arena”. Como Hine, o autor também se preocupa com as questões metodológicas que são levantadas, com frequência, sobre a viabilidade de uma etnografia virtual; e em sua pesquisa, na qual estudou a representação de perfis e avatares7 em comunidades virtuais, faz interessantes observações acerca da prática da etnografia virtual. Para Williams, os “ambientes on-line”, principalmente depois do “advento de novas tecnologias de banda larga e da expansão da linha gráfica”, exigiram métodos que problematizassem inclusive a rápida mutação dos mesmos e como isso retrata algo “da cibercultura”. Em outra de suas obras, Virtually Criminal: Crime, Deviance & Regulation Online (2006), o autor discute a natureza dos crimes cometidos no contexto de uma comunidade virtual on-line, num trabalho de etnografia vasto, no qual sugere, por meio de diferentes abordagens teóricas sobre as comunidades on-line e off-line, a natureza do “crime” e também sua configuração transnacional, além de discutir estratégias de regulação. Williams dá conta, ainda, por meio da “etnografia virtual”, da questão que dominou durante certo tempo o debate acerca do tema: a relevância da pesquisa virtual. 7.  Geralmente, nas redes sociais, perfis são as descrições a respeito de si mesmos que os participantes disponibilizam para os outros internautas. Em algumas comunidades, os perfis podem ser restritos a contatos pré-determinados. Os avatares são os desenhos gráficos (personagens) que servem como representação do internauta nas redes sociais.

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Esta questão também é discutida por Joan Mayans I Planells: a denominada “trivialidade dos debates on-line” que, segundo o autor, emprestaria aos temas certa “banalidade”. Isso se manifestaria, segundo ele, na necessidade de se reafirmar a importância do virtual em cada pesquisa para justificar uma certa “irreverência e falta de seriedade” do “objeto de estudo virtual”, inclusive do ponto de vista dos internautas, que Mayan I Planells denominou “nossos indígenas”, os quais, ainda segundo o autor, “riam-se de nossas técnicas”, “subvertendo a lógica, a pauta, e a estrutura do processo de investigação”. A ideia de “etnografia em ambiente hiper mediado” é discutida por Bella Dicks e Bruce Mason (1998) em Hypermedia and Ethnography: Reflections on the Construction of a Research Approach. Neste artigo os autores precisam a necessidade de reconhecer e representar a complexidade envolvida na pesquisa etnográfica on-line e recordam que, inicialmente, esta se demarcou por uma nova atenção ao hipertexto e às hipermídias. Os autores asseguram que novas pesquisas no campo virtual dependeram de uma interrogação crítica a vários conceitos, entre eles o “paradigma pós-etnografia” (Marcus e Fischer, 1986), exatamente por seu questionamento da categoria “o campo”, quanto ao modo como se abrange o objeto de estudo etnográfico. A ideia da etnografia em ambiente hipermediado exigiria uma superação da “suspeita noção de espaço-definido de uma ‘comunidade’ como um objeto de estudo, seria suplantada pela ideia de Marcus de etnografia multissituada, verdadeiramente mais centrada na mobilidade das forças sociais do que em suas relações de fixidez e ‘habitação’” (Clifford, 1997). Os autores, ainda, concordam que haveria para os etnógrafos a eminente necessidade de “colocar seus assuntos firmemente no fluxo dos acontecimentos históricos”, como defenderam Marcus e Fischer (1986: 44). Em Cyberspace and Anthropology, David Hakken8 também se dedicou a discutir o quanto a por ele assim denominada etnografia do ciberespaço deve enfatizar a construção dos objetos etnográficos na rede, numa busca pelo “processo social de sua criação” (Hakken, 2001: 14). Seria preciso, inclusive, discutir, segundo o autor, como as 8.  Outra obra importante deste autor é Cyborgs@Cyberspace? An Ethnographer Looks at the Future (1999). Publiquei uma resenha deste livro no OCS – Observatorio para la CiberSociedad, disponível em http://www.cibersociedad.net/recursos/ressenya.php?id=83. Último acesso em 31/03/2009.

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novas tecnologias de informação modificaram as condições de convívio, experiência, aprendizado e legitimação9. Os autores citados elucidam como a antropologia pode se enriquecer teórica e empiricamente com boas etnografias em ambientes hipermediados. Estas devem problematizar tanto o “processo social” da criação de novas tecnologias, como afirmou Hakken (2001: 14), como a construção dos sites e comunidades específicos, como defendeu Hine. Pensando em meu objeto de pesquisa,as interrogações metodológicas dos diversos autores citados auxiliaram-me a responder a duas perguntas centrais: o que os sites neonazistas denunciam do universo simbólico do movimento e como se valem da rede para seu ativismo político. Para responder à primeira questão era preciso analisar os próprios sites, blogs, fóruns e comunidades. Para responder à segunda era preciso pensar a relação desses sites entre si e com o restante da Internet. Etnografando o neonazismo na rede – o universo simbólico neonazista Pensando na primeira questão, privilegiei, em minha dissertação de mestrado, dois elementos articulados pelos sites e comunidades, deliberadamente apólogos da ideologia neonazista: a ideia de um “sangue ariano”10 (muitas vezes também denominado sangue   9.  O autor recordou: “Não é a primeira vez na história que uma nova tecnologia de informação tem alterado as regras para gerenciar o conhecimento (...)[;] não podemos abrir mão do fato de que devemos compreender a estrutura para conseguirmos dar continuidade à operação (...)[;] temos que possuir conhecimento tanto sobre a forma como sobre o processo”. (Siding-Larsen, 1984 apud Hakken, 2001: 15-16.) 10.  Este termo é presente em todos os sites pesquisados, muitas vezes em cada URL. As citações específicas, oriundas dos sites analisados, seguem as seguintes siglas: 14W (14 Words), disponível em: http://panzergirl.blogspot.com/, último acesso fevereiro de 2009; AARG (Aaargh, Revisionismo da II Guerra Mundial, Campaign For Radical Truth In History), disponível em: http://www.vho.org/aaargh/port/ port.html e http://rhistorico.tripod.com/, último acesso fevereiro de 2009; FE (Filhas Da Europa), disponível em: http://www.hijasdeuropa.tk/, último acesso fevereiro de 2009; HLOBO (blog de um internauta de nickname Homem Lobo), disponível em: http://www.homemlobo.blogspot.com/, último acesso em maio de 2008; NA (National Alliance), disponível em: http://www.natvan.com/index.html, último acesso fevereiro de 2009; NAr (Nações Arianas), disponível em: http://www.aryannations.org/index.html, último acesso em fevereiro de 2009; NON (Nuevorden), disponível em http://www.nuevorden.net/, último acesso

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“alemão ou germano” (FE, V88, NON), ainda que isto não signifique, necessariamente, nenhum vínculo de ascendência com a nacionalidade alemã) e a maneira peculiar como narram o mito de Thor. Ambos são largamente utilizados nos sites, associados, para emprestar legitimidade à ideia de que há uma “nova Germânia” (NON, FE, V88, STO, NA) a ser construída, um teutonismo a ser atualizado, um “povo alemão” (todos os sites) a ser resgatado. Esta reconstrução, esta atualização e este resgate, defendem os sites e os participantes das comunidades e fóruns, dependem do “reconhecimento do mito pelo sangue” (V88) e da “ativação do sangue pelo mito” (V88). Explicando de maneira simples, os neonazistas na rede defendem que todo verdadeiro “ariano” é portador “do grande sangue alemão” (todos os sites), interessando apenas que este sangue seja oriundo “de países brancos, com menos de 1/32 de cromossomos não brancos”, como nos informa o Voz de Odin, fórum do site Valhalla88. Numa intricada mistura de termos biológicos e discurso religioso11, o sangue se faz presente nos rituais e nos mitos neonazistas, e os diversos “informantes” desta etnografia descrevem “o sangue” como chave para o “conhecimento social implícito”, que faz os agentes analisados nesta pesquisa “se moverem, sem saber exatamente por que ou como”; para eles, é “o sangue” http://www.columbia.edu/cu/ealac/ gradconf/schedule.htm “aquilo que torna o real, real e o normal, normal, e, acima de tudo, aquilo que torna as distinções éticas politicamente vigorosas” (Taussig, 1987: 344). Para apreender o exato sentido “deste sangue”, é preciso não se excluir a função da linguagem para representar a cosmologia (em que se incluem os mitos) nos rituais, mas enfatizar a linguagem como instrumento de ação social – nos sites, este sangue aparece sob diversas formas de linguagem: ele está na cor vermelha das páginas, nos botões e links que revestem em junho 2008; RH (Revisão Histórica), disponível em: www.revisaohistorica. kit.net, último acesso em janeiro de 2004; SG (Solar General), disponível em: http://www.solargeneral.com, último acesso fevereiro de 2009; STO (Stormfront White Pride World Wide) http://www4.stormfront.org/, último acesso em fevereiro de 2009; V88 (Valhalla88), disponível em: http://www.valhalla88.com/, último acesso em maio de 2006; WAU (Women for Aryan Unity), disponível em: http://www.rac-usa.org/wau/, último acesso em fevereiro de 2009; WPS (White Power Sp), disponível em http://www.whitepowersp.org/, último acesso em maio de 2007; ZYK (Loja Zyklonb), disponível em http://www.zyklonbwear.com/ loja/, último acesso em junho de 2008. 11.  Biologizado por eles à exaustão, o discurso é densamente povoado por expressões que envolvem todo um léxico genômico (DNA, mitocôndrias, gametas, células, núcleo celular, transmissão hereditária, entre outros).

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os botões e banners, nas suásticas, sempre envolvidas em vermelho; portanto, ele é ao mesmo tempo o mito traduzido no texto e nas imagens e uma escolha técnica de cor, que repetida site a site, Internet afora, inspira padrões ritualísticos. Um dos primeiros pesquisadores do movimento que defende a supremacia branca nos Estados Unidos, Rafael Ezekiel se preocupa com o fato de a própria Ku Klux Klan ter nazificado seu discurso nos últimos vinte anos. Afirma o autor que o discurso nazi catalisou o discurso racial em períodos de desordens econômicas, quando há restrições para novos postos de trabalhos, e os líderes dos movimentos nazis se tornam mais atrativos por apresentarem uma resposta pronta para o que deve ser realizado. O discurso nazificado se vale do sangue como símbolo máximo, o bem maior a ser preservado, como afirma um internauta, numa comunidade neonazista: “Brancos, mais que uma raça, uma Religião. Aqueles que destroem seu sangue misturando-o ao dos que diferem de sua cor está destruindo seu próprio destino, seu EU, seu futuro, selado num gesto de perda eterna”. Neste discurso, amalgamado à ideia de honra, supremacia e poder expressos por uma condição de “sangue”, o sangue aparece “impregnado por um imaginário” específico (Héritier-Augé ,1990; Héritier, 1991). Mas quando os neonazistas falam de sangue, do que mais eles falam? Para Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1995: 800), o sangue representa todos os valores solidários com o fogo, o calor e a vida; o sangue, veículo da vida, expressa fertilidade, abundância e felicidade, é a bebida da imortalidade, o veículo das paixões, veículo da alma. Para Juan Eduardo Ciriot (1984: 509), o sangue se vincula ao ferro e, por isso, à força e à coragem. Teria um caráter vital. Na alquimia, ele recorda, aparece quando a matéria passa do estado branco (albedo) para o vermelho (rubledo), passagem simbólica que o autor compara à história de Parsifal, cujas vestes são vermelhas. Associado às runas, o sangue se reveste, para os neonazistas, de poder mágico. O sangue é um elemento divino, nele residiria a força vital; na antiga doutrina dos humores corporais, o sangue selava pactos rituais. Presente nos rituais e nos mitos neonazistas, o sangue ocupa um lugar cosmológico, no sentido que lhe dá Stanley Tambiah, pois nele acontece “um sistema de comunicação simbólica construído socialmente”12 (Tambiah, 1995: 131). Ao mesmo tempo substância e 12.  Conforme cita Mariza Peirano, traduzindo o autor: “O ritual é um sistema cultural

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símbolo, o sangue operacionaliza uma integração, como pressupôs Tambiah nesta visão de cosmologia que pretende um encontro entre “o dito e o feito”, “forma e conteúdo”, integração entre relato cultural e análise formal. A ideia do “sangue ariano”, denominado ainda de “precioso sangue”, “santíssimo sangue”, “sangue alemão”, “sangue nórdico”, entre outras associações encontradas, é discutida pela autora de A Demanda da Raça, uma Antropologia do nazismo, Cornelia Essner, inserida no “dogma racial nórdico” (Essner, 1995: 18). Esta articulação é fundamentada na construção de uma categoria em torno da ideia mítica “do Sangue” (Blutmythos13) por um “amálgama de símbolos emprestados” (idem: 20), símbolos estes que resgatavam, inclusive, o dogma da transubstanciação católico, abandonado pelo luteranismo alemão. A carne e o sangue, nórdicos por herança genética e ritual, transubstanciavam-se na raça alemã, perpetuando-se. Nas URLs pesquisadas, “o Sangue” verte no vermelho das suásticas e por ele está disposto a morrer: “ou o Estado nacionalista, ou nossos cadáveres” (RH). É o sacrifício da carne, mantendo vivo o sangue. O novo Pão e o novo Vinho são definidos: a carne dos soldados e o sangue nórdico de suas veias (Dias, 2006: 8). Nesse sentido, o sangue ariano é eucarístico, verte-se pelos arianos do mundo, em memória de seus antigos líderes. É desta forma que a morte dos líderes é lida nos sites, não como derrotas, mas como sacrifícios que garantem a durabilidade, inclusive a eternidade de sua causa; é no sangue dos mártires arianos que se perpetua a força restauradora da “nova nação”: a raça. “Nossa Nação é nossa raça”, define o site Valhalla 88. É o sangue que precisa, no limite, de todo o senso de preservação; os menos radicais indicam: as raças podem colaborar entre si, mas nunca se misturar. É ele garantiria à raça ariana toda sua supede comunicação simbólica. Ele é constituído de sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas sequências têm conteúdo e arranjo caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A ação ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como “performativa” em três sentidos: 1) no sentido pelo qual dizer é também fazer alguma coisa como um ato convencional [como quando se diz 'sim' à pergunta do padre em um casamento]; 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente uma performance que utiliza vários meios de comunicação [um exemplo seria o nosso carnaval] e 3) finalmente, no sentido de valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance [por exemplo, quando identificamos como 'Brasil' o time de futebol campeão do mundo” (Peirano, 2003). 13.  Em alemão, “mito do sangue”.

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rioridade: em cultura, beleza e progresso (NA, V88, WAU, WP, WPS, NON, FE, STO). O discurso racista regula, seleciona, organiza, redistribui e articula poderes e perigos: a supremacia racial branca está no epicentro das discussões acerca dos poderes e a ameaça de sua extinção, em particular pela possibilidade de casamentos inter-raciais ou por adoção de crianças negras e emoldura as discussões a respeito dos perigos. Esses empreendimentos discursivos efetivados nos sites neonazistas podem ser pensados à luz da discussão proposta por Pierre Bourdieu (principalmente 1990 e 1998) como estratégias, engenhos pelos quais se defende a manutenção e a legitimação do habitus neonazista14. O sangue se faz presente nesse discurso dos perigos: é ameaçado na mulher pelo contato com o negro e o judeu, mas permanece intacto no homem que estabelece o mesmo contato. A ressonância hitlerista é clara, rememora suas palavras: “a razão pela qual todas as grandes culturas do passado pereceram foi a extinção, por envenenamento de sangue, da primitiva raça criadora”, escrevera o ditador em Minha Luta. Note-se: é o sangue que assegura estratégias que buscam uma “simplificação” das relações sociais, no sentido em que Homi Bhabha a utiliza, não como uma falsa representação da realidade, mas como “uma forma presa, fixa, de representação” (Bhabha, 1998: 17): vislumbra na ideia de raça um “lugar”, dado por uma “natureza sábia” (V88, 14W, AARG, NAr, STO, WAU, WPS, ZYK), uma “realidade metassocial ou física (16)” e válida nos sites em questão como diferenças “naturais e biológicas” (NA) que se estenderiam a partir de origens “genômicas” a aspectos culturais, sociais, políticos, psíquicos, morais e comportamentais. A própria colocação acerca do “sangue ariano” como essencial para a compreensão do “mito ariano” demonstra que o discurso revela uma prática: “prega-se somente aos convertidos”. Por sua vez, o reconhecimento do discurso neonazista como verdade absoluta atesta o pertencimento à “comunidade do sangue ariano”, de modo que os agentes assim selecionados “[se] predisponham a reconhecê-lo 14.  Segundo Bourdieu (1990), as estratégias se consolidam num sistema de estratégias continuadamente produzido e reproduzido como sequências organizadas e orientadas das práticas grupais empreendidas pelos agentes para formatar o grupo como tal. Nestas estratégias o objetivo é "criar e perpetuar sua unidade, sua existência enquanto grupo, o que é quase sempre, em todas as sociedades, a condição da perpetuação da sua posição no espaço social" (Bourdieu, 1990: 94).

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absolutamente” (Bourdieu, 1998: 199-200). A criação, manutenção e participação em sites neonazistas devem, portanto, ser lidas como práticas para os agentes em questão, que se inter-relacionam “em mundo presumido, isto é, pressentido e julgado, o único que lhe[s] é dado a conhecer” (idem: 111). Exaustiva, a ideologia do sangue afirma existir nele uma conexão entre história e memória, fortalecida pelo poder “mágico” deste sangue para restaurar, agregar, civilizar, vencer, tornar heroico, garantir proteção. Para ativar esse “sangue” em cada “ariano”, os sites revelam: é preciso a suástica, o “martelo de Thor”. Prosseguindo na importância do martelo de Thor, atualizado pela suástica, grafado nas runas e imortalizado em “todos os guerreiros arianos disponíveis a verter sangue pela causa”, o site Valhalla88 relê, por meio deste símbolo, a própria história da justiça: a tradicional presença do martelo associada aos “juízes da corte” emanaria de “antigos povos europeus ao usarem o Mjollnir para comandarem uma sociedade justa, para proteger o povo”. Rememorando outra história mítica, na qual Thor é personagem central, o Valhalla88 conta “um mito germânico que envolve Thor e o Mjollnir (o martelo do deus). Em sua pescaria, Thor, ao ser atacado pela maligna serpente de Midgard (um monstro mítico), ergue seu martelo e a destrói”. Para os neonazistas, é possível construir “uma analogia por um ponto de vista Nacional-Socialista”, para eles, “a serpente representa o poder do dinheiro e do sionismo e da supremacia judaica e o Mjollnir representa a Suástica que combate a usura e o inimigo dos povos” (V88, 14W, NAr, STO, WAU). Etnografando o neonazismo na rede – as relações dos sites neonazistas na rede Outro aspecto importante para pensar os sites neonazistas na Internet é o fato de que a rede vem afetando o desenho das próprias organizações subversivas. Segundo Susan Zickmund, “os indivíduos que propagam ideologias nazistas tradicionalmente operavam isolados, com poucas ligações estruturais maiores. Mas com o advento do correio eletrônico e do acesso às páginas da internet, esses subversivos estão agora descobrindo meios de propagar suas mensagens além dos limites estreitos de suas ligações preestabelecidas”. Na rede, a comunicação circula mais rápido e a menos custo. No que se refere ao discurso neonazista, o ódio também. Mas, como os sites neonazistas utilizam da Internet para este objetivo?

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Para pensar a questão era preciso elucidar como os sites neonazistas se relacionavam entre si e com o restante da rede. Para isto uma ferramenta foi de particular importância, os índices escolhidos do projeto de Cibermétrica15 da Universidade de Sydney, Austrália. Para viabilizar a utilização desses indicadores, todos os sites foram baixados completamente no formato de pdf. Assim, era possível visualizar os indicadores para que esta visão do todo apontasse caminhos e esclarecesse as melhores direções. Também, com o auxílio da ferramenta de pesquisa qualitativa N*Vivo foi construído um banco de dados em plataforma Access para analisar cada um desses índices16. Na análise desses índices concluiu-se: a rede neonazista na Internet produz sites muito profundos (nos quais há muitos diretórios em cada diretório anterior) e com enorme densidade de links internos e não externos, o que torna os links internos menos visíveis aos canais de busca. Importa o tamanho destes sites porque ele revela a quantidade de informação disponibilizada por seus criadores, mas também por sua relação com a média geral de outros sites. No mundo, a média geral são de 80 páginas por site, numa média de 200 kb por página, o que facilita a maior parte do carregamento. Nos sites racistas são comuns sites com milhares de páginas, o que revela a tentativa de, mais uma vez, esconder-se no mar digital: a possibilidade de ser achado é menor, todo material está disponível no mesmo lugar e se retirado do ar basta colocar tudo de novo em um mirror. São em geral profundos, com uma média de quatro diretórios dentro de outros, dificultando mais uma vez seu encontro por sites de busca. O número total de links é imenso, e tanto a luminosidade quanto a broswseability dos sites é cerca de trinta vezes maior que a média 15.  Os pesquisadores da Cibermétrica construíram vários indicadores para mensurar sites: SIZE se referia ao número total de WEB páginas de um website, FILES SIZE ao volume em bytes do total de filas do website, DENSITY HIPERTEXTUAL à média numérica de links por página, DENSITY MULTIMEDIA à média numérica de objetos multimídia por página, DEPHT ao número máximo de diretórios de um site, LUMINOSITY ao número total de links internos e externos que se dirigem ao site, BROWSEABILITY à relação entre o número de links internos de um site e seu total de páginas, ENDOGAMY à porcentagem de links internos únicos em relação ao total de links, VALIDITY à porcentagem de links validos em relação ao número total de links, POPULARITY ao número de visitas diferentes num determinado período, CONNECTIVITY ao número total de links únicos recebidos por um site externamente, VISIBILITY ao número total de links externos de um site, IMPACT à relação expressa pela divisão do número total de links externos e do número total de páginas de um site. Para um detalhamento do método, ver Aguillo (2000). 16.  Para detalhes acerca da construção desses bancos de dados ver Dias (2007).

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da rede. Mas estes fatores não facilitam sua busca por serem propositadamente detidos pela densidade hipertextual e pela profundidade de diretórios. Os sites são profundamente endogâmicos, há muito mais links internos do que externos (o que confirma a ideia de que na verdade são vários sites em um), e os externos apontam, em mais de 95% das vezes, para sites neonazistas. Isto os torna visíveis para outros sites da rede neonazista, o que reforça os vínculos entre eles. Os sites reproduzem-se aos milhares e a grande maioria ocupa o espaço de dezenas deles. Os sites racistas são bastante acessados, mas sua conectividade e visibilidade são reduzidas na rede como um todo e muito maiores (duzentas vezes) se os retratamos na rede racista. Interessa-me em particular o uso que os sites fazem dos links, em especial os grandes sites de ativismo: NON, NA, AAARGH!, V88, SG, FE, WAU, entre outros, com mais de 1500 URLs. Por que estes trezes sites escolheram “aglomerar-se” em vez de ocupar o espaço de quase trezentos, ou ainda de quase mil sites? Um dos motivos, evidentemente, é desaparecer dos motores de busca, que enumerarão, por sua lógica algorítmica interna, as páginas mais acessadas e deixarão as outras milhares imersas na denominada “web invisível” (e se acrescentarmos o fato de que cada URL pode conter dezenas, muitas vezes centenas de laudas, estaremos falando em milhões). Mas se pensarmos que em cada uma destas URLs há dezenas de links apontando para outras páginas do mesmo site, se pudermos olhar cada link como uma relação, uma troca, um processo profundo e essencialmente endogâmico se revelará diante de nossos olhos. Se pudermos observar que os links externos, direcionados a outros sites, são em sua maioria esmagadora vínculos a outros sites do mesmo tipo, aparecem apenas na medida suficiente para gerar e gerir a rede racista, sem contudo ser suficientes, na absoluta maior parte das vezes, poderemos perceber que há uma modo de pensar a arquitetura dos sites que é peculiar a este grupo . Peculiar não é apenas sua escolha estética ou temática, mas a própria configuração do código-fonte, peculiar na maneira como os links são organizados e, portanto, como as relações dos sites entre si e na Internet são escolhidas ou ampliadas e/ou interditadas. Outro exemplo de como as construções dos sites são direcionadas revela-se na análise do elemento revisionista presente em todos os sites neonazistas. Este elemento objetiva desacreditar a história do holocausto, o uso das câmaras de gás, o número de mortes. O próprio passado passa ser objeto da luta política dos sites: para eles, há o

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passado oficial, produzido segundo os sites pelo “mundo sionista”, e há o “passado” que defendem. Nesta produção, o discurso do sangue também se repete, você só se torna “capaz de desconfiar e rejeitar a história oficial” se for “um verdadeiro ariano”. Para dar conta do revisionismo histórico os sites produzem milhares de páginas: sua versão dos fatos precisaria ser divulgada. Nesse processo, textos, laudos, fotos, arquivos de todos os tipos entram no debate para legitimar sua posição. Como escreveu Marcelo Mello, “se o passado é um campo de disputas, as mediações com os arquivos podiam oferecer ferramentas para autorizar os discursos e versões do passado” (Mello, 2011). Nesse sentido, muitas ferramentas, inclusive as produzidas pelas novas tecnologias, associam-se para manipular dados, arquivos, versões, para que os sites analisados possam se apresentar como possuidores da “versão verdadeira da história” (V88, NON). Uma história que se vincula aos “mitos arianos”, por um lado, e que só pode ser compreendida pelo pertencimento ao sangue, por outro. Conclusão Nesse sentido, a construção de um site racista, a escolha das fontes, a presença da suástica, o debate direcionado para o medo da exterminação, para a valorização dos heróis e mitos, a escolha das cores e imagens que emoldurarão o mesmo, a disputa sobre a veracidade de seus dados podem ser lidos como “performatives”, no sentido que Tambiah dá ao termo, por representarem também como formas de programação, links e formatação são escolhidos e usados em preferência a outros para dar conta da eficácia da ação ritual e de transmitir a mensagem “do sangue”. É a representação dada a este “sangue” que materializa diversas articulações de sentido entre narrativas míticas, léxico genômico, negação do holocausto, ativismo político e discursos de gênero. É, portanto, no “sangue ariano” que cada neonazista reconhece seu martelo de Thor, disposto a esmagar seus inimigos (em especial “o judeu” e “o negro” por eles construídos) para, enfim, depois leválo para casa, a grande Germânia, na qual suas crianças terão “o futuro”. Este “sangue” é a crisálida na qual se preparam para tornarem-se heróis, cada um deles; um novo Thor é, ao mesmo tempo, memória e devir. Relacionando-se apenas entre si mesmos, como indica a densidade endogâmica dos sites, produzindo um conteúdo gigantesco,

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como revela o número de URLs dos mesmos, e arquivando este conteúdo em diretórios registrados em diretórios profundos e inalcançáveis pelos motores de busca atuais, os sites não apenas denunciam sua preocupação em compreender e utilizar para fins muito bem definidos as ferramentas disponibilizadas pela rede, mas também indicam o contorno de sua forma de pensamento: são grandes (em bytes), levantam grandes construções (milhares de URLs), seus valores estão profundamente enraizados (diretórios dentro de diretórios), não se relacionam com sites estrangeiros (como revela a intensa endogamia dos links), seus valores estéticos são claramente definidos e expressados (são intensamente povoados de imagens e outros tipos de mídia), recusam-se a utilizar linguagem simples de programação, preferem códigos de programação formais. Os links apontam, reafirmo, para um comportamento contornado por uma opção megalomaníaca, estética, endogâmica, formalista. E se os links destes sites agem desta forma, é porque os construtores da linguagem, na construção que os definem, foram levados por predisposições inconscientes que se movimentam nessas direções. Nesse sentido, os links não são bons para enlaçar, “mas são bons pra pensar”, na medida em que revelam sentidos e classificações, grupos próximos e distantes. Neste mar, o link é uma canoa feita de bytes, é nele que se processa a sequência de instruções a serem seguidas e/ou executadas no redirecionamento do contato na rede. Mais ainda, é possível ver nos links as relações de troca e as configurações que assumem. O que estou afirmando é, portanto, que o link revela uma atitude: ele continua ou descontinua um contato e em cada enlace aproximações e distâncias são estabelecidas. É possível pensar, portanto, uma outra caracterização do link: como artefato construído dentro de um código (em geral HTML), como representação de um padrão cultural estrutural, revelando os tipos de alianças permitidos e os interditados, como linguagem, por ser um elemento textual e, finalmente, como elemento da narrativa ritual do site, apontando para uma direção continuada, descontinuada, repetindo, intensificando a narrativa “do sangue”, repetindo-a novamente, entre outra formas de “retorno e paralelismo”, como ressaltou Lévi-Strauss (1955: 35). Nos sites analisados, os links são uma demonstração de como os discursos revelam práticas. Parafraseando Bourdieu, linkam-se somente os convertidos.

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“Não leve o virtual tão a sério”? – uma breve reflexão sobre métodos e convenções na realização de uma etnografia do e no on-line

Carolina Parreiras

Nos últimos dez anos vêm ganhando força na Antropologia estudos que tomam como foco o ciberespaço1 e as relações nele desenvolvidas. No caso brasileiro, por exemplo, destacam-se pesquisas como a de Daniela Araújo (2004), sobre blogs (diários virtuais) de meninas anoréxicas e bulímicas, a de Carolina Roxo Barreira (2004), sobre a construção do corpo em salas de bate-papo de deficientes físicos, e o trabalho de Adriana Dias (2007) sobre grupos neonazistas na internet. De modo geral, o que fica claro é a existência de um amplo campo de debates, que vão da separação ou não entre on-line e off-line à busca de adequar ou mesmo forjar novos instrumentos de pesquisa a fim de dar conta das realidades proporcionadas pelo virtual. Assim, este artigo baseia-se em algumas das reflexões que propus em minha dissertação de mestrado (Parreiras, 2008). Nela, busquei pensar a respeito de algumas das interações desenvolvidas a partir do e no ciberespaço tomando como ponto de partida os relacionamentos estabelecidos entre homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens e participam de uma comunidade – denominada Eper – de um programa de relacionamentos: o Orkut (www.orkut.com). Acredito ser pertinente caracterizar brevemente o Orkut e a comunidade em questão a fim de facilitar a discussão. O Orkut é um 1.  Outros termos aparecem como representantes do ciberespaço: internet, realidade virtual, on-line. Saliento que existe uma diferença conceitual entre os termos, mas essa diferenciação não se coloca como ponto chave para os fins almejados neste artigo, especialmente por não aparecer enquanto categoria do pesquisador ou como categoria “nativa”.

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programa de relacionamentos2 criado em 2004 e que, desde então, tornou-se um dos sites mais acessados por internautas brasileiros. Os atrativos do programa consistem em, por meio de um perfil, adicionar amigos e conhecidos, trocar mensagens e criar/participar de comunidades com as mais diversas temáticas. Para a realização da pesquisa, selecionei comunidades classificadas como “gays, lésbicas e bi”. Devido à enorme quantidade3 de comunidades encontradas, restringi a observação e participação apenas à comunidade Eper4. Durante a pesquisa, a comunidade contava com cerca de 3500 membros e se dizia um grupo com o objetivo de discutir o “universo masculino”. Minha intenção era compreender de que maneira as homossexualidades eram construídas e expressas no virtual, bem como quais eram as convenções e categorias classificatórias empregadas, buscando perceber se houve uma reiteração/reprodução ou subversão/ rompimento com o off-line. Entram também neste quadro a questão das identidades on-line e as maneiras como se dá a virtualização dos corpos e objetos. Como pano de fundo de toda a discussão proposta, sempre estiveram as questões metodológicas referentes à realização de uma pesquisa de campo em um “local” que desloca muitas de nossas convenções e conceitos. Busco, então, com este artigo, trazer algumas breves reflexões a respeito destes aspectos metodológicos, mostrando de que forma os enfrentei. É um ponto central nessa discussão compreender as dicotomias real/virtual e on-line/off-line, a fim de buscar uma visão mais alargada, que ofereça alternativas aos pares de oposição correntemente utilizados.

2.  O Orkut, conforme a definição constante no próprio programa, é uma “comunidade on-line”. Especialistas em internet utilizam a nomenclatura “programas de redes sociais” para caracterizar os programas criadores e reprodutores de redes sociais na internet. Exemplos desses programas, além do próprio Orkut, são MySpace (www. myspace.com), Facebook (www.facebook.com) e Hi5 (www.hi5.com). 3.  Um levantamento inicial, feito através das ferramentas de busca disponíveis no próprio Orkut, mostrou a existência de um número superior a mil comunidades agrupadas como “Gays, Lésbicas e Bi”. 4.  Utilizo o nome Eper a fim de não identificar a comunidade e seus membros. Este nome corresponde à abreviatura do nome oficial da comunidade e é utilizado nas conversas e postagens por grande parte de seus membros. A Eper chamou minha atenção por ser uma comunidade bastante movimentada, com discussões acaloradas. Diferentemente de outras comunidades que cheguei a observar, o fórum de discussões não continha apenas “joguinhos” e “brincadeiras”.

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1. “Não leve o virtual tão a sério!” Não saberia dizer quantas vezes, durante a pesquisa de campo, li esta frase. Em alguns momentos, a palavra “virtual” foi substituída por “Orkut” ou mesmo “on-line”, mas o sentido mais amplo se manteve: as relações estabelecidas via internet não deveriam ser investidas de tanta importância. A justificativa principal dos enunciadores de frases desse tipo era de que a internet e o ciberespaço constituiriam domínios separados do restante da vida de cada um deles, uma espécie de acessório e espaço destinado ao lazer, entretenimento e relações fugazes, sem permanência ou qualquer reflexo nos momentos “reais”, estes sim, sérios e importantes. Em contrapartida, ao etnografar uma comunidade on-line, presenciei inumeráveis situações que desmentiam a afirmação acima e mostravam o alto grau de imersão e investimento dos membros da comunidade nas relações estabelecidas no virtual: desde brigas por divergências de opinião, passando pelo surgimento de paixões e relacionamentos sexuais e afetivos, até agressões e exposições da vida off-line de alguns de meus informantes e da minha própria. Considero exemplar nesse sentido a criação de uma comunidade chamada “No Escuro5”, a qual se intitulava um “dark-room virtual”, onde tudo poderia ser dito desde que anonimamente. Este anonimato passou, então, a ser utilizado como veículo de difamação e exposição de fatos da vida íntima de vários membros da Eper. As práticas da “No Escuro” provocaram reações acaloradas, já que muitos membros tiveram suas vidas expostas, com a revelação de fatos íntimos, nem sempre verdadeiros, e foram alvo das mais diversas ofensas, calúnias e agressões. Um dos argumentos mais utilizados foi a divulgação da situação sorológica de participantes da Eper, supostamente portadores de HIV. Eu mesma fui envolvida através de comentários que levantavam dúvidas quanto à seriedade da pesquisa e especulavam sobre minha sexualidade. Este exemplo deixa clara a existência de uma tensão constante entre dois universos – on-line e off-line –, bem como alguns dos usos, significações e ressignificações da internet, apropriada como meio de estabelecer relações, buscar parcerias (amizade, sexo, romances, contatos profissionais), revelar segredos e comportamentos de outro 5.  Essa comunidade foi supostamente criada por membros dissidentes da Eper. Mantenho aqui o nome original, tal como aparece no Orkut.

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modo inconfessáveis, ou mesmo como palco para conflitos, divergências, desentendimentos, agressões, discriminações e preconceitos. Do mesmo modo, desde o começo da década de 90, quando se iniciaram os primeiros estudos sobre o ciberespaço, a antropologia se defronta com a dicotomia on-line/off-line. Faz-se necessário, então, compreender os desenvolvimentos pelos quais o método antropológico passou e vem passando, de modo a lidar com a tensão on-line/ off-line – presente em vários momentos da incursão etnográfica que deu origem a este texto – e buscar possíveis alternativas à separação rígida entre esses pólos. Além disso, a tensão também apareceu durante a incursão etnográfica, tendo sido acessada inúmeras vezes dentro da comunidade. Além de buscar decifrar a organização social de variadas sociedades, a Antropologia também, de diferentes modos, debruçou-se sobre sua própria prática, sobre o fazer antropológico, compreendido como a imortalizada pesquisa de campo (delineada em seus métodos por Malinowski ainda na década de 1920) somada à escrita do texto antropológico. Refletir sobre o que significa fazer uma etnografia, pesquisar e escrever um texto passou a constituir a pauta de discussões de diversas correntes teóricas, diferentes em suas proposições, mas com a preocupação comum de abordar criticamente a própria antropologia e, desta maneira, propor um amplo questionamento das metodologias canônicas, bem como das epistemes que lhes dão suporte. Proponho, então, um recorte que caminha ao encontro de várias das questões que eu mesma me coloquei desde o início da pesquisa: refletir brevemente a respeito das proposições de alguns autores contemporâneos e suas implicações em uma pesquisa que pretendeu enfocar o ciberespaço enquanto espaço simbólico de sociabilidade e interação. Pensar a etnografia se coloca como uma empreitada necessária, visto que os trabalhos que tratam do ciberespaço possuem como uma de suas características a subversão de pressupostos consagrados em sua elaboração. Como afirmei anteriormente, muito se escreveu nos últimos anos sobre as implicações metodológicas dos estudos que envolvem o ciberespaço, mas acredito ser necessário um breve histórico tanto da crítica à etnografia mais clássica quanto às etnografias do e no virtual. O objetivo mais amplo desse histórico é fornecer subsídios que venham a problematizar as dicotomias utilizadas recorrentemente para entender o ciberespaço – real/virtual; off-screen/on-screen; off-

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line/on-line – e tentar pensar em alternativas a tal pensamento dicotômico composto por pares muito demarcados. Tomar o on-line e o off-line como cristalizados pode levar à perda dos momentos e fatos situados na passagem, no entremeio destes pólos. Muitos momentos da pesquisa de campo colocam em questão essa separação. Um deles ocorreu quando entrei na Eper e comecei a participar das discussões. Por ser a única mulher em uma comunidade composta apenas por homens, minha entrada no grupo provocou uma série de reações. A maior parte delas era de aprovação, mas ocorreram ressalvas. O principal argumento utilizado foi o de que aquela era uma comunidade de homens, para homens discutirem assuntos de homens. Como eu não estaria familiarizada com esses “assuntos de homem”, minha interferência nas discussões não era bem-vinda. Além disso, haveria o risco de que eu, enquanto outsider, “exotizasse” os comportamentos descritos, tratando-os como “bichos estranhos”. Para eles mulheres são lindas, inteligentes, legais, sensíveis, intuitivas, mas em um ambiente fora da comunidade. Ao elencarem esses adjetivos como definidores das mulheres, eles se utilizam de uma postura convencional, na qual existem características próprias de homens e de mulheres, bem como categorias fechadas e homogêneas: “os homens” e “as mulheres”. É como se minha presença enquanto mulher desestabilizasse a organização da comunidade. Havia um medo de que eu pudesse modificar o rumo das discussões e os comportamentos adotados. Assim, existiriam assuntos de homens e assuntos de mulheres, sem que entre eles houvesse qualquer coincidência ou interpenetração. A meu ver, o que ocorreu foi uma atualização e exacerbação de categorias e convenções de gênero do off-line baseadas nos binarismos, no falocentrismo e na essencialização de um ser homem e ser mulher, bem como das posturas esperadas de ambos. A tensão entre on-line e off-line também é importante para entender as diferentes formas de construção identitária encontradas na Eper. A partir das conversas com integrantes da comunidade e da observação das discussões empreendidas no fórum, constatei existirem na Eper diferentes tipos de perfis: os “oficiais”, os “masks” e os “fakes”. A maioria dos membros da comunidade utiliza seus profiles oficiais ou sociais. Um ponto que distingue estes perfis dos demais é a utilização de fotos, principalmente aquelas de rosto ou de situações que demonstrem a pretendida veracidade das informações ali escritas. Nesses perfis, são adicionados não apenas os amigos e

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conhecidos virtuais, mas também familiares, colegas de trabalho e amigos off-line. Os fakes são perfis exemplares no que diz respeito às diferentes possibilidades de manipulação identitária. Foi uma situação recorrente na Eper a crença de que os fakes estariam criando novas identidades, as quais não encontrariam qualquer ressonância em situações existentes no off-line. Quando se utiliza a palavra fake, a tradução literal evoca a ideia de algo que é falso, fabricado, uma espécie de fingir ser. Ao interpretar a realidade com a qual me deparei, acredito que o sentido de fake extrapola tais noções. Na Eper e no Orkut como um todo existia um padrão nos fakes criados, apesar das quase infinitas possibilidades de manipulação do perfil: fakes engraçados, fakes espiões, fakes eróticos e fakes “perfeitos” (chamados também de “fakes do mal”). Já os masks evocam a ideia de criação de máscaras, as quais atuam no jogo de esconder e revelar determinadas informações. Normalmente são colocadas no perfil mask características, preferências e descrições que não apareceriam no perfil “oficial”. Para muitos desses masks, comunidades como a Eper funcionam como o único contato com questões e modos de vida gays. Em uma situação off-line, grande parte dos masks nunca teve qualquer experiência afetiva ou sexual com homens e nem mesmo esteve em ambientes GLS. Aprender a “ser gay” se dá, então, nas conversas travadas no virtual, nesse “meio gay” on-line. Minha hipótese, a partir dos dados recolhidos durante a pesquisa, é que a internet representa um modo de “sair do armário”6. Uma questão a ser pensada diz respeito à maneira como são construídas as identidades no virtual e de que modo a tensão on-line/ off-line é colocada. Sem dúvida, este é um dos temas mais trabalhados nos estudos sobre o ciberespaço, visto que o on-line exacerba a possibilidade de fragmentação identitária. Milne (2007), em seu trabalho sobre intimidade, identidade e presença a partir de uma lista de e-mails, mostra haver uma polarização dos debates. Há teóricos que creditam ao virtual a capacidade de gerar sujeitos fragmentados e múltiplos, nos quais não são visíveis marcas e convenções de gênero, raça e classe. Desse modo, o sujeito poderia resistir a ser encapsulado nas estruturas hegemônicas existentes e atuantes apenas no off-line. A ausência dessas marcas permitiria a construção de 6.  Realizo esta discussão de forma mais aprofundada no artigo “Fora do armário... dentro da tela: notas sobre avatares, (homo)sexualidades e erotismo a partir de uma comunidade virtual”, publicado no livro Prazeres Dissidentes (Parreiras, 2010).

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subjetividades performativas, flexíveis e descentradas, em que não há um “core estável, centrado e autônomo”7. Outros autores8 veem no on-line a possibilidade de criação de corpos sem marcas de cultura, em que o “verdadeiro self” é revelado (sujeito sem gênero, sem raça, sem idade, incorpóreo). Assim, as comunicações mediadas por computador (CMC) teriam o papel de colocar numa posição de igualdade seus usuários, já que são sujeitos sem marcas. Por último, existem aqueles9 que pensam a identidade on-line como produto da conjunção de diferentes marcadores (raça, gênero, idade) e, em alguns casos, de um diálogo com referentes encontrados no off-line. Há uma contestação das visões que tomam o sujeito como descontextualizado, incorpóreo, sem gênero, raça, classe, idade ou qualquer outro marcador de diferença. Autoras feministas têm um papel importante nesta vertente e advogam que as práticas discursivas encontradas nas comunicações por computador não só mantêm, como também exageram os estereótipos de gênero. Acredito ser necessária uma ressalva: não pretendo sugerir que múltiplas identidades é algo específico do virtual, mas o estar on-line permite maior rapidez e sigilo na construção destas. Em outras palavras, o virtual facilita a execução da ideia de que um pode se tornar vários. Mas, de certo modo, existe ainda um diálogo com categorias do off-line, que passam a ser tomadas como referentes (tanto como afirmação quanto como negação) das identidades moldadas no online. A partir do cenário encontrado na Eper, acredito não ser possível afirmar que as construções identitárias ali presentes não trazem qualquer marca de gênero, raça, classe e idade. Ao contrário, os avatares são contextuais e trazem consigo uma série de referentes e marcas. Estereótipos de gênero podem ser encontrados, e um exemplo disso foi a dificuldade do grupo em assimilar minha presença entre eles, momento que mostrou a permanência de visões convencionais de feminilidade e masculinidade. Talvez, então, essas identidades on-line não sejam tão subversivas como pode parecer à primeira vista, nem estão em relação de oposição com o off-line – elas se comunicam com ele de diferentes maneiras.

7.  Milne (2007) cita autores como Sherry Turkle e Mark Poster. 8.  Destaca-se nessa vertente Steven Jones. 9.  Milne fala especialmente de Byron Burkhalter e Elizabeth Reid.

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2. Feito o traçado desse primeiro quadro mais geral, com a apresentação de alguns momentos etnográficos marcantes, que colocam em evidência a difícil relação entre on-line e off-line, acredito que esteja armado o pano de fundo para contextualizar as discussões propostas pelos estudiosos contemporâneos que trazem novas abordagens teórico-metodológicas para o virtual. Inspirada por suas formulações, meu objetivo é pensar sobre as dificuldades enfrentadas para a realização de uma pesquisa de campo que, em um primeiro momento, não envolve qualquer tipo de contato face a face ou mesmo um deslocamento no sentido tradicionalmente adotado para o termo. Acredito que essas reflexões se inserem em um contexto teórico mais amplo, marcado pelo questionamento de diversas diretrizes e conceitos utilizados pela disciplina. Muitas vezes, essa crítica foi chamada de “pós-moderna” ou mesmo “pós-estruturalista”; por isso, antes de passar às considerações mais pontuais sobre pesquisas focadas na internet e no ciberespaço, penso ser pertinente uma pequena discussão sobre as tentativas de classificar e nomear essas novas teorias e perspectivas, as quais fazem parte de um campo aberto a disputas e polêmicas. Caldeira (1988; 1989), ao refletir sobre os desenvolvimentos da antropologia norte-americana a partir da década de 80 e a pósmodernidade em antropologia, aponta para a existência de mudanças metodológicas e teóricas: há uma ênfase no entendimento das questões de poder que envolvem as relações sociais e mesmo a relação do antropólogo com seus sujeitos de pesquisa; ocorre um deslocamento nos temas de estudo, que passam a enfocar as sociedades “contemporâneas” (e não apenas sociedades e povos tribais); há a crítica ao funcionalismo e estruturalismo, com o privilégio de análises processuais; a própria prática antropológica passa a ser tomada como questão; a representação é questionada. De todo modo, ao reivindicar a condição de experimentos (Marcus e Fischer, 1986), o que esses teóricos pretendiam era adotar uma postura crítica em relação à disciplina, através do questionamento e da desconstrução de muitos dos seus pressupostos e de tentativas de incorporação de novos temas, novos objetos e novas maneiras de pesquisa e análise (Caldeira, 1989: 3). Ao refletir sobre a questão do pós-modernismo, Judith Butler (1998) questiona se o que se chama de pós-modernismo é uma po-

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sição teórica ou uma caracterização histórica. Afirma que falar em “pós-modernismo” e “pós-estruturalismo” representa uma solução para conferir unidade às diferentes posições teóricas e epistemológicas encontradas, agrupando-as em um mesmo substantivo. Mas, ao proceder deste modo – colonizar e domesticar essas teorias sob uma única rubrica – ocorre uma redução das várias posições e o campo do pós-modernismo é “produzido” como um “todo”, como um conceito universalizante. O argumento central de Butler reside na constatação de que o aparato conceitual está permeado por relações de poder. E são essas relações as definidoras dos fundamentos empregados pela teoria social, os quais só podem ser entendidos como contingentes. Assim, Não sei em relação ao termo “pós-moderno”, mas se há um argumento válido naquilo que eu entendo melhor como pós-estruturalismo, é que o poder permeia o próprio aparato conceitual que busca negociar seus termos, inclusive a posição de sujeito do crítico; e mais, que essa implicação dos termos da crítica no campo do poder não é o advento de um relativismo niilista incapaz de oferecer normas, mas ao contrário, a própria pré-condição de uma crítica politicamente poderosa e forte que sublima, disfarça e amplia seu próprio jogo de poder, recorrendo a tropos de universalidade normativa. (Butler, 1998: 17-18)

Autores como James Clifford (1997) constatam uma mudança fundamental na escrita das etnografias e mesmo no encontro entre o etnógrafo e os pesquisados. Em um contexto marcado por uma nova ordem de mobilidade mundial (e os meios eletrônicos como a internet estão aí para não deixar dúvida), pensar em um trabalho de campo nos moldes tradicionais da disciplina causa estranheza. Não se está diante de um pesquisador cosmopolita, metropolitano, que parte em expedições e longas viagens até terras longínquas ou mesmo exóticas. E os objetos de pesquisa – as antigas periferias – deixam de estar na pauta do dia; os nativos, passam a ser, também eles, produtores de conhecimento e etnógrafos. Em que se transforma, então, a etnografia? Quando se pensa em Malinowski a primeira ideia que vem à cabeça é a do pesquisador em campo, munido de uma máquina fotográfica e um caderninho, anotando tudo e tentando entrar de algum modo na vida social daqueles que estuda. É uma pesquisa de campo que exige residência,

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permanência. O que Clifford propõe é pensar o trabalho de campo como travel encounters, sugerindo, assim, a ideia de movimento, viagem, diálogo. O conceito de cultura só pode ser pensado com foco na representação etnográfica, formada pela escrita, pela colagem, pela interação e pela ideia de processo. Ainda falando em viagens e nos travel encounters propostos, eles podem ser pensados como traduções localizadas no tempo e no espaço e, portanto, contingenciais e parciais. Clifford fala, então, em traveling cultures10 ou culturas em trânsito, em constante movimento. A grande crítica dirigida aos cânones da Antropologia se refere ao fato de que sempre foram privilegiadas as relações de permanência, em que o “campo” simbolizava um ideal metodológico e um lugar concreto, físico, material. Nessa chave, enquadra-se a etnografia multilocal proposta por George Marcus (1986), na qual o antropólogo deve tentar abarcar em um mesmo texto diferentes localidades, mostrando as relações e possíveis interdependências entre elas. Em outras palavras, a etnografia deveria privilegiar tanto o local, etnograficamente esmiuçado, como o global, estabelecendo as ligações entre essas duas ordens. Do mesmo modo, ela deveria apresentar os vários discursos, enunciados por diferentes sujeitos que falam e passam a ter voz no texto etnográfico (o texto é, portanto, multivocal, além de multilocal). Michael Fischer (1999) faz considerações sobre as pesquisas que tomam como foco o ciberespaço e sua relação com o estabelecimento de uma antropologia crítica. Diz ele que as novas realidades geradas pelo ciberespaço fazem com que os métodos e vocabulários tradicionais da disciplina precisem ser revistos em alguns âmbitos: 10.  No texto em português, o termo foi traduzido como “culturas viajantes”, mas acredito que seria melhor falar em “culturas em trânsito”, visto que está mais coerente com a ideia que o autor deseja passar. Trânsito dá a ideia de mobilidade, contingência, parcialidade. Falar em “viajantes” faz com que se percam as características de transitoriedade e movimento envolvidas nos encontros entre pesquisador e pesquisados. A afirmação de Clifford na conclusão desse texto é elucidativa: Today I’ve been working, overworking, “travel” as a translation term. By “translation term” I mean a word of apparently general application used for comparison in a strategic and contingent way. “Travel” has an inextinguishable taint of location by class, gender, race, and a certain literariness. It offers a good reminder that all translation terms used in global comparison – terms like “culture”, “art”, “society”, “peasant”, “mode of production”, “man”, “woman”, “modernity”, “ethnography” – get us some distance and fall apart. Tradittore, traduttore. In the kind of translation that interests me most, you learn a lot about peoples, cultures, and histories different from your own, enough to begin to know what you’re missing (Clifford, 1997: 39).

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na teoria, no tempo, no espaço e na linguagem. Há uma necessidade de ressituar a etnografia, na medida em que o ciberespaço promoveu o rearranjo de muitos de nossos conceitos e se configurou como uma realidade na qual todos nós vivemos, estabelecemos algum tipo de relação e criamos representações de nós mesmos e dos outros. Assim, [e]thnographies are challenged to no longer dwell merely in romantic tropes of discovery, but to ground, to make visible and audible, contending worlds of difference, to provide translation circuitry that recognizes its own relations to other circulating representations. (Fischer, 1999: 297)

Ao abordar as etnografias realizadas na realidade virtual, Christine Hine (2001) também utiliza a ideia de viagem, durante tantos anos índice de autoridade na realização das etnografias. O que ela pontua é que esta viagem vai além do deslocamento físico do etnógrafo. No caso de pesquisas na internet, esta viagem física é substituída por uma “viagem experiencial”, em que há o intercâmbio de experiências e uma viagem através do olhar, do texto e das imagens. O “estar lá” aparece revestido por uma conotação diferente: não é presença física, não envolve obrigatoriamente um contato face a face e não está circunscrito a uma realidade material. E é exatamente a ausência do face a face o fator que pode colocar em risco, diante dos cânones metodológicos consagrados, uma pesquisa no virtual. Uma das questões que pesam negativamente quando se fala em pesquisas envolvendo a internet é a autenticidade. Na maior parte dos casos, o pesquisador – ao não recorrer ao face a face – tem maior dificuldade em depurar aquilo que é autêntico do que é inventado. A proposta, então, é questionar aquilo mesmo que se chama de autenticidade. E este questionamento está diretamente relacionado ao processo de construção identitária: não necessariamente há uma relação de continuidade ou similaridade entre uma identidade11 off-line e uma on-line. Os fakes e masks encontrados na Eper, por exemplo, atestam essa possibilidade e mesmo as dificuldades em se traçarem fronteiras entre on- e off-line. O papel do pesquisador é, então, manter sempre em mente que se tratam de performances identitárias, em que a parte internauta é apenas um momento da performance. O problema de autenticidade não 11.  Quando falo em identidade, minha referência central é Stuart Hall (2003).

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é, de modo algum, colocado apenas pelo virtual, mas é um dos pontoschave nos quais uma pesquisa – seja ela em um blog, em um programa de relacionamentos, em chats (bate-papos) ou em listas de discussão – deve se concentrar. Nota-se, assim, que não estabelecer um contato face a face, além de colocar novos pontos analíticos para o pesquisador, permite um aprofundamento em campo diferenciado daquele em que a presença física está envolvida. Indo um pouco além, pensar em autenticidade confere um diferencial importante e coloca como discussão a questão das identidades, bem como estende o sentido do virtual – ele é espaço, mas também é setting (cenário) no qual estas múltiplas identidades podem ser performatizadas (Hine, 2000: 41). Um ponto abordado por Hine e sobre o qual gostaria de me deter é a possibilidade de tomar a internet como texto, produzido dentro de um determinado contexto cultural. Pensar o virtual como texto requer considerá-lo como algo móvel e que pode ser lido independentemente do momento em que foi produzido. Ou seja, é gerado um histórico perfeitamente acessível ao pesquisador tempos após ter sido escrito. Realizar uma etnografia do virtual é, portanto, um processo de leitura e escrita de textos: o etnógrafo lê o que é escrito, interpreta, e pode também ele escrever seus próprios textos, que serão lidos pelos sujeitos da pesquisa, igualmente interpretados e passíveis de réplica. O que se vê é um processo de mão dupla tanto na leitura quanto na escrita dos textos, em que etnógrafo e pesquisados são, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos, observadores e observados, corroborando a ideia de que o encontro etnográfico coloca em contato as subjetividades do pesquisador e dos pesquisados, sendo pertinente o uso do termo intersubjetividades. Isso significa que a interação virtual garante, do mesmo modo que a não virtual, a dimensão dialógica e intersubjetiva da etnografia e não se restringe a uma simples leitura de textos. Em relação às dicotomias normalmente utilizadas para se referir ao virtual e ao seu oposto – chamado de real, presencial ou off-line – Miller e Slater (2004) trazem algumas considerações importantes e que permitem um novo tipo de abordagem da suposta relação de oposição entre on-line e off-line. A partir de uma pesquisa realizada em cibercafés de Trinidad, os autores propõem pensar a etnografia e os dilemas colocados – por sua própria prática etnográfica quanto por grande parte da literatura sobre internet – quando se realiza uma pesquisa com foco no on-line. O primeiro argumento apresentado é o de que uma etnografia on-line é possível por envolver todos os ou-

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tros requisitos de uma etnografia off-line: há observação, participação, textos e um relacionamento (diálogo) entre o pesquisador e os pesquisados. Desta maneira, o face a face não é mais uma condição fundamental para a efetiva realização da pesquisa de campo. Além disso, os autores apontam a necessidade de trabalhar sempre com a ideia de contextos, sendo que um contexto particular está sempre em relação com outros contextos. Operando desta maneira, evita-se recair em pré-noções como virtualidade ou ciberespaço, as quais envolvem uma pressuposição metodológica em que o cenário poderia ser tratado como sui generis, autocontido e autônomo (Miller e Slater, 2004: 45). Do mesmo modo, o ciberespaço não deve ser tomado como dotado de unidade, mas sim composto por diversas partes, cada uma delas imersa em um contexto específico e em constante comunicação com outros contextos. A ideia é, então, desagregar o virtual em seus vários processos, interações e relações a fim de não tomá-lo como um objeto único. Assim procedendo, é possível transcender a divisão on-line/off-line e pensar na passagem (e suas nuances) entre os dois pólos. Uma pesquisa que pretenda trabalhar o on-line não deve se definir simplesmente a partir de uma divisão prévia em on-line e off-line. Essa divisão é, sobretudo, contingente e requer uma problematização a partir do contexto a ser abordado na pesquisa. Como alertam Miller e Slater, [e]star off-line não significa automaticamente que se está fazendo uma etnografia, nem estar on-line significa que não se está fazendo uma etnografia. Novamente, a questão é uma escolha metodológica sobre o que constitui o “contexto”, uma decisão que só pode ser feita no contexto dos objetivos específicos de uma pesquisa. (Miller e Slater, 2004: 63)

******* Ao delimitar meu campo de estudo impôs-se também uma preocupação com a metodologia: a ideia de realizar uma etnografia da realidade virtual trouxe uma série de impasses, visto que não se trata de um campo comumente estudado e que, além disso, desloca muitas de nossas categorias, a começar por aquelas relativas a espaços e territórios. Falar dessas novas tecnologias de comunicação e das realidades por elas produzidas requer todo um posicionamento metodo-

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lógico, o qual visa exatamente conferir legitimidade a um trabalho de campo que rompe com a regra primordial da prática empírica: não se trata mais de contatos face a face, mas de relações mediadas por um meio físico – o computador. Dessa forma, propus, a partir do traçado dos desenvolvimentos da prática etnográfica (prática empírica e texto dela resultante), buscar o local do on-line nas pesquisas realizadas em antropologia. E, nesse processo, foi fundamental questionar, já de início, o significado dos termos off-line e on-line. Acredito que um dos méritos de minha pesquisa tenha sido mostrar que, por mais que seja considerado por muitos um espaço revolucionário, o on-line carrega consigo diversas marcas, convenções e padrões. E isso não apenas no âmbito das sexualidades, mas também na construção das identidades, como atestam os masks e fakes, ou mesmo nas questões de gênero, como ficou claro a partir de minha inserção, enquanto mulher, em uma comunidade de homens. No âmbito das identidades, o que a experiência empírica mostrou foi a criação no virtual de avatares que tensionam a relação entre on-line e off-line. Essa descoberta corrobora a iniciativa empreendida de propor não mais uma separação rígida entre esses dois pólos, mas sim a existência de diversas linhas de comunicação e diálogo entre eles. Assim, on-line e off-line são espaços contextuais e contingentes e, ao mesmo tempo em que podem estar separados (como tradicionalmente se pensou), chegam a se confundir. Essas tensões são ainda mais amplas e mobilizam conceitos como os de realidade e autenticidade. Apesar das inúmeras possibilidades oferecidas pelo virtual, em muitos momentos, o que pôde ser notado entre os membros da Eper foi a busca pelas realidades, por extravasar a tela do computador e sair dos “quadrinhos”, buscando encontrar as pessoas por detrás dos avatares. Nesse processo, o conceito de autenticidade mostrou-se estratégico, visto que ainda persiste uma associação entre virtual/inventado e real/autêntico. Meu objetivo neste artigo foi trazer, mais do que respostas, questões e hipóteses a partir de algumas situações e de alguns dados etnográficos recolhidos durante a pesquisa de campo. Mesmo que parcialmente, acredito ter conseguido elencar pontos importantes ao se realizar uma etnografia no e do virtual e mostrar que, acima de tudo, ele deve “ser levado a sério”.

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Glossário

•  Ambiente hipermediado – Ambiente mediado por computadores. •  Blogs – Considerado por muitos analistas de Internet o maior fenômeno do ciberespaço, por possibilitar o acesso do internauta ao conteúdo da rede, na forma de produtor, os blogs são diários virtuais, individuais ou coletivos. Dezenas de milhares de blogs são construídos todos os dias (segundo o Technorati, maior motor de busca de blogs), numa demonstração evidente de que há uma migração contínua da comunicação para o âmbito virtual. Em cada blog, os textos escritos por seu proprietário (que pode ser um indivíduo ou um grupo) recebe o nome de post. Existe a possibilidade de outro usuário tecer críticas, fazer contrapontos ou reflexões a respeito de um post, elaborando comentários. Nem todos os “blogueiros” disponibilizam a possibilidade de comentários em seus blogs. Muitos que o fazem dialogam com os comentários de posts anteriores em novos posts, o que torna o espaço muito polifônico. •  Canais de comunicação como MUDs e IRC – Ferramentas de comunicação para usuários registrados, mais complexa que o chat. O IRC (Internet Relay Chat) é um ambiente de conversação on-line no qual o usuário utiliza um programa específico e se conecta a um servidor de IRC. Ao escolher seu nick (apelido) e um canal, inicia o bate-papo em tempo real com outros usuários dentro desse canal. Os MUD (Multi User Dungeon) são sistemas multiusuários e se apresentam como um ambiente em que, além

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do chat entre os usuários, é possível manipular objetos visuais, ou seja, além do texto, os usuários podem interagir através de formas visuais. Assim como o IRC, os MUD’s requerem programas específicos e conexão a servidores que suportam programas desse tipo. •  Chats – O termo chat designa a conversa em tempo real através da Internet. Em alguns sistemas mais antigos de chat, a tela é dividida em duas. Cada parte contém o texto de um dos interlocutores. Novos sistemas permitem a criação de “salas” de conversa com formato de páginas da Web. •  Diretórios – Subdivisões de um endereço de site, podem definir categorias e subcategorias de acesso. •  Endereço de IP – O IP (Internet Protocol) é um número que identifica o endereço de um computador numa rede privada ou pública. •  Fóruns – O termo fórum se refere a uma página de discussão em que mensagens diversas são inseridas (“postadas”) por pessoas diversas, previamente cadastradas. Em alguns fóruns é possível ler as mensagens sem participar do grupo; em outros, elas são restritas aos membros cadastrados, que guardam sua identidade sob um pseudônimo (nick). Não há, aqui, necessariamente a possibilidade de comunicação instantânea. •  Listas de discussão – É uma lista de e-mails por meio da qual é possível registrar dados dos participantes, enviar um e-mail ao mesmo tempo a todos eles, guardar arquivos e links de interesse. •  Links internos e externos – Link é o enlace de um ponto da rede a outro. Um link interno remete ao mesmo site; um link externo, a um site distinto. •  Redes sociais – Sistema de relacionamento de usuários mediado por computador por meio do qual os internautas criam um perfil (uma apresentação) e podem estabelecer vínculos, criar e participar de comunidades de seu interesse e trocar mensagens.

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•  URLs – Uniform Resource Locator) É o endereço de um recurso (como um site, um arquivo ou, ainda, uma impressora) na Internet ou numa intranet.

ETNOGRAFIAS DA JUSTIÇA

Escolhas metodológicas e etnografia em um campo de interlocução entre Antropologia e Direito

Daniela Moreno Feriani

Introdução O presente ensaio tem como objetivo refletir sobre as escolhas metodológicas e as particularidades etnográficas que enfrentei durante minha pesquisa de mestrado (Feriani, 2009), no Fórum de Campinas, ao estudar as estratégias jurídicas – os discursos e as práticas de advogados, promotores e juízes – no julgamento de crimes de homicídio e tentativa de homicídio entre pais e filhos, no período de 1992 a 2002. Encontrei um total de 34 processos, sendo 21 de crimes de filhos contra pais e 13 de pais contra filhos. A maioria foi de tentativa de homicídio (21 casos). Dentro de uma mesma lógica – a lógica do Direito Penal –, duas estratégias jurídicas principais se mostraram à análise: uma que chamei de “moral familiar” e outra de “saúde mental”. A primeira delas tem como palavra-chave o “controle” – controle daquilo que é considerado moralmente correto – o pai, por exemplo, ser o provedor do lar; a mãe, boa dona-de-casa; os filhos, obedientes e sem vícios. Muitas vezes, não atender a esses requisitos faz com que o réu, seja homem, mulher, pai, mãe, filho ou filha, caminhe mais rapidamente a uma condenação, já que o não cumprimento de seu perfil social é visto como uma justificativa para sua sentença condenatória. Do mesmo modo, a vítima, ao não se encaixar no papel que dela é esperado, acaba por sofrer um processo de culpabilização, podendo levar a uma atenuação da pena do acusado ou até mesmo à absolvição, como se sua posição negativa ou “desvirtuante” numa escala hierárquica de papéis sociais fosse um motivo para o crime do qual foi

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vítima. Assim, advogados e promotores jogam com os papéis sociais e posições na família de vítimas e acusados, julgando o quanto se encaixam em modelos assimétricos e complementares, como tentativa ora de justificar o crime e/ou atenuar a pena do acusado, ora de acentuar a gravidade do mesmo. Quando, porém, o que está em jogo não é a culpa, mas a cura, ou seja, quando o réu não era, ao tempo da ação, capaz de compreender o caráter ilícito de seu ato, não podendo ser responsabilizado pelo mesmo, entra em cena a questão da inimputabilidade – termo jurídico –, que chamei de argumento da saúde mental. Aqui, a questão não é o controle, mas o descontrole, que pode assumir diferentes faces: descontrole por doença mental, por uso de drogas, por álcool ou por uma emoção exacerbada – um ímpeto, uma fúria ou, para usar uma expressão nativa, uma “violenta emoção”. Nesses casos, a figura do perito-psiquiátrico é fundamental: a loucura do réu precisa ser comprovada e diagnosticada por um laudo de sanidade mental. O juiz, a partir da prerrogativa de livre convencimento, pode ou não acatar o laudo. Se o laudo concluir pela inimputabilidade e o juiz acatá-lo, o réu deverá ser absolvido e poderá ser internado em um hospital psiquiátrico ou receber tratamento em casa. Caso o juiz o rejeite, o réu será levado a julgamento pelo Tribunal do Júri. O vínculo entre pesquisa documental (leitura e análise dos processos criminais e banco de dados referente ao perfil sócio-econômico de vítimas e acusados) e pesquisa de campo (acompanhamento de audiências e julgamentos e realização de entrevistas) permitiu-me refinar o olhar sobre os casos estudados, trazendo-me novas questões1. Percebi que o que os atores jurídicos2 dizem nos processos criminais não necessariamente condiz com o que dizem fora deles, seja nas entrevistas ou em conversas informais, o que trouxe uma nova direção ao meu trabalho. Outro método adotado em minha pesquisa foi a comparação. Ao comparar os crimes entre cônjuges e os crimes entre gerações, buscou-se compreender, para além das similitudes e concepções sobre família que estão em jogo, em que medida a singularidade dos sujeitos envolvidos, bem como das relações entre eles, implica em diferentes argumentos e trajetórias desses crimes na justiça, contribuindo, 1.  Para uma discussão sobre a relação entre campo e arquivo na pesquisa antropológica, ver também Mello, nesta coletânea. 2.  Utilizo o termo “atores jurídicos” para referir-me a advogados, promotores e juízes, que são os principais interlocutores deste trabalho.

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assim, para uma visão mais geral sobre como os crimes entre familiares são interpretados pelos atores jurídicos. Sem perder de vista a delimitação de meu objeto de estudo, a perspectiva comparada é muito mais uma tentativa de trazer elementos para elucidar a criminalidade geracional. Nesse sentido, uso os crimes entre cônjuges como um suporte para me ajudar a pensar os crimes entre pais e filhos. Se o ditado jurídico é “cada caso é um caso”, é a partir da comparação que podemos apreender tanto as diferenças quanto as semelhanças entre eles. Além disso, ao comparar os crimes entre cônjuges, nos quais os estudos mostram como a categoria de gênero influencia o desfecho dos casos, com os crimes entre gerações, pude mostrar como o marcador de gênero também se faz presente nesses últimos, alargando, assim, seu alcance para além da relação conjugal. O que se diz no palco jurídico e o que se diz fora dele Segundo Corrêa (1983), a estrutura do processo em si e o modo como os fatos são traduzidos podem ser vistos como uma fábula, uma vez que, ao serem narrados, transformam-se em versões diversas, não sendo possível alcançá-los tais como foram. Para além de fábulas, os processos precisam ser vistos enquanto narrativas e, nesse sentido, não se deve considerar apenas o texto, ou seja, a estrutura do processo, mas o contexto – as posições e as performances dos sujeitos ao longo dos autos. Trata-se de falas interpostas: nos depoimentos de vítima, réu e testemunhas, o juiz faz as perguntas diretamente a eles, ouvindo seus relatos para, posteriormente, relatá-los, com suas palavras, ao escrevente, sendo essa “tradução” que fica anexada aos autos. Quando o advogado e o promotor fazem perguntas, fazem-no indiretamente, ou seja, dirigem as perguntas ao juiz que, por sua vez, recoloca-as à pessoa que está sendo ouvida. Em seguida, novamente, transcreve, em suas próprias palavras, por meio de um vocabulário técnico, as respostas ao escrevente para que as mesmas constem nos autos. Parafraseando Geertz (1989) sobre os textos antropológicos, os textos jurídicos são interpretações de segunda ou terceira mão. Não se trata de uma narrativa qualquer – é preciso levar em conta aquilo que é específico do Direito Penal, como a lógica do contraditório (ter, pelo menos, duas versões para o mesmo fato), a noção de responsabilidade como eixo central (para haver pena, não basta a existência de um crime; é preciso que haja culpabilidade, ou seja, a

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ligação de um crime com seu autor) e a ideia do livre convencimento do juiz (mesmo com as argumentações da defesa e da acusação, o juiz pode contrariá-las se não se convencer, por exemplo, da existência do crime; um outro exemplo seria contrariar o laudo psiquiátrico). Enquanto narrativas, os processos jurídicos possuem um começo, um meio e um fim interligados por um nexo causal, coerente e coeso. Para isso, há uma seleção dos eventos: enquanto uns são incluídos, outros são excluídos da análise, o que demonstra uma intencionalidade, um objetivo. Trata-se de documentos históricos e oficiais, devendo-se, portanto, levar em conta as dimensões de poder e interpretação neles presentes. Os processos jurídicos são, pois, representações, nas quais fatos são feitos (Geertz, 1998). O jurídico não é simplesmente um conjunto de normas e leis, e sim uma maneira específica de imaginar a realidade. Nesse sentido, a grande questão é como representar aquela representação (ibid). Trata-se, basicamente, não do que aconteceu, e sim do que aconteceu aos olhos do direito; e se o direito difere, de um lugar ao outro, de uma época a outra, então o que seus olhos veem também se modifica (idem: 259).

Sendo a realidade muito mais complexa, plural e imponderável, os processos jurídicos operam uma simplificação dos fatos, a fim de contê-los ou adequá-los às leis. As questões morais são limitadas de tal maneira que podem ser solucionadas através do simples uso de regras específicas. É preciso articular a linguagem do “se então” das normas genéricas ao idioma do “como portanto” dos casos concretos, transformando, assim, a linguagem da imaginação na linguagem da decisão (Geertz, 1998). Ao fazer isso, o processo jurídico faz dos veredictos mais do que decisões judiciais: são concepções de mundo da sociedade na qual está inserido. Apesar de revelar uma concepção de mundo, a retórica das narrativas judiciais é a da impersonalidade, neutralidade e universalidade (Bourdieu, 2004). Para alcançar esses efeitos, a linguagem jurídica está repleta de estratégias sintáticas, tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais. Tais recursos não são apenas uma máscara ideológica, mas a garantia da eficácia e legitimidade do discurso jurídico. É preciso levar em conta esses pormenores de documentos como os processos criminais para que não caiamos na armadilha de

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vê-los enquanto fontes primárias ou de tomar os discursos neles presentes como neutros, objetivos e científicos – apesar de ser assim que os atores jurídicos querem que sejam vistos. Isso é particularmente importante para a discussão que se segue, na qual mostrarei como o argumento de preservar a família – tão frequente nas arguições dos processos criminais para se justificar a absolvição do réu – pôde ter sua intenção revelada ao ser confrontado com as situações observadas nas audiências, nos julgamentos, nos corredores, nas conversas informais e descontraídas. Ao mesmo tempo em que o arquivo permite uma manobra de entrada e posicionamento no campo3, sendo um primeiro viés interpretativo, o campo, por sua vez, fornece elementos “a mais” – no sentido de extra-oficiais – para complexificar o “dado”, a informação obtida nos documentos. Trata-se de uma via bidirecional, em que um se revela no outro. *** O argumento de preservar a família é muito recorrente nas arguições dos atores jurídicos, sobretudo dos advogados, para pedirem a absolvição do réu ou a desclassificação do crime para lesão corporal. Mesmo em situações de extrema violência, a família, ao menos em suas arguições técnicas e formais, é vista como instituição a ser preservada a qualquer custo: a impressão que se tem é de que é sempre possível recuperar, resgatar uma certa harmonia, mesmo que, por ora, ela esteja abalada. Muitas vezes, uma reconciliação entre as partes após o crime é mais importante para se determinar a sentença do que os antecedentes e personalidades de cada sujeito envolvido, além do próprio crime em si. A visão da família enquanto “instituição quase divina”, nas palavras de um advogado, leva a tratar os crimes que ali ocorrem como incidentes domésticos e a absolvição como o resultado mais conveniente: A jurisprudência e doutrina aconselham que, a favor do interesse social, nos casos de incidentes domésticos, a absolvição é mais conveniente que a condenação que poderá, de vez e para sempre, destruir uma harmonia que, mesmo precária, ainda exista.

3.  Para uma discussão sobre a inserção e posicionamento do antropólogo no campo, a partir de noções de proximidade e distanciamento, ver Cunha, nesta coletânea.

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Isso foi dito na defesa de um pai que estuprou a filha dos 16 aos 19 anos, chegando a engravidá-la, e de um marido que bateu na esposa ao longo de 22 anos de casamento4. E, de fato, a absolvição foi o resultado mais significativo. Somando as sentenças favoráveis (ausência de denúncia, impronúncia e absolvição), temos 17 casos contra 08 condenações. Como compreender o alto índice de absolvições e desclassificações de delitos nos crimes em família? Alguns estudos sobre violência doméstica argumentam que a tentativa da justiça é de preservar a família ou, ao menos, um ideal de família. Assim, Debert et alli afirmam que a absolvição nos casos de violência familiar “é conduzida pela lógica, ainda presente, da defesa da família e dos julgamentos a partir do perfil social considerado adequado de vítimas e acusados” (2008: 06). Ao analisarem os processos de parricídio tramitados em duas varas do Júri do Fórum de São Paulo, no período de 1990 a 2002, os pesquisadores concluem que argumentos como violenta emoção, legítima defesa da honra, defesa própria, putativa ou de terceiros e inimputabilidade por insanidade mental são maneiras de “encobrir o caráter violento que a vida familiar pode assumir” (2008: 207). Essa conclusão – de que o alto índice de absolvições se deve à tentativa da justiça de preservar ou defender a família – vai ao encontro das arguições dos atores jurídicos estampadas nas páginas dos processos criminais. Porém, ao entrevistá-los e ouvir conversas informais entre eles, percebi não se tratar de uma preservação ou defesa da família, conforme podemos ver nos trechos a seguir: (PROMOTOR) Essa ideia de preservar a família é uma retórica. Eu acho que é um problema isso... tem um caso agora de um sujeito que tentou matar a mulher, mãe do filho dele... Aí fica esse discursinho de que ele matou porque queria voltar para casa... queria nada... é mentira... o que ele queria era não pagar pensão para ela... sabe esse tipo de coisa? Fica esse papinho mole... Quem quer preservar a família não pensa em matar... e você fala isso para os jurados e os jurados, às vezes, aceitam... (ADVOGADO) Eu acho que a justiça não vê isso como preservação da família não... é um crime que foi cometido e tem que ser

4.  O réu é absolvido da tentativa de homicídio contra a esposa e condenado a 1 ano por lesão corporal contra a filha.

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julgado... não tem colher de chá não... desculpe falar na gíria assim... eu não vejo que a justiça enxerga aquilo como um crime familiar e, por isso, vai procurar livrar... não tem isso não, viu...

A frase tão clichê de “preservar a harmonia familiar”, frequentemente enunciada nas páginas dos processos sobre crimes entre pais e filhos e maridos e esposas e também nas análises desses processos elaboradas por cientistas sociais, deve ser vista muito mais enquanto retórica, uma estratégia, uma muleta que faz parte do “show”, do que propriamente a opinião ou convicção desses atores quando despidos, do lado de fora do palco. Enquanto retórica, essa ideia de preservação da família estaria distante da realidade de conflitos, violências e crimes que cercam as relações familiares, o que não significa, porém, que ela não tenha uma força construtiva, que não tenha sentido ou relação com o empírico. Trata-se de uma visão da família muito presente no senso comum – a da família como reino do carinho e do cuidado –, tendo implicações importantes no mundo social, já que pauta o cotidiano, organiza as relações, constrói verdades. Se a ideia de preservar ou defender a família foi tida como retórica, qual é, então, a visão que a justiça tem dos crimes familiares? Se a visão que aparece nos documentos é antes uma estratégia do jogo jurídico, é preciso buscá-la em outros contextos. Foram as situações de campo, de observação de comportamentos, gestos e falas que me permitiram problematizar esse argumento, não o tomando como “dado” para explicar as sentenças favoráveis ao réu. A seguir, relato uma dessas situações, a qual foi fundamental para apreender o olhar “extra-oficial” da justiça sobre a família e os crimes que ali ocorrem. Enquanto aguardava o início de uma audiência, presenciei a seguinte conversa entre advogado, promotor e juíza5. 5.  Os atores jurídicos se referiam a dois casos envolvendo a mesma família. Em um deles, o filho é acusado de ter tentado matar o pai por disparo de arma de fogo, após uma briga por causa de dinheiro (o filho trabalhava na loja de carros do pai e, segundo ele, seu salário estava atrasado). O crime de tentativa de homicídio é desclassificado para lesão corporal, já que o juiz entendeu que o filho não teve intenção de matar o pai, mas apenas assustá-lo. No outro caso, dois outros filhos da vítima do caso anterior são acusados de tentativa de homicídio contra a madrasta. Os filhos alegam que a mesma, 30 anos mais jovem do que o pai, estava interessada no patrimônio da família e dopava o marido com remédios. O companheiro (pai dos réus), porém, nega, dizendo que a vítima (madrasta) sempre o tratou muito bem. Apesar da gravidade dos ferimentos (a madrasta fica em coma por 1 semana), o caso também é desclassificado para lesão corporal. Segundo o juiz, os réus não tiveram intenção de matar a vítima. Em suas palavras: “Ficou claro que os réus

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(ADVOGADO para o promotor) – Isso é uma guerra de família. A testemunha é o Rogério. A vítima é a amante dele. A testemunha só inventa coisas... virou uma guerra de família... Rogério é um artista perigoso, tentou matar os filhos... vai chorar e tal... Ele tinha uma vida estabilizada. Aí largou a esposa para ficar com a vítima. Ela lapidou o patrimônio. A família sofreu muito. O pai queria tomar a loja para sustentar a família. O pai tentou acabar com tudo. Aí saiu uma puta briga. Desculpe, Ricardo (promotor), eu te falar essas coisas... mas quando tem coisa eu falo mesmo. (PROMOTOR) – Não, não, é bom ouvir o outro lado. (ADVOGADO) – Agora eu não sei se peço para pai e filho virem para cá... porque vai ser teatro.... se eles se verem, não sei não... vai começar a maior baixaria... (Nesse momento, a juíza chega para dar início às audiências). (ADVOGADO para a juíza) – Excelência, a audiência das 13:15 hs é um caso complicado. A testemunha é o pai, os réus são os filhos e a vítima é a amásia do pai. O pai já tentou matar os filhos, umas coisas absurdas. Então eu deixei eles no meu escritório porque se o pai ver os filhos vai xingá-los... (JUÍZA) – Filhos contra o pai, é isso? (ADVOGADO) – Não, contra a amásia dele. A vítima já fez vários BO’s de ameaça, está inventando coisa... (JUÍZA) – Se der corda, vai a tarde toda... (ADVOGADO) – Vai mesmo... Quero ver o Júri desse caso: um velho de 60 anos com uma mocinha de 20 que destrói o lar! (PROMOTOR) – Parece novela mexicana! (JUÍZA) – O senhor foi contratado para essa confusão toda? (ADVOGADO) – Fui contratado... Tô ficando louco com esse caso... Uma baita dor de cabeça... (Nesse momento, os réus entram. Sentam no sofá, ao meu lado. Em seguida, entra a vítima. Começa o depoimento).

Grifei algumas palavras que nos permitem pensar como os atores jurídicos veem os crimes entre familiares: guerra, teatro, baixaria, caso complicado, coisas absurdas, novela mexicana, confusão, baita dor de cabeça. São palavras com sentidos negativos, as quais denotam um menosprezo pela família, seus membros e seus crimes. Ao entrevistar um dos advogados do caso, ele me disse se tratar apenas queriam que a vítima saísse da casa do pai deles, pois acreditavam que essa iria dar um golpe econômico no ancião”.

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de um “ninho de briga de família” e que o juiz, ao reconhecer isso, decidiu pela desclassificação do crime. Podemos perceber como é outra visão da família que está em jogo – não aquela enunciada nos processos criminais da família como reino do carinho e do cuidado, devendo ser preservada a qualquer custo, mas a da família como palco de conflitos, intrigas, violências e crimes. As falas dos atores jurídicos nas entrevistas e em comentários espontâneos e informais durante o intervalo de uma audiência e outra, diferentemente da retórica e das estratégias que delineiam em suas arguições nos processos criminais, extremamente formais e técnicas, revelam-nos que não se trata de ter um controle sobre a família; não se trata, como diria Foucault e como mostra Donzelot (1986), de discipliná-la, mas, ao contrário, de expulsá-la do sistema de justiça porque ela é ingovernável e seus membros são incapazes de entender o que são direitos e deveres da cidadania, os ideais e as concepções que levam à criação do poder judiciário e seu funcionamento. Não se trata de preservá-la, mas de se livrar de um “caso complicado”, uma “novela mexicana”, uma “confusão” que impede o bom funcionamento da justiça e desafia a moral e os bons costumes. Garapon compara o parricida ao toxicômano por não conseguirem integrar a dimensão simbólica, deixando a justiça desarmada. Se para o autor “a meta do julgamento é de reintegrar o crime numa ordem simbólica, de dar-lhe um sentido à luz da distinção entre o bem e o mal, essencial a todo grupo humano” (1999: 165), os crimes em família parecem desafiar essa capacidade de reintegração dos acontecimentos em uma ordem simbólica. Portanto, parece ser melhor expulsá-los do reino do judiciário e devolvê-los para a muralha que deve cercar a família e o terror destituído de qualquer sentido que ela pode alimentar e reproduzir. Justamente por verem os crimes entre familiares como uma “baita dor de cabeça” que tem levado advogados “à loucura”, os atores jurídicos tiram-nos da alçada da justiça, jogando-os para a psiquiatria ou devolvendo-os à família, com a absolvição do réu. Os crimes em família, em perspectiva comparada Apesar de a estratégia da saúde mental não ser a preponderante, em termos numéricos, teve um peso significativo nos crimes de filhos contra pais, já que foi o principal motivo para impronunciar

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ou absolver o réu (somando impronúncias e absolvições, temos 07 casos, sendo que 04 destes foram em função da inimputabilidade do réu, 02 por legítima defesa e 01 por negativa de autoria). A inimputabilidade, nos crimes de filhos contra pais, não foi contestada em nenhum momento. Ao contrário, houve casos em que se questionou justamente a imputabilidade6 do réu. Mesmo em casos polêmicos, como a inimputabilidade por uso de drogas, já que, segundo o promotor, trata-se de um transtorno provisório e voluntário, o laudo foi aceito. Em outro caso, o advogado discorda de que o réu, sendo psicopata, não seria inimputável. Assim, um novo laudo é feito, concluindo pela semi-imputabilidade, a qual é reconhecida pelos jurados. Há ainda um caso em que, apesar de o laudo ter concluído pela imputabilidade do réu, defesa e acusação alegam, em Plenário, semi-imputabilidade, sendo aceita. Já nos crimes de pais contra filhos, a estratégia da saúde mental não se mostrou tão significativa. A proporção de casos em que aparece a inimputabilidade nas duas situações é praticamente a mesma: dos 21 crimes de filhos contra pais, ela aparece em 05 casos (23,8%) e dos 13 crimes de pais contra filhos, aparece em 03 casos (23%). A questão, portanto, não é a de que a loucura é menos frequente nos crimes de pais contra filhos, mas menos convincente. Enquanto nos crimes de filhos contra pais a conclusão dos laudos médicos pela inimputabilidade do réu era prontamente aceita por advogados, promotores e juízes, aqui, em crimes de pais contra filhos, nos três casos em que esse argumento foi acionado e comprovado por laudo médico, o mesmo foi cercado por dúvidas e fragilidades, sendo contestado pelos atores jurídicos. Apesar da gravidade, do horror e da maneira chocante como esses crimes se deram – em um deles, o pai prega o filho na cruz, fura seus olhos com uma chave de fenda, arranca sua cabeça e coloca fogo; em outro, o pai joga seu filho do carro e depois 6.  “Imputar é atribuir a alguém a responsabilidade de alguma coisa. Imputabilidade penal é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível” (Jesus, 1983: 420). O conceito de sujeito imputável é encontrado, a contrario sensu, no art. 26 do Código Penal, que trata da inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado: “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Imputável, portanto, é o sujeito mentalmente são e desenvolvido, capaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento.

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bate a cabeça da filha em uma árvore, tendo o apoio de sua esposa; por fim, há a mãe que se tranca com o filho no quarto e corta seu pescoço, tentando suicídio em seguida –, a aceitação da loucura, nesses casos, encontrou resistência por parte dos atores jurídicos, mesmo tendo sido comprovada pelo laudo psiquiátrico. Nos crimes de pais contra filhos, houve casos em que a vítima (filho ou filha) retira a queixa contra o réu (pai ou mãe), dizendo “já ter esquecido o acontecido” ou que “já está tudo bem”, não querendo dar continuidade aos autos7. Outro elemento presente foi a autoridade paterna enquanto justificativa para o crime. Assim, um pai explica que matou seu filho porque este não o estava respeitando. “Agora você vai aprender a respeitar o seu velho”, teria sido sua fala momentos antes de apertar o gatilho. Em outro caso, no qual o pai é acusado de ter tentado matar a filha, o advogado alega que o réu, “na qualidade de pai, deu-lhe apenas dois tapas”. A retirada da queixa por parte do filho8 e a autoridade paterna enquanto justificativa encaixam esses crimes em um novo domínio de inteligibilidade – o da autoridade e hierarquia familiar. Além disso, em muitos crimes de pais contra filhos, os réus (pais) estavam entorpecidos pela bebida. A bebida, longe de ser considerada uma droga que comprometeria o discernimento moral dos acusados, que seria o argumento da saúde mental, foi tida como algo que contribui para a exaltação dos sentimentos, ou seja, da violenta emoção, o que implica não na ausência de pena, mas em sua redução. O que isso sugere? Se pensarmos na ideia de livre convencimento do juiz, por que parece ser mais fácil se deixar convencer pela loucura nos crimes de filhos contra pais? Como podemos pensar as singularidades de cada crime a partir desses dois campos: loucura e autoridade? E mais: como podemos compará-los com os estudos sobre crimes entre casais, os quais demonstraram haver duas figuras jurídicas principais – a legítima defesa da honra para maridos que matam ou tentam matar suas esposas e a legítima defesa da vida para esposas que matam ou tentam matar seus maridos? 7.  Apesar de os crimes de homicídio e tentativa de homicídio serem de ação pública e não precisarem da representação da vítima para dar continuidade ao caso, como é necessário para os crimes de lesão corporal registrados nos Juizados Especiais Criminais, o depoimento e a posição da vítima têm um peso significativo para o andamento e o desfecho dos casos. 8.  Os estudos de Izumino (1998; 2002) sobre crimes entre cônjuges mostraram que mulheres vítimas de violência por parte de seus maridos retiravam a queixa com frequência.

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Corrêa (1983) mostrou que, mesmo em casos de adultério do marido, a defesa não acionava a legítima defesa da honra, mas a legítima defesa simples, ou seja, da vida. Diferentemente da honra, a vida é o bem mais elementar e universal da humanidade, retirando daquele que a tem a condição de pessoa para colocá-lo no domínio do indivíduo, anônimo, universal e igualitário. Além disso, defender a vida é uma questão de sobrevivência, ao contrário de defender a honra, uma questão de privilégio. Ao acionarem a legítima defesa da vida para os crimes de esposa contra marido, os atores jurídicos encaixam esses crimes numa esfera biológica de necessidade ou sobrevivência, retirando, com isso, o caráter intencional e desencadeador da ação, tomando-a como uma reação, algo, portanto, secundário e instintivo. Dessa forma, a esposa que mata não age, mas reage; não é propriamente ré, mas vítima. Enquanto reação, a legítima defesa retira a racionalidade do crime, pondo-o no lugar do descontrole emocional. A tese de advogados e promotores é de que “a mulher mata em geral num momento de desespero, para escapar de uma situação que já se tornou insuportável” (Corrêa, 1983:246). A mesma conotação cerca o argumento da saúde mental, presente nos crimes de filhos contra pais. A loucura é a não consciência, o não discernimento, o não controle, a não intencionalidade9. Ao louco cabe a cura, não a responsabilidade. Assim como a esposa que mata para defender sua vida, o louco mata também em um momento de descontrole emocional. Ambos, portanto, são vítimas – seja da doença mental, seja da violência do marido. Muito diferente é a conotação em torno dos conceitos de honra e autoridade.10 Ambos são valores que remetem não ao indivíduo anônimo, universal e igualitário, mas à pessoa – categoria associada ao status, a uma posição hierárquica numa sociedade assimétrica. Ter honra e ter autoridade são privilégios – nem todos as têm. São marcas da diferença – e de uma diferença positiva, prestigiosa. Ao contrário da legítima defesa (vida) e do argumento da saúde mental (loucura), a honra e a autoridade não retiram daquele que age o seu caráter de sujeito autônomo, racional e intencional. Ao contrário, reforçam esses caracteres e justificam as ações daqueles que matam (maridos, de um lado; pais, de outro) não pela irracionalidade, como acontece no caso das esposas e dos filhos, mas por uma racionalidade   9.  Para essa discussão, ver Foucault (2005). 10.  Para a discussão sobre honra, ver Taylor (1992) e Pitt-Rivers (s/d).

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extremada que chega a ser sensatez. Assim, apesar de serem valores da diferença, seus efeitos práticos são a normalização e banalidade dos atos – agir conforme o homem médio/normal. Nas palavras de um advogado sobre o réu que matou a esposa com 08 facadas após a mesma tê-lo chamado de corno manso: Agiu dentro da normalidade, agiu dentro dos padrões morais e éticos que ele tem e que lhe foram estendidos pela sociedade campineira e que são os padrões morais de toda sociedade; agiu com toda naturalidade, agiu como age a maioria dos homens11.

Já o argumento da saúde mental, tendo como base o homem médio e a normalidade, é um valor normatizador e igualitário. Porém, quando posto em prática pela tese de inimputabilidade, atua como um valor diferenciador, já que o réu, considerado louco, não atua como homem médio e, por ser diferente, não pode ser condenado. Enquanto o marido que mata sua esposa é absolvido, com a legítima defesa da honra, por ter agido como homem médio, dentro da normalidade, o filho que mata seus pais é absolvido, com o argumento da saúde mental, justamente por estar fora do padrão de normalidade, não podendo ser julgado como um homem comum. Ao pensar os crimes em família a partir de campos conceituais, é possível aproximar esposas e filhos, de um lado, maridos e pais, de outro. A defesa da vida pelas mulheres e a loucura dos filhos pertencem a um mesmo referencial simbólico – vitimização, irracionalidade, descontrole emocional12. Por sua vez, a defesa da honra pelos 11.  Caso 34 do estudo de Corrêa (1983), no qual o marido (42 anos, branco, operário) matou a esposa (não consta a idade, branca, faxineira) após 16 anos de casamento, tendo em comum três filhos. Após começar a trabalhar fora, vítima e acusado passam a discutir frequentemente, já que o marido começou a suspeitar de sua mulher. Após uma briga, em que a mulher o chama de corno manso e confessa que o traía, o marido a mata com 08 facadas. No tribunal do júri, é absolvido por legítima defesa da honra. O promotor apela, argumentando que a legítima defesa da honra está fundamentada em preconceitos. O réu vai a novo julgamento, mas é absolvido novamente pelo mesmo argumento – a legítima defesa da honra. 12.  Para uma correspondência entre loucura e feminino/feminismo, ver Showalter (1985; 1993). Esses trabalhos mostram como mulheres consideradas “à frente de sua época” foram tidas como doentes/histéricas pela sociedade e por seus médicos. A “nova mulher” – a mulher moderna, trabalhadora, que lutava por seus direitos – era também a mulher nervosa. A loucura, portanto, foi vista como algo essencialmente feminino, “doença de mulher”, sendo associada a uma resistência às normas, a uma quebra de hierarquias. Isso é muito interessante para pensar-

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maridos e a autoridade dos pais trazem como elementos a intencionalidade da ação, a racionalidade, o autocontrole, a pessoa em sua especificidade hierárquica. Esposas e filhos estariam, assim, em um pólo feminino; maridos e pais, em um pólo masculino. Para além de tais aproximações, parece haver uma maior indulgência para os crimes entre marido e esposa, pois, quando absolvidos, homens e mulheres vão, de fato, para suas casas. Já nos crimes entre pais e filhos, a absolvição em casos de insanidade mental é muito mais aparente do que efetiva: os réus não vão para a prisão, nem tampouco para suas casas; vão para um hospital psiquiátrico. Trata-se, portanto, de diferentes conotações acerca da absolvição, o que sugere diferentes formas de se lidar com a violência conjugal e geracional. Além disso, enquanto os crimes entre casais podem ser lidos como uma “loucura desculpável”, momentânea, uma “loucura lúcida”, os crimes de filhos contra pais se encaixam muito mais numa “loucura insana”, condenável e contrária à ordem das coisas. Assim, em muitos casos de maridos ou esposas que matam por ciúmes, por amor ou por infidelidade, a chamada “violenta emoção”, os atores jurídicos falam em momentos de descontrole, transe emocional, furor; porém, tal loucura é acionada para tornar o crime mais humano e menos punível (Foucault, 2005). Em um dos casos, ao argumentar que o réu agiu “em transe de grande ciúme” ao tentar matar a ex-esposa em função de esta estar vivendo com outro homem, o advogado não pretendeu acionar a estratégia da inimputabilidade, ou seja, da loucura inexplicável, mas a tese da violenta emoção, a qual faz do descontrole algo razoável e, do crime, um ato passível de explicação – não através da insanidade, mas da racionalidade e humanidade de se agir em prol de certos valores, como, por exemplo, o amor, a fidelidade, a família. Já nos crimes de filhos contra pais, a loucura acionada é a loucura má, irreparável, irracional, contrária à moralidade, estando já posta mesmo antes do laudo médico: assim, ao dizer para o diretor do Fórum que iria estudar os crimes de filhos contra pais, ele logo me disse: “Ah, aqueles em que o filho é maluquinho”; ou, nas palavras de um advogado, “matar a mãe é, por si só, um ato insano”. Parece haver, de antemão, uma conexão entre um certo crime – matar os pais – e loucura, ao mesmo tempo em que é justamente essa conexão que implica na absolvição do acusado. mos a correspondência entre esposas que matam seus maridos e filhos que matam seus pais: também os filhos, nesse caso, quebraram normas e hierarquias, sendo facilmente classificados como loucos.

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Ao olharmos para a violência conjugal, de um lado, e para a violência geracional, de outro, podem-se perceber diferentes significados e maneiras de a justiça lidar com cada uma delas. Nas palavras de um advogado, Entre pais e filhos, é sempre mais grave, né? A conotação é muito mais grave. O espectro dele é muito maior, assim... Porque um filho que mata um pai ou um pai que mata um filho, escapa, um pouco, da natureza humana... é uma coisa meio monstruosa... agora, marido e mulher, já muda... é outra coisa... e é muito mais fácil, viu, conseguir atenuantes... porque entre marido e esposa não faz tanto barulho assim... agora, quando um pai mata um filho, um filho mata um pai, a repulsa é muito maior... e aí complica....

Essa ideia de que a violência entre pais e filhos é mais grave do que a violência entre cônjuges é compartilhada pelos advogados, promotores e juízes entrevistados. Em suas falas, a oposição entre natureza e cultura, consanguinidade e afinidade, sangue e lei era latente: como a relação entre pais e filhos é da ordem da filiação, os crimes entre eles foram lidos como antinaturais, anormais, monstruosos, graves, raros, inexplicáveis. Na tentativa de darem algum sentido a eles, todos acionaram a loucura como chave explicativa. Já os crimes entre cônjuges não tiveram essa conotação. Sendo uma relação estabelecida por um contrato de casamento, esposas e maridos possuem um vínculo frágil, vulnerável, podendo ser quebrado a qualquer momento. Os crimes entre eles não tiveram, assim, uma ideia de algo contrário à natureza humana, mas, ao contrário, foram vistos como parte da cultura, frutos de sentimentos demasiadamente humanos, como covardia, machismo, rivalidade, competição, egoísmo, paixão, ciúmes. Enquanto os pais que matam seus filhos e os filhos que matam seus pais são vistos como pessoas anormais, nos crimes entre cônjuges, a explicação passa justamente pela normalidade e intencionalidade do sujeito. Assim, mata-se a esposa por ciúmes, por covardia, por machismo; mata-se o marido para defender a própria vida. Agora, mata-se o pai ou a mãe por ser louco. A loucura, porém, apesar de significativa, não é o motivo majoritário (dos 34 casos entre pais e filhos, ela aparece em 11). Trata-se, portanto, de uma concepção sobre família, consanguinidade e geração, e não

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de um dado estatístico, apesar de ser assim que os atores jurídicos queiram demonstrar13. Será que há mais filhos loucos que matam seus pais do que pais loucos que matam seus filhos ou do que maridos loucos que matam suas mulheres? Corrêa (1983) mostrou que o exame de sanidade mental foi pedido em 03 crimes de homicídio e tentativa de homicídio de marido contra esposa. Mesmo tendo sido atestada uma perturbação mental (como esquizofrenia e psicose) nos laudos psiquiátricos, o argumento da saúde mental não foi aceito em nenhum deles. Será que há mais esposas defendendo sua vida contra seus maridos do que maridos contra suas esposas? Será que os maridos defendem mais sua honra do que sua vida? E será que as mulheres defendem mais sua vida do que sua honra? Não se trata de uma questão numérica, mas sim de uma questão simbólica. Defender a honra, defender a vida e ser louco podem ter o mesmo efeito jurídico – a absolvição –, mas não o mesmo efeito simbólico. É preciso optar entre a loucura e a criminalidade, entre a vida e a honra. Para usar uma linguagem foucaultiana, trata-se de uma disputa em torno da verdade. “É o princípio da porta giratória: quando o patológico entra em cena, a criminalidade, nos termos da lei, deve desaparecer” (Foucault, 2001: 39). E quando se trata de defender a vida, não há lugar para a honra. Em todos esses dispositivos ou estratégias jurídicas, o que vemos é um uso contrastivo do gênero enquanto jogo simbólico entre feminino e masculino, uma categoria de diferenciação ou, segundo Strathern (1995), “como instrumento de comparação”. Nesse sentido, o conceito relacional de gênero é muito bem apropriado pelo discurso jurídico – o feminino é definido em contraste com o masculino; a esposa em relação ao marido, os filhos em relação aos pais, e vice-versa –, já que casa com a própria lógica do direito – a lógica do contraditório, em que é preciso ter, pelo menos, duas versões para um mesmo evento. A perspectiva relacional do gênero permite tomá-lo enquanto complexidade e não totalidade, isto é, como “uma coalizão aberta que afirmará identidades alternadamente instituídas ou deixadas de lado de acordo com os propósitos do momento” (Butler, 1990 apud Jayme, 2001: 4). Nesse sentido, gênero mostra-se como um impor13.  Para uma discussão sobre parentesco e os valores atribuídos à consanguinidade e afinidade em diferentes sociedades, ver Radcliffe-Brown (1973; 1982), EvansPritchard (1966), Lévi-Strauss (1982), Dumont (1953), Schneider (1980), Overing (1975; 1999), Viveiros de Castro (2002) e Fonseca (2004).

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tante locus para afirmar, reconhecer e contrastar identidades. Para o discurso jurídico, isso se mostrou fundamental, já que o contraste identitário entre vítima e acusado, mais do que o crime em si, é o que será decisivo para o desfecho do crime. Assim, como dito, a esposa adúltera ou má dona-de-casa, em contraposição ao marido trabalhador e portador de uma honra a ser preservada, acaba por ser responsável pelo crime de que foi vítima. O mesmo ocorre com a mãe desleixada ou com o pai alcoólatra assassinados pelo filho obediente e submisso. Outra implicação da perspectiva relacional do gênero é a crítica à definição de gênero enquanto construção social embasada nas diferenças sexuais. Segundo essa definição, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais é vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros. Tendo como sustentação a diferença sexual, vista como dada, natural, biológica, os pilares diferenciadores do gênero seriam levantados com rigidez e concretude. Tal perspectiva, além de essencializar as diferenças sociais, fornecendo a nós categorias dicotômicas de homens e mulheres e localizando o gênero na pessoa unitária, não percebe que a própria diferença sexual também é parte do arbitrário cultural. A não sobreposição entre gênero e dimorfismo sexual permitenos pensar as configurações do feminino e do masculino em sujeitos em que a oposição principal não é a de sexo, mas a de geração, como é o caso da relação entre pais e filhos. A categoria gênero transcende as categorias “homem” e “mulher”, uma vez que abarca duas outras mais gerais: masculino e feminino (Kofes, 1993:28-29). Não há, portanto, uma única masculinidade, assim como não há uma única feminilidade, justamente pelo fato de não estarem restritas, respectivamente, a homens e mulheres e, enquanto categorias, serem arbitrárias, contingentes e históricas. Isso possibilita explorar as relações geracionais também como uma configuração das relações de gênero. Enquanto “metáforas de poder” (Almeida, 1996), o masculino e o feminino têm se mostrado muito férteis para os atores jurídicos em suas disputas simbólicas em torno dos crimes, não só entre marido e mulher, mas também entre pais e filhos. Um objeto, uma cor, uma vestimenta, um artefato qualquer pode ser considerado feminino ou masculino. Assim, Sahlins (1979), na tentativa de apreender o pensamento burguês como uma operatória totêmica, aproximando-se, pois, do chamado “pensamento selvagem”, e tomando o sistema de vestuário como objeto para sua análise,

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mostra como as vestimentas (a cor, a textura dos tecidos e a direção das linhas) são marcadas por relações de gênero. Desse modo, a seda é feminina, em contraposição à masculinidade da lã; tons pastel são femininos, e cores escuras, masculinas; a linha levemente curvada, ondulante, é frouxa, flexível, preguiçosa, passiva, gentil, macia, voluptuosa e feminina, já a linha reta sugere rigidez, precisão e é considerada positiva, direta, tensa, rija, inflexível, dura, rude e masculina. Inseridos nessa operatória intelectual, os atores jurídicos, ao julgarem os crimes entre gerações, acionam relações de gênero: os pais, independentemente do sexo, puderam ser lidos a partir de um campo masculino, em contraposição aos filhos que, também independentemente do sexo, foram encaixados numa simbologia do feminino. O discurso jurídico sobre os crimes em família evidencia, pela prática, aquilo que foi escrito por algumas teorias sobre gênero: as desigualdades e as relações de poder fundamentadas no gênero não são um atributo da relação homem-mulher ou da conjugalidade, uma vez que masculino e feminino transcendem categorias como homem e mulher. A assimetria entre masculino e feminino extrapola a oposição entre os sexos, fazendo-se ouvir em outras formas de oposição, como, por exemplo, entre gerações. É preciso descolar o conceito de gênero de uma base sexual para apreender suas ramificações em outros níveis. A igualdade de gênero deve ser pensada para além da relação homem-mulher. Ao olhar para as gerações, é possível apreender novas configurações do feminino e do masculino, refinando, com isso, temas importantes para a antropologia, como gênero, geração e violência doméstica. Considerações finais A pesquisa de campo e o método comparativo são alguns dos elementos que constituíram a antropologia enquanto tal. De lá para cá, outros elementos se agregaram às pesquisas antropológicas, tais como o estudo em sociedades ditas capitalistas e a pesquisa de arquivo ou documental. Longe de descaracterizarem a antropologia, esses novos instrumentos permitiram sua expansão para novos temas, novos contextos e novas questões. Diante de tantas possibilidades de investigação, é preciso fazer escolhas metodológicas e ter consciência delas – em outras palavras, é preciso que elas fiquem claras tanto ao pesquisador quanto a seus leitores, umas vez que não se trata de um dado, mas de uma estratégia de pesquisa. Enquanto estratégia, a metodologia deve fazer parte

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da reflexão do pesquisador, vendo o quanto dela tem na pesquisa, ou seja, o quanto essa escolha, esse tipo de investigação, permitiu responder a tais questões e não a outras, chegando aos seguintes resultados e não a outros. Em meu estudo, a pesquisa de campo permitiu-me “desconfiar” dos documentos, refinando meu olhar sobre os crimes estudados, vendo que as arguições dos atores jurídicos nos processos são estratégias cabíveis e condizentes com o ritual lúdico e teatralizado do Júri, para usar uma expressão de Schritzmeyer (2001). Isso me levou a um novo direcionamento: não se trata de uma defesa da família por parte da justiça, apesar de ser assim que os atores jurídicos querem demonstrar, mas do reconhecimento de que ela é um “caso complicado”, um “ninho de intrigas, conflitos e crimes”. Ao não olharem para o campo, enfocando apenas os arquivos, os estudos sobre violência doméstica “compraram” o discurso jurídico, explicando o alto índice de absolvições pela retórica da defesa e preservação da família. Por fim, a comparação permitiu-me uma maior compreensão de meu objeto de estudo através da percepção das recorrências e singularidades de cada caso estudado. Ao comparar os crimes, podemos ver quais os argumentos predominantes em cada situação – e, novamente, não se trata de uma estatística, mas de uma interpretação sobre esses casos: assim, os crimes de filhos contra pais ganharam inteligibilidade com o discurso sobre loucura, os de pais contra filhos com as noções de autoridade e hierarquia familiar. Já nos crimes entre cônjuges, esposas que matam seus maridos foram vistas como defendendo a vida, enquanto os maridos que matam suas esposas defendiam a honra. Ao cruzar essas interpretações, pude discutir as diferentes configurações da categoria de gênero nos crimes em família: os filhos e as esposas foram lidos a partir de um pólo feminino, os pais e os maridos, em um pólo masculino. Diante da multiplicidade da antropologia, é preciso escolher os métodos – e se, em um primeiro momento, é o pesquisador quem os tem na mão, ao final, percebe-se (ou se deveria perceber) que foram eles que o guiaram. Referências bibliográficas ALMEIDA, Miguel Vale de. “Gênero, masculinidade e poder: revendo um caso do sul de Portugal”. In: Anuário Antropológico/95. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996: 161-189. CORREA, Mariza. Morte

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Da investigação policial à investigação antropológica: implicações da proximidade e do distanciamento na pesquisa antropológica1 Flávia Melo da Cunha

“O fato é que, hoje, estudar o próximo, o vizinho, o amigo, já não é um empreendimento tão excepcional. Ao contrário, multiplicam-se os trabalhos de pesquisa sobre camadas médias, gênero, geração, vida artística e intelectual, família e parentesco, religião, política etc., que implicam lidar com a problemática da familiaridade e do estranhamento”. Gilberto Velho (2003a: 15) O esforço de análise deste artigo é pensar o ofício antropológico em contextos nos quais os sujeitos vivenciam cotidianamente diferentes lógicas, papéis e conflitos na trama de relações sociais das quais participam. Para cumprir tal propósito, reflito sobre minha inserção no campo de pesquisa a partir da dupla condição de antropóloga e policial. Meu intuito ao refletir sobre tal experiência é pensar as implicações metodológicas do encontro de duas atividades profissionais distintas, mormente no que diz respeito à proximidade com o grupo pesquisado e aos limites de construção de alteridades no trabalho de campo. Diferente da pesquisa em sociedades geográfica e culturalmente distantes do antropólogo, onde as fronteiras – a partir das quais 1.  Os argumentos deste artigo foram discutidos anteriormente em minha dissertação de mestrado (Melo da Cunha, 2008).

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as alteridades de antropólogos e “nativos” são construídas – aparentam maior nitidez, a pesquisa em contextos urbanos, por exemplo, confronta-se com sujeitos (pesquisadores e pesquisados) imbricados em múltiplos vínculos e papéis sociais, o que compromete o estabelecimento de contornos rígidos para localizar as diferenças que distinguem os sujeitos no encontro etnográfico. Obviamente, essas questões não se apresentam somente no campo da antropologia urbana; também em outros campos de estudo a dinâmica de separação e distanciamento entre “nós” e “eles” é problematizada. Por conseguinte, a ênfase dada a essa discussão é do quanto mais evidente – ou menos disfarçada – essa relação se apresenta em determinado contexto. Nesse sentido, a penetração da pesquisa antropológica nos centros urbanos promoveu uma aproximação entre pesquisador e “objeto” que repercutiu na trajetória e nos métodos antropológicos e estabeleceu uma dinâmica de permanente revisão de suas técnicas e refinamento de seu instrumental analítico a fim de garantir o controle da dimensão valorativa e lidar com o problema da familiaridade e do estranhamento. Trata-se de uma proximidade relativa porque, nos termos de Roberto Da Matta (1981), tal familiaridade não é sinônimo de conhecimento científico; participar de uma mesma sociedade e guardar com o grupo pesquisado certo grau de compartilhamento cultural não constitui o conhecimento específico construído pela pesquisa antropológica e denota diferentes formas de estar no mundo e conhecêlo. Ademais, a ausência de distanciamento geográfico e cultural e do desconhecimento da língua nativa – aspectos determinantes da etnografia clássica – impõe ao pesquisador adotar procedimentos que lhe possibilitem resguardar-se de sua cultura para melhor compreender o grupo estudado. Destarte, as pré-noções devem ser cuidadosamente avaliadas e colocadas sob a égide da típica suspeição antropológica, instigando o olhar atento e cauteloso do pesquisador aos acontecimentos a sua volta, sobretudo se considerados familiares. A pesquisa em tais circunstâncias exige, portanto, a construção do estranhamento dentro de uma realidade aparente ou circunstancialmente familiar (Velho, 1978; Da Matta, 1981). Eunice Durham (1986) assinala que desde os trabalhos precursores da antropologia no Brasil muitos estudos dedicaram-se aos problemas vividos na cidade e estes se configuraram como uma espécie de auto-etnografia da sociedade brasileira, dedicada a assuntos do cotidiano de grupos marginalizados, tais como mulheres, homosse-

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xuais, negros, usuários de drogas, moradores de rua, prostitutas, entre outros. Não raras vezes, tal interesse ancorava-se no compartilhamento de valores e convicções políticas; envolvimento que, segundo a autora, nem sempre contribuiu para a qualidade desses estudos, produzindo antes uma “participação subjetiva e observante” do que uma “observação objetiva e participante” (Durham, 1986: 26). Essa tendência é notada no Brasil desde meados dos anos 1960; atualmente, é possível enumerar centenas de estudos nos quais a proximidade com o tema investigado não é algo extraordinário. Com frequência, é através de uma rede de relações precedente à investigação que muitos pesquisadores chegam aos grupos e temas de seu interesse (Velho, 2003a). Durham reconhece a relevância da empatia com os grupos estudados para facilitar a apreensão das categorias nativas; contudo, adverte para o risco de a explicação nativa suprimir a antropológica. Todavia, se tal proximidade é fator comprometedor da pesquisa sob alguns aspectos, a inserção em determinados campos seria certamente mais difícil e mesmo inviável caso inexistisse um liame anterior entre pesquisadores e grupos ou instituições estudadas. Isso é particularmente relevante no caso de pesquisas em instituições policiais, prisionais e judiciais, nas quais os pesquisadores frequentemente se deparam com empecilhos para acessar documentos e dependências. Ora, se todo o esforço da observação participante é obter a confiança do grupo para chegar às senhas de acesso aos códigos da cultura estudada, quando o pesquisador a possui a priori é necessário investir em outros aspectos a fim de que tal proximidade não deprecie a pesquisa desenvolvida sob tais condições. A pesquisa de mestrado por mim desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) caracterizou-se por essa proximidade, pois resultou da confluência de duas experiências vivenciadas concomitantemente entre os anos de 2001-2005, quando concluí a graduação em Ciências Sociais e trabalhei como investigadora de polícia civil na Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher de Manaus/AM (DECCM). Dentre as atividades rotineiras na delegacia, fui encarregada de produzir fotografias de mulheres lesionadas fisicamente para composição de inquéritos policiais ou termos circunstanciados remetidos à justiça2. Nessas ocasiões, elas costumavam chegar envoltas em xales, 2.  Em razão da demora existente na apuração criminal e na tramitação dos processos judiciais, muitas das vítimas do crime de lesão corporal não mais apresentavam sinais físicos da violência e, em alguns casos, sequer o laudo de exame de corpo de

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lenços, roupas largas, óculos escuros, acessórios utilizados para ocultar, sem sucesso, os ferimentos sofridos. Apesar de o rito – análogo ao da fotografia sinalética de Bertillon3 – transformar a confecção dessas fotografias em uma sucessão de posturas previamente determinadas e com pouca ou nenhuma intervenção dos sujeitos fotografados, as mulheres atendidas, em conversas informais, mencionavam a vergonha sentida diante dos outros e do próprio corpo. O ato de vê-las despidas de seus “disfarces” e a exibição de seus ferimentos causava grande constrangimento e desconforto a mim, mas principalmente a elas. Essa experiência foi intrigante e instigante. Conhecer as histórias daquelas mulheres despertou meu interesse pelo estudo de casos de lesão corporal e provocou minha primeira aproximação com questões relacionadas à violência praticada contra a mulher e aos estudos de gênero. Meu interesse foi ainda mais aguçado pelo aparente agravamento dos casos de lesões corporais observado no ano de 2004. Por ocasião dos estudos de pós-graduação, sistematizei muitas inquietações e constatações daquele período no projeto de pesquisa. Portanto, foi através da “participação observante” que forjei as primeiras indagações de minha pesquisa de mestrado. A expressão, também empregada por Durham (1986: 26), é um trocadilho de observação participante, método consagrado pela pesquisa antropológica, segundo o qual o pesquisador deve construir uma inserção tal na vida da comunidade pesquisada de modo a garantir o máximo de compartilhamento possível das categorias nativas a fim de interpretar coerentemente a cultura estudada. Inversamente, vivenciei esta experiência como estudante de Ciências Sociais e policial civil ao apropriar-me das categorias acadêmicas para interpretar os fatos típicos da rotina policial. Esta relação é emblemática para a compreensão da construção do problema de minha pesquisa, do percurso metodológico adotado e também do modo como minha análise foi delito estava disponível quando das audiências na justiça criminal. Por tais razões, e também no intuito de sensibilizar conciliadores e juízes, a delegacia de mulheres anexava fotografias das mulheres lesionadas à documentação enviada aos juizados especiais e às varas criminais. 3.  A fotografia sinalética foi desenvolvida no século XIX e compõe, juntamente com o retrato falado e a datiloscopia (estudo das impressões digitais), um conjunto de técnicas conhecidas como bertilonagem - denominação derivada do nome de seu criador, o francês Alphonse Bertillon - e baseadas nos princípios da antropometria. Consiste em fotografia comum com distância focal que permita calcular o tamanho real do indivíduo, de frente e de perfil direito (Croce, 1995: 80).

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forjada pela dupla inserção no campo; logo, é relevante refletir sobre o ethos de cada uma dessas experiências e as implicações desse multipertencimento. Ambivalências do exercício policial Na hierarquia da Polícia Civil do Amazonas4 existem quatro classes componentes do núcleo organizacional da instituição: autoridade policial (delegados), agente da autoridade policial (investigadores), auxiliar da autoridade policial (escrivães, peritos criminais, assistentes sociais e psicólogos) e apoio à autoridade policial. Todas as classes são subordinadas ao delegado de polícia e as classes de agente e auxiliar estão no mesmo patamar hierárquico. Segundo o estatuto do policial civil do Amazonas, compete aos investigadores de polícia a execução das ações constitucionais de polícia judiciária, determinadas pela autoridade policial. Tais ações consistem em reunir provas; preservar vestígios do crime; apurar a procedência das denúncias; identificar e intimar testemunhas, vítimas ou autores de crimes; executar prisões ou conduções coercitivas e zelar pela ordem e segurança da delegacia. Como a lógica judicial brasileira é fundamentada em “princípios inquisitoriais” (Kant de Lima, 1989: 03)5, a investigação criminal, função típica da polícia6, cumpre o dever de constatar a existência do 4.  Segundo a Constituição Federal de 1988 (art. 144 § 4º), as polícias civis desempenham a função de polícia judiciária e são competência dos estados da federação e, por tal razão, são regulamentadas em leis estaduais específicas. No caso do Amazonas, a regulamentação é feita através do Estatuto do Policial Civil do Amazonas - Lei nº 2.271 de 10/01/1994. 5.  Segundo Roberto Kant de Lima, “no sistema inquisitorial, de tradição romana e canônica, feita uma denúncia, até anônima, efetuam-se pesquisas sigilosas antes de qualquer acusação, não só para proteger a reputação de quem é acusado, mas também para proteger aquele que acusa de eventuais represálias de um poderoso acusado. À defesa do acusado este sistema contrapõe o interrogatório do suspeito, ao final das investigações sigilosas e preliminares, efetuadas sem o seu conhecimento; ao confronto público, os depoimentos secretos das testemunhas, preferindo-se as formas escritas às verbais. O sistema inquisitório não afirma o fato; supõe sua probabilidade, presume um culpado e busca provas para condená-lo. O sistema procura fornecer ao juiz indícios para que a presunção seja transformada em realidade” (Kant de Lima, 1989: 04). 6.  De acordo com o delegado federal Célio Santos (2006), a investigação criminal foi atividade realizada exclusivamente pela polícia do descobrimento até o ano de 1827, ocasião em que foi atribuída ao Juiz de Paz. Em 1841, a atividade retornou à polícia.

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crime através de provas materiais e testemunhais e indicar os responsáveis por sua autoria. A preponderância dessa lógica de formação da culpa é fundamental para compreender o ethos da atividade policial. A essência dessa atribuição está relacionada à constituição do inquérito policial7, instrumento formal da investigação criminal presidido pela autoridade policial: “o inquérito policial existe em nosso ordenamento jurídico em face da formação da culpa (preliminar), isto é, de diligências investigativas atinentes à coleta de elementos de convicção destinados a embasar a acusação criminal” (Penteado Filho, 2002: 03). No entanto, compreender as práticas policiais requer muito mais do que a descrição de suas atribuições legais. David Bayley (2006) realizou estudo comparativo detalhado sobre o trabalho policial em diferentes países e seus resultados indicaram uma surpreendente variedade de funções e atividades atribuídas à polícia que incluíam, além da investigação criminal, prevenção, aconselhamento e investigação não criminal. Dentre as várias atividades, o autor indica a existência de um elemento geral de identificação da ação policial em todos os países analisados: o uso legitimado da força na regulação da vida social. Com a mesma perspectiva de compreender a polícia através de suas ações, muitos cientistas sociais brasileiros dedicaram-se ao estudo das práticas policiais no Brasil (Paixão, 1982; Kant de Lima, 1989; Mingardi, 1992; Poncioni, 2006). O trabalho de Guaracy Mingardi (1992) merece destaque por seu ineditismo à época em que foi realizado: no ano de 1985 o autor decidiu ingressar na polícia civil para investigar a instituição a partir da observação participante. Seu relato consistiu numa descrição detalhada da organização e funcionamento dos distritos policiais na cidade de São Paulo. Dentre outros aspectos, Mingardi enfatizou a importância do inquérito policial na dinamização da atividade da polícia judiciária e descreveu em pormenores os arranjos construídos em cada distrito policial para seleção e priorização de tipos de crime e vítimas, definição do papel de cada uma das equipes da unidade, hierarquização entre e interclasses e participação de colaboradores externos à polícia. A observação da rotina da delegacia de mulheres de Manaus/ AM acrescentou outros elementos a essa reflexão. Menciono alguns deles. A mobilização política do movimento feminista incitou a cria7.  Artigos 4º a 23 do Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689 de 03/10/1941).

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ção das delegacias de mulheres (doravante, DEAMS) no Brasil, e os tipos de demanda desde então apresentados pela sociedade a essas delegacias especializadas atribuíram-lhe caráter e status muito distintos das demais unidades policiais. Ademais, entre 1995 e 2006, a importância do inquérito policial como principal atividade da investigação criminal foi cada vez menor nas delegacias de mulheres. Nesse período, a Lei nº 9.099 de 26/09/19958 ainda era aplicada aos crimes praticados contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar9; como a maior parcela de crimes atendidos pelas DEAMS foi englobada pela classificação de crime de “menor potencial ofensivo”, a atividade de investigação policial foi gradativamente esvaziada e a maior ênfase do exercício policial nas DEAMS concentrou-se em práticas cartorárias, especialmente na confecção dos termos circunstanciados de ocorrência (TCO)10. Esse processo repercutiu particularmente nas atividades típicas dos/as investigadores/as de polícia e a investigação criminal passou a ser cada vez mais suprimida por atividades de aconselhamento, assistência social ou psicológica e orientação jurídica. Durante o período em que trabalhei na delegacia de mulheres e realizei a pesquisa de campo, as atribuições desempenhadas pelos investigadores de polícia podiam ser organizadas em seis grupos: atividades cartorárias (registrar boletins de ocorrência, confeccionar requisições de exames periciais e intimações); atividades de recepção (dar informações, agendar audiências, orientar as usuárias, atender ao telefone e operar o rádio); atividades de investigação (entregar intimações, receber presos, manutenção de armamentos, segurança da carceragem e da delegacia); atividades de prevenção (palestras, 8. Esta lei instituiu a definição de menor potencial ofensivo para crimes e contravenções penais cuja pena máxima fosse de até um ano, mas a Lei nº 10.259 de 12/07/2001 estendeu a definição às penas de até dois anos. A Lei nº 9.099/1995 também criou os juizados especiais criminais (JECRIM) e formalizou um procedimento de apuração criminal segundo os princípios da celeridade e da informalidade que resultou nos termos circunstanciados de ocorrência, procedimento aplicado pela polícia judiciária aos crimes de menor potencial ofensivo, em substituição do inquérito policial.   9.  Desde a vigência da Lei nº. 11.340 de 22/08/2006 (conhecida como Lei Maria da Penha), em caso de caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei nº. 9.099/1995 não pode mais ser aplicada. 10.  A este respeito, consultar também o trabalho de Marcella Beraldo Oliveira (2006: 13), que estudou o tratamento da violência doméstica nos juizados especiais criminais de Campinas/SP. A autora menciona a prevalência dos crimes de ameaça e lesão corporal dentre os processos encaminhados pela DEAM ao JECRIM.

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blitz informativas); atividades burocrático-administrativas (entregar relatórios estatísticos, protocolar documentos) e atividades assistenciais (transporte de mudanças, condução a hospitais, atenção a crianças, atendimento psicológico, encaminhamento a outros serviços). Por concentrar tantas atribuições, a equipe de investigação representava a porta de entrada à delegacia tanto para vítimas quanto para autores de crimes e, na maior parte das vezes, era a única à qual tinham acesso. Das atribuições legais à diversidade de atividades realizadas, nota-se a existência de ao menos dois aspectos para compreender o exercício policial: o que a polícia é designada a fazer segundo o ordenamento jurídico de cada sociedade e as diversas situações não criminais com as quais deve lidar frente aos problemas trazidos pela sociedade. Destarte, o conjunto de ações desenvolvidas por um policial resulta dos arranjos elaborados a partir desses aspectos. Tais arranjos compunham a rotina dos/as investigadores/as de polícia da delegacia de mulheres. Não obstante tal realidade, as academias de polícia orientam o exercício policial a enfatizar somente a perspectiva legal de suas atribuições, como assevera Paula Poncioni (2006) em pesquisa realizada sobre academias de polícia civis e militares do Rio de Janeiro: [a] formação profissional nas academias de polícia expressa uma determinada concepção do fazer policial que privilegia, quase exclusivamente, como preocupação principal, moldar o policial para um comportamento legalista, numa versão burocrático-militar com forte ênfase no “combate ao crime”; omite-se em sua preparação a multiplicidade de tarefas que é exercida no trabalho diário policial e que não se restringe apenas à solução de problemas estritamente legais ou penais. (Poncioni, 2006: 158)

Tal contradição acarreta prejuízos ao serviço prestado pelas polícias porque as ações “sociais” são inevitavelmente realizadas por agentes despreparados para tais fins e que não as concebem como apropriadas à sua função policial. Em razão da orientação recebida nas academias de polícia, as atividades que caracterizam o caráter assistencial do exercício policial são percebidas como depreciativas e distantes da função primordial de combate ao crime. Esse é um aspecto importante não apenas na constituição das delegacias de mulheres, mas, de acordo com Poncioni (2006), também observado em outras polícias do mundo.

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A despeito de tamanhas contradições, o recurso privilegiado dos mais pobres à polícia (Debert, 2006b; Poncioni, 2006) reflete a escassez de recursos dessa população para administração dos problemas mais diversos e a consequente importância adquirida pela polícia para responder às demandas desse segmento da população, configurando-se como espaço público por excelência para resolução de problemas aos quais a lei e as demais instituições sociais não respondem. Inquisidores, policiais e antropólogos Muito embora sejam atividades com grandes distinções, algumas aproximações entre a pesquisa antropológica e o exercício policial são analiticamente possíveis. Na verdade, não se trata de um exercício original, pois outros autores propuseram exercício semelhante ao relacionar analogamente o rito inquisitorial – princípio da investigação policial e da lógica judicial brasileira – ao rito da pesquisa científica. Segundo Ana Paula Miranda (2001: 92), o primeiro a apresentar tal proposta foi o antropólogo Renato Rosaldo (1986); porém, foi o artigo do historiador Carlo Ginzburg (1989) que adquiriu maior notoriedade. A proposta de Ginzburg (1989) parte da comparação entre atas dos tribunais eclesiásticos e textos antropológicos como os de E.E. Evans-Pritchard para afirmar que inquisidores, antropólogos e historiadores procuram coisas semelhantes através de métodos e finalidades diferentes: é aqui que a analogia entre inquisidores e antropólogos (e historiadores também) se revela ambígua nas suas implicações. O que os juízes da Inquisição tentavam extorquir às suas vítimas não é, afinal, tão diferente daquilo que procuramos – diferentes eram sim os meios que usavam e os fins que tinham em vista. (Ginzburg, 1989: 206)

Ao observar a sequência de perguntas e respostas típicas dos interrogatórios inquisitoriais e das entrevistas dirigidas por pesquisadores – antropólogos ou historiadores – o autor reconhece nova semelhança e enfatiza a estrutura dialogal presente em ambas, muito embora ressalve que conflito e desigualdade são componentes desse diálogo nos dois casos. Finalmente, ao refletir a respeito dos escritos de inquisidores sobre bruxaria e de Evans-Pritchard sobre a religião

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nuer, conclui que o esforço em traduzir e interpretar crenças desconhecidas faz parte das verdades construídas por inquisidores, antropólogos e historiadores. Miranda (2001) discorda das semelhanças identificadas por Ginzburg, propõe relacionar o inquisidor à confissão e o antropólogo à confidência e ressalta o aspecto compulsório da primeira relação e o espontâneo da segunda. Para a autora, a perspectiva dialogal pressupõe igualdade de direitos e condições equitativas de falar e ouvir, ausentes no interrogatório inquisitorial. Muito embora pertinente, sua crítica é limitada, afinal, à espontaneidade e à equidade atribuídas pela autora à pesquisa antropológica, que também devem ser questionadas e problematizadas. Inspirada pelo debate suscitado nas reflexões de Ginzburg e Miranda, inventariei alguns aspectos característicos dos fazeres policial e antropológico no intuito de identificar aproximações e distanciamentos entre eles. Para isso, detive-me no tipo de relação estabelecida entre os sujeitos envolvidos na delegacia e no encontro etnográfico, considerando a relação construída entre usuárias da delegacia e policiais e entre sujeitos pesquisados e pesquisadores. A primeira diferenciação diz respeito à abordagem, no primeiro caso de iniciativa das usuárias: são elas que interpelam o policial para comunicar um fato – criminoso ou não – e exigir providências. Na abordagem antropológica, a iniciativa é do pesquisador, que previamente escolhe seus “informantes”, o repertório do diálogo entre eles e os convence ou não a participar da pesquisa. O tipo de abordagem denota a relação estabelecida entre os sujeitos, no primeiro caso de prestação de serviços e no segundo de colaboração ou adesão. O tipo de relação estabelecida é fundamental para distinguir a finalidade do conhecimento produzido pela antropologia, que não está compromissada com a composição da culpa – como a atividade policial –, muito embora também angarie provas para justificar seus argumentos. Com base nas narrativas oferecidas por usuárias e “informantes”, policiais e antropólogos constroem suas verdades e confeccionam suas próprias narrativas, convertendo-as em processos criminais ou relatos etnográficos, conforme as normas jurídicas ou científicas vigentes. Nos dois casos, os fatos em sua real dimensão são recortados, delimitados segundo critérios diversos e traduzidos em linguagem apropriada para cada um dos campos nos quais estão inseridos. Nesses contextos, além das narrativas policial e antropológica, outras narrativas estão em jogo e tanto a usuária da delegacia quanto o

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sujeito pesquisado escolhe de acordo com interesses diversos o que policial e pesquisador devem conhecer. Em face de tais considerações, minha formação policial não foi omitida ou depreciada, mas valorizada como forma privilegiada de aproximação com mecanismos distintos de construção de verdades e intervenção social no intuito de enriquecer a pesquisa. Não obstante, a interpretação antropológica foi privilegiada a fim de compreender os conflitos e sujeitos estudados em sua complexidade. Implicações do multipertencimento profissional A confluência entre a pesquisa acadêmica e a atividade policial repercutiu na pesquisa desenvolvida durante o mestrado sob vários aspectos que pretendo discutir. O primeiro diz respeito ao multipertencimento profissional, expressão à qual atribuo acepção idêntica à empregada por Gilberto Velho (2003b). Por multipertencimento o autor designou a diversificação de experiências vivenciadas simultaneamente pelos indivíduos em diferentes âmbitos da vida nas sociedades contemporâneas, assinalando tanto o trânsito entre diferentes domínios como a diversidade de papéis sociais desempenhados em cada um deles (Velho, 2003b: 42). Ao classificar minha condição como multipertencimento profissional, refiro-me a minha participação em diferentes âmbitos sociais, particularmente no que tange à condição de antropóloga e policial. Reflexão semelhante foi desenvolvida por Victória Santos (2006), psicóloga policial, antropóloga e militante feminista. Nesse caso, a autora adotou o termo multiengajamento para designar os vínculos com a polícia civil, o programa de pós-graduação e o movimento de mulheres. O diálogo da autora com a definição de Velho é notório, mas a ênfase atribuída à expressão engajamento denota sua adesão política ao movimento de mulheres. No entanto, o cerne de ambas expressões designa a mesma experiência de múltipla participação, pertencimento ou engajamento profissional, acadêmico e/ou militante em diferentes âmbitos sociais. Preservo a expressão multipertencimento para assinalar o duplo vínculo com academia e polícia e refletir sobre suas implicações para a pesquisa antropológica, cujos pressupostos exigiram a transformação da condição de policial à de pesquisadora. A esse processo relaciono a analogia feita por Da Matta (1981) entre a iniciação no trabalho de campo na pesquisa antropológica e os ritos de passagem,

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tal como analisados por Arnold Van Gennep (1978) e Victor Turner (1974), para os quais tais ritos atuam como mecanismos de inteligibilidade das mudanças vivenciadas pelos grupos sociais e também pelos indivíduos. Segundo o argumento de Da Matta a respeito dessa passagem como marco do trabalho de campo na antropologia, “o trabalho de campo, como os ritos de passagem, implica pois na possibilidade de redescobrir novas formas de relacionamento social por meio de uma socialização controlada” (Da Matta, 1981: 152). Foi justamente no intuito de estabelecer tal socialização controlada no processo da pesquisa de campo na delegacia de mulheres que adotei uma série de procedimentos. Em razão dos estudos de pós-graduação, afastei-me do exercício policial e retornei à delegacia um ano depois para realização de pesquisa de campo. Meu retorno marcou nitidamente a passagem de um status a outro, manifesta inclusive na mudança do tratamento recebido dos funcionários da delegacia. Para os antigos pares hierárquicos – conhecedores de meu vínculo institucional – eu não era mais uma “colega de serviço”, muito embora não fosse uma pesquisadora “como as outras”. Evidentemente, a transição não aconteceu sem conflitos e foi observável apenas analiticamente; empiricamente ela não foi definitiva, mas construída cotidianamente no campo, onde o processo de conversão antropológica é incessante. Nesse caso, é demasiado oportuna a assertiva de Victória Santos (2001), para quem o “trabalho de campo pode ser visto como uma experiência subjetiva que faz da busca do outro um encontro consigo mesmo, (...) e esta interação permite reflexões novas e interdiscursivas” (Santos, 2001: 131). No processo de conversão, pude descortinar e criticar muitos dos procedimentos executados por mim mesma diversas vezes durante o exercício policial. Por tais motivos, ao ponderar minha condição de dentro e almejar a construção de um olhar distanciado, adotei alguns procedimentos com a finalidade de comprometer o menos possível os resultados da pesquisa e a utilização das informações policiais, pois o acesso privilegiado às informações de instituições e grupos com os quais existe um vínculo anterior exige prudência maior na utilização de dados conhecidos antes mesmo da pesquisa. Como não existe na cidade de Manaus outra delegacia de mulheres, decidi desenvolver o levantamento estatístico dos casos de meu interesse nos arquivos da unidade. Embora outras formas de identificação fossem possíveis – consulta a prontuários médicos do

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Sistema Único de Saúde (SUS) ou a processos judiciais das varas criminais, coleta de informações em associações de bairro ou grupos de proteção a mulheres –, o ingresso facilitado às dependências e o acesso irrestrito aos arquivos da delegacia de mulheres foram fatores decisivos para elegê-los como ponto de partida da pesquisa. Ademais, considerei importante utilizar documentos nos quais os mesmos critérios de classificação penal fossem empregados. Durante a pesquisa na delegacia, restringi as visitas aos dias de serviço de equipes plantonistas com as quais não tinha familiaridade. Na ocasião, dediquei-me à consulta de arquivos, à realização de entrevistas com funcionários e à observação do caminho percorrido pelas usuárias da delegacia da confecção do registro de ocorrência até a execução dos procedimentos de apuração criminal. Com o mesmo intuito, considerei o segundo ano de mestrado mais apropriado para a realização das entrevistas. Quando as condições permitiram, selecionei mulheres que não conheci durante o exercício policial. A despeito desses esforços, muitas das informações do período de participação observante na delegacia ficaram presentes em minha narrativa, pois são marcas de minha trajetória e não pude, nem pretendi, apagá-las. Haja vista que cada vez mais antropólogos se deparam com o multipertencimento e não raras vezes dediquem-se ao estudo de instituições e grupos dos quais participam, as condições de produção da pesquisa não devem ser eclipsadas, mas problematizadas a fim de que uma reflexão apurada sobre as exigências da proximidade e do estranhamento com nossos objetos de pesquisa seja construída. A alteridade não é uma questão resolvida de antemão, o antropólogo se transforma no campo em um contínuo exercício de sair de si e não se projetar nas narrativas construídas sobre os outros. Nesse sentido, pois, a alteridade é uma construção, uma possibilidade, e não um dado. A construção do lugar do outro na pesquisa A construção de alteridades implica na dinâmica de estabelecimento de diferenças entre eu e o outro. Segundo a proposta antropológica, reconhecer e acirrar tais diferenças são exigências para construção do distanciamento; portanto, a relação construída no encontro etnográfico se fundamenta no pressuposto da diferença, isto é, os sujeitos envolvidos no campo são a priori distintos entre si e o trabalho de campo é construído com tal prerrogativa. Iracema Dul-

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ley (2008) sugere que esse processo de construção de diferenças e alteridades é produzido performaticamente segundo uma perspectiva relacional. Sua análise, referente ao contexto de missionação em Angola e às relações entre missionários e evangelizandos, é também adequada para pensar as relações construídas entre pesquisadores e pesquisados no encontro etnográfico como um arranjo resultante das representações que uns têm dos outros: a pactuação de códigos realizada pelos diversos agentes ao se depararem com a alteridade é performática, no sentido de que é a partir da representação que se tem de outrem e da ideia que se faz da representação que esse outrem tem de si que se age de determinada maneira (Dulley, 2008: 137).

Nesse sentido, a construção do lugar do “outro” na pesquisa antropológica não depende exclusivamente do arsenal teóricometodológico empregado pelo pesquisador, mas do modo como a relação entre antropólogos e “nativos” é estabelecida no encontro etnográfico. Esse processo implica, pois, a participação de ambos e a representação de uns sobre os outros, tal como asseverado pela autora em tela. Uma de minhas maiores inquietações ao iniciar a pesquisa de campo na delegacia de mulheres estava relacionada às estratégias empregadas para reaproximar-me da instituição onde trabalhara e solicitar autorização para consulta aos arquivos e documentos que eu mesma ajudara a produzir. Em decorrência da relação amigável estabelecida com a instituição, presumi que o acesso a funcionários e documentos não seria um obstáculo à realização da pesquisa. A “facilidade” e o “privilégio” no acesso às informações provocaram-me grande incômodo e me conduziram a opções metodológicas através das quais percebi muito dos limites e possibilidades de minha experiência no campo. A despeito de todas as precauções adotadas, da triagem dos dias de observação, da escolha das equipes de trabalho, enfim, não obstante todos os cuidados para estabelecer a distância necessária e não mais ser identificada como policial, minha trajetória e escolha de pesquisa me constituíram uma pesquisadora “da casa”, “diferente das outras” e, muito embora eu me imbuísse de um novo status, minha identidade policial seria “revelada” em episódios como este, registrado em meu caderno de campo:

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Hoje, pela manhã, ao chegar à delegacia de mulheres para mais um dia de observação, estava sentada em uma das mesas da recepção enquanto aguardava ser recebida pela delegada. Fui interpelada por uma usuária que procurava explicações sobre como fazer uma denúncia na delegacia de mulheres. Antes de solicitar a informação de que necessitava, porém, a senhora indagou-me se eu era policial. Sua pergunta surpreendeu-me, mas sem hesitar, respondi-lhe negativamente e encaminhei-a a uma policial plantonista para que fosse atendida. Minha negativa, no entanto, causou-lhe desconfiança porque não era a primeira vez que aquela senhora utilizava os serviços da delegacia e me reconhecera de outra ocasião, muito embora eu não me recordasse dela. Depois de obter a informação desejada, ela retornou à fila de espera e eu pude escutar seu diálogo com outras mulheres que aguardavam atendimento: “Você já veio aqui antes? Aquela moça não é policial? É sim, eu já vim aqui outras vezes e ela me atendeu!” (Diário de Campo)

Dentre tantos cuidados, eu negligenciara justamente a dinâmica relacional do encontro estabelecido com os “outros” de minha pesquisa, principalmente as mulheres vítimas de violência de quem eu também me reaproximara no percurso da investigação. Todas as minhas precauções estavam exclusivamente relacionadas à minha proximidade com a rotina policial e os funcionários dessa instituição. Eu imaginara que tais precauções fossem suficientes para dirimir os limites da familiaridade com meu objeto de estudo. Foi somente depois do episódio narrado acima que pude perceber como a problemática da alteridade se apresentava com maior ênfase durante a pesquisa na delegacia de mulheres justamente porque naquele espaço eu me reconhecia em alguns dos “outros” de minha pesquisa, os policiais. Naquele contexto, o lugar dos “outros” era, em determinada medida, também o meu lugar. Entretanto, em relação às mulheres entrevistadas na segunda parte da pesquisa de campo, a diferenciação com o outro “outro” parecia mais “naturalizada”. Em relação às mulheres, eu não havia colocado o mesmo problema e tampouco planejado adotar tamanhos cuidados porque não me identificava com tais sujeitos. Essa constatação, sugerida no processo de construção do estranhamento na delegacia, ajudou-me inclusive a desconstruir a categoria mulheres vítimas de violência empregada para designar o grupo estudado e

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asseverar os caracteres que distinguia as mulheres de meu estudo. Nesse sentido, passei a reconhecer essa categoria como um recorte teórico-metodológico que reduz a experiência e a trajetória dos “outros” de minha pesquisa à vivência da violência sem, evidentemente, considerá-las como mulheres que se constituem, definem e identificam somente a partir da experiência das relações violentas que vivenciaram. Por não partilhar da condição de mulher agredida, eu não percebia qualquer proximidade com as mulheres por mim categorizadas como vítimas de lesão corporal ou estigmatizadas. Demorei a perceber também nesta relação a exigência de construir mecanismos de estranhamento e distanciamento com a mesma clareza com que percebi isso em relação aos policiais e à rotina da delegacia; portanto, ignorava que a diferença radical construída em relação aos outros “outros” da pesquisa também deveria ser desnaturalizada. No processo de construção do lugar dos “outros” na pesquisa, isto é, ao forjar o estranhamento e o distanciamento com policiais e mulheres vítimas de violência, acirrei diferenças, estabeleci aproximações e distanciamentos e pude observar com outras lentes aquele mundo que me parecia tão próximo, rotineiro, desnudo e simples. Essa tarefa, desempenhada com limites, alcançou êxitos porque descobri coisas surpreendentes a respeito daquele universo e chego à conclusão de que a construção das alteridades exige um trabalho contínuo de recorte e produção, a despeito do contexto onde se realize. De tal modo, todos nós antropólogos – policiais ou não – deparamo-nos com a necessidade de construir o lugar do "outro" em qualquer campo da pesquisa antropológica, onde quer que se situe nosso objeto de investigação, mais próximo ou mais distante de nossos universos simbólicos ou geográficos. Ao acirrar diferenças, dicotomizar e controlar as relações engendradas na pesquisa, construímos o lugar do outro e, sobretudo, o nosso. Referências bibliográficas AMAZONAS (Estado). Decreto nº 10.347 de 07 de julho de 1987. Cria na estrutura da Secretaria de Estado de Segurança a Delegacia de Crimes contra a Mulher e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Amazonas, Poder Executivo, Manaus, AM, 07 de jullho de 1987, p. 04.

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ETNOGRAFIAS DA ARTE

Um picadeiro na Praça Roosevelt – Os Parlapatões, Patifes e Paspalhões

Cauê Kruger

Ecos do Riso George Minois, em uma de suas passagens mais bem-humoradas de História do Riso e do Escárnio, afirmou: “o riso é um caso muito sério para ser deixado para os cômicos. É por isso que, desde Aristóteles, hordas de filósofos, de historiadores, de psicólogos, de sociólogos e de médicos, que não são nada bobos, encarregam-se do assunto” (Minois, 2003:15). Para além da obra de fôlego de Minois, que se pretende um compêndio da produção teórica e literária sobre a comédia da Antiguidade até o século XX, diversas outras contribuições vêm dando maior foco ao riso como objeto de reflexão. É o caso do livro de Verena Alberti, O Riso e o risível (1999), uma densa e competente revisão acadêmica acerca da questão do riso e de seus objetos no pensamento ocidental. Após ressaltar a importância dos escritos de autores canônicos como Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Victor Hugo, Bergson e Freud, a autora afirma: O riso revelaria assim que o não normativo, o desvio e o indizível fazem parte da existência (...). O estatuto do riso como redentor do pensamento não poderia ser mais evidente. O riso e o cômico são literalmente indispensáveis para o conhecimento do mundo e para a apreensão da realidade plena. (Alberti, 2002:12)

Apesar da permanência e recorrência dos estudos canônicos, a contribuição já clássica de Bakhtin (1999) para o estudo do tema, com Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, ainda perma-

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nece a obra mais influente na área. Segundo o autor, a chave para a compreensão da cultura popular na Idade Média eram o riso, a festa e a comicidade medieval, ou, em outras palavras, o realismo grotesco, que teria no carnaval sua manifestação paradigmática. Este “mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época” (Bakhtin, 1999:6), e por meio destes fenômenos, podia-se acessar uma segunda vida do povo, que por meio dela penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância. O carnaval significava a abolição temporária das normas, hierarquias, etiqueta e padrões de conduta, e seus privilégios excepcionais de licença e impunidade acabavam por criar um tipo de comportamento e comunicação particulares que aboliam a distância entre os indivíduos. Porém, apesar destes princípios, centrais para que a cultura do riso tenha conquistado um radicalismo e uma liberdade excepcionais no período, é fundamental destacar que Bakhtin não subestimava a seriedade e seu efeito sobre o povo. Para o autor, “seria inexato crer que a desconfiança que o povo nutria pela seriedade e seu amor pelo riso (...) se revestiam sempre de um caráter crítico, consciente e deliberadamente oposicionista” (Bakhtin, 1999:82), uma vez que “os homens da Idade Média participavam igualmente da vida oficial e da carnavalesca” (Bakhtin, 1999:83). A liberdade oferecida pelo riso, em vez de ser vista sempre como crítica e oposicionista, poderia frequentemente ser só um luxo, permitido apenas em período de festa. De qualquer modo, para Bakhtin: Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam (...) uma visão de mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente (...), pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporções, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que, sem levá-la em consideração, não se poderia compreender nem a consciência cultural da Idade Média, nem a civilização renascentista. (Bakhtin, 1999:4-5)

As diversas festas medievais, rituais, imagens e temas populares eram os principais veiculadores da concepção de mundo baseada no

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princípio do “baixo material e corporal” vigente até o século XVI. Este princípio, também conhecido como realismo grotesco, caracteriza-se principalmente pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. (Bakhtin, 1999:10)

Naqueles contextos festivos da Idade Média, os fenômenos cômicos e carnavalescos concentrariam três características principais: a festividade contagiante; o caráter universal e geral; a ambivalência. Bakhtin demonstra que a relação entre o “alto” e o “baixo” revestia-se de um sentido absoluta e rigorosamente topográfico, pois os diversos procedimentos de rebaixamento do realismo grotesco veiculavam um princípio de absorção ambivalente, relacionado com o nascimento e a ressurreição: O realismo grotesco e a paródia medieval baseiam-se nessas significações absolutas. Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dáse a vida em seguida, mais e melhor. Degradar significa entrar em comunhão com a parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem apenas um valor destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. Precipita-se não apenas para o baixo, para o nada, a destruição absoluta, mas também para o baixo produtivo, no qual se realizam a concepção e o renascimento, e onde tudo cresce profusamente. Realismo grotesco não conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá vida, e o seio corporal; o baixo é sempre o começo. (Bakhtin, 1999:18-19)

Percebe-se que Bakhtin propõe uma teoria do riso visando “compreender a lógica original do cânon grotesco” (Bakhtin, 1999: 26), e sustenta que

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a tarefa dos historiadores e teóricos da literatura e da arte consiste em recompor esse cânon, em estabelecer seu sentido autêntico. É inadmissível interpretá-lo segundo o ponto de vista das regras modernas (...); o cânon grotesco deve ser julgado dentro de seu próprio sistema. (idem, ibidem)

Entretanto, ao invés de sua perspectiva contextual e compreensiva, diversas apropriações dos escritos de Bakhtin têm enfatizado excessivamente sua separação e distanciamento da esfera oficial e seu potencial crítico e libertário. Em O Paradoxo do Coringa, Luis Felipe Baêta Neves sintetiza esta supervalorização, dedicando-se a empreender uma crítica à “ideologia da seriedade”: A tarefa promissora a que uma antiideologia da seriedade deveria se propor seria a de procurar definir um conceito do cômico como uma totalidade em que fosse considerada a comicidade como uma forma específica de conhecimento do social e, ainda mais, como uma forma renegada e estigmatizada de leitura crítica da opressão (Neves, 1979: 49).

Essa tensão entre o mundo oficial e o popular pode também ser identificada ao longo da história da literatura antropológica no que se refere aos estudos acerca do ritual, conforme veremos na próxima seção. Ecos do rito Desde as obras de James Frazer, Émile Durkheim, passando pelas contribuições de Van Gennep, Radcliffe-Brown e Max Gluckman (1966), entre outros, a teoria do ritual que ressaltava a separação entre o sagrado e o profano, o religioso e o secular, o cotidiano e o extracotidiano foi gradualmente se afirmando. Contudo, Victor Turner, ligado ao Rhodes-Livingstone Institute e sob a orientação de Max Gluckman, foi responsável por uma efervescência fundamental nos debates teóricos acerca da análise antropológica dos rituais. Em seu estudo Schism and Continuity in an African Society (1957), sobre a estrutura de parentesco em uma sociedade africana, Turner desenvolveu seu conceito de drama social de modo a questionar os modelos estáticos de sistemas sociais vigentes nas análises antropológicas de seu período, que acabavam

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por colocar a mudança e as inovações como algo não pertencente ao sistema social. Partindo da concepção narrativa e temporal do teatro grego e influenciado pela obra de Van Gennep acerca do processo ritual (1978), Turner compreende os dramas sociais, fundamentalmente, como situações de confronto e conflito dotadas de qualidades performáticas e com particular visibilidade e projeção. Tais formas de confronto e conflito podem ser observadas através de uma sucessão de etapas relativas ao seu desenvolvimento: a primeira fase, de sua aparição, faz com que uma “brecha” se apresente, por exemplo, a partir de uma obrigação transgredida, uma interdição ignorada, uma estrutura de status ou honra ameaçada. Essa situação ganha amplitude, chegando ao segundo estado, chamado “crise”, em que se torna explícita e não mais pode ser tolerada. A terceira fase desse processo chama-se “ação compensatória” e possui qualidades performativas e reflexivas intensas, pois diversos mecanismos de compensação e reparo, que vão desde repreensões de uma autoridade, passando por rituais de diversos tipos, performances teatrais ou julgamentos, podem ser ativados. A fase final pode tanto restabelecer a ordem anterior através de processos de reintegração, quanto acabar consolidando um abismo irreparável que causará o fracionamento da comunidade e sua consequente separação. Percebemos então que Turner parte da ideia de liminaridade como um “momento” à parte da vida social, “extracotidiano”, “antiestrutural”, dotado de um simbolismo efervescente e de uma qualidade criativa única, que tende a desaparecer e a dar lugar novamente à dimensão “cotidiana” regida pelas normas sociais. A liminaridade é caracterizada, então, pela suspensão dos constrangimentos, coerções, papéis e deveres da vida social habitual, significando a liberação cognitiva, afetiva, volitiva e criativa dos indivíduos normalmente submetidos à estrutura social normativa. Contudo, para Turner, diferentemente daqueles que concebiam o ritual como um mero processo de inversão, a liminaridade passa a ser o fenômeno mais importante das manifestações culturais. Fenômeno essencialmente ambíguo, ou seja, não classificado, não enquadrado, muitas vezes caótico, apresentando qualidades criativas muito particulares, possibilita formas mais livres de socialização e interação entre os participantes, pois os códigos normativos são deixados de lado e outros princípios podem emergir, mesmo que por um período de tempo e espaço específicos.

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O corajoso percurso acadêmico de Turner, do estrutural-funcionalismo à análise processual, através da qual pôde perceber a estabilidade e a mudança, a ação e o pensamento, o mito e o rito como fazendo parte de um processo, foi fundamental para impulsionar o estudo de variados fenômenos performáticos. Muito influenciado pelos escritos de Wilhelm Dilthey, Turner não deixava de valorizar uma perspectiva de compreensão sócio-cultural das manifestações expressivas, com atenção para o significado produzido localmente e sua dinâmica. Exemplo disto é sua proposta de inaugurar a área da “simbologia comparada”, que estaria “envolvida nas relações entre símbolos e conceitos, sentimentos, valores, noções, etc. associadas pelos usuários, intérpretes ou exegetas: em síntese, possui dimensões semânticas, com referência ao significado na linguagem e contexto” (Turner, 1982:21). Para especificar sua postura metodológica, Turner invoca a perspectiva de Erving Goffman: se para este “o mundo é um palco”, para Turner “(...) o drama social é um tipo de metateatro, isto é, uma linguagem dramatúrgica sobre a linguagem do desempenho de papéis sociais e da manutenção do status, que constitui a comunicação no processo social cotidiano” (Turner, 1987:75-6). O drama social apareceria então como o ponto central das análises, pois permitiria destacar situações polêmicas, performances e conflitos, indicando a apreensão justa dos procedimentos da dinâmica social. Entretanto, ao analisar o teatro, Turner buscará derivá-lo não da imitação, seja ela consciente ou inconsciente, da forma processual (...) dos dramas sociais – quebra, crise, ação compensatória, reintegração ou cisma – (...) mas especificamente, da terceira fase, da ação compensatória, e especialmente da ação compensatória como processo ritual. (Bruner e Turner, 1986:41)

Com esta manobra, ao privilegiar uma fase de sua estrutura processual, Turner põe em risco sua perspectiva diacrônica, contextual e compreensiva, e acaba possibilitando utilizações simplistas de seu arcabouço teórico, que poderiam satisfazer-se com a mera aplicação das etapas da estrutura ritual aos mais variados fenômenos simbólicos. Edward Bruner, em The Anthropology of Experience, editado logo após o falecimento de Turner, procura destacar, coerentemente,

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a dimensão da experiência e sua relação complexa com o estudo dos fenômenos expressivos: Existem vãos inevitáveis entre a realidade, a experiência e a expressão, e a tensão entre eles constitui uma problemática chave na antropologia da experiência. Nesta perspectiva, uma expressão nunca é um texto isolado e estático. Ao contrário, ela envolve uma atividade processual, uma forma de verbo, uma atividade enraizada numa situação social, com pessoas reais em uma cultura particular e em uma era histórica dada. (...) Um ritual tem de ser encenado, um mito recitado, uma narrativa contada, um romance lido, uma peça performatizada, e estas encenações, recitações, declamações, leituras e performances são o que faz o texto transformativo e nos capacitam a re-experienciar nosso legado cultural. Expressões são constitutivas e moduladoras, não como textos abstratos, mas na atividade que atualiza o texto. É neste sentido que os textos têm de ser performatizados para serem experienciados, e o que é constitutivo está na produção. Nós lidamos com textos performatizados, reconhecendo que a antropologia da performance é uma parte da antropologia da experiência. Como expressões ou textos performatizados, unidades estruturadas da experiência tal como histórias ou dramas é que as unidades de significado são socialmente construídas. (Bruner e Turner, 1986:7)

Se por um lado o autor destaca adequadamente a necessidade da análise processual, chamando a atenção para o processo dinâmico e cultural da construção do significado das expressões em seu contexto, por outro, argumenta: A vantagem de começar o estudo da cultura através das experiências é que as unidades básicas de análise são estabelecidas pelas pessoas que estudamos e não pelos antropólogos como observadores externos. Ao ter em foco as narrativas, dramas, carnaval, ou quaisquer outras expressões, nós deixamos a definição da unidade de investigação às pessoas ao invés de impor categorias derivadas dos nossos padrões teóricos sempre em mutação. Expressões são as articulações, representações e formulações das pessoas sobre sua própria experiência. (...) O processo interpretativo, entretanto, opera sempre em dois níveis: as pessoas que

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estudamos interpretam as suas experiências de formas expressivas e nós, por nossa vez, interpretamos através do nosso trabalho de campo essas expressões para uma audiência doméstica de outros antropólogos. Nossa produção antropológica nada mais é do que nossas histórias sobre as histórias deles, nós interpretamos as pessoas como eles estão se auto-interpretando. (Bruner e Turner, 1986:9-10)

Se Turner conferiu anteriormente atenção excessiva à fase da ação compensatória dos dramas sociais na análise do teatro, aqui, Bruner defende a aceitação irrefletida de um “recorte nativo” dos fenômenos performáticos, o que acaba por acarretar prejuízos para a adequada análise antropológica, sendo o sintoma mais comum a descontextualização da análise. Um dos autores que mais atenção chamou para esta questão foi Pierre Bourdieu. Em As Regras da Arte, Bourdieu argumenta que os filósofos, linguistas, semiólogos e historiadores, apesar de divergências evidentes sobre a especificidade da obra de arte, concordam em atribuir à definição de arte propriedades tais como a gratuidade, a ausência de função (ou o primado da forma sobre esta), o desinteresse, etc. Para o autor, um exemplo típico deste processo de “dupla des-historicização, tanto da obra, quanto do olhar sobre a obra” (Bourdieu, 2005:319) é a definição que Bourdieu traz de Harold Osbourne, de que a atitude estética caracteriza-se pela concentração da atenção (separa – frames apart – o objeto percebido de seu entorno), pela suspensão das atividades discursivas e analíticas (ignora o contexto sociológico e histórico), pelo desinteresse e o desprendimento (afasta as preocupações passadas e futuras) e, enfim, pela indiferença à existência do objeto. (Bourdieu, 2005:319)

Bourdieu discorda amplamente dessas perspectivas, por tomarem a experiência subjetiva da obra como aquela de seu autor. Sem perceber a historicidade dessa experiência e do objeto artístico, “operam, sem o saber, uma universalização do caso particular (...) em norma transhistórica de toda percepção artística” (Bourdieu, 2005:320). Segundo o teórico, tais perspectivas não tratam das condições históricas e sociais da possibilidade da experiência artística, nem das condições de produção, reprodução e fabricação da disposição estética que exigem.

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Apesar de algumas teorias terem perspectivas distintas, como a de Panofsky, que define a arte como “o que exige ser percebido esteticamente” (Panofsky apud Bourdieu, 2005:321), ou ainda Arthur Danto, para quem a diferença entre a arte e o cotidiano não é mais que uma instituição, o “mundo artístico”, os autores dificilmente buscam compreender a arte em um duplo processo que trate da produção e reprodução juntamente com os processos de recepção necessários. Assim, para Bourdieu, a experiência da obra de arte como dotada de sentido e valor seria um efeito da relação entre as duas esferas da mesma instituição histórica: “o habitus cultivado e o campo artístico, que se fundam mutuamente: sendo que a obra de arte só existe enquanto tal (...) se é apreendida por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas que ela exige tacitamente”. (Bourdieu, 2005:323) Portanto, a verdadeira ciência das obras de arte deveria: descrever a emergência progressiva do conjunto de mecanismos sociais que tornam possível a personagem do artista como produtor desse fetiche que é a obra de arte; isto é, a constituição do campo artístico (na qual os analistas e os próprios historiadores da arte estão incluídos) como lugar onde se produz e se reproduz continuamente a crença no valor da arte e no poder de criação de valor que pertence ao artista. (Bourdieu, 2005:326)

Esses marcos teóricos e metodológicos traduzem a tensão entre a análise antropológica e a pesquisa etnográfica que desenvolvi na cidade de São Paulo, em que acompanhei o trabalho do grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões entre os anos de 2006 e 2007 e que resultou em minha dissertação de mestrado. A proposta desse estudo foi, no início, diretamente influenciada pela crítica da “ideologia da seriedade”, de modo que propunha buscar compreender a dimensão crítica, reflexiva e política da forma de atuação dos Parlapatões, bem como pela antropologia da performance, que me permitia enfatizar a dimensão simbólica de suas encenações. Contudo, a literatura acadêmica e a experiência etnográfica acabaram por deslocar o foco central da discussão: a justa compreensão da especificidade do trabalho dos Parlapatões reivindicou necessariamente relacionar sua expressão estética1 com seu contexto, 1.  Por limitação de espaço, não poderemos dar aqui a devida atenção ao estudo das performances e peças dos Parlapatões, Patifes e Paspalhões. Para mais detalhes sobre estas, ver Krüger (2008).

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envolvendo não apenas o fenômeno cênico, mas também seus discursos, produtores, consumidores, concorrentes e a história de sua institucionalização. Como é de praxe nas experiências antropológicas, a pesquisa participante acabou por deslocar o olhar do pesquisador, fomentando uma viagem geográfica e histórica pelo teatro paulistano. Geográfica porque uma rede de sociabilidades com locus no centro de São Paulo, especificamente na Praça Roosevelt, logo se evidenciou, elucidando também princípios e visões de mundo comuns associados ao local, compreendido como um “circuito alternativo” voltado à “experimentação teatral”. Histórica porque a trajetória do grupo, suas performances e discursos (tanto dentro como fora do palco), bem como a promoção de eventos, permitiu-me perceber a construção, realizada pelos Parlapatões, de filiações, memórias e oposições frente a personalidades, grupos e conceitos relativos à história do teatro paulistano. Os Parlapatões, Patifes e Paspalhões: o riso entre o palco e o picadeiro Muitos são os grupos de amigos que, na juventude, iniciam experiências artísticas que têm a comicidade como característica principal. Mas poucos são aqueles que, partindo de apresentações de palhaço improvisadas nas ruas do centro de São Paulo, construíram uma trajetória de longa duração e de tamanha projeção no cenário teatral como os Parlapatões, a ponto de terem sido escolhidos para assumir uma sala na reinauguração do Teatro Brasileiro de Comédia2 em 1999, participarem do festival internacional de teatro de Edimburgo, na Escócia, em 2001, terem sido consagrados com indicações e prêmios de instâncias de consagração como o Prêmio Shell de Tea-

2.  O Teatro Brasileiro de Comédias (TBC) foi criado em São Paulo por Franco Zampari em 1948 e acabou por ofuscar as iniciativas teatrais desbravadas no Rio de Janeiro até então. Estabelecendo novos padrões de “apuro” das produções e interpretações e alavancando o teatro moderno nacional, o TBC foi responsável pela inserção de diversos encenadores estrangeiros no território nacional, pela consolidação da profissão teatral (até então malvista) e pelas primeiras reflexões sistemáticas acerca das teorias de interpretação, consolidando uma das maiores expressões do processo de modernização, urbanização e metropolização da cidade de São Paulo. Sobre o TBC, ver Prado (2007) e Pontes (2000 e 2008).

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tro e o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte3 para suas montagens4. Com sua formação reconstruída a partir das iniciativas de teatro de rua ocorridas em 1991, o grupo teve seu primeiro espetáculo de repercussão em 1993, em uma jornada de teatro promovida pelo SESC-SP, conseguindo inserir-se no circuito dos festivais teatrais nos anos seguintes, até ser convidado a dramatizar a trajetória do grande palhaço brasileiro Piolim em 1997. Sucesso de público e crítica, alavancou o convite seguinte, que se constituiu no maior trunfo de bilheteria e mídia do grupo: [email protected], que se propunha a tarefa irreverente de apresentar a obra compactada de Shakespeare em noventa minutos. Daí em diante até 2008, o grupo apresentou diversos espetáculos, todos com inserção em festivais, boa repercussão na mídia e público assíduo. No período em que iniciei a etnografia, a partir de setembro de 2006, o grupo administrava o espaço de seu escritório, mantinha seu último espetáculo em cartaz (o primeiro solo de seu principal expoente, Hugo Possolo), apresentava-se em um circo itinerante próprio, o único da América Latina sem mastro central, viabilizado pela Companhia de Concessões Rodoviárias (CCR), com a proposta de percorrer diversas cidades do sul, sudeste e centro-oeste do país e ainda inaugurava seu novo espaço5, com uma extensa programação de apresentações, debates, leituras dramáticas e pequenos festivais temáticos. 3.  A Associação Paulista de Críticos de Artes teve suas bases sedimentadas em 1951, adotando, em 1956, o nome de Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT). Em 1972 sofreu uma reestruturação, adotando seu nome atual e incorporando progressivamente os setores de Artes Visuais, Cinema, Literatura, Música Popular, Televisão, Dança, Música Erudita e Rádio. Desde 1956 premia anualmente as melhores produções artísticas e seu reconhecimento é altamente valorizado no contexto teatral. 4.  Os Parlapatões receberam os seguintes prêmios: Prêmio Estímulo da Secretaria Estadual da Cultura de São Paulo com Zerói em 1995; Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte em 1997 com a exposição Vamos Comer o Piolim; prêmio Coca-Cola de teatro jovem com a peça “De cá pra lá de lá pra cá”; Prêmio Shell de melhor cenografia para Não Escrevi Isto em 1998 e prêmio APETESP de melhor direção para Emílio Di Biasi pela peça [email protected] em 1999. 5.  O Espaço Parlapatões foi inaugurado em 11 de novembro de 2006, coincidência reapropriada pelo grupo, que, na performance de inauguração, saiu de seu teatro em direção à rua portando aviões infláveis, em uma dupla alusão ao atentado terrorista ao World Trade Center e à falência da companhia brasileira Varig. Este exemplo ilustra a busca de posturas políticas que o grupo sempre se esforçou por alcançar em suas performances.

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Contemplado pela Lei de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo (Lei 13.279/02) desde 2003, o grupo, mobilizando ainda um patrocínio da Petrobrás para o evento de abertura, conseguiu grande repercussão não apenas no meio teatral, mas também na mídia, gozando de ampla cobertura e divulgação. Uma grande quantidade de artistas de teatro e televisão estiveram presentes, com destaque para Marcelo Drummond, Jairo Mattos, Marcos Ricca, Rosi Campos, José Celso Martinez Correa, Mário Bortolotto e Sérgio Carvalho. Diversas outras “celebridades” acabavam por ficar quase anônimas, misturadas à multidão que permaneceu no local pela madrugada adentro. No folheto de lançamento do Espaço Parlapatões e do evento de inauguração, chamado “Projeto da Utopia”, pode-se ler: Nosso Sonho de Palhaços chega à Praça Roosevelt Há quinze anos participamos ativamente da vida cultural paulistana. Neste período, produzimos 27 espetáculos, além de participar de uma enorme quantidade de ações, eventos, entre espetáculos de rua, espaços não convencionais, organização de mostras, interferências cênicas e performances, publicações, palestras e debates, numa intensa relação de arte e cidadania. Hoje, damos um passo significativo ao estabelecer o Espaço Parlapatões na Praça Roosevelt, local que aos poucos se torna o eixo de uma produção diferenciada, com várias vertentes de linguagem, feita de forma contínua, produzida em grupo e tão significativa para a cidade de São Paulo. Somar-se a esse movimento é parte de um sonho que começou nas ruas do centro e que agora ganha abrigo para seguir em seus delírios utópicos.

Todas essas ações, que envolviam recursos financeiros de grande porte, público cativo, além de uma profissionalização e divisão de tarefas dentro do grupo, acabavam por contrastar, à primeira vista, com as principais características cênicas dos Parlapatões: o estilo cômico, a estética do escracho, a influência do teatro de rua, a improvisação e interatividade, além da escolha da figura do palhaço como elemento central de suas performances. Uma retrospectiva da trajetória do grupo, bem como um mapeamento das tendências e forças do campo teatral paulistano no contexto do surgimento e desenvolvimento dos Parlapatões, são fundamentais para compreender e explicar seu lugar social no teatro paulistano, seus discursos e tomadas de posição, dentro ou fora do palco.

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Os ovos do ornitorrinco Apesar de os Parlapatões definirem-se como palhaços, nenhum dos integrantes do grupo “nasceu” no picadeiro. Não é fruto do acaso que todos os Parlapatões – Hugo Possolo, Alexandre Roit, Raul Barreto e Jairo Mattos, Claudinei Brandão e Henrique Stroeter – chegaram ao circo através do teatro. Mesmo cometendo injustiças frente à inegável particularidade de cada trajetória, podemos estabelecer um padrão abstrato comum a todos os integrantes do grupo em formação: são jovens, do sexo masculino, de classe média, geralmente desprovidos de capital cultural ou formação teatral específica, que acabam respondendo a uma “tendência de valorização do circo” que eclodiu na capital paulista na década de 80 e que é fundamental esmiuçar. A emergência da linguagem circense nos palcos teatrais nacionais acompanhou o próprio desenvolvimento da expressão cênica nacional, como destacam Arêas (1990) e Silva (1996), principalmente com as formas de teatro ligeiro6, e ganhou força na década de 60 nas montagens do Arena, Opinião e Oficina7. Porém, as montagens de O Percevejo, por Luiz Antônio Martinez Corrêa, e principalmente Ubu, pholias physicas e pataphysicas, do grupo Teatro do Ornitorrinco8, dirigido por Cacá Rosset, na década de 80, constituíram-se como marcos, como influências fundamentais para a construção da linguagem teatral de diversos grupos, entre eles os Parlapatões. Este movimento foi possibilitado e acompanhado por um processo de instituição de escolas circenses em São Paulo. Segundo Eliene Costa (1999) e Castro (2005), a primeira tentativa de instalação de uma escola de circo no país data de 1967, quando se cogitou a construção do Circo Estadual de São Paulo. Em 1970, Waldemar Seyssel, o palhaço Arrelia, apresentou um projeto na Assembleia Le6.  Esta presença poderia ser reconstituída para destacar as filiações do circo com o teatro de revista brasileiro e demais gêneros “ligeiros”, que carregavam em seu estilo cênico grande influência popular. Sobre o assunto, ver Mencarelli (1999) e Veneziano (1991). 7.  Ainda que pesem as distinções de estilo, discurso e proposta, estas grandes matrizes do teatro nacional tiveram em comum a busca do nacional popular, seja a partir de esforços em prol de uma literatura dramática nacional, seja a partir da influência musical ou mesmo ao propor um resgate da “brasilianidade” no palco. Sobre o Arena e o Oficina, ver Campos (1988), Silva (1981), Ridenti (2000), Schwarz (2008) e Napolitano (1998; 2001). 8.  Sobre o Teatro do Ornitorrinco, ver Guinsburg e Silva (1992), Fernandes (2000), Costa (1999) e Raulino (2006).

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gislativa visando construir em São Paulo a única escola de circo da América do Sul, da qual seria professor e diretor. Mas apenas a partir de 1976, quando Miroel Silveira assumiu a Comissão de Circo, foi possível concretizar a Academia Piolim de Artes Circenses, a primeira escola de circo de São Paulo, criada em 1978 (Costa, 1999), que permaneceu em funcionamento até 19829. Contudo, após dois anos do fechamento da “Piolim”, a cidade já contaria com outra escola de circo: a Circo Escola Picadeiro, iniciativa de José Wilson Moura Leite que transformou seu empreendimento, o Circo Royal, em uma escola não profissionalizante com apoio da Secretaria Municipal. Esta instituição forneceu não apenas a técnica e a assistência necessárias, mas também grande parte do elenco que realizava as performances circenses no mencionado espetáculo Ubu. Se a proposta dessas instituições10 era “evitar a extinção da categoria circense”, é significativo que a maioria de seus alunos tenha sido proveniente das classes médias, basicamente jovens que procuravam um “entretenimento gratuito e diferente” (Costa, 1999: 1245) ou artistas de televisão, cinema e teatro, que tinham “a finalidade de aprender algumas modalidades para aplicar em trabalhos artísticos” (idem)11. Para além do capital espetacular de rápida aquisição que o circo possibilitava, parte da revalorização da linguagem circense se explica por duas formas distintas de apropriação: a primeira procurava resgatar uma expressão “tradicional” e popular; a segunda, oposta, pregava uma linha “alternativa” e “contemporânea”. Dessa forma, a   9.  Mesmo com parcas verbas e em local inadequado, os professores chegaram a ensinar, em uma quadra do Estádio do Pacaembu, acrobacia, equilibrismo, trapézio, magia e outras modalidades a cerca de 700 alunos em menos de um ano. Apesar de os dirigentes terem conseguido, posteriormente, a transferência da Academia para o pavilhão de circos do Anhembi (local muito mais apropriado), a falta de verbas mínimas fez com que a iniciativa se encerrasse. 10.  Além da Piolim e da Picadeiro, fundamentais para nosso trabalho, devemos destacar que no Rio de Janeiro, Luis Olimecha funda a Escola Nacional de Circo em 1982, visando impedir a “extinção da categoria”, que, por formar artistas de circo e reciclar profissionais, revela-se uma instituição pública de grande importância e referência no panorama circense do país. Também Salvador passa a ter uma escola de circo quando, em 1985, Verônica Tamaoki e Anselmo Serrat, ex-alunos da Piolim, fundam a Escola Picolino de Artes do Circo, buscando orientar crianças de rua através das artes circenses. 11.  Em entrevista ao autor concedida em setembro de 2007, Alexandre Roit, um dos fundadores dos Parlapatões, destaca: “Para mim, mais revelador do que ter visto o Ubu, foi ter entrado no Circo-Escola [Picadeiro] e ver que todo mundo de teatro estava lá”.

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expressão cênica poderia ser performatizada como um ideal milenar, ícone de saber popular, que por sua tradicionalidade, itinerância e “precariedade”12 veiculava uma noção de oposição à modernidade, ou como um caminho fértil para a performance, devido a suas características espetaculares e sua tendência antiilusionista. Exemplo da primeira tendência é a obra de Soffredini, que em suas encenações com o grupo de teatro Mambembe explorou abertamente a técnica da triangulação, em que os atores interagiam por intermédio da plateia, bem como o Ventoforte, o grupo mineiro Galpão e algumas produções de Gabriel Vilella. A segunda tendência tem em Ubu Rei, texto de Alfred Jarry encenado pelo grupo Ornitorrinco, seu principal representante, e vale-se das características feéricas dessa expressão tradicional, dotando-a de caracteres diferenciais atualizados. Para compreender adequadamente esta dimensão “moderna” associada ao circo, é fundamental destacar a influência do movimento do Novo Circo, que tem no Cirque Du Soleil seu principal representante, bem como a herança dos movimentos da performance art13, que aparecem no panorama teatral paulistano no período. Este movimento de revitalização do circo tem repercussões mundiais, como ilustra a formação e explosão do Cirque du Soleil, que se constituiu como a principal referência do estilo. Mário Bolognesi, um dos maiores estudiosos do país sobre o tema, em um artigo crítico sobre o movimento, afirma que o Novo Circo se caracteriza pela abdicação da narrativa épica, a extinção do picadeiro e do apresentador e os fortes investimentos nos aspectos cênicos, coreográficos e dramáticos (Bolognesi, 2006). Porém, é interessante destacar que, mesmo em sua vertente mais “visual” e próxima da performance art, a expressão circense no palco foi também associada ao processo de crítica ao teatro “convencional” representado pelo palco italiano, centralidade do texto dramático e orientação interpretativa de influência stanislavskiana14, 12.  Ver Silva (1996), Magnani (1998) e Bolognesi (2003). 13.  A performance art é um gênero cênico com influência do surrealismo e dadaísmo, muito relacionado com o movimento do happening que o antecedeu. Trata-se de uma expressão cênica menos convencionalizada e mais radical, em que os elementos teatrais são estendidos ao máximo (o texto pode ser suprimido, o tempo prolongado, o espaço reconfigurado, etc.). Sobre o tema, ver Cohen (2002), Carlson (1996) e Glusberg (2003). 14.  Esta forma de interpretação, também chamada de naturalista, tem em Constantin Stanislavski seu principal formulador teórico. As preocupações do diretor russo

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associado, ao menos desde o teatro engajado da década de 1960, à burguesia e ao conservadorismo15. O circo apresentava uma forma de atuação distinta dos procedimentos tradicionais de interpretação, que valorizava o performer, a dimensão visual, e permitia a utilização de técnicas de ilusionismo e amusement centradas nas evoluções tecnológicas (Cohen, 2002). É nesse contexto que não apenas o grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões tem origem, mas também o XPTO, o Acrobático Fratelli, a Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes, a Nau de Ícaros, a Intrépida Troupe, a Doutores da Alegria e outros16. Pode-se, então, afirmar que os Parlapatões, no início de sua atuação, partiram de princípios comuns a toda uma gama de grupos interessados em desempenhar um “teatro crítico” do status quo, distinto do “comercial”, veiculando o circo como ícone associado a uma expressão popular. Porém, os Parlapatões passaram a distinguir-se dos demais por uma série de escolhas e tomadas de posição dentro e fora do palco, ao longo da trajetória do grupo. Nariz vermelho: tradicional ou alternativo? O começo da atuação dos Parlapatões foi marcado pelo esforço para descolar a imagem do recém-formado grupo das montagens infantis iniciais. As primeiras experiências cênicas, estimuladas pelos membros fundadores do grupo e alguns convidados, tiveram a rua como palco e basearam-se em números de palhaço aprendidos no Circo-Escola Picadeiro. Da escolha e desenvolvimento de alguns desses quadros experimentados na rua derivaram seus primeiros espetáculos, que visavam a um circuito alternativo. visavam erradicar as tradicionais atuações declamatórias e baseadas em clichês, que deveriam ser substituídas por expressões mais “verdadeiras”, orientadas por seu método das ações físicas, que propunha ao ator um extenso treinamento corporal e emocional. Sobre as grandes tendências de interpretação, o processo histórico de hegemonia do palco italiano e as críticas ao modelo naturalista, ver Roubine (1989). 15.  Esta classificação das produções teatrais da época foi influenciada diretamente pela teoria cênica de Bertolt Brecht e de outros teóricos marxistas que influenciaram direta ou indiretamente as produções do Teatro de Arena, Centro Popular de Cultura e Teatro Oficina. Sobre o assunto, ver, entre outros, Schwarz (2008), Hollanda (1980), Napolitano (1998; 2001) e Ridenti (2000). 16.  A estes se somarão os grupos Jogando no Quintal, La Mínima, Linhas Aéreas, Farândola Troupe, Circo Zanni, Na Makaka, entre vários outros que compõem de fato um campo teatral profissional desta expressão.

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A grande visibilidade ocorreu em 1993 com a vitória da Jornada SESC de Teatro, o que possibilitou seu primeiro patrocínio, para o espetáculo Sardanapalo. Tratava-se de uma narrativa paródica da vida e dos feitos de Alexandre, o Grande, que dava amplo destaque para a suposta crise existencial proveniente da tomada de consciência, pelo protagonista, de sua condição de mortal. O grupo retratavao dividido entre o desfrute da vida e a busca incessante pela ampliação de seu poder e explorava à exaustão as referências à Antiguidade (principalmente a relação do protagonista com o filósofo Aristóteles e as especulações acerca do suposto livro escrito pelo filósofo e destinado à comédia). Além da paródia de acontecimentos, personagens e do imaginário associado à Antiguidade, vistos como nobres e “clássicos”, os atores empregavam a narrativa épica17 e buscavam a interatividade com a plateia, procurando sempre romper com a narrativa de forma a explicitar a situação de representação. Este era, segundo depoimento de Hugo Possolo em entrevista ao autor em julho de 2007, o diferencial do grupo, que procurava trazer “a rua para o palco”. Os Parlapatões nunca deixaram de valorizar a experiência do teatro de rua e a figura do palhaço como seus principais ícones diacríticos: o grupo sempre se representou (a seu público ou aos pares nos diversos eventos, palestras e workshops, invariavelmente através de Possolo, porta-voz da equipe) como um coletivo de teatro cuja formação constituiu-se de forma não convencional, baseada em oficinas, nos aprendizados recebidos na escola de circo, em encontros e principalmente na experiência do teatro de rua. Segundo os atores, essa forma popular de teatro traz à atuação cênica um domínio específico, centrado na improvisação, na utilização tridimensional do espaço (resultado do formato tradicional da roda) e na interatividade com a plateia, que é responsável por estabelecer nas atuações um nível “horizontal” (de igualdade) entre artista e público18. 17.  É importante destacar que o termo, aqui, não faz referência apenas ao seu sentido clássico, de narrativa de grandes feitos de um herói, mas também à influência da teoria de Bertolt Brecht, que se valia desse distanciamento narrativo para produzir uma nova forma cênica. Embora a forma narrativa dos Parlapatões não utilize sempre esse efeito para promover a explicitação de situações políticas em cena, como ocorre em Brecht, a narrativa épica provocava um distanciamento em relação à forma ilusionista do teatro, fundamental para a forma de atuação do grupo. 18.  Hugo Possolo, principal porta-voz do grupo, destaca que a comédia é elemento de sedução do público, voltada a manter sua atenção. Segundo ele, tanto a experiência de rua como a comédia são amplamente “pedagógicas” ao ator, pois a comunicação com a plateia seria mais direta (a presença do público e o riso

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Grande parte das características distintivas que o grupo conseguiu construir em sua trajetória já se apresentou na primeira montagem de sucesso dos Parlapatões, Sardanapalo: a atuação improvisada, centrada na figura do palhaço, com grande influência do teatro de rua, privilegiando espaços não convencionais a partir de uma narrativa épica em tom crítico e questionador. A grande visibilidade conquistada pelos Parlapatões deve-se também à cobertura do espetáculo feita por Nelson de Sá, colega de Possolo da faculdade de Jornalismo e crítico da Folha de S. Paulo em início de carreira, que destacava as qualidades críticas e inovadoras da montagem. Assim, todo o contexto relativo à viabilização financeira da montagem, as tomadas de posição específicas da equipe, a difusão na mídia, entre outros fatores, garantiram o sucesso da peça na valorizada classificação do “teatro alternativo” paulistano do início dos anos 199019. A especificidade da fruição dos princípios circenses nesse contexto já foi destacada; porém, faz-se necessário frisar que ao mesmo tempo em que carregavam uma conotação popular, constituíam também uma forma de ruptura com as convenções teatrais ilusionistas, valorizadas no contexto “alternativo” em que o grupo procurava firmar-se. A releitura ou carnavalização de representações compartilhadas pela plateia, não raro atualizadas e fundidas com ícones da mídia, além de promover referências constantes e explícitas ao mundo do teatro paulistano, contribuíam para a metateatralidade frequente nas montagens do grupo, que expunha a estrutura cênica, dando destaque não para os acontecimentos dramatizados, mas para a forma e o modelo da atuação. A análise dos textos, encenações e relações sociais que os Parlapatões estabeleceram com seu contexto permite destacar o discurso paródico como central no trabalho do grupo. Para explicitar esta relação, a obra de Linda Hutcheon, A Theory of Parody, é particularmente relevante por sua abordagem contextual, centrada nas modalidades denotariam entendimento e fruição da cena, funcionando como uma importante forma de referência ao artista) e descompromissada (sem as determinações do palco italiano). 19.  A obra de Garcia (1990), que se propõe a resgatar o trabalho dos coletivos de teatro que optaram por uma postura marginal, indo para a periferia das grandes cidades e retirando-se do teatro comercial convencional, é sintomática da tendência nascente nos anos 70, mas que vigora, com algumas oscilações, até a atualidade. A posição ganhou tratamento já clássico por Humberto Eco, em sua obra Apocalípticos e Integrados (1970), tratando da construção dos princípios alternativos em relação de oposição à mídia e ao mercado.

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de auto-reflexão da arte contemporânea e nas teorias da intertextualidade. A autora frisa que a paródia, apesar de não ser uma expressão originária do século XX, adquire incidência e importância particular na arte do período. Para Hutcheon, contudo, a noção de paródia não se relaciona necessariamente com as concepções de comicidade, ironia ou pastiche, mas sim a um processo de revisão, inversão e transcontextualização de obras de arte já existentes (Hutcheon, 1985). Central na definição da paródia para Hutcheon é a obra de Bakhtin, uma vez que a autora compreende o fenômeno como uma forma de discurso “duplamente direcionado”, uma reapropriação paródica dos discursos consagrados do passado, subversão permitida, mas não oficial. Especificamente interessante é a passagem que destaca que a paródia tem como pré-requisito para sua existência certa institucionalização estética que permite a identificação de formas e convenções estáveis e compreensíveis. Estas funcionam como normas ou regras que podem – e claro, devem – ser quebradas. O texto paródico possui uma licença especial para transgredir os limites das convenções, mas como o carnaval, pode fazê-lo somente temporariamente e dentro das limitações autorizadas pelo texto parodiado. (Hutcheon, 1985:75)

No caso dos Parlapatões, a figura do palhaço, suas licenças poéticas e a forma de interpretação distanciada do teatro de rua abriram as portas para a metateatralidade e os procedimentos paródicos sobre as convenções e o teatro como instituição, características fundamentais da estética do grupo, que por si só condicionavam a atenção do espectador à forma da mensagem, à estrutura artística. Porém, juntamente com o circuito de inserção teatral “alternativo”, concebido em seu contexto como “moderno”, o circo, o palhaço, a improvisação e outras características não deixavam de promover referências associadas ao estilo cênico “popular”. A figura tradicional dos palhaços, a presença de esquetes tradicionais e o recurso frequente a determinados temas nostálgicos ou que idealizavam personagens marginalizados promoviam um processo de heroicização do homem comum, semelhante ao conceito de “romantismo revolucionário” utilizado por Marcelo Ridenti (2000)20 para descrever as expressões cênicas da década de 1960. 20.  Marcelo Ridenti classificou as expressões artísticas brasileiras dos anos 60 e 70

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Entre seus pares, os Parlapatões foram a companhia que melhor associou as referências do tradicional e do moderno: o fragmento, a desconstrução, a manipulação do senso comum; o “modelo cênico” alternativo, distanciado, anti-ilusionista com a “horizontalidade” democrática e participativa, apoiado na comédia e na interatividade com a plateia. A particularidade da atuação dos Parlapatões está, portanto, em uma expressão cênica que carrega ao mesmo tempo o estilema popular presente na atuação despojada da figura do palhaço e o contemporâneo a partir da narrativa épica, paródica, improvisada e metateatral, tão comum nas propostas de encenações pósmodernas21. Para além do conteúdo, da dramaturgia e da “mensagem”, o texto vira pretexto e o fundamental na cena passa a ser a fruição do instante presente em uma atuação que “debocha” de seu próprio veículo, ironizando as demais formas de um “fazer teatral sério”, seja pelo recurso à interatividade ou mesmo pela obsessiva explicitação da teatralidade frente a uma plateia que detém os dispositivos necessários para sua compreensão. É esta a característica fundamental do grupo e a forma pela qual exige ser percebido. É importante destacar, porém, que esta forma de expressão cômica, metateatral e paródica, que destaca a própria forma de sua enunciação, é veiculada juntamente com um discurso legitimador da prática do grupo, capaz de reconstruir a seu modo sua perspectiva crítica do mundo, as oposições e filiações aos ícones teatrais do período e à história do teatro brasileiro (como José Celso Martinez como “romântico-revolucionárias” por buscarem no passado, nas raízes culturais nacionais, elementos para a construção de uma utopia do futuro. Para o autor, os artistas idealizavam o homem do povo (o camponês, o migrante), buscando “(...) no passado elementos que permitiam uma alternativa de modernização da sociedade que não implicasse a desumanização, o consumismo, o império do fetichismo da mercadoria e do dinheiro” (Ridenti, 2000:25). 21.  Se a existência de uma “sociedade pós-moderna” é tema de acalorado debate até a atualidade, o rótulo “arte pós-moderna” não suscita tamanha oposição. Acerca de uma retrospectiva competente do aparecimento de características comuns na arte contemporânea (e principalmente na arquitetura), ver Perry Anderson, As Origens do Pós-Moderno (1999). Em um panorama teatral no qual Antunes Filho e Gerald Thomas eram as principais referências, a ironia, a paródia e a metateatralidade seriam “formas de compor” valorizadas no panorama dos anos 90, geralmente compreendidas como ícones da expressão artística contemporânea, o que faz com que a “carnavalização” das convenções teatrais adquira significado particular. Sobre Antunes Filho, ver os trabalhos de George (1990; s/d) e Guimarães (1998). Sobre Gerald Thomas, ver a coletânea de Fernandes e Guinzburg (1996).

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Corrêa e o Teatro Oficina, Amir Haddad, o Grupo Galpão, Gerald Thomas e Antunes Filho, entre outros). Neste ponto, é fundamental para o grupo não apenas seu desempenho cênico, mas também a construção de um discurso legitimador que destaque sua trajetória como vinculada ao “teatro alternativo” e também forneça elementos para a fruição de sua prática cênica específica. A exploração da metanarrativa teatral é tanto uma forma de transferência dos “códigos” de percepção e recepção da obra de arte quanto um meio de parodiar o próprio veículo utilizado, característica fundamental para a construção de sua identidade cênica em oposição direta à mídia, aos teatros “comercial” e “sério”. Pode-se argumentar, assim, que o sucesso dos Parlapatões não se deve apenas à viabilização de suas montagens, mas também à construção de uma linguagem própria, de uma identidade cênica ao diferenciarem-se dos demais projetos em vias de consagração, com iniciativas e discursos que extrapolam o tempo-espaço do palco. Tais situações, percebidas no relacionamento social dos Parlapatões (em eventos, palestras, bem como na socialização com os frequentadores do Espaço Parlapatões) e centralizado em Hugo Possolo, diretor, representante e porta-voz da companhia22, são tão importantes quanto a prática artística do grupo, por fornecerem as disposições necessárias para que o público tenha a devida fruição dos espetáculos. Estes fatos apontam para a construção da posição de marginalidade dentro do campo artístico, seja pela oposição aos cânones teatrais ou mesmo à mídia, estabelecendo, dentro mesmo desse campo, um embate entre os estabelecidos e os que concorrem por prestígio e reconhecimento, baseado no molde de “rebeldia” e “conformismo” (Bourdieu, 2005). O discurso crítico veiculado dentro e fora dos palcos, bem como a participação no meio artístico, são tão fundamentais para a construção da identidade (e do reconhecimento) artístico quanto as próprias tomadas de posição estéticas da companhia. Assim, se a antropologia da performance, com sua ênfase nos fenômenos expressivos, permitiu a adequada orientação teórica para a análise das peças dos Parlapatões, Bakhtin constituiu referência fundamental para tratar da dimensão cômica de suas montagens, e esta breve retrospectiva da trajetória do grupo iluminou sua particu22.  Possolo, por sua formação de jornalista e conhecimentos da área, eventualmente trabalha com críticas de espetáculos teatrais, circenses ou de cinema, tendo seus artigos publicados em periódicos como O Estado de São Paulo, Folha de S. Paulo e Bravo!.

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laridade cênica, é necessário ainda dar a devida atenção contextual a sua atividade teatral, possibilitada pela análise etnográfica. Um picadeiro na Praça? Os motoristas que trafegam no centro da capital paulista, passando pela Rua da Consolação, Avenida Rebouças, Ipiranga e Augusta, ou mesmo os que do elevado Costa e Silva atravessam o túnel em direção à imensa Radial-Leste, não veem a Praça Roosevelt. Não a praça que os transeuntes indiferentes mal notam, atrás do famoso edifício Copan (projetado por Oscar Niemeyer) e da imponente Igreja da Consolação, mas aquela que um estrato da população paulistana, vinculada ao teatro, frequenta assiduamente. Para estes, a “Praça Roosevelt” se resume apenas à quadra que vai da Avenida Consolação até a Rua Nestor Pestana, trecho urbano da tímida Rua Martinho Prado, anônima mesmo para os que por ali circulam cotidianamente, mas que desempenha importância ímpar nas relações sociais dos artistas teatrais paulistanos. Este local do centro de São Paulo, anteriormente conhecido como ponto de assaltos, tráfico e prostituição, passou por um processo que seus frequentadores conceituam como a “revitalização da praça” Roosevelt com a chegada do grupo de teatro Os Sátyros em 2000. Segundo seus fundadores, Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vazques, à medida que a companhia passou a operar e conquistar seu público, a criminalidade acabou por se deslocar da área (Guzik, 2006). Nesta pequena quadra estão situados23 os dois espaços do grupo de teatro Os Sátyros (conhecidos pelas montagens que levam ao palco temáticas relativas a sexualidade e gênero), o Teatro Studio 184 (uma sala de espetáculos gerenciada por um grupo de mesmo nome e que abriga em suas produções diversos artistas iniciantes), o Actor’s Studio (uma escola de interpretação teatral para amadores), um ateliê de artes e mosaicos, que contém também uma livraria de quadrinhos, o bar Papo, Pinga e Petisco (nome que sintetiza os objetivos de seus frequentadores), um bar-dançante, o Repertório MPB, além do recém-inaugurado Espaço Parlapatões. Sem dúvida, a proximidade da Praça Roosevelt com outros espaços culturais e teatrais, como o SESC Anchieta, o Teatro Fábrika 23.  É importante ressaltar que a etnografia ocorreu no período de setembro de 2006 a setembro de 2007.

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São Paulo, o teatro Sérgio Cardoso, o N.E.X.T., o espaço da Companhia do Feijão, o galpão do grupo Folias da Arte, o Teatro Brasileiro de Comédias, o Teatro Oficina, entre outros, favorece a concentração de um público interessado em artes cênicas no local. Porém, o elemento fundamental para a concentração de público é que a Praça Roosevelt não é apenas um local de fluxo e consumo de “produtos teatrais”, mas se constitui como um pólo de sociabilidade e convivência de artistas que vem ganhando frequentadores cada vez mais assíduos. O local, razoavelmente movimentado durante as tardes, principalmente pela presença dos atores que ensaiam por ali ou de demais pessoas integradas na produção das peças em cartaz, recebe uma grande quantidade de frequentadores a partir do início da noite, que permanecem no local até a madrugada, estimulados pela consolidação de um local de boemia artística24 que se firmou definitivamente com a inauguração do Espaço Parlapatões em 2007. Não é por acaso que o público da Praça Roosevelt é, em sua grande maioria, formado por jovens artistas iniciantes, bem como por algumas personalidades locais, integrantes de grupos estabelecidos (ou em vias de consagração) envolvidos em alguma das muitas montagens em cartaz, que elegeram esta área de São Paulo como seu “ponto de encontro” preferencial. Além do público “espontâneo” desta malha de teatros, é fundamental destacar que os espaços cênicos ali localizados, principalmente o dos Satyros e dos Parlapatões, utilizam seus teatros para abrigar montagens de grupos que não possuem teatro próprio, além da promoção de diversos eventos e festivais, ampliando ainda mais a circulação de pessoas pelo local. Não é difícil reconhecer, pelos arredores da praça, atores do Centro de Pesquisa Teatral de Antunes Filho, da Companhia Cemitério de Automóveis, de Mário Bortolotto, integrantes do grupo Tapa (importante referência teatral, dirigido por Eduardo Tolentino), do Redemunho, do Teatro de Narradores, do Pessoal do Faroeste, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, do Engenho Teatral, entre outros 24.  Uma vez que os teatros dos Sátyros e o Espaço Parlapatões recorrem à criação de bares ou cafés como forma alternativa (e constante) de manutenção de uma renda mínima, estes, somados ao Café La Barca e ao bar Papo Pinga e Petisco, cristalizam o local como um ponto de boemia artística. É interessante destacar que há uma prática comum entre estes espaços (exceto o dos Parlapatões, o maior em amplitude), de dispor parte das suas mesas na calçada, de forma que os clientes interajam com os transeuntes da Praça Roosevelt.

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integrantes de coletivos de teatro, críticos, dramaturgos e diretores teatrais. Apesar da grande disparidade entre as montagens dos diversos grupos destacados, estes frequentadores da Praça Roosevelt compreendem as peças ali apresentadas como provenientes de uma produção teatral diferenciada, de um “teatro alternativo”, rótulo que se opõe diretamente ao teatro Cultura Artística (situado na Rua Nestor Pestana, logo atrás da Praça Roosevelt) e demais “teatrões” paulistanos como o Alfa, geralmente firmados sobre estrelas e divulgação televisivas. Este público simpatizante do “teatro alternativo”, responsável pela agitada vida social da região, é incentivado pelas peças de horário alternativo nos finais de semana, com início à meia-noite, que respondem geralmente pelo maior afluxo de público. Com a abertura do Espaço Parlapatões a partir do final de 2007 na Praça Roosevelt, centro de São Paulo, o grupo encontrou o local geográfico, o ambiente social e o espaço discursivo ideal para o desenvolvimento de suas atividades e a consolidação de sua identidade cênica. A escolha de situar o Espaço Parlapatões na Praça Roosevelt não foi, portanto, de forma alguma aleatória. Com ela, o grupo decidiu mobilizar o histórico e a atuação dos Satyros de modo a contribuir para este ambiente urbano do centro de São Paulo, imprimindo nova modificação ao contexto. Não há como tratar do estabelecimento destas companhias teatrais em sedes e teatros sem mencionar a Lei de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo25. Trata-se de uma forma de incentivo municipal continuado que procura fomentar as produções de companhias estabelecidas, com trajetória e montagens reconhecidas, estimulando a manutenção de sua produção teatral. Muitas dessas companhias têm utilizado o recurso para estabelecer-se em local próprio, utilizando seu espaço como uma forma de “centro cultural”. Sem dúvida, o espaço dos Satyros e dos Parlapatões confere aos espetáculos ali abrigados uma visibilidade muito maior do que a de seus vizinhos, cuja programação geralmente é vista como menos importante, uma vez que ambas as companhias já se constituíram como 25.  É fundamental destacar que a Lei de Fomento (n.º 13279) é vista no contexto como o resultado vitorioso do evento Arte contra a Barbárie, que envolveu diversos grupos teatrais e expoentes da cidade de São Paulo, como Gianni Ratto, Aimar Labaki, Hugo Possolo e coletivos como Cia do Latão, Cia do Feijão e Teatro Oficina, que reivindicaram incentivo estatal, canalizado pelo vereador Vicente Cândido, dando origem à Lei.

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“referência teatral” no local. Entretanto, se por um lado a lei vai ao encontro das expectativas da maior parte da classe artística paulistana, bem como a de seu público, que valoriza a existência de grande oferta de opções de lazer e entretenimento na cidade de São Paulo, sua execução não passa isenta de muita polêmica26. Dessa forma, o efeito do Programa de Fomento ao Teatro e a consolidação da Praça Roosevelt como um pólo teatral vêm acarretando algumas mudanças nas formas de percepção do “teatro alternativo” ali localizado. Como efeito principal da abertura do Espaço Parlapatões nota-se uma reformulação do público da praça. Ao mesmo tempo em que se promoveu rapidamente como referência teatral da capital paulista, seja pelas ações da mídia e pelas peças renomadas que passaram a abrigar, seja pelos diversos eventos que desenvolveu, o Espaço Parlapatões contribuiu para a ampliação e diversificação do público que frequentava a Praça Roosevelt. De um estrato “marginal” e “alternativo”, os artistas desta malha de teatro do centro de São Paulo acabaram passando a comportar algumas personalidades com atuação nos meios de comunicação de massa. Durante a etnografia, foi possível perceber a presença de artistas nacionalmente conhecidos no Espaço, como é o caso de Thais Araújo, cuja estreia da peça Os Solidores no Espaço Parlapatões contou também com a presença de Lázaro Ramos; além de Mariana Ximenes; Paulo Gorgulho; Jô Soares, que veio presenciar uma apresentação de Juca de Oliveira; Paulo Autran, Guilherme Weber, entre outros. A seleção das montagens para estrear no teatro dos Parlapatões constituiu estratégia fundamental para a construção do nome do espaço, uma vez que valorizou sempre a consagração prévia dos atores, diretores ou do próprio espetáculo. Foram pouquíssimas as peças que não haviam conquistado (ou que não tiveram indicação para) os prêmios Shell, APCA ou outras instâncias de consagração teatral. A cobertura nos veículos especializados, como Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e revista Bravo!, foi também surpreendente para um 26.  Exemplo disso é a crítica de Antunes Filho ao processo de seleção dos grupos que seriam contemplados com o fomento, denunciando o que concebia como prática do “teatro de compadres”, registrada em reportagem da Folha de São Paulo em 29 de dezembro de 2004. A crítica foi repudiada por diversos artistas, entre eles um dos principais integrantes do Teatro Fábrica São Paulo, Sérgio Audi. O material pode ser lido em http://laerteeomundo.zip.net/arch2005-01-23_2005-01-29. html

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teatro recém-inaugurado, denotando a grande experiência e o bom relacionamento dos integrantes dos Parlapatões com profissionais da mídia. Todos esses fatores contribuíram para promover a mudança de perfil do público que frequentava a Praça Roosevelt. Isso porque os Parlapatões estavam envolvidos em um circuito teatral que extrapolava em muito o mero desenvolvimento de seus espetáculos, particularmente quando, no período da etnografia, procuravam estabelecer um “diálogo” com o público paulistano, seja através das palestras, debates, workshops e festivais que promoviam, seja através da política de curadoria das peças que adotavam em seu espaço, ou mesmo pela participação inicial em uma rede de teatros “independentes” que ameaçava formar-se. Também é inegável constatar que o Espaço Parlapatões é muito mais bem equipado do que as demais sedes das imediações, dotado de um café-bar com produtos mais refinados, um palco externo e uma ampla área de convivência, repleta de mesas para o conforto de seus frequentadores. Condensando diversos artistas, produtores e amadores das artes, o espaço logo se tornou referência fundamental no circuito artístico paulistano, seja pela sua “badalação” e pelo constante movimento de artistas, pelos diversos eventos (mostras, festivais, ciclos) realizados pela equipe, seja pela qualidade e diversidade dos espetáculos que passou a abrigar27. Assim, ao mesmo tempo em que o grupo conquistava merecida consagração por sua trajetória, entrava também em uma nova fase de sua trajetória em que a relevância de seu Espaço acabava por ofuscar sua produção cênica. Com a consolidação de sua identidade cênica, a conquista de uma sede, um local e uma voz dentro do cenário teatral paulistano, o grupo continua se esforçando por não permanecer “rotulado”, ilustrando o que Bourdieu (2005) concebeu como “lógica da revolução permanente”. Não é casual o fato de o grupo ter montado seu primeiro drama em 2008: A vaca de nariz sutil, de Campos de Carvalho, em uma ten27.  Desde sua inauguração, o teatro hospedou montagens dirigidas por Alexandre Reinecke, Gustavo Machado, Marcelo Mansfield, Luiz Valcazaras, Fernanda D’Umbra, Nilton Bicudo, Roberto Alvin, Vivian Buckup, Aimar Labaki, Wanderlei Piras, entre outros artistas que vêm se destacando no cenário teatral paulistano. A lista do elenco mobilizado por essas peças incluía artistas de destaque, como Jacqueline Obrigon, Marat Descartes, André Fusko, Denise Weinberg, Juliana Galdino, Mário Bortolotto, Taís Araújo, entre outros.

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tativa de desvincular-se de classificações. Como contraponto à institucionalização do grupo, o discurso “alternativo” e algumas tomadas de posição procuram manter o processo de profanação do sagrado, necessário para a construção da posição do artista marginal. Além disso, a equipe, uma vez institucionalizada, passa a buscar a construção de uma “escola” de forma a permanecer influente e impactante no panorama teatral. Com esta análise, construída em oposição à aplicação meramente formal de uma teoria da performance, ou mesmo de um modelo simplista de expressão cômica, acredito ter contribuído para demonstrar como a antropologia da performance, para atingir seus objetivos de compreensão, referentes ao “significado na linguagem e contexto” (Turner, 1982:21), não deve limitar-se ao recorte espacial e temporal dos fenômenos expressivos, e sim buscar compreender e explicar a complexa relação entre as expressões e a experiência, com destaque para a dimensão contextual e diacrônica da análise. Tal como postulado pela orientação seguida por Bourdieu (2006), para compreender e explicar a especificidade da forma particular de produção teatral dos Parlapatões foi necessário ir além da mera análise da obra de arte, procurando relacionar obra, seus produtores e o contexto social vigente de modo a iluminar a relação necessária entre a sociedade e o fenômeno estético. Uma vez que a prática artística e as disposições essenciais para a compreensão da obra artística estão necessariamente interligadas e não ocorrem senão em um contexto social repleto de lutas simbólicas, discursos e ideologias variadas, não há como retirar a performance de seu contexto ou privilegiar apenas seus aspectos expressivos, sob risco de resultar em uma análise parcial, a-histórica e descontextualizada do fenômeno estético, desinteressante para a antropologia. Referências Bibliográficas ARÊAS, Vilma. Introdução à Comédia. Rio de Janeiro: Zahar, 1990 ALBERTI, Verena. O Riso e o Risível. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1999. ANDERSON, Perry. As Origens do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1999. BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Ed. Hucitec, 1999.

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Etnografia, mediação e relações interculturais: entre o geral e o particular na produção de “músicas do mundo”

Paulo Ricardo Müller

Introdução A descrição é uma forma de interpretação na medida em que reflete o direcionamento do olhar do etnógrafo para determinados aspectos e características do cenário de pesquisa onde este procura se inserir. Este reconhecimento exige um esforço de explicitação e objetivação das questões que motivam antropólogos e etnomusicólogos a selecionarem determinados objetos e universos de pesquisa etnográfica, contextualizando-os em processos mais abrangentes de transformações e/ou disputas sociopolíticas que explicitem a contribuição da análise de casos particulares para a compreensão ampla do funcionamento das sociedades. A relação entre os cenários específicos de pesquisa antropológica e os “panos de fundo” sócio-históricos constituise, assim, como um problema metodológico e de produção textual por implicar na necessidade de se estabelecerem mediações que permitam a compreensão da interdependência entre o geral e o particular. A abordagem desta questão origina-se em minha própria experiência de pesquisa etnográfica, realizada em São Paulo junto a uma rede de músicos dedicados à expressão da “diferença” cultural através da inserção de músicas de diferentes países e regiões do mundo no circuito e no mercado musical paulistano e brasileiro. Essas músicas recebem diversas classificações: étnicas, tradicionais, regionais, locais, “do mundo”, e estas formas de classificação do que são consideradas “outras músicas” suscitam o questionamento sobre o que é considerada a música “própria” ou “normal” neste contexto. A inserção de “outras músicas” no campo musical paulistano produz

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uma oposição simultânea às noções difusas de “música brasileira” e “música internacional” como segmentos do mercado e da mídia formados por grupos hegemônicos de gêneros e estilos musicais. As performances de “músicas do mundo” apresentam-se, dessa forma, como adições de referências “globais” à primeira e de referências “locais” à segunda. Buscarei, neste artigo, refletir sobre a questão da mediação entre os cenários etnográficos e os contextos sócio-históricos a partir da análise da relação entre determinados discursos universalistas e as formas de enquadramento de atores sociais e de pesquisas etnográficas nesses contextos. Na primeira parte procuro discutir algumas abordagens antropológicas em relação a discursos universalistas como os do Estado-nação e da globalização. Na segunda parte trago algumas abordagens etnográficas retiradas de diferentes pesquisas sobre situações de contato e processos de mediação e negociação de identidades, tendo em vista o papel da cultura expressiva, principalmente a música, em sua constituição. Na terceira parte analiso o circuito paulistano de “músicas do mundo” a partir da discussão sobre mediação e relações interculturais esboçada nas duas primeiras. Por fim, procuro ressaltar a relevância da etnografia como um método para constituição de modelos de compreensão dos processos de universalização e particularização de determinados discursos e práticas tendo em vista, por um lado, as formas de contextualização de pesquisas etnográficas interligadas pela análise de questões investigativas similares entre si, que permitem, assim, a caracterização da abrangência dos fenômenos observados a partir de sua ocorrência simultânea em vários cenários; por outro, o papel dos sujeitos sociais na produção de reflexões sobre a relação entre suas próprias práticas e os discursos e estruturas universalistas – e.g.: a globalização, o mercado, a nação – nos quais são enquadrados ou procuram se inserir conforme estratégias variadas, permitindo a caracterização dos mesmos fenômenos como experiências únicas ou particulares1. O geral e o particular como posições de poder O que é geral e o que é particular referem-se, antes de mais nada, a focos específicos privilegiados por pesquisadores, dependen1.  Agradeço às organizadoras pela iniciativa e diligência deste volume, assim como pelas sugestões e comentários à versão prévia deste artigo.

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do, em grande parte, das perguntas motivadoras de cada pesquisa. Ou seja, o que em determinadas abordagens é tomado como um contexto abrangente pode ser, por outras, tomado como um caso particular e vice-versa. Esta percepção do processo de construção dos objetos de pesquisas sociais é, em parte, derivada do debate sobre a micro-história proposto por Revel (1998) no contexto francês, a partir do qual é possível problematizar os papéis da antropologia e da história como domínios de produção do conhecimento social diferenciados pela abrangência espaço-temporal de suas abordagens típicas. Neste debate, Abèles (1998) refere-se ao modo como o “local” é de certa forma fetichizado como propriedade acadêmica da antropologia, reificando a distinção micro/macro construída pelo foco continuado da historiografia ocidental na análise de “mentalidades” formadas por fatores que caracterizam diferentes “épocas históricas” como unidades de análise2. A possibilidade de trânsito entre “escalas” de observação sugerida pelos micro-historiadores não questiona suficientemente a existência do micro e do macro como propriedades dos fenômenos sociais pesquisados. Para além do âmbito das pesquisas sociais, onde o foco em determinados fenômenos e grupos sociais é justificado como opção metodológica, é preciso problematizar, também, as condições de enunciação do que é geral e do que é particular pelos sujeitos no mundo social, permitindo-nos compreender por que determinadas perspectivas se apresentam à observação como mais gerais ou mais particulares. À antropologia é pertinente a crítica ao entendimento do “local” como universo de pesquisa inserido em um contexto abrangente, sobretudo se levarmos em conta situações de contato entre diferentes lógicas sociais como disputas pela instituição de diferentes modelos de organização social. As formas vigentes de representação das sociedades – delineadas, por exemplo, pelos discursos nacionalistas e desenvolvimentistas, mas também pelas identidades culturais, raciais, de classe, etc. – operam, nesse sentido, como indicadores de hierarquias de poder e relações de dominação em grande parte internalizadas e naturalizadas pelos diferentes setores e grupos que a constituem. 2.  De maneira geral, as contribuições que compõem a obra organizada por Revel sugerem uma redefinição metodológica do que vinham, até os anos 1970, sendo compreendidos como os objetos de pesquisa de historiadores, concebendo análises históricas particularizadas pelo foco em biografias e processos sociais situados em períodos de tempo considerados curtos.

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É particularmente útil para a compreensão desta asserção a reflexão de Rosaldo (1993) acerca da formação do pensamento sociológico ao longo do século XX desde sua busca por objetividade na definição dos objetos de pesquisa. Essa tendência, argumenta Rosaldo, produziu formas de descrever a cultura como o patrimônio específico de diferentes coletividades a partir de objetos, imagens e descrições coletadas e produzidas por folcloristas, antropólogos, arqueólogos, que, reproduzidos pela opinião pública como representações objetivas do “outro”, descontextualizam seu papel nas dinâmicas de transformação e diferenciação política e cultural que sucedem as conjunturas nas quais estes objetos são acessados. A reificação da cultura material retratada pelas coleções de objetos e descrições etnográficas como representações perenes do “outro” constitui, assim, uma visão “monumentalista” da noção de cultura. Esta reflexão é aprofundada ao levar-se em conta a assimetria das relações de poder nos processos de contato entre diferentes grupos sociais – por exemplo, no contexto geográfico da fronteira política entre o México e os Estados Unidos, principal contexto de reflexão do autor – onde as descrições e representações sociais produzidas a partir de visões de mundo hegemônicas são fixadas e difundidas como “verdades”, enquanto as representações produzidas por outros atores no mesmo contexto são reduzidas ao estatuto de versões parciais do mesmo processo. Da observação sobre a fronteira como palco de disputas e conflitos entre diferentes lógicas sociais é possível abstrairmos uma “situação social de fronteira” aplicável a cenários diversos como ferramenta de compreensão dos papéis desiguais desempenhados pelos sujeitos. A partir dessa ideia, proponho buscarmos compreender como se relacionam os discursos que se pretendem abrangentes e produzem um senso de “verdade” universal atribuída a modos particulares de construção e organização da sociedade com as lógicas sociais ligadas a modos de vida aos quais é atribuído o papel de “locais” ou particulares. O papel político-administrativo da noção de fronteira coloca em evidência o papel do Estado-nação como uma estrutura definidora da percepção da relação entre o particular e o geral. A reflexão antropológica sobre a relação entre “a parte e o todo”3 das identidades nacionais explicita dinâmicas excludentes implicadas na formação e 3.  Em referência a Oliven (1992), que analisa diferentes aspectos da construção da identidade do gaúcho do Rio Grande do Sul em correlação com os discursos de construção da identidade nacional brasileira.

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consolidação do Estado-nação a partir de modelos de organização social caudatários das concepções de sociedade oriundas de elites econômicas, políticas e culturais que vieram a liderar e/ou orientar estes processos. A constituição da “consciência nacional”, conforme a concebeu Anderson (1991), consiste em um processo de racionalização de valores que expressam a ligação dos indivíduos a determinadas “comunidades imaginadas” como grupos diferenciados por características compartilhadas no espaço e no tempo. Nesse sentido, o discurso nacionalista funda-se não apenas em um projeto de delimitação territorial e linguística dos países, mas também na construção de uma história compartilhada pelos grupos sociais compreendidos neste processo. As identidades nacionais devem ser analisadas, dessa forma, sob o prisma dos diferentes projetos de sociedade em disputa por sua definição em períodos históricos determinados. As representações das identidades nacionais não somente indicam processos históricos de “invenção das tradições” pelas elites políticas e econômicas a partir de referências, símbolos e imagens culturais particulares (Hobsbawm e Ranger, 1984), como também engendram políticas de diferenciação e essencialização estratégica das identidades socioculturais (Sahlins, 2001; Yelvington, 2001), sejam estas projetadas como “culturas nacionais” ou associadas às “culturas locais” ou “regionais” supostamente circunscritas aos Estados-nação. A crítica a certo determinismo da nacionalidade como identidade transversal aos grupos abarcados pelo Estado evidencia, no lugar de uma relação geral/ particular, uma relação de tensão entre diferentes lógicas e modelos culturais de organização e funcionamento das sociedades com condições desiguais de acesso a aparatos institucionais e de legitimidade para empreender ações políticas efetivas. A distinção entre lógicas estatais e sociais não corresponde, necessariamente, a distinções entre atores sociais. Pelo contrário, constituem-se como linguagens agenciadas de acordo com diferentes contextos de interação entre sujeitos que representam interesses específicos, estejam estes vinculados oficialmente ao Estado ou aos interesses locais ou regionais de onde provêm. São estes contextos de interação, tensão, conflito e negociação que entendo como “situações sociais de fronteira” nas quais se posicionam grupos formados por sujeitos vinculados por histórias e projetos compartilhados – comunidades imaginadas – organizados de acordo com valores e linguagens sociais – territorialidades, códigos linguísticos, culturas expressivas –

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divergentes da lógica prevalecente no modelo de formação de sociedades nacionais baseado em discursos nacionalistas orientados pelo ideário modernista articulado pelos discursos do desenvolvimento, da democracia, da globalização e dos direitos humanos, entre outros4. Situações sociais de fronteira evidenciam, dessa forma, as assimetrias de poder implícitas na eficácia dos discursos que afirmam o que é universal e o que é particular, internalizados como “verdades” universalmente aplicáveis não apenas pelos grupos que os produzem como também em diversos outros contextos. Não se trata, portanto, de buscarmos entender as posições assumidas por dois ou mais lados em uma disputa, mas sim como a forma de organização social do Estado-nação veicula valores associados a sua constituição enquanto estrutura de referência para o imaginário sobre o particular e o geral/universal. A abordagem antropológica dessas situações nos permite analisar essa questão através da observação dos espaços de mobilidade dos sujeitos que fogem ao foco da visão macropolítica. A compreensão de como os discursos e práticas se universalizam passa, dessa forma, pelo foco nos “interstícios sociais” (Wolf, 2001a: 167168) dos processos de inserção, circulação e expansão de modelos particulares de organização social, buscando explicitar as condições sociais nas quais determinados valores e discursos são generalizados ou universalizados. Discursos universalistas e contatos interculturais A reflexão sobre a constituição e expansão do modelo de Estado-nação serve, aqui, como um ponto de partida para compreendermos esses processos. A disseminação das formas de industrialização e formação do Estado-nação a partir do eixo Europa Ocidental-Estados Unidos, onde os processos em questão se constituíram historicamente, estabelece um modelo que restringe as possibilidades de 4.  A este respeito, entendo que os discursos universalistas operam como argumentos que legitimam a posição dominante de modelos particulares de organização social através da prescrição de formatos “internos” – sistemas administrativos burocráticos, sistemas partidários, democracia representativa, etc. – que operam como requisitos para o reconhecimento dos territórios nacionais como Estados de direito pela “comunidade internacional”, restringindo as formas possíveis de formação e desenvolvimento nacional aos modelos estabelecidos pelas nações ou blocos que detêm poder de decisão e coerção na configuração política corrente em diferentes contextos. Ver Wallerstein (2007).

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construção nacional em períodos históricos posteriores (Wolf, 2001b: 186), produzindo um senso de universalidade das formas ocidentais de produção e sua associação com a noção de “moderno”. Situações de contato engendradas por movimentos de expansão desse modelo ensejam esquemas de compreensão que consideram a constituição de sistemas culturais representados pela sobreposição das lógicas sociais articuladas pelos grupos implicados nesses processos. Para Canclini (1995), as experiências de implementação e consolidação dos Estados independentes latino-americanos contribuíram para a institucionalização de conflitos entre elites informadas por valores eurocêntricos de modernidade e desenvolvimento e as concepções de sociedade e territorialidade de populações indígenas e de classes populares, resultando em um tipo “híbrido” de organização política. Amselle (1998) sugere, com relação às representações etnológicas sobre as fronteiras entre países e grupos étnicos na África (especialmente na África ocidental), haver uma categorização das “culturas africanas” que as adéqua a uma concepção ocidental de nação definida como unidade sociocultural. De forma alternativa, o autor propõe compreendermos a formação de grupos étnicos e dos nacionalismos africanos sob a ótica de uma “lógica mestiça” resultante dos movimentos de contato entre grupos étnicos africanos e com as culturas e modelos ocidentais de organização estatal. A análise de Mitchell (1956) sobre a dança kalela no contexto do colonialismo inglês na Rodésia do Norte (hoje territórios da Zâmbia e do Zimbábue) mostra como as formas corporais e musicais dessa dança são reelaboradas a partir da incorporação de símbolos europeus de prestígio – vestimentas, insígnias militares, expressões verbais – por líderes de equipes em competições de dança entre grupos étnicos. De uma perspectiva similar, Cohen (1969) aborda a política de controle sobre o comércio de longa distância de bens alimentícios (gado e noz-de-cola), exercido pelos Hausa (Nigéria) no início dos anos 1960 em uma cidade tradicionalmente ioruba, apontando como diferentes grupos étnicos também se constituem como “grupos de interesse” na busca por posições privilegiadas no fornecimento de produtos. A análise da concorrência entre esses grupos de interesse é marcada pela observação de estratégias de “destribalização” por parte de sujeitos que buscam estabelecer relações comerciais externas independentemente das hierarquias dos sistemas políticos “tribais” – os quais confeririam o papel de negociadores aos líderes políticos

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e religiosos das etnias –, passando a uma “retribalização” processada em sua inserção nas relações familiares, políticas e religiosas. Pensando sobre o conceito de identidade vis-a-vis os processos de circulação transnacional contemporâneos, Cardoso de Oliveira (2000) analisa o papel de comunidades de imigrantes na produção de situações sociais nas quais as reelaborações de práticas sociais dos contextos de origem ou de residência operam como mecanismo ao mesmo tempo de diferenciação e de incorporação na sociedade envolvente. A formação de espaços e redes transnacionais de atores sociais identificados com outros contextos nacionais inseridos nas relações econômicas, políticas e culturais dos locais de destino geram demandas por classificações e enquadramentos do “outro” a partir da lógica local de reconhecimento e legitimação das identidades. Esse processo justapõe a nacionalidade do “outro” às identidades englobadas pela construção dominante de identidade nacional, criando condições sociais e políticas para a “etnização” do imigrante e de suas práticas culturais (Cardoso de Oliveira, 2000: 8). A relação entre o nacional e o imigrante é construída, nesse sentido, sobre conflitos entre uma série de representações sobre o “ser” de determinado lugar, as práticas que se espera que advenham desse status e os projetos e expectativas dos imigrantes com relação a sua inserção na sociedade envolvente. A condição ambígua do imigrante orienta o agenciamento de práticas políticas, religiosas e culturais que buscam negociar os sentidos atribuídos a sua presença na sociedade receptora, expressando ao mesmo tempo uma identidade estrangeira exotizada e uma identidade inserida nas relações locais de produção e consumo5. Em contextos de migrações forçadas, o agenciamento de determinadas práticas culturais aparece como mecanismo de reconstrução da memória social sobre o contexto de origem, estabelecendo um senso compartilhado do exílio ou do refúgio como uma etapa na construção de sua cultura ou de seu país de origem. A análise da formação de uma comunidade e da criação de instituições culturais por refugiados tibetanos na Índia mostra o papel das práticas culturais, especialmente a música, como representações do patrimônio cultural construído no exílio como patrimônio de um Tibete idealizado, ao qual este deve “retornar” (Diehl, 2002: 63). Práticas culturais expres5.  Beserra (2007) oferece o exemplo de como a imagem de um grupo de imigrantes brasileiras em Los Angeles é negociada em relação ao paradigma de mulher brasileira nos Estados Unidos: Carmen Miranda.

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sivas são agenciadas nesses contextos para comunicar não somente uma identidade “de fora”, mas também uma identidade “em crise” pela alienação dessas práticas em relação aos contextos sociais que servem de referência para sua realização. Dessa forma, em alguns casos a adaptação de refugiados aos novos contextos de residência não se manifesta pela inclusão de novos elementos em suas práticas originais, mas por performances e narrativas que minimizam o estatuto de refugiado como critério imediato de reconhecimento social (Malkki, 1995; Silva, 2005; Reyes, 1999). Essas abordagens permitem caracterizar fenômenos sociais frequentemente descritos em termos “macro” – nacionalismos, colonialismos, migrações – de um ponto de vista etnográfico, depreendendo das relações observadas em trabalhos de campo as condições concretas de realização dos movimentos e como são percebidos no horizonte das práticas e representações sociais dos sujeitos pesquisados. A caracterização de fenômenos como globais ou locais é orientada, nesse sentido, por narrativas que tendem, respectivamente, à redução ou evidenciação de processos de diferenciação sociocultural abarcados por essas unidades de análise. A abstração das fronteiras político-administrativas em função da desconstrução sociológica dos processos de naturalização do Estado-nação como estrutura de transição do particular para o geral não implica uma desconsideração das consequências concretas que têm na vida social. Pelo contrário, ao percebermos as fronteiras como construtos históricos é que se torna ainda mais premente a análise do poder que determinadas visões de mundo exercem sobre as formas de construção social das sociedades e culturas. A música é um elemento constitutivo das representações de identidades nacionais, associando propriedades sonoras e performáticas a padrões de ação construídos como características dos países e dos sujeitos deles originários. Em diversos contextos, observa-se a produção de políticas de fomento à nacionalização de determinadas músicas como representação para o exterior de uma unidade política e cultural nacional, ocultando conflitos e tornando invisíveis outras influências inscritas nas histórias de suas expressões culturais contemporâneas. Charry (2000) reconstitui a codificação da música mande, sistema cultural que abrange partes do Senegal, Gâmbia, Guiné e Mali, construída a partir de diferentes tradições musicais dessa região na forma de companhias de dança (Ballets Africaines), tuteladas pelo governo da Guiné (capital Conacri) após a indepen-

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dência (1958) no intuito de difundir a imagem de país unificado através da união dos grupos étnicos que compõem a população guineense no contexto de suas performances. Em decorrência, músicos guineenses exilam-se em países da Europa, onde se tornam referências para a prática dos instrumentos e técnicas observadas nos Ballets, fixando essas práticas como a “música guineense” no imaginário ocidental. No Brasil, processo similar é desencadeado pelo incentivo do Estado Novo (1930-1945) à difusão de mensagens nacionalistas através do samba e promoção do carnaval como metáfora da sociedade nacional (Oliven, 1982: 69), produzindo uma correspondência intrínseca entre “ser brasileiro” e praticar ou gostar de samba nas representações do Brasil no exterior. A adequação de imigrantes a noções exotizadas de suas práticas culturais é agenciada como uma forma de inserção social através da expressão de uma diferença prescrita por noções estereotipadas de sua cultura. Por outro lado, a reprodução dessas práticas e de hábitos de consumo propicia o surgimento de circuitos e mercados culturais identificados pelas nacionalidades de seus produtores. Exemplo paradigmático do processo é fornecido pela análise da circulação e comercialização da música cabo-verdiana. Com mais da metade da população residindo fora do país, grande parte da produção fonográfica da música definida como cabo-verdiana é comercializada primeiramente na Europa e nos Estados Unidos, e chega ao Cabo Verde através de emigrantes que retornam ou visitam o país (Dias, 2004: 158). A disputa pela “salsa” ilustra o papel da música nas interações entre imigrantes e sociedades nacionais. Construída como um gênero por grupos de imigrantes cubanos e porto-riquenhos nos Estados Unidos, a “salsa” também é agenciada pelos praticantes do son em Porto Rico, ritmo dançante que teria dado origem à “salsa” quando combinado com elementos estéticos do jazz (Manuel, 1994: 258). Assim, a “salsa” ocupa um espaço de transição no imaginário musical internacional, sendo apresentada ao mesmo tempo como um ritmo caribenho, cubano ou porto-riquenho, e como um gênero híbrido, representativo do “latino” dentro da segmentação étnica vigente nos Estados Unidos. Mediações culturais entre o geral e o particular Retomo, a partir daqui, o problema da mediação entre os contextos etnográficos e os panos de fundo sócio-históricos vis-a-vis os

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processos de mediação social observados e analisados como estudos de caso antropológicos/etnomusicológicos. A comparação entre as trajetórias dos músicos Bezerra da Silva e Luiz Gonzaga ilustra a concepção de mediação social/musical como categoria de compreensão de processos de mobilidade de atores sociais através de cenários culturais particulares ou universais, neste caso de um contexto “regional” para um contexto “nacional”. Tanto Bezerra da Silva quanto Luiz Gonzaga são originários do interior de Pernambuco e migraram, nos anos 1960, para o Rio de Janeiro em busca de postos de trabalho, lá construindo suas carreiras profissionais como músicos. Bezerra da Silva, tendo passado períodos na pobreza, estabeleceu relações com sambistas de favelas cariocas, muitos dos quais também migrantes ou descendentes de migrantes oriundos de estados do Nordeste, dos quais registrou informalmente o repertório que posteriormente veio a utilizar em sua produção musical, creditando a autoria das músicas que gravava e cantava em seus shows a estes músicos (Vianna, 1999). Luiz Gonzaga consagrou-se no cenário fluminense como o inventor do baião, gênero musical formatado a partir de elementos visuais e sonoros – o chapéu, a sanfona, o triângulo e a zabumba –, assim como de um repertório característico de festas populares do sertão pernambucano, transmitido e aprendido através da oralidade naquele contexto. Já durante os anos 1980 surgiram críticas ao que seria a apropriação da cultura tradicional da sociedade sertaneja do Nordeste brasileiro, representada pelos créditos e direitos autorais que o músico recebia referentes a este repertório (idem). Outro exemplo de “mediação musical” diz respeito à confecção do álbum Graceland, lançado em 1986, do músico norte-americano Paul Simon, do qual participaram alguns grupos musicais sul-africanos, compondo uma obra que apresenta “misturas” de gêneros musicais populares sul-africanos com o repertório pop e rock de Simon. A incorporação da isicathamiya – gênero de música vocal a capella associada à etnia zulu – ao álbum, cantada pelo grupo Ladysmith Black Mambazo, foi questionada por parte da crítica musical internacional e por grupos nacionalistas na África do Sul por projetar a música sulafricana adaptada a moldes ocidentais de produção musical no cenário internacional. Por outro lado, a mídia musical também apontou a visibilidade conferida por Graceland ao Ladysmith Black Mambazo e outros grupos sul-africanos, que passaram a fazer turnês e participar de festivais internacionais desde então (Meintjes, 1990).

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Esses três casos abordam o trânsito de músicos e sons musicais por cenários culturais cuja abrangência é simbolizada pela disponibilidade de recursos de produção, distribuição, difusão e consumo musicais. Os movimentos de Luiz Gonzaga e Bezerra da Silva para o Rio de Janeiro são, também, formas de ampliação de sua atuação profissional de um âmbito “regional” para o “cenário nacional” através de estúdios, distribuidoras fonográficas e radiodifusoras, à época concentradas na região Sudeste, com capacidade para promover a divulgação e distribuição comercial de suas músicas no mercado nacional. A relação entre Paul Simon e os grupos de “música sul-africana” mostra dois movimentos: a incorporação de elementos musicais retirados de uma cena “local” a um repertório de música pop internacional através da participação destes grupos no disco Graceland e a inserção da própria “música sul-africana” nos circuitos de produção, distribuição e consumo internacionais através da projeção do Ladysmith Black Mambazo nos mercados musicais europeu e norte-americano. A noção de mediação trazida por essas abordagens permite que compreendamos as situações de contato intercultural tanto nos termos das disputas em torno das “apropriações” alegadas pelos atores nelas implicados quanto em termos de “influências” exercidas nos contextos de interação pelos sujeitos oriundos de diferentes países ou grupos sociais. A observação destes casos contribui para a problematização da relação socialmente classificadora entre os discursos universalistas e a produção de expressões culturais que os representam6. As músicas – assim como diversas outras formas de arte ou de cultura expressiva – criadas e produzidas em determinados países não necessariamente se enquadram nos moldes socialmente predominantes do que se concebe como a cultura ou a música nacionais. Por outro lado, o discurso das culturas nacionais também exclui expressões sonoras que não reconhece como próprias, produzindo questionamentos com relação à legitimidade de suas práticas. Em pesquisa sobre a articulação da noção de “diversidade cultural” através da música na cidade de São Paulo, analisei a constituição de uma rede de músicos e produtores de “músicas do mundo” que se caracteriza pelo agenciamento de “outras músicas” para compor seus 6.  Contribuindo, dessa forma, também para a dissolução de fronteiras entre os fenômenos pesquisados como “domínios” de análise especializada nestes discursos – e.g.: a música, a religião, o parentesco, a etnicidade, etc. Para um alargamento desta discussão, ver Dulley, neste volume.

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repertórios. Buscam, com isso, estabelecer um marco de diferenciação em relação tanto ao que reconhecem como o mainstream musical internacional quanto ao que reconhecem como o modelo dominante de “música brasileira”. O mainstream se caracteriza, neste caso, como os gêneros e músicos difundidos e comercializados em massa pela mídia musical e por distribuidoras fonográficas ao redor do mundo através dos segmentos pop e rock, da música popular produzida principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. O modelo hegemônico de “música brasileira” refere-se a gêneros e músicos difundidos e comercializados internacionalmente sob o rótulo genérico MPB, que incluiria sobretudo as formas e movimentos musicais derivados de combinações do samba com expressões musicais urbanas cosmopolitas (por exemplo, a bossa-nova como Brazilian jazz). A inserção de “músicas do mundo” no mercado musical paulistano/brasileiro passa por uma tensão com as formas de classificação engendradas pelos discursos generalizantes da “identidade nacional” e do “mercado internacional”. O grupo Mawaca é reconhecido na cena paulistana como um grupo formado por sete mulheres e sete instrumentistas, cujo repertório é cantado em mais de dez línguas diferentes. A líder do grupo, Magda Pucci, produz arranjos que combinam músicas oriundas de diferentes países/culturas de acordo com similaridades estruturais entre elas. A música Boro Horo, do disco Para Todo Canto (Mawaca, 2004), foi arranjada a partir de três músicas: Hirigo, coletada e gravada pela musicista Marlui Miranda junto ao grupo indígena tupari; Bre Petrunko, do repertório do Coro das Mulheres Búlgaras e Suuret Ja Soriat, música tradicional finlandesa gravada pelo grupo Värttinä. Para além das diferenças geográficas e linguísticas, Magda Pucci aponta como fundamento para a realização desse arranjo a guturalidade da voz feminina que caracterizaria essas músicas em seus contextos tradicionais. A identificação do Mawaca com a noção de “músicas do mundo” é, também, construída a partir de sua inserção no mercado musical. Foi o primeiro grupo brasileiro a participar do festival WOMEX (World Music Exposition), foi considerado pelo músico paraibano Chico César – ganhador de dois prêmios Grammy de world music – como “o único grupo no Brasil que faz world music de verdade”7, e tem seus CDs distribuídos pelo selo de world music da gravadora pau7.  Citação encontrada em diversos releases de imprensa do Mawaca em jornais e folhetos de divulgação de shows e discos.

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listana Azul Music. Ainda assim, Magda Pucci aponta como uma das principais dificuldades de inserção comercial dos discos e shows do Mawaca a interpretação nacionalista do produto musical baseada no contexto de produção. A crítica de Magda Pucci é dirigida às lojas e megastores que revendem os CDs e DVDs do Mawaca nas prateleiras de “música brasileira”. Por quê? Porque é feita por músicos brasileiros. A gente tem que sair de lá. A gente tem a ver com world music. Quem gosta de música africana, árabe, talvez goste do Mawaca. Mas a banda é formada por brasileiros, tem que ficar dentro da MPB, do lado da Marisa Monte, da Maysa, fica lá. Eu já briguei um monte com essas lojas, ia na gerência, “pelo amor de deus, moço, muda a gente de lugar”. “Não, vocês são brasileiros, tem que ser aí”. (Magda Pucci, comunicação pessoal, 15/05/2007)

Minha inserção nessa rede se deu pelo interesse em compreender como são incorporadas as “músicas do mundo” aos horizontes de produção e criação de músicos paulistanos e ao cardápio de atrações culturais da cidade. Para isso, busquei analisar a relação entre os repertórios musicais e as trajetórias sociais de músicos e grupos, atentando, sobretudo, para situações de contato com “outras culturas” que tenham funcionado como “fontes” de sonoridades ou de músicas para seus discos e performances. Essa relação mostrou uma distinção conceitual entre o que se buscava definir como “músicas do mundo” e o que se entendia como “música étnica”. Esta última denominava músicos e grupos musicais dedicados a uma especialidade musical caracterizada pela música de uma etnia, de um país ou de uma região específica, enquanto a primeira era utilizada para falar de repertórios formados por “encontros” e “fusões” de diferentes culturas. Essa distinção revelou uma tensão entre diferentes lógicas de representação da noção de cultura. Por um lado, a cultura aparece como “lugar de origem” da música, reunindo um conjunto de características imaginadas como patrimônios dos povos aos quais ela se vincula, servindo de referência para os discursos de contextualização dos processos de incorporação desses elementos aos repertórios dos grupos. Por outro, a “cultura” também é apresentada como o processo de construção da cena da “música étnica” ou de “músicas do mundo” em São Paulo, nesse sentido uma “cultura da diversidade” ou mesmo uma cultura musical cosmopolita que apreende o “outro”

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através do consumo de produtos culturais que tenham como referência as culturas características de diferentes lugares do mundo. As situações de contato realizadas pelos atores dessa rede evidenciam dialeticamente os aspectos distintivos e conectivos de diferentes culturas musicais, articulando ao mesmo tempo uma valoração da diferença e um projeto de síntese da diversidade cultural através da música. O sentido prático dessa abordagem é representado pela relação entre os grupos de “músicas do mundo” com os grupos de “música étnica”, onde os últimos operam como “fornecedores” de sonoridades e práticas musicais características das culturas que representam, enquanto os primeiros atuam como “processadores” dessa diversidade, produzindo músicas e repertórios resultantes do cruzamento de aspectos similares ou afins entre as culturas musicais agenciadas. Como um dos grupos reconhecidamente de “música étnica”, a Troupe Djembedon foi criada pelo músico Luis Kinugawa após sua permanência por dois anos na Guiné, país da África Ocidental onde aprendeu as técnicas de execução do djembe e dos dununs e aspectos das narrativas históricas e culturais do grupo étnico mandinga, maioria populacional daquele país. Luis Kinugawa retornou ao Brasil casado com a dançarina guineense Fanta Konate, onde fundou a Troupe Djembedon e o Instituto África Viva, inserindo-se no circuito musical paulistano como um representante da música e cultura mandinga, mas também como referência de “música da Guiné” e da África Ocidental. Em São Paulo, a Troupe Djembedon estabeleceu uma relação de colaboração com o grupo Sexteto Mundano, liderado pelo músico Carlinhos Antunes, reconhecido na cena paulistana como instrumentista e compositor de “músicas de diferentes regiões do mundo” cuja principal característica é a formação de grupos e espetáculos com músicos oriundos de diferentes tradições/culturas musicais. O Sexteto Mundano é formado pelo próprio Carlinhos Antunes tocando viola caipira, cuatro venezuelano e kora, pelo contrabaixista Rui Barossi, o saxofonista e rabequista suíço Thomas Röhrer, o saxofonista e flautista Beto Sporleder, o acordeonista Gabriel Levy e o percussionista Jotaerre. O Sexteto Mundano é a base para a montagem da Orquestra Mundana, formato no qual músicos de diferentes “músicas étnicas” se juntam ao sexteto. O disco Orquestra Mundana (Carlinhos Antunes, 2004) teve participações do tocador de kalimba – instrumento de percussão melódica associado ao grupo étnico xona, do Zimbábue – Otávio Jr.; o cantor congolês Josué; Sami Bor-

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dokan e William Bordokan, músicos descendentes de libaneses que realizam concertos de música árabe em São Paulo, tocando, respectivamente, alaúde e derbak; e Fanta Konate e Luis Kinugawa dançando e tocando djembe, respectivamente. Durante minha pesquisa em 2007, na programação do Festival Visto Livre8, cuja temática era a música dos povos nômades, a Orquestra Mundana9 teve as participações da cantora Sol Brasil, brasileira radicada na Espanha onde canta em grupos de flamenco; os músicos Krucis na cítara indiana e Edgar Silva nas tablas; o violinista romeno Florian Cristea, componente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP); e o violonista francês, descendente de manuches­ – denominação dos grupos ciganos localizados na França –, Louis Plessier10. Assim como a Troupe Djembedon, os diversos grupos de “música étnica” tem suas trajetórias profissionais fundamentadas em viagens aos lugares de origem dos instrumentos e repertórios que praticam e pesquisas em fontes literárias, cinematográficas, folclóricas, musicológicas e etnomusicológicas, históricas e antropológicas acerca destes lugares. Ao se posicionarem no circuito paulistano como referências ou como representantes destas culturas, os grupos de “música étnica” prelecionam aspectos destas culturas de acordo com suas experiências particulares, difundindo uma noção de “cultura indiana”, “cultura árabe”, “cultura mandinga” ou “cultura cigana” que evidencia estes aspectos escamoteando outros. Surgem, desta forma, relações de concorrência pela representatividade destas culturas no contexto paulistano quando mais grupos realizam este movimento em direção aos mesmos países/culturas11. A inserção dessas músicas étnicas no circuito paulistano ocorre sobretudo em espaços destinados a “músicas do mundo”, sendo relativamente restritos os eventos especificamente dedicados a cada   8.  Realizado e promovido pelo SESC Santana (Serviço Social do Comércio, unidade do bairro Santana), durante todo o mês de março de 2007.   9.  O espetáculo foi batizado Latcho Drom, em referência ao filme do cineasta francoargelino Toni Gatlif (1993), que retrata a jornada do grupo étnico Roma desde a Índia até a Europa Ocidental. 10.  É importante notar a complementaridade entre a narrativa da “jornada cigana” e a composição de palco do grupo, que conta com representantes de cada etapa – desde a Índia, passando pelo Oriente Médio, Leste Europeu (Romênia), até chegar à Europa Ocidental (Espanha, França) – desse processo, como representado pelo filme Latcho Drom. 11.  São exemplos disso as relações entre os músicos Otávio Jr. e Décio Gioielli com relação à kalimba, e entre os grupos Troupe Djembedon e Kamberimba com relação ao djembe e à cultura mandinga, ambos os casos analisados em Muller (2009).

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país ou cultura representada por esses grupos. Nesse sentido, a relação dos grupos de “música étnica” com os de “músicas do mundo” também se apresenta como um mecanismo de acesso a recursos e espaços de produção e divulgação das propostas específicas dos primeiros, inseridas nos “encontros” e “fusões” articulados pelos últimos. As escolhas por determinadas culturas ou músicas a serem utilizadas nesses processos também passam pela escolha dos músicos e grupos que dividirão o palco ou o estúdio de gravação. A “diversidade cultural” representada pelos grupos de “música do mundo” é composta, assim, por um agenciamento ao mesmo tempo estético e político das músicas e culturas disponíveis no cenário paulistano. Esteticamente, os sons musicais devem “encaixar” uns nos outros e na proposta do grupo que os utiliza, processo desencadeado pela sensibilidade do músico às possibilidades de uso dos instrumentos com que tem contato ao longo de sua carreira, propiciando a ocorrência de insights criativos que levam às combinações observadas na rede de produção de “músicas do mundo”. Politicamente, a escolha dos sons refere-se, também, à afinidade pessoal entre os músicos que os tocam, tanto no palco – em termos de compreensão mútua de sinais não verbais utilizados para a comunicação entre músicos durantes as performances – quanto extrapalco – laços afetivos, político-partidários, intelectuais, escolares, etc. Os recursos sonoros – instrumentos, técnicas, itens de repertório – utilizados em rede pelos grupos de “música étnica” e pelos grupos de “músicas do mundo” inserem-se na cena musical paulistana ao mesmo tempo como referências musicais específicas de outras culturas e como referências oriundas de um cenário “global” de trocas e circulação de saberes musicais. Apresentadas individualmente, as práticas musicais étnicas remetem aos processos de construção de identidades em contextos que tensionam sua relação com os discursos do Estado e das fronteiras geopolíticas. A Troupe Djembedon aponta como fontes de repertório e técnicas da música mandinga tanto a “música das aldeias” quanto as “danças da capital”, explicitando, assim, processos de derivação da música considerada tradicional – que remontaria à constituição de um império mandinga, no século XIII, aproximadamente onde hoje se situam a Guiné, o Senegal, a Gâmbia e o Mali – para uma “música nacional” constituinte da representação projetada pelos governos pós-coloniais como “cultura da Guiné”. Por outro lado, apresentadas em conjunto, as “músicas étnicas” são percebidas como “músicas do mundo” na medida em que per-

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mitem a produção de sínteses ou bricolagens de sons que buscam representar traços ou aspectos similares presentes nas diferentes culturas musicais agenciadas principalmente pelos músicos e grupos articuladores dessa rede social. A inserção das “músicas étnicas” nos repertórios dos grupos de “músicas do mundo”, bem como no circuito musical da “diversidade cultural”, é representado, assim, por um deslocamento da perspectiva sobre as origens culturais e geopolíticas das músicas para uma perspectiva “cosmopolita”, qual seja, que apreende recursos e técnicas de produção e performance musicais tendo como fonte os próprios processos de circulação transnacional de músicos e grupos musicais através do mercado – informacional, fonográfico, de shows e festivais, de cursos e workshops –, das migrações, etc. Considerações finais A abordagem etnográfica de práticas culturais classificadas pelos discursos universalistas nos permite colocar em perspectiva os vetores de influência e poder representados a partir de eixos geralparticular. Enquanto a “música étnica” é representada pelas especialidades de determinados músicos atuantes na cena musical paulistana, as “músicas do mundo” são projetadas como representações da “diversidade cultural”. No entanto, ainda que constituída pela busca constante por expressões musicais “diferentes” das disponíveis no circuito musical paulistano, a noção de diversidade cultural é delineada pelas experiências de contato intercultural e das escolhas estéticas e políticas dos músicos que articulam as particularidades na forma de diversidade. Isso quer dizer que, ao posicionarem-se como mediadores do acesso de músicos de “música étnica” ao circuito de “músicas do mundo”, os músicos articuladores – neste caso Carlinhos Antunes e Magda Pucci – também restringem as experiências de contato do público com a diversidade, delineando mapas de “músicas do mundo” a partir de coleções particulares de sons e instrumentos pesquisados e trajetórias pessoais de contatos com sujeitos representantes de “outras culturas”. A relevância da observação dos papéis e das práticas de mediação está, então, na posição considerada “chave” para a compreensão de como se configuram os cenários ou universos “mais amplos” de atuação dos sujeitos e das próprias pesquisas etnográficas. Falar da inserção de “músicas do mundo” em um circuito local significa fa-

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lar de um processo de relocalização das práticas características de linguagens musicais específicas que servem como referência para as culturas de outros países/regiões. Neste processo, o particular e o geral são negociados através das relações de poder e influência sobre os mecanismos de decisão e acesso a recursos de produção e consumo. Em uma primeira escala vemos que as “músicas étnicas” assumem posições “locais” quando difundidas enquanto “músicas do mundo”, combinadas entre si para dar uma ideia de “diversidade cultural”. Ainda que sejam sínteses de influências de outros países e culturas, representando a tendência que seria da própria cena cultural paulistana, essa tendência é particularizada quando os grupos paulistanos de “músicas do mundo” se projetam além dela. Ou seja, a diversidade da cena paulistana não é a mesma de outros contextos, permitindo que os discos do Mawaca, por exemplo, sejam revendidos juntamente com outros nomes da “música brasileira” que potencialmente também incorporam influências “internacionais”, ainda que resultando em produtos sonoros diferenciados no que diz respeito à explicitação de símbolos, recursos e expressões musicais de “outras culturas”. A análise etnográfica dos processos de mediação e contato permite-nos explicitar, dessa forma, as relações de poder implícitas em cenários tomados como dados e compreender, a partir de situações onde se revelam lógicas conflitantes acerca dos modos de enquadramento e classificação de produtos e experiências culturais, os valores e pressupostos que informam a percepção socialmente construída do que é geral e do que é particular. Referências bibliográficas ABÈLÉS, Marc. “O racionalismo posto à prova da análise”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, pp. 103-120. AMSELLE, Jean-Loup. Mestizo Logics: Anthropology of Identity in Africa and Elsewhere. Palo Alto: Stanford University Press, 1998. ANDERSON, Benedict, Imagined Communities: Reflections on the Origins and Spread of Nationalism. 2. ed. New York/London: Verso, 1991.

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ETNOGRAFIAS DO COLONIAL

A missão de um ponto de vista relacional: um ensaio para a apreensão da prática a partir dos documentos

Iracema Dulley

A prática e os documentos O presente texto passa em revista uma questão metodológica central da pesquisa que desenvolvi no mestrado: a apreensão da prática por meio de documentos escritos ou, mais especificamente, como constituir agentes representantes de posições distintas numa arena de disputa simbólica a partir das informações disponíveis nos arquivos. Assim, busco avaliar o quanto o procedimento se mostrou profícuo e até que ponto essa escolha possibilitou dar conta de minha proposta inicial: constituídos os agentes, compreender suas diferentes estratégias no espaço de comunicação e disputa das missões católicas da Congregação do Espírito Santo no Planalto Central de Angola, território dos Ovimbundu1. Na pesquisa, coloquei-me o desafio de compreender o processo de comunicação e o engendramento de uma convenção de significação compartilhada no cotidiano das missões. Para tanto, recorri à teoria da prática de Pierre Bourdieu (especialmente 1972 e 2007), à abordagem proposta por Paula Montero (2006) para pensar a mediação no universo missionário e à reflexão desenvolvida por Roy

1.  O etnônimo Ovimbundu foi cunhado por missionários e administradores no período colonial para designar os falantes do idioma umbundu, habitantes do Planalto Central de Angola, grupo equivalente a cerca de 40% da população do território angolano. A designação foi então assumida pelos próprios como identificação étnica, e teve papel crucial nos períodos subsequentes, marcados pela guerra de independência e por anos a fio de guerra civil.

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Wagner (1981) acerca do processo de elaboração da alteridade2. Ao considerar a produção dessa convenção de uma perspectiva relacional e pragmática, colocou-se a necessidade de realizar um esforço de constituição dos agentes envolvidos na disputa. Sendo meu material empírico documental, vi-me diante do desafio de lidar com textos produzidos por apenas alguns dos agentes envolvidos no cotidiano na missão, em que pese a preponderância quase absoluta de fontes missionárias. A exceção foram alguns estudos acadêmicos, históricos e etnográficos realizados em meados do século XX, como explicitarei a seguir. Vali-me principalmente de fontes espiritanas: cartas e relatórios à sede da congregação e ao governo português consultados no arquivo dos espiritanos3, dicionários bilíngues (Alves, 1951; Valente e Guennec, 1972), uma gramática do umbundu (Valente, 1964b), uma compilação de provérbios e adivinhas (Valente, 1964a), uma coletânea de fábulas (Valente, 1973), instruções aos catequistas (Alves, 1954), catecismos (Lecomte, 1989; 1937) e etnografias missionárias (Estermann, 1983; Valente, 1985), sendo as últimas especialmente interessantes para acessar disputas sobre significado. Recorri, ainda, a trabalhos de historiadores e antropólogos no período ou sobre o período. Duas obras foram especialmente significativas: a etnografia de Edwards (1962), que retrata o cotidiano de uma missão católica na aldeia de Epalanga, extremo noroeste do Planalto Central, na década de 1950, e o estudo de Berger (1979), compilação do autor alemão em conjunto com os habitantes de Kasenje com o intuito de dar a conhecer os aspectos rituais e as crenças dos membros da comunidade “sob a ótica nativa”. As duas últimas obras se mostraram muito profícuas na revelação de aspectos do cotidiano local silenciados pelas fontes missionárias, tais como os íntimos laços de parentesco entre os catequistas católicos e os “pagãos”, a conivência dos primeiros com costumes “tradicionais” repudiados pelos missionários e a presença inelutável dos ovimbanda e olonganga, figuras associadas pelos missionários à prática do “feiticismo”. Para além das situações etnográficas, voltei o olhar para as traduções missionárias, buscando apreender o processo de mediação – fundamental para o 2.  Para mais esclarecimentos acerca do partido teórico adotado, ver Dulley (2010). 3.  Dada a quase inexistência de fontes referentes a meu objeto de pesquisa no Brasil, fez-se necessário um período de pesquisa de arquivo na sede da Congregação do Espírito Santo em Chevilly-Larue, França, realizado durante o mês de janeiro de 2007.

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estabelecimento de uma convenção de significação compartilhada – a partir das escolhas feitas no estabelecimento de equivalências entre os termos em português e umbundu4. Quanto ao recorte temporal, a pesquisa contemplou o período que vai do lento estabelecimento das primeiras missões em território ovimbundu, entre o último quartel do século XIX e o primeiro quartel do século XX, ao momento de maior intensidade da ação missionária, entre o estabelecimento das missões e o início da guerra de libertação em 19615. Contei como fontes primordialmente com produções missionárias. Não obstante, considerando que os missionários são agentes interessados em operar, num determinado contexto de disputa, generalizações que permitam fixar uma convenção de significação que faça sentido para os diversos agentes envolvidos e, assim, seja passível de servir de esteio e força motriz à comunicação na missão, percebe-se que o texto produzido por esse tipo de agente não poderia ser reflexo exclusivo de seu “ponto de vista”, mas é produto dos significados sedimentados no cotidiano da missão, nas disputas, controvérsias e diálogos ali ocorridos. Em suma, trata-se, para os missionários, de um trabalho de decodificação de um “outro”, cuja alteridade apresentouse inicialmente como radical, de modo a torná-lo não só inteligível, mas comunicável. Ora, se os registros missionários advêm da relação com os “indígenas”6, não são simplesmente expressão da visão de mundo dos primeiros, mas também dos processos de negociação com os segundos, aos quais esta perspectiva foi submetida e com base nos quais foi transformada como condição de possibilidade da própria interação.

4.  Concentrarei aqui minha exposição nas situações etnográficas. Para um tratamento do material referente à tradução, reveladora de aspectos sutis das disputas simbólicas na missão não apreensíveis em outros tipos de fonte, ver Dulley (2009 e 2010). 5.  Em 1961 foi deflagrada a guerra de libertação nacional. O Concílio Vaticano II, por sua vez, teve início em 1962. Os dois eventos trouxeram mudanças significativas para a prática missionária, merecendo um estudo específico. Isso explica a periodização adotada. 6.  “Indígena” foi a categoria utilizada pelo governo colonial português para classificar os “nativos” de suas colônias ultramarinas. Não tenho aqui absolutamente a intenção de valer-me dela como categoria de análise, por isso as aspas. Utilizo-a da mesma forma como utilizarei, entre aspas, outras categorias encontradas no discurso dos agentes, visto terem sido minha porta de entrada para sua constituição a partir das fontes. Para uma discussão mais detalhada a respeito do indigenato, ver Thomaz (2002) e Dulley (2010).

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O texto, os agentes e suas estratégias Na tentativa de constituir agentes, deparei-me com a seguinte dificuldade: as fontes produzidas pelos missionários e pelo governo colonial valiam-se de macro categorias como “indígenas”, “pagãos”, “brancos”, “assimilados”, “mulatos” ou “cristãos” ao fazer referência aos diversos sujeitos presentes no contexto. A literatura historiográfica e antropológica sobre o período, por sua vez, tende a basear-se em macro instâncias como “Estado”, “Igreja” e as diversas denominações aplicadas à categoria colonial dos “indígenas” (e.g. Bender, 1978; Péclard, 1998 e 2001; Pélissier, 1997). Se tais macro categorias eram de fundamental importância para compreender o contexto mais amplo no interior do qual esses agentes e as próprias missões atuaram7, os agentes que busquei compreender claramente não se encaixavam nessas categorias de classificação. No decorrer da exposição, tentarei mostrar como “missionários” e “indígenas” subdividem-se em diversas outras categorias, por vezes sobrepostas. Tal esforço mostrou-se de fundamental importância para revelar as relações no nível local da missão, não apreensíveis a partir de categorias tão englobantes. O material empírico de que dispus obrigou-me a adotar abordagens distintas para as diversas categorias de agentes. A abundância de dados biográficos a respeito dos missionários, por exemplo, permitiu uma caracterização mais minuciosa, inclusive do ponto de vista comparativo. Em contrapartida, não encontrei uma única referência a catequistas católicos que fosse além de seus nomes e me permitisse considerar casos particulares para construir trajetórias, a despeito do papel fundamental que desempenharam como mediadores em localidades mais afastadas dos centros missionários. Assim, optei por considerar as trajetórias de Estermann e Valente, missionários bastante significativos para as missões no Planalto Central, e valerme de generalizações menos metódicas ao abordar agentes como os catequistas, os chefes de aldeia e o mais-velho das escolas afastadas das missões. Aliás, o fato de considerar dois missionários específicos não implica tratá-los como indivíduos. Grande parte do esforço aqui empreendido foi para caracterizá-los enquanto agentes da missionação em Angola.

7.  Este esforço foi realizado de forma mais detida em Dulley (2010).

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Os “indígenas” Muitos dos agentes envolvidos no espaço de disputa das missões em Angola aparecem sob o guarda-chuva da categoria “indígenas”. Os mais importantes entre eles, e também os menos explicitamente mencionados, parecem ser os catequistas, cuja eleição como veículo da evangelização católica no interior se deu após o fracasso da primeira estratégia missionária de conversão: a formação de “aldeias cristãs” em torno das missões, compostas principalmente por ex-escravos resgatados pelos missionários (Koren, 1982). Assim, instituíram-se como método de controle de suas atividades as visitas periódicas dos missionários às aldeias do interior. Idealmente, as missões deveriam contar com no mínimo dois padres europeus para que um deles pudesse permanecer na missão e o outro se encarregasse das visitas às aldeias, tornadas mais viáveis com o início da construção do Caminho de Ferro de Benguela na década de 1910, que viria a atravessar o Planalto Central8. Contudo, dada a escassez de missionários para cobrir todo o território, estes acabavam por visitar cada aldeia de uma a duas vezes por ano, embora esta não fosse a periodicidade considerada ideal. Evidentemente, as aldeias ficavam entregues aos catequistas a maior parte do tempo, o que era visto pelos missionários com enorme desconfiança. Além disso, era frequente que os missionários fossem transferidos de uma missão para outra tão logo estabeleciam com a população local as relações de proximidade tidas por necessárias ao trabalho de evangelização. Os catequistas, por sua vez, deveriam fazer uma visita mensal à missão e comparecer às festas religiosas acompanhados dos “fiéis” de sua aldeia nas datas estabelecidas. Os batismos, comunhões e casamentos eram sacramentos administrados exclusivamente pelos missionários. Aos catequistas competia administrar a extrema-unção, em caso de necessidade, e, em se tratando de “pagãos” adultos à beira da morte, batizá-los se assim o desejassem e desde que se convertessem. As crianças filhas de pais “cristãos” podiam ser batizadas sem necessidade de conversão (Alves, 1954). Além de serem encarregados da administração de parte dos sacramentos, os catequistas eram responsáveis pelas escolas das aldeias, objeto de grande interesse por parte de seus moradores, na medida em que representavam a oportunidade de ascensão social 8.  Para uma reconstituição minuciosa deste processo, ver Neto (2007).

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mais certeira para seus filhos. Praticamente todas as crianças da aldeia frequentavam as escolas, que atendiam a uma demanda dos próprios aldeãos: alguns informantes de Edwards chegaram a dizerlhe que estavam no “tempo da escola” (Edwards, 1962: 84), em contraposição ao “tempo da borracha”, período de grande prosperidade no Planalto Central pré-“pacificação”9. Na Instrucção aos catequistas, o bispo Alves, consciente do interesse dos “indígenas” na instrução de seus filhos, recomenda aos catequistas que sejam estudiosos e se esforcem por ensinar, para além da doutrina, as primeiras letras e os números a seus alunos (Alves, 1954). Edwards chega a afirmar que não era raro ver adultos comparecerem às aulas na escola da aldeia. Segundo o autor, os informantes identificavam seu pertencimento a uma determinada aldeia com base no local onde se localizava a escola que frequentavam (Edwards, 1962). Essas escolas-capelas, ou écoles de brousse, serviam de palco a interesses de vários agentes, em momentos distintos do cotidiano da aldeia: das primeiras instruções à evangelização; da narração de contos e histórias locais às narrativas bíblicas e orações; do exame dos catecúmenos pelos missionários à resolução de conflitos entre os moradores. Nesse cenário, o catequista surgia como figura dotada de grande prestígio, mediador de conflitos e intermediário entre a aldeia e a missão e, por vezes, o posto administrativo (Von Eichenbach, 1971). Os alunos das escolas incluíam “cristãos” (já batizados) e catecúmenos10. O catecumenato, período de instrução que antecedia o batismo, geralmente durava de dois a três anos, conforme o domínio da doutrina demonstrado pelo aluno quando de seu exame pelo missionário. Ao batismo seguia-se a aquisição de um nome “cristão”, cobiçado inclusive pelos “não cristãos”. É interessante notar que todos os catequistas mencionados por Valente em Paisagem africana (1973) têm um primeiro nome “cristão”, conquistado por ocasião do   9.  O período de “pacificação”, também conhecido como “avassalamento”, ocorreu em Angola entre finais do século XIX e início do XX. Durante o período, o governo português submeteu os territórios do interior ao seu domínio oficial, no mais das vezes por meios militares. As chamadas “guerras de pacificação” foram fundamentais para o estabelecimento da pax missionaria e envolveram, dependendo da localidade, de pequenas escaramuças militares a verdadeiras chacinas nos casos em que os habitantes do local se mostraram refratários à presença colonial (Pélissier, 1997). 10.  Os alunos da escola eram todos localmente designados pelo termo vakwasikola, ou seja, “os da escola”. A designação era bastante bem vista pelos habitantes da aldeia, inclusive pelos que não frequentavam a escola (Edwards, 1962).

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batismo, seguido de um sobrenome em umbundu. Possuir um nome cristão era, sem dúvida, uma marca de distinção cobiçada enquanto sinalizadora de um vínculo com o universo dos ovindele (“brancos”), aspecto a ser mais explorado adiante. O catequista conduzia as orações diárias na escola, pela manhã e ao cair da tarde, com os homens de um lado e as mulheres do outro. Poucos eram os presentes às orações matinais, sendo mais numerosos nas orações vespertinas, momento no qual o catequista anunciava as notícias da aldeia, como uma visita próxima do missionário ou a iminência de um recrutamento de mão-de-obra. Eram frequentemente seguidas de cantos e danças variados, nos quais a liturgia cristã se misturava às danças locais. Aos domingos, praticamente todos os vakwasikola compareciam à cerimônia. As orações eram, via de regra, realizadas em umbundu, podendo ser cantado algum hino em português. Para além dos alunos regulares, alguns habitantes compareciam esporadicamente à escola para participar das orações. Grande parte dos entrevistados por Edwards, ainda que não frequentassem a escola, manifestavam o desejo de serem batizados. Havia aqueles que, tendo participado do cotidiano das escolas em algum momento, haviam-se afastado, mas ainda compareciam ocasionalmente às cerimônias mais importantes, como as grandes procissões realizadas nas missões por ocasião de Corpus Christi (Edwards, 1962: 77), de cuja grandiosidade e prestígio há amplo registro nos arquivos dos espiritanos. As visitas dos missionários às escolas eram acompanhadas de todo um cerimonial de boas-vindas envolvendo cânticos, vivas e discursos. Edwards compara a recepção do missionário à cerimônia dos casamentos locais: a semelhança se dava tanto no que diz respeito ao aspecto ritualístico quanto ao nível de comoção que suscitava. A presença do missionário associava-se à administração dos sacramentos: ouvia as confissões dos aldeãos, batizava os catecúmenos considerados aptos e rezava as missas nas quais os “fiéis” recebiam a comunhão. Quando da visita do missionário, competia ao catequista relatar-lhe os incidentes ocorridos na aldeia, principalmente a realização de casamentos ou funerais “pagãos”. O missionário inquiria o catequista também com relação ao “estado espiritual” dos frequentadores da escola e fazia comentários e críticas a respeito do estado de conservação das construções e do conhecimento doutrinário de seus alunos. O catequista era responsável por relatar ao missionário a presença de “adivinhos” e “feiticeiros” e de unidades residenciais poligâmicas (os “feiticeiros” e polígamos batizados eram passíveis de detenção).

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As visitas eram ocasiões privilegiadas para apresentar ao missionário pedidos de intercessão em favor da aldeia junto ao posto administrativo. Semelhantes pedidos também podiam ser feitos por ocasião das visitas do catequista à missão, geralmente em torno de quatro por ano, conforme a distância da aldeia, a disponibilidade do catequista e as necessidades. Os catequistas preferiam não se envolver com o posto administrativo, procurando esquivar-se de tarefas como recrutamento de mão-de-obra e levantamento de dados estatísticos para o censo. Preferiam colocar-se como intermediários entre a missão e a aldeia, representando tanto os “pagãos” quanto os “cristãos” aos olhos dos missionários e dos administradores, o que nem sempre era possível. Não existem muitas informações acerca do mais-velho da escola para além do papel de fazer a ponte entre o catequista, frequentemente jovem demais para ganhar o respeito da comunidade e conseguir dela autorização para estabelecer ali uma escola, e os habitantes da aldeia. O mais-velho seria necessariamente alguém com vínculos de parentesco fortes na localidade, respeitado por seus habitantes. O catequista vindo de fora contaria, portanto, com o prestígio do mais-velho para o bom andamento de seu trabalho. Conforme se optou por enviar catequistas às aldeias de seus próprios familiares, observou-se um acomodamento dos poderes relativos do mais-velho da escola e do catequista (Edwards, 1962: 77). Na aldeia, pode-se dizer que as posições mais fortes do ponto de vista do prestígio e do poder eram as de chefe local, chefe do governo, catequista e mais-velho da escola. Essas posições não eram necessariamente ocupadas cada uma por um sujeito distinto; era bastante frequente, por exemplo, que o chefe local – o “chefe tradicional”, do ponto de vista da administração portuguesa, a quem esta conferia tais poderes – acumulasse a função de chefe do governo, servindo de intermediário entre os habitantes da aldeia e o chefe do posto administrativo mais próximo. O mais-velho da escola também poderia acumular uma dessas duas funções de chefia, o que era bastante comum nos casos em que o próprio chefe da aldeia solicitava a presença do catequista. Este geralmente se limitava a essa função e ao cultivo de seus próprios campos ou trabalho em seu próprio ofício. Todos os quatro eram isentos do pagamento de impostos – o que não se aplicava aos catequistas protestantes – e de serem recrutados como mão-de-obra para trabalhos “voluntários”11. Eram as figuras cuja posição tinha mais 11.  Os Ovimbundu foram, durante o período colonial, obrigados a prestar trabalho

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peso nos momentos de decisão sobre quem apresentariam ao posto por ocasião dos recrutamentos, que ocorriam periodicamente e com frequência afastavam um número considerável de homens em idade produtiva de sua localidade durante um período de cinco anos (Bender, 1978). Os artesãos formados nas escolas de ofícios missionárias podiam ser dispensados do recrutamento mediante o pagamento de uma taxa. Os chefes do governo e da aldeia eram aqueles cuja posição gozava de menor estabilidade, uma vez que estavam sujeitos ao andamento de suas relações com o posto administrativo. Já o mais-velho da escola e o catequista, ligados às missões e preparados por elas, tinham posições mais estáveis. Seriam destituídos apenas no caso de perderem a confiança dos missionários ou envolverem-se em conflitos de difícil solução com os aldeãos. Os chefes de posto, que aparecem nas fontes como sendo exclusivamente brancos, eram representantes locais do governo colonial12. Além dos chefes de posto, trabalhavam neles um intérprete, funcionários com escolaridade primária e policiais, geralmente formados nas escolas das missões. O chefe da aldeia tinha a incumbência de visitar o posto administrativo de sua região mensalmente. Eram atribuições do chefe de posto o levantamento de dados para os censos, o recrutamento de mão-de-obra para os trabalhos compulsórios e a cobrança de impostos. O chefe de posto era uma figura ao mesmo tempo temida – por sua capacidade de influência, por exemplo na deposição dos chefes, e pelo poder de mandar prender os habitantes das aldeias que praticassem alguma contravenção – e prestigiada. Esse prestígio era manifesto em sua escolha por parte dos aldeãos para a arbitragem de conflitos para os quais não obtinham consenso na aldeia. Geralmente falavam umbundu muito mal, eram transferidos pelo governo para outro posto com frequência e interessavam-se pouco pelos hábitos locais. Edwards afirma que o sentimento predominante em relação a eles era o medo. Não obstante, é digna de nota a recorrência com a qual os habitantes das aldeias requisitavam-nos para a resolução de conflitos (Edwards, 1962). “voluntário” parcamente remunerado nas minas, nos campos agrícolas e na construção civil. A obrigação estendia-se a todos os “indígenas”, preferencialmente não cristãos. A proximidade da missão ou o apadrinhamento por algum branco ou “assimilado” eram formas de evitar o recrutamento. 12.  Os postos eram subdivisões dos “concelhos”, delegados a um administrador, que por sua vez eram subdivisões dos distritos.

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Semelhante posição de prestígio tinham os “assimilados”, oficiais ou pretensos, geralmente comerciantes, que viviam nos entornos das aldeias, ou então nas aldeias formadas predominantemente por “cristãos”. As licenças para possuir estabelecimentos comerciais eram reservadas aos “assimilados”, aos quais os aldeãos também recorriam para solucionar conflitos. Entre os “assimilados”, os indivíduos pertencentes ao clero desfrutavam de status mais alto quando comparados aos comerciantes ou funcionários públicos. Pode-se argumentar que os “assimilados”, embora tivessem status social mais elevado do que os comerciantes brancos pobres e, portanto, frequentemente habitassem lugares distantes dos aldeãos comuns e em condições distintas, tinham com estes maior proximidade do ponto de vista linguístico e cultural. Assim, eram, ao lado dos missionários, as figuras mais requisitadas para resolver as querelas locais das aldeias. Edwards relata o caso de um pretenso “assimilado”, Justino, fazendeiro rico de Epalanga, para quem diversos moradores das aldeias vizinhas trabalhavam, que vivia à europeia sem possuir documentos de “assimilado”. Seu principal passatempo nas horas vagas era arbitrar os conflitos surgidos entre “indígenas”, que o procuravam por admirarem sua posição. A despeito de se identificarem com os europeus, os “assimilados” mantinham seus vínculos com a população local, configurando uma classe de intermediários. Embora representassem uma possibilidade de ascensão social e equiparação aos europeus, não tinham posições políticas locais fortes no sentido de exercer liderança. Esse status diferenciado seria mais acentuado no interior, pois nas cidades a posição seria reduzida praticamente à isenção do recrutamento para trabalho e à maior chance de ocupar cargos de funcionários de baixo escalão (Bender, 1978). As fontes apontam para uma acentuada identificação dos Ovimbundu com os “brancos” e seu modo de vida em comparação com os povos circunvizinhos. O fato de os “assimilados” viverem ao modo dos portugueses fazia com que fossem vistos como brancos por si mesmos e por outros negros. Essa aproximação ao universo ocindele parece ter sido desejada por grande parte da população ovimbundu e seria possibilitada basicamente por duas formas de ascensão social: o enriquecimento material e a aquisição de capitais culturais “brancos”13. A relação com o universo missionário aparecia, sem dú13.  É interessante notar que ocimbundu, singular de ovimbundu, quer dizer, em umbundu, “negro”, o que fazia com que os supostos “assimilados” se definissem como “brancos”, ou ocindele. Assim, a distinção entre os “assimilados” e os “indí-

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vida, como uma porta de entrada para o alcance de tal objetivo, na medida em que era nas escolas que se tinha acesso a tais capitais, os quais, por sua vez, aumentavam as chances de ascensão social no contexto colonial. Havia momentos, entretanto, em que a aproximação dos “assimilados” ao mundo dos “brancos” era posta em questão. Edwards relata uma querela surgida porque Justino, a figura à qual aludi acima, dizia-se “assimilado”, embora legalmente não o fosse: baseava-se no fato de ser um fazendeiro de café e viver ao modo dos europeus para afirmá-lo. A briga ocorrera porque o chefe da aldeia ter-se-ia referido a ele como um otjimbundu tjango, “um simples negro”, fato que colocaria a possibilidade de um empregado seu ser recrutado como mão-de-obra pela administração colonial, pois apenas os empregados dos brancos e “assimilados” não o eram. A reclamação de Justino baseava-se no fato de pretender-se “assimilado”. Sua resposta teria sido Ame sitjimbunduko, “eu não sou um otjimbundu” (Edwards, 1962: 156). Sua réplica traz a polissemia da situação de “assimilado”: poderia ser, simultaneamente, traduzida como “eu não sou negro”, “eu não sou indígena”, “eu sou assimilado”, “eu sou branco” ou “eu sou cidadão português”. A equiparação dos “negros” aos “indígenas”, portanto, não era exclusiva dos registros dos colonizadores, mas se reproduzia no cotidiano das relações entre os agentes, que associavam uma determinada cor de pele a um determinado tipo de comportamento. Embora a disputa girasse em torno de estabelecer se Justino era ou não um otjimbundu, nota-se que o caráter pejorativo do termo não foi posto em questão por nenhum dos envolvidos na querela, nem mesmo pelo chefe, ele próprio “não assimilado”. A relação com a missão aparece, pois, como porta de entrada para outra classificação, a ocupação de outra posição no contexto local, no qual a aproximação à situação de ocindele era a medida de status corrente. Os missionários Voltemos agora a atenção aos missionários, buscando compreender as bases da produção de registros sobre os “indígenas” por esses agentes. Para tanto, valer-me-ei de dois missionários atuantes em genas” era estabelecida com base na cor de sua pele, fazendo com que os negros que se diziam assimilados se referissem a si mesmos como “brancos”. A cor negra era, portanto, assimilada ao modo de vida dito “primitivo”, ao passo que a cor branca seria característica do modo de vida “civilizado”.

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Angola no período de missionação mais intensa: Carlos Estermann e José Francisco Valente. O primeiro, renomado produtor de inúmeros estudos etnográficos, principalmente sobre os habitantes da porção meridional de Angola, e doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa, foi personagem de monta tanto no meio eclesiástico quanto no cenário acadêmico da época. Desempenhou papel político central na empreitada missionária espiritana em Angola ao mesmo tempo em que produziu etnografias reivindicando “objetividade” e “rigor científico” na descrição dos “indígenas”. Valente, por sua vez, poderia ser caracterizado como um missionário amante da brousse, cujo principal interesse era viver entre os “indígenas”, esquivando-se sempre que possível de responsabilidades burocráticas e administrativas, mas se dedicando a desvendar a “alma do povo bundo” de modo a aplicar esses conhecimentos na evangelização. Suas obras, pouco exploradas pela bibliografia angolanista, foram analisadas em outra oportunidade (Dulley, 2010). Por ora, gostaria de contrastar a posição assumida por Estermann e Valente na missão e relacionar sua produção etnográfica ao tipo de interação que estabeleceram com os evangelizandos. Logo nas primeiras páginas da obra Etnografia de Angola (Estermann, 1983), coletânea de artigos escritos por Estermann ao longo de sua vida, o leitor depara-se com um retrato seu datado de 1974: franzino e plácido, de barba comprida, a batina negra coberta de condecorações. Estermann nasceu em Illfurt, em território alsaciano, em 1896. Contam as crônicas missionárias que teria sido encaminhado a Saverne por seus professores após o término dos estudos primários devido ao grande potencial nele visto. Teve seus estudos para o sacerdócio interrompidos pela Primeira Guerra Mundial, na qual tomou parte na linha de combate. Levado como prisioneiro para Manchester, lá teria aprendido o inglês. Com o final da guerra, de volta a Chevilly, nos arredores de Paris, concluiu seus estudos e foi ordenado padre em 1922. Seguiu para Portugal com o objetivo de aprender o português e depois para Angola, onde lhe foi designada a Prefeitura do Cubango. Eram os tempos do estabelecimento efetivo da missão católica em território angolano. Sua ascensão foi rápida: em 1933 foi nomeado superior das missões da Huíla e vigário geral da Chela. Nesse período, construiu inúmeros edifícios nas missões pelas quais era responsável e fundou diversos colégios. É retratado como um homem “com visão de futuro”, “empenhado na promoção dos povos” (In: Estermann, 1983).

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Estermann era figura bastante popular em Angola e Portugal, sendo conhecido não só pelo trabalho de evangelização, mas também pelos artigos de etnologia publicados no meio acadêmico francês, inglês, americano e alemão. Em seu discurso, era recorrente a afirmação de que embora se dedicasse com afinco à produção de conhecimento sobre as populações “indígenas”, fazia-o principalmente com o objetivo de compreendê-las de modo a instrumentalizar esse saber para a evangelização e a “civilização”, aspectos de seu trabalho aos quais conferia maior importância. A despeito do histórico de intelectuais da congregação espiritana, é bastante notável a necessidade recorrente de justificar sua ampla produção “científica” e asseverar que ela não representava empecilho para sua vocação missionária, por um lado, e de legitimar o trabalho etnológico do missionário, por outro, reivindicando maior autoridade na compreensão dessa alteridade devido ao maior tempo de permanência em campo, ao domínio das línguas locais e ao conhecimento mais próximo dos “indígenas”. Estermann afirma: Cremos que não há etnólogo nenhum, digno deste nome, que negue serem os missionários quem mais facilmente podem perscrutar a mentalidade, observar a actividade espiritual e medir as reacções psicológicas dos não civilizados. (Estermann, 1983: 325)

Esse discurso era legitimado pelas condecorações e pelo reconhecimento da academia portuguesa, bem como por suas relações no meio acadêmico internacional e pela instituição dos cursos de etnologia e linguística nos seminários, contexto no qual se deu sua formação. Em sua obra, combinam-se influências do difusionismo alemão e do evolucionismo britânico. A ideia de “estágios de desenvolvimento” alia-se à tentativa de compreender a “cultura” dos povos “indígenas” e o processo histórico de aquisição dos traços que a caracterizam. Isso de uma perspectiva racialista, na qual a hierarquia da classificação relaciona um determinado grupo linguístico a uma determinada “raça” (por exemplo, a raça negra dos “bantos”), e uma etnia a uma língua (como é o caso dos “bundos”, falantes de “umbundo”). Estermann estabelece um diálogo bastante significativo com produtores de etnografias, missionários ou não, como Junod, Lang, Mendes Corrêa, Jorge Dias, Lubbock, Seligman, Schapera, Herskovits e van Wing. A preocupação com a etnografia é colocada por

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Estermann como indispensável à ação missionária porque, segundo ele, somente uma observação cautelosa poderia embasar as generalizações necessárias para a compreensão das populações “indígenas”. Um projeto etnográfico que desse conta da descrição e explicação da “cultura” de cada uma das “etnias” que habitavam o território angolano é recorrentemente mencionado e vai ao encontro da necessidade de generalizar para estabelecer as diretrizes da missionação entre os “bantos”. Assim, embora grande parte de seu trabalho como missionário tenha sido realizada entre os Kwanhama, o conhecimento das etnografias de outra regiões, somado a sua experiência de terreno, auxiliam-no na construção de suas generalizações, por exemplo, sobre o “culto aos ancestrais” e o “feiticismo” em Angola. O escopo de seu trabalho relaciona-se a sua posição no campo missionário: personalidade prestigiada, formadora de opinião a respeito dos “indígenas”, ocupando cargos de superior e visitador das missões de parte significativa do território angolano. Nada mais condizente com tal posição do que a intenção, também em suas pesquisas, de dar conta do território como um todo e revestir-se de todo um arsenal teórico-metodológico a ser explicitado como embasamento para as conclusões apresentadas. Bastante distinta é a preocupação de José Francisco Valente, espiritano de origem portuguesa atuante nas missões do Planalto Central. Nascido em 1912 em Unhais da Serra, fez o noviciado na França e foi ordenado padre em Portugal em 1936. Aportou em Angola em 1937, onde passou 43 anos, retornando a Portugal em 1970. Faleceu em 1993 em Torre d'Aguilha. Seu obituário, sucinto, afirma: O seu ambiente preferido era no meio das crianças e dos velhos: com aquelas aprendia a língua e, com estes, aprofundava o conhecimento dos segredos e dos costumes das gentes. (arquivo da C.S.Sp., Paris)

Do que se depreende das poucas correspondências entre os missionários que o mencionam, Valente encaixa-se muito bem na categoria do missionário encantado com a vida entre os “indígenas”, pouco afeito às atividades burocráticas, amante da brousse. Há pouquíssimos registros a seu respeito no próprio arquivo da congregação e, a despeito de muito ter procurado, não pude encontrar nenhuma fotografia sua. Os escassos dados biográficos encontrados a seu respeito foram garimpados nos relatórios sobre as missões e seus responsá-

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veis e em suas próprias obras. As poucas cartas trocadas entre ele e o superior da congregação, assim como cartas de outros missionários a seu respeito, abordam dificuldades de convivência com outros padres e freiras e aludem a pedidos seus de que não seja trocado de missão para poder dedicar-se exclusivamente ao trabalho de evangelização. Ao que tudo indica, a função de superior das missões desagradavalhe, sendo encarregado da tarefa apenas por falta de substituto14. Esforçava-se por conseguir um posto no qual pudesse dedicar-se às visitas às catequeses no interior, se possível sem ocupar o cargo de superior. Passou grande parte do tempo em campo e ocupou poucas posições de destaque, tendo-o feito, ao que parece, apenas por imposição de seus superiores e em vista de seu voto de obediência. Não obstante, são vários os seus trabalhos em umbundu. É curioso, inclusive, que sua obra não seja citada por Estermann, embora este o seja por Valente. Ao contrapormos a obra dos dois espiritanos, fica patente o escopo mais restrito dos escritos de Valente: este se limitou aos Ovimbundu, não tendo a pretensão de fazer uma teoria generalizadora para todos os “bantos”. Não obstante, vale-se com frequência desta categoria mais ampla e situa os Ovimbundu como uma etnia pertencente a ela. Nenhuma de suas obras é uma etnografia no sentido estrito do termo, embora comentários etnográficos permeiem todas elas. A preocupação com a língua, no caso o umbundu, é constante em todas as suas publicações, sendo ainda mais central do que em Estermann. A compilação enciclopédica e as associações entre significados em umbundu e português, que o próprio missionário denomina “locubrações linguísticas”, são os principais procedimentos utilizados por Valente. A narrativa de Estermann, por sua vez, aproxima-se mais do tipo de narrativa etnográfica que situa o próprio autor em campo. Numa das passagens mais marcantes de sua coletânea de artigos, Estermann relata a forma como se aproximou, em fins de julho de 1924, de um grupo de “bosquímanes” contatado já há alguns anos por intermédio do padre Carlos Mittelberger, superior da missão de Omupanda: 14.  Nota-se, pelas correspondências e relatórios, que ao longo de seu tempo de missão foi trocado de estação mais de dez vezes, tendo trabalhado, entre outras, em Galangue na década de 30; em Caconda, onde foi superior de 1941 a 1947; em Caluquembe, fundada por Valente após sua saída de Caconda; em Luimbale; no Bailundo; na Chicuma (1952); em Balombo (1953); em Benguela (1953); de volta ao Bailundo por desentendimento com outro padre; no Huambo (1960).

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Viajamos de carrinha até ao ponto do último estabelecimento comercial daquela terra. Depois prosseguimos as nossas jornadas de carroça através da floresta ressequida e arenosa. Já no dia da nossa chegada ao local previsto encontramos um grupo numeroso de gente “vermelha” graças à intervenção inteligente do catequista regional e da sua mulher, ambos pertencentes à nobreza cuanhama.

No dia seguinte, teriam afluído pessoas de todos os lados: 244 indivíduos em volta da nossa barraca de campanha. (...) Em seguida começamos a fazer as nossas observações, a investigar e a tirar fotografias sem encontrar a menor relutância por parte destes selvagens. É verdade que a sua confiança ainda aumentou a olhos vistos graças à distribuição de abundantes rações de carne, massango, sal e tabaco. (ibidem: 45)

Ao ler o relato, o leitor visualiza os missionários em viagem árdua pelo interior, de “carrinha” inicialmente, nas regiões onde havia estradas, e depois de carroça através da floresta inóspita. Encontram-se, em seguida, com a “gente vermelha” procurada, contatada por intermédio do catequista e de sua mulher, não pertencentes ao grupo dos “bosquímanes”, mas à “nobreza cuanhama”. Aqui se vê, uma vez mais, a maior distância existente entre os missionários e seus evangelizandos nos ambientes distantes da sede das missões: a intermediação dos catequistas é necessária mesmo para terem acesso a parte da população. Em seguida, afluem diversos indivíduos dessa “raça vermelha” à barraca, atraídos pela distribuição de alimentos e tabaco pelos missionários, cujo intuito era principalmente observálos, fotografá-los e realizar medições antropométricas de 25 adultos dos dois sexos. Estermann lamenta não ter sido possível estabelecer com os “bosquímanes” a mesma relação, com o “mesmo caráter de espontaneidade – diria mesmo cordialidade – que facilmente existe entre um velho missionário e os indígenas” (ibidem: 51). Evidentemente, o grau de relação estabelecido com essas pessoas (os ditos “bosquímanes”) por parte dos missionários foi bastante irrisório se comparado ao convívio diário com os catequistas e alunos internos e externos das missões, restrito como estava principalmente à troca de carne de caça por produtos agrícolas da missão.

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Após a aproximação inicial, na qual os missionários tentavam achegar-se aos “indígenas” oferecendo-lhes comida e acolhida na missão, estabeleciam-se pouco a pouco relações mais próximas e duradouras. Não pretendo, com isso, afirmar que a “espontaneidade” e “cordialidade” das relações na missão impliquem um equilíbrio na correlação de forças. O afeto entre os “velhos missionários” e “seus indígenas” foi um dos principais mecanismos de manutenção da desigualdade da relação. Diferentemente da situação descrita acima, na qual o missionário passava alguns poucos dias acampado em uma barraca na floresta, munido de seu caderno de apontamentos e de uma câmera fotográfica, as etnografias produzidas sobre os povos entre os quais trabalhava eram produto de outro tipo de relação: convívio cotidiano no qual se observavam os hábitos e se aprendia a língua, entrevistas, relatos mais ou menos espontâneos, querelas resolvidas pelos missionários. Sobre o método etnográfico de Estermann, afirmam seus colegas da congregação: Depressa se amoldou ao estilo da vida missionária, contactando directamente com o povo. Observador perspicaz e (...) etnógrafo curioso, anota tudo o que vê e ouve de interesse para o melhor conhecimento dos costumes e tradições da população local. Regista, mesmo, minuciosas diferenças e variantes, como nos penteados ou nos utensílios usados, etc. (ibidem: 2) Muito metódico e fiel ao seu horário de trabalho, não menosprezava todo o tempo que pudesse dar-se à vasta leitura e à recolha de comunicações dos evangelizandos. Quanto mais estes se abriam, relatando o dia-a-dia e os conhecimentos possuídos das variadas fases da vida da etnia, melhor se preparavam para a vida cristã. (ibidem: 5)

Observa-se, pois, uma combinação de métodos que vão de viagens, anotações sobre a cultura material e os rituais “indígenas” às conversas com os evangelizandos. Num dado momento, Estermann revela de onde provêm suas informações: “um informante kwanyama que é muito ligado a mim há 25 anos assim o declarou” (ibidem: 278). As informações obtidas junto a esse tipo de agente foram, sem dúvida, as mais importantes para a conformação do saber missionário sobre os “indígenas”: sabemos que dispunham de pouco tempo para incursões demoradas ao interior, reservado principalmente aos

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catequistas, e que os habitantes das regiões onde a presença missionária não era significativa impunham, frequentemente, restrições à participação dos missionários nos rituais locais. As descrições oferecidas a respeito dos “povos primitivos” eram, portanto, no mais das vezes filtradas não só pelo olhar do missionário, mas pelos próprios “primitivos” que as relatavam: falantes do português, tendo convivido anos a fio com os missionários da congregação, conhecedores dos diversos contextos envolvidos nessa comunicação e intermediários privilegiados entre eles. Ora, o predomínio da relação com os evangelizandos na constituição desses saberes era tanto maior quanto mais tempo o missionário passasse na missão. Estermann foi um missionário sobrecarregado de funções administrativas e burocráticas, com as obrigações de visitas às missões do território, somando-se a elas as inúmeras palestras e viagens ao exterior para divulgar o trabalho missionário e a produção “científica” sobre os “indígenas”. Assim, restavam-lhe poucos momentos de convívio com “indígenas” muito distantes do universo missionário. Sua perspectiva é condizente com o formato de suas obras: metódico, partindo sempre do particular para o geral, apoiando-se em noções etnológicas correntes, com pretensão de “rigor científico”. Valente, por outro lado, embora tenha sido superior de diversas missões, passando longos períodos envolvido nas mesmas atividades burocráticas e administrativas, com exceção das atividades de visitador e das viagens ao exterior, preferiu o trabalho de terreno, a presença em missões estabelecidas há pouco, a participação no cotidiano dos “indígenas”. Ao método de Estermann contrapõe-se a vivência caótica do cotidiano de Valente, tanto nas missões quanto no interior, refletida na forma de suas obras: sem começo, meio e fim, uma coleção de impressões e julgamentos esboçados ao acaso, sobrepostos, de “locubrações” linguísticas sobre o pensamento mais profundo dos “bundos”, corroboradas por sua observação em campo durante 43 anos. O tipo de registro produzido como que prescinde da autoafirmação de sua presença entre os “indígenas”, bastante recorrente em Estermann. Ao passo que este vez por outra enumera seus informantes já nas décadas de 1930 e 1940, Valente menciona um ou outro “bundo” en passant, sem a preocupação de reafirmar para o leitor a veracidade de seu relato. Quando menciona o caso de uma rapariga indignada com a imposição de seu casamento por parte dos pais na Problemática, por exemplo, o caso é trazido à luz como mera ilustração. O oposto ocorre com o alsaciano, que enumera entre seus

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informantes inclusive personalidades que foram ou ainda eram kimbandas, os mesmos agentes associados pelos missionários a práticas “feiticistas”, (idem, ibidem: 315; 344). Valente, ao invés de enumerar personagens de seu convívio, reporta-se a situações concretas: a proibição por parte de alguns maisvelhos com relação à presença dos missionários nos rituais de casamento e enterros, exceto quando este fosse “amigo” dos “indígenas”, os serões em volta do fogo. Minha hipótese é de que o maior convívio com “indígenas” de diferentes contextos, aliado à menor formação acadêmica de Valente, faria com que o missionário considerasse sua convivência com eles critério suficientemente válido para corroborar suas afirmações15. Não julga necessário apontar “indígenas” concretos, nem tampouco fazer menções constantes a sua presença em campo. Ela é inferida de seus amplos conhecimentos linguísticos e dos detalhes do cotidiano “bundo”. Nas palavras do próprio Estermann, seria este o método etnográfico mais apropriado, intimamente relacionado ao domínio do vernáculo: É por demais sabido que não é pelo método da interrogação directa (...) que se obtêm resultados apreciáveis e positivos. É preciso poder surpreender conversas e cerimónias, é preciso por à vontade o nosso selvagem, agir por forma que ele faça abstracção da presença dum observador estranho. Só assim ele descobrirá, pouco a pouco, todos os seus segredos. (ibidem: 41)

Não obstante a preferência dada à “observação participante”, segue abaixo um interessante relato de Estermann, que nos permite visualizar como conduzia suas entrevistas, principalmente no que diz respeito a temas aos quais dificilmente teria acesso a não ser através de recém-conversos. O artigo em questão tem o título “Inovações recentes no culto dos espíritos no Sul de Angola”, foi publicado em 1966 e refere-se ao que via como “novidades” introduzidas nos “tradicionais” cultos aos ancestrais: Foi num interrogatório feito a três catecúmenas muílas, pertencentes à mesma catequese, que nos foram reveladas as novidades espíritas que estamos relatando. 15.  A formação acadêmica mais restrita de Valente não é uma questão individual do missionário, mas uma característica do contexto colonial português no que diz respeito à produção de conhecimento sobre os territórios ultramarinos.

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Todas são mulheres e mães de filhos, de entre 18 e 24 anos. Duas contraíram matrimónio natural e a terceira vive em companhia de um homem cristão da mesma etnia. A primeira interrogada calhou ser a irmã mais velha de nome Nangombe. - “Tens espíritos?” - “Sim” - respondeu com a maior naturalidade. - “Quantos tens?” Depois de uma curta pausa para fazer a contagem, vem a reposta com a mesma franqueza. - “Quatro”. - “Quais são?” - “Dois ovikamwila, um okamunano e um otyikangandyi. Maior número indicou depois Kakinda, a mulher do cristão, pois a pobre mulher encontrava-se possessa por sete destes entes “supernaturais”. Felizmente que alguns deles já se tinham afastado, mas, no momento do exame, ela era ainda habitada por quatro. (...) Muito interessante a maneira como ela [Kakinda] explica o estado de espírito em que então se encontrava. Transcrevemos à letra o que ela disse: - “Kutyinoñgonok'ale. Tyafwa wapanyala oatake”. É de notar que ela emprega a segunda pessoa do singular, em vez da primeira, figura retórica aliás frequente no falar desta gente. Tradução: “Não podes fazer uma ideia (ou: “Não podes ter uma noção exacta, consciente”.) parece que apanhaste um ataque”. Como se vê, ela exprime-se segundo esta expressão em português, adaptada, é claro, à fonética da língua que fala, por lhe parecer traduzir melhor o que sentiu naquele momento. (ibidem: 356-357)

Estermann aparece claramente como condutor do interrogatório. Trata-se da “interrogação directa” desaconselhada na citação precedente. Ele coloca as questões: se as interrogadas “têm espíritos”, sua quantidade, de qual tipo são, como se apoderam do “possesso”. Interessantíssima é a resposta de Kakinda, a respeito da qual se pode inferir, justamente por ser “a mulher do cristão”, uma relação de maior proximidade com o universo da missão, na qual aparece, em meio à narrativa em umbundu, a palavra oatake, umbundização de “ataque”. Muito embora o missionário afirme que tenha empre-

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gado o termo “por lhe parecer traduzir melhor o que sentiu naquele momento”, é possível enxergar aqui a pactuação de uma convenção referente à “possessão”, descrita pelos missionários no século XX não mais como “possessão diabólica”: tendo em vista a chave de leitura psicologizante dos fenômenos observados, a “possessão” aparece como bastante próxima à histeria como descrita pelos estudos psicanalíticos. Esta seria inclusive uma explicação para a predominância de relatos sobre os fenômenos de “possessão” por parte das mulheres, a despeito de haver um grande número de ovimbanda do sexo masculino, um dos quais inclusive aparece no arquivo espiritano em fotografia ao lado dos missionários, à porta de sua cubata. O relato acima é emblemático da forma como se vai conformando um código de comunicação nas relações cotidianas entre os agentes na missão. O “culto aos ancestrais”, associado a práticas “feiticistas”, foi sem dúvida foco de muita atenção dos missionários por representar um obstáculo de monta a sua proposta evangelizadora16. Assim sendo, os diversos agentes em interação viram-se às voltas com a necessidade de forjar uma convenção de significação que lhes permitisse ao mesmo tempo comunicarem-se uns com os outros e perseguir, cada um, sua estratégia nessa disputa simbólica. Para tanto, fazia-se necessário um diálogo no plano das práticas e dos discursos – eles também práticas – que pusesse em relação os significados atribuídos a esses elementos pelos diversos agentes. Oatake, palavra de origem portuguesa cujo som se aproxima bastante do umbundu e se encaixa perfeitamente em sua gramática após adquirir o designativo de classe “o”, configurou-se como noção plausível de ser compreendida por todos os agentes na missão em referência à “possessão” que antecedia a comunicação com os antepassados no “culto aos ancestrais”. O processo por meio do qual se teria chegado a tal compromisso foi a interação entre os agentes em momentos nos quais os “ritos de possessão indígenas” eram postos em questão. A “mulher do cristão” certamente não fazia ideia da leitura do missionário de sua “possessão” na chave da histeria. Este tampouco dominava completamente as convenções do ritual local, o qual buscava compreender de maneira mais ampla ao interrogar essas mulheres. Entretanto, um termo, oatake, colocava esses agentes em comunicação. Sentidos divergentes confluíam de suas diversas posições no contexto, mas a criação de uma convenção de significação lhes permitiu entrar em diálogo – e, certamente, também em disputa. 16.  A esse respeito, ver Dulley (2009).

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Conclusão Na exposição acima, procurei constituir alguns agentes das missões espiritanas em Angola e mostrar como sua interação produziu algumas convenções de significação partilhadas, embora dotadas de sentidos distintos para cada agente específico. A análise mostrou também em que medida o teor das fontes disponíveis estabelece limites às possibilidades de reconstituir agentes a partir de documentos com o intuito de apreender sua prática. A partir de meu material empírico foi possível formar um quadro mais completo de alguns agentes, como Estermann e Valente; outros, como os catequistas, puderam ser vislumbrados apenas de relance, embora seu papel fosse central para compreender o espaço das missões católicas no Planalto Central como arena de disputa simbólica. Não obstante, acredito ter sido possível apontar os principais agentes do universo missionário, de forma mais ou menos detalhada, e sugerir algumas das estratégias que teriam movido esse processo de comunicação. Julgo ter sido mais bem-sucedida em meu objetivo principal, qual seja, mostrar como os documentos de que dispus não permitem somente aceder a uma visão dos missionários, nem a um suposto “nativo” localizado “do outro lado” das fontes, mas também a uma relação entre agentes distintos que não precisam ser reduzidos por categorias binárias. Gostaria de concluir este exercício apontando alguns caminhos alternativos para dar continuidade à pesquisa num aspecto bastante intrigante: o relativo silêncio das fontes a respeito da atuação dos catequistas. A ausência, em princípio incontornável no âmbito de uma pesquisa documental, poderia ser trabalhada em entrevistas com velhos catequistas atuantes nas missões no período. Certamente não se trataria de um mero preenchimento das lacunas da documentação, mas da abertura uma série de questões novas, tais como o lugar da memória sobre o período colonial e da própria guerra que o sucedeu na ressignificação da trajetória dos agentes. Não obstante, tendo em vista que a pretensão é constituir agentes em termos de suas posições e disposições, acredito que uma consideração atenta de suas narrativas, ainda que cinquenta anos mais tarde, seria de grande valor heurístico17. Outra possibilidade interessante seria o estabelecimento de uma comparação sistemática com as missões protestantes atuantes 17.  Os trabalhos de Marcelo Mello e Daniela Moreno Feriani nesta coletânea trazem uma discussão aprofundada da relação entre trabalho de campo e arquivo.

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no mesmo local durante o período com o intuito de ampliar o entendimento acerca do contexto missionário e das possibilidades de agência em seu interior. Por um lado, as respectivas fontes documentais apresentam semelhanças e diferenças bastante rentáveis do ponto de vista comparatista: se o tipo de material produzido se assemelha em linhas gerais, as compilações linguísticas apontam para diferenças significativas entre missões católicas e protestantes no que diz respeito às escolhas realizadas nas traduções missionárias; por outro lado, existe nas fontes protestantes uma considerável produção de histórias de vida de missionários europeus e americanos, bem como da primeira geração de pastores “indígenas”, o que permitiria uma reconstituição de trajetórias muito mais fina do que a possibilitada pelas fontes católicas; os relatos dos próprios catequistas “indígenas” vinculados às missões protestantes, inexistentes nos registros católicos, é sem dúvida uma fonte promissora a ser explorada. A pesquisa de campo junto a velhos catequistas católicos e protestantes, por sua vez, ajudaria a contrapor dois universos missionários internamente bastante distintos, mas imersos num contexto semelhante do ponto de vista social, cultural e político, ainda que as relações das missões católicas e protestantes com o entorno se dessem de maneira inegavelmente distinta. As leituras protestantes a respeito do universo católico e vice-versa poderiam, ainda, auxiliar a compreender os ruídos presentes nas fontes e compreendidos como indícios de disputa. A adoção de uma perspectiva duplamente comparatista apresenta-se, pois, como possibilidade para ampliar os horizontes da pesquisa, colocando em diálogo os universos protestante e católico, por um lado, e o trabalho com a documentação e a pesquisa de campo no sentido estrito do termo, por outro, com o intuito de estabelecer inter-relações entre o material empírico produzido nessas situações de pesquisa de modo a ampliar as possibilidades de constituição de agentes, disposições e sentidos. Referências bibliográficas ALVES, Pe. Albino. Dicionário Etimológico Bundo-Português. Lisboa: Silvas, 1951. ________. Directorio dos catequistas. Huambo: Tipografia da Missão do Cuando, 1954.

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Visões do campo sobre o arquivo (e vice-versa)1

Marcelo Moura Mello

O objetivo deste texto é refletir sobre o uso de fontes arquivísticas na pesquisa antropológica e sua relação com a produção etnográfica, bem como a implicação das experiências de campo sobre a descrição, manejo e leitura dessas fontes. Na primeira seção, exponho os diferentes contextos nos quais realizei pesquisas de campo e em arquivos históricos envolvendo a comunidade negra rural de Cambará, localizada entre os municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul, região central do estado do Rio Grande do Sul. Ver-se-á que a confrontação entre registros escritos e relatos orais abriu novas potencialidades para investigar a memória e a história da comunidade. Durante o texto, problematizarei a confrontação entre campo e arquivo para além da metodologia, buscando perceber as assimetrias que estão na base dessa relação, além de sugerir diálogos entre o campo e o arquivo com o objetivo de mitigá-las. *** Neste primeiro momento, trago o contexto em que se deram as investigações sobre a história de Cambará, tanto em campo como em arquivos. Farei isso por meio de uma breve exposição dos projetos de pesquisa que ali tiveram lugar. Como veremos a seguir, a assunção identitária do grupo enquanto comunidade remanescente de quilom1.  Partes dos argumentos aqui reunidos foram expostos em Mello (2007) e Mello (2008a). Agradeço às organizadoras deste livro pela rigorosa leitura e pelas valiosas sugestões.

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bos foi determinante para o caráter que as pesquisas – e os procedimentos investigatórios – assumiram. Três projetos de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foram desenvolvidos em Cambará nos anos de 2002 e 2003. Os dois primeiros – ambos realizados no ano de 2002 – tiveram curta duração. A participação no último deles – realizado em um período de dez finais de semana entre os meses de setembro e dezembro de 2003 – permitiu minha inserção no grupo. Já nessa época os estudantes que participaram desses projetos tinham por incumbência, entre outras coisas, realizar entrevistas com os moradores e coletar dados que pudessem servir de base para a possível elaboração de uma perícia antropológica, doravante denominada “laudo”. Em 2005 a UFRGS, em convênio firmado com a Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), começou a elaborar um laudo antropológico com vistas a instruir o INCRA sobre os procedimentos administrativos referentes a Cambará, que reivindicava a titulação de suas terras com base no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias2. A UFRGS formou uma equipe que contou com professores e estudantes provenientes da Geografia, da História e das Ciências Sociais, equipe da qual fiz parte. Foi nesse contexto de produção de um laudo que as pesquisas em arquivos se iniciaram. O fato de eu haver travado contato com o grupo previamente – detendo um conhecimento razoável dos eventos tidos por marcantes para os moradores do local – acarretou em meu envolvimento direto com as incursões aos arquivos desde o princípio. Supunha-se que seria possível localizar documentos que aludissem a esses eventos, o que ulteriormente se confirmou. Foi possível localizar em diversos arquivos farta documentação que reportava a muitos dos fatos narrados por homens e mulheres de Cambará. O dito e o escrito confirmavam-se, até mesmo em pormenores. Durante a elaboração do laudo, privilegiou-se perceber as correspondências entre dito e escrito. Isso porque o investimento nos arquivos estava diretamente condicionado ao gênero de saber que estávamos produzindo. Ora, a peça que elaborávamos visava reconhecer direitos. Embora haja uma crescente flexibilização da legislação, há que se percorrer caminhos tortuosos para que os direitos previstos na 2.  O artigo estabelece que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

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Constituição tenham efetividade plena. As narrativas dos moradores de Cambará por si só não eram garantia da validade do pleito. Passase algo diferente quando, por exemplo, os relatos sobre o roubo de terras encontram equivalência no escrito. Como notou Oliveira (2002: 258), a intervenção de antropólogos em processos judiciais e administrativos deve ser tomada enquanto exercício de uma competência técnico-científica em meio a um complexo jogo de pressões e negociações que envolvem diferentes agentes. Na situação de perícia, o papel e a competência que antropólogos são chamados a cumprir estão imersos em um campo de disputas. Os quesitos a serem respondidos são elaborados num contexto no qual diversos agentes, investindo seus interesses e pré-concepções, dialogam com o perito (e porventura o pressionam): a situação de perícia interfere na formulação e formatação das comunidades científicas e não científicas (Anjos, 2005: 111). Por maior que seja o rigor conceitual, analítico e ético investido neste tipo de intervenção, caberia perguntar se os efeitos de autoridade dos laudos não resultam na institucionalização de um estado do cenário das lutas (Anjos, 2005). Destarte, a busca e a localização de documentos estiveram diretamente condicionadas a essa situação prática. Está-se diante da constituição de um campo eminentemente político onde representações autorizadas sobre o presente e seus significados para diferentes atores estão particularmente sinalizadas e visíveis nos arquivos (Cunha, 2005). Se o passado é um campo de disputas, as mediações com os arquivos podem oferecer ferramentas para autorizar os discursos e versões do passado, além de fornecer subsídios que permitam estabelecer continuidades com o campo de disputas que se configura no presente. Mais fundamental ainda é saber se a análise dos relatos a partir dos documentos não acaba por desembocar numa postura assimétrica na qual não se problematizam os pressupostos que estão na base da confrontação entre oralidade e escrita, sendo aquela avaliada apenas em função desta. Para tratar deste ponto, introduzirei alguns exemplos que possibilitarão discutir as escolhas metodológicas utilizadas na reconstituição do passado. *** A descrição da trajetória histórica de Cambará, no laudo, não se restringiu a uma adequação ao contexto prático mencionado acima.

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Com o tempo, novas questões e novos problemas foram surgindo. Em minha pesquisa de mestrado, as urgências práticas do laudo não se faziam mais presentes, embora a localização de dados históricos sobre Cambará continuasse sendo importante para sustentar os pleitos locais3. O conteúdo registrado nos documentos correspondia às narrativas dos membros de Cambará em diversos pontos, divergia em outros tantos e remetia a fatos não contemplados por elas. Mas o contrário também é verdadeiro: as fontes apresentavam lacunas preenchidas apenas pelo socorro às fontes orais. Esses aspectos são exemplificados no que toca aos antecessores do grupo. A memória genealógica dos mais velhos em geral não ultrapassa três gerações. Em arquivos, foi possível remontar a até cinco gerações. A partir de assentos de batismo, descobriu-se o nome de bisavós e tataravós dos atuais moradores do local, que não lembravam os nomes de alguns de seus predecessores. A reconstituição de árvores genealógicas e tramas de parentesco esteve sujeita a diversas dificuldades e empecilhos, entretanto. Em alguns casos, não foi possível estabelecer vinculações genealógicas seguras senão através do cruzamento de diversas fontes. Ocorre que os registros de batismo, óbito e casamento são, comumente, imprecisos. Não raro, o sobrenome de um mesmo indivíduo é grafado diferentemente em um mesmo tipo de fonte, seja pela supressão de parte do sobrenome, seja pela própria grafia. No caso de escravos, libertos e seus descendentes, a situação complica-se mais ainda. As informações sobre cativos em geral se limitavam a seu nome, idade e proprietário. Os nomes de libertos e livres podiam variar de uma fonte para outra. Via de regra, eles incorporavam o sobrenome dos antigos senhores. Contudo, como demonstraram Moreira (2008) e Weimer (2008), essa não foi a única alternativa na vida em liberdade. O apadrinhamento com outra família branca, a homenagem a santos católicos ou a conversão de um nome em sobrenome (por exemplo, Rosa) foram outras opções. As informações oferecidas pelos membros de Cambará permitiram estabelecer diversas vinculações genealógicas. A referência à família que era proprietária de escravos rendeu muitos frutos. Na maior parte dos casos foi o cruzamento entre fontes orais e escritas que permitiu definir essas relações. Em outros casos, porém, não existia equivalência entre o dito e o escrito. A referência às famílias 3.  De fato, meus “achados” nos arquivos históricos continuaram a ser transmitidos aos moradores do local, em especial às lideranças.

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escravocratas da região se faz a partir da rememoração dos patriarcas destas famílias, ou de menções vagas como dizer que tal pessoa era escravo “dos Lopes”, por exemplo. As narrativas conferem menor importância às ramificações de parentesco entre as próprias famílias brancas. Nas narrativas locais, um proprietário de escravos poderia ser tido como pertencente “aos Lopes” sem que tivesse tal sobrenome. Além do mais, uma pessoa pode ser identificada, em Cambará, a partir de seu “nome de casa” ou apelido, e nem sempre os indivíduos são referidos de tal maneira nos documentos. Em Cambará, certos eventos são rememorados com frequência pelos “sabedores” (aqueles que detêm o conhecimento do “tempo dos antigos”). À parte as diferenças entre alguns aspectos rememorados por cada narrador, há um núcleo comum de histórias de conhecimento geral, mas que apenas alguns sabem contar4. As primeiras pesquisas em arquivos foram uma tentativa de localizar documentos que fizessem referência aos fatos tidos por marcantes para o grupo. Segundo as narrativas, a comunidade originou-se de uma “sobra de campo” de uma medição judicial “dada” pelos senhores a seus escravos. Com esta informação em mãos, localizou-se no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) uma medição judicial, transcorrida entre 1886-1888, requerida por um antigo senhor de escravos da região. Neste documento de mais de mil folhas, diversos antecessores de Cambará fazem parte deste registro. Lendo-o, descobriu-se outra forma de territorialização das famílias negras. Ao invés de uma doação dos senhores aos seus escravos, tal como salientam as narrativas, o documento refere três compras de terras efetuadas por dois pretosforros5 na primeira metade do século XIX (mais especificamente nos anos de 1835, 1845 e 1855). Esses dois pretos-forros não estão presentes na memória genealógica do grupo e seus nomes nunca foram mencionados. Mesmo assim, foi possível definir a ascendência gene4.  A idade é fator preponderante na definição de alguém como contador, mas não só. Saber contar envolve um uso bem específico das palavras, de gestos, das entonações, etc. Evidentemente, não são todos os moradores do local que conhecem todas as minúcias do “tempo dos antigos”. Há um núcleo comum de histórias de conhecimento geral no sentido de que as pessoas conhecem algo sobre determinados fatos, mas não necessariamente todos os detalhes. 5.  Ou seja, escravos alforriados. Um deles certamente era africano (Benguela); nenhuma referência é feita à naturalidade do outro, mas tudo indica que também era africano, pois até a metade do século XIX “preto” era uma denominação geralmente dada a africanos, por oposição a crioulo (nascido no Brasil).

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alógica dos atuais integrantes do grupo em relação a esses antepassados com base principalmente em fontes documentais, mas também por meio dos cruzamentos destas com as informações constantes nos relatos. Levando-se em conta que dois pretos-forros e suas respectivas famílias viviam em espaços próprios desde a primeira metade do século XIX e que os atuais moradores do local não guardam lembranças desta época e destes fatos, impunha-se a reconstituição das condições de vida dos predecessores da comunidade durante boa parte do século XIX. O conhecimento obtido no arquivo expandiu minha pesquisa para novos fundos documentais. De fato, caso ativesse-me exclusivamente aos relatos, não poderia ter reconstituído parte considerável da história de Cambará. No caso mencionado acima, há que se ter cuidado para não confundir a ausência de lembranças com incapacidade de lembrar. Se levarmos em conta que o fundamental para o grupo não é tanto traçar uma ascendência genealógica o mais profunda possível, mas sim rememorar as alianças entre as diversas famílias que foram se estabelecendo na região ao longo dos anos, percebe-se que lembrar os parentes prescinde da rememoração de indivíduos isolados. Assim, saber do nome de um parente por si só não tem tanta importância como saber com quem ele casou e teve filhos, ou quais famílias se uniram através do matrimônio. Outro acréscimo no conhecimento histórico advindo das pesquisas em arquivos foi facilitar minha interlocução com homens e mulheres da Cambará, pois me muni de informações e pistas valiosas para minha investigação. Em algumas ocasiões procurei sanar minhas dúvidas falando sobre meus “achados” em arquivos – e o conteúdo dos documentos –, perguntando-lhes o que sabiam a respeito. Em outros momentos, podia tocar em assuntos sem necessariamente ter ouvido, em campo, nada, ou muito pouco, a respeito. Certa vez, localizei três processos-crimes, transcorridos entre 1916 e 1917, em que o réu era um negro que morava na região, chamado Bida. Quando iniciei a leitura dos processos, tive a nítida impressão de que eu já o conhecia. Consultei algumas entrevistas e percebi que em uma delas Bida tinha sido mencionado por dois senhores de Cambará. Dias depois, fui a campo e perguntei aos mais velhos se já haviam ouvido falar dele. Todos eles sabiam algo sobre Bida e contaram-me algumas histórias por ele protagonizadas. Novamente foi possível aprofundar o conhecimento histórico através da complementaridade de fontes;

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desta vez, como em muitas outras, foi o conhecimento obtido no arquivo que me fez lançar uma nova luz sobre os relatos orais. Este caso incita-me a problematizar algumas questões. A primeira delas diz respeito ao estatuto conferido a este tipo de história na descrição etnográfica. No caso em pauta, os processos e relatos envolvendo Bida guardam uma particular importância, levando-se em conta que nos anos imediatos após a abolição diversos conflitos entre negros e brancos tiveram lugar em Cambará6. Nesse sentido, são elementos importantes na reconstituição do contexto da época. O ponto é saber qual a importância dos eventos por ele protagonizados. Ou seja, há um risco de se confundir a influência do etnógrafo na conformação de lembranças com a importância atribuída aos fatos pelos próprios sujeitos da pesquisa. Os sujeitos não evocam um passado acabado; as indagações do etnógrafo são também “provocações” que participam ativamente do “processo de produção da memória” dos agentes, como salientou Arruti (2006:218). Valer-se de informações obtidas em arquivos no campo coloca também um problema ético. Alguns fatos, dado seu caráter traumático e/ou constrangedor, podem ser silenciados pelos sujeitos da pesquisa por uma série de razões. Há que se estar atento para saber em quais momentos é possível obter mais informações, complementar as descrições com novos elementos e preencher lacunas sem causar constrangimentos aos “informantes”. O silêncio é antes um dado fundamental da pesquisa do que um obstáculo para a reconstrução do passado. Os exemplos trazidos ao longo desta seção demonstram a potencialidade do cruzamento de fontes na reconstituição do passado. Durante as diversas pesquisas realizadas em Cambará, empreendidas em diferentes contextos e com objetivos específicos, meu transitar entre o campo e o arquivo descortinou novas potencialidades, abrindo um novo leque de questões e revelando aspectos multifacetados dos fatos. Propor diálogos entre o campo e o arquivo não se resume apenas a uma metodologia de tratamento das fontes, incluso proble6.  Bida foi processado por abigeato em um processo e em outros dois por lesão corporal grave. Esfaqueou alguns vizinhos negros certa feita e dois fazendeiros brancos noutra. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Cachoeira. 1916. Cartório do Júri. Processo-crime e outras. Maço 37, Prédio 2, Estante 143G, caixa 178, n°3666; APERS. Caçapava. Cartório 1° Cível e Crime (1916-1917), M 56, E 91, n°1725; APERS. Cachoeira. Processo-crime e outras. Júri. M 39, caixa 181, n° 3694. 1917. Para mais informações, ver Mello (2008b: 161-187).

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matizar a prevalência dada ao universo escrito, perguntando pelas assimetrias surgidas a partir daí. O uso de evidências externas às tradições orais é válido e acresce substância na leitura e interpretação das mesmas7; o problema consiste no tipo de interface que é proposto. A oralidade não deve ser avaliada em face ou em função do escrito, tampouco em razão de suas supostas “carências” em face dele. Como notaram Goldman e Lima (1999), a projeção é um dos mecanismos responsáveis pela confusão entre juízo de relação e atributo do objeto: a transposição para outro domínio de discriminações operadas no dia-a-dia de sociedades letradas e baseadas em sistemas culturais particulares alimenta a partilha entre oral e escrito, implicando em assimetrias expressas em termos como ausência e presença (ausência e presença de cronologia, profundidade histórica, criatividade etc.). Deste modo, as características negativas (ausências e “incapacidades”) normalmente atribuídas à oralidade são antes uma causa do ponto a partir do qual se estabelece a relação (o universo escrito tomado como juízo de relação) do que um atributo dela. Talvez uma das formas de contornar essas assimetrias consista em pensar sobre o arquivo e aquilo que tende a ser excluído dele. *** Amparando-se em Foucault (2003 [1969]), é possível pensar o arquivo não só como espaço repositório do conhecimento sobre o passado, mas também como local onde ele se produz8. Trata-se, a partir de Foucault, de conceber o arquivo, e os documentos, segundo o contexto de relações de força onde surgiram. Supressões, ausências, lacunas e silenciamentos são fatores constitutivos do arquivo. Como nota Trouillot (1995:48), as presenças e ausências incorporadas nas fontes ou nos arquivos não são neutras ou naturais; elas são criadas. O poder e o “silenciamento do passado” (Trouillot, 1995) estão na base de qualquer empreendimento historiográfico. 7.  Um bom exemplo disto são os instigantes livros de Price (1983; 1990). 8.  Ou, com Derrida (2001:28-9): “O arquivo, como impressão, escritura, prótese ou técnica hipomnésica em geral, não é somente o local de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável passado, que existiria de qualquer jeito e de tal maneira que, sem o arquivo, acreditaríamos ainda que aquilo aconteceu ou teria acontecido. Não, a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento”.

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Pode-se pensar a formação de grandes repositórios do passado como os arquivos como consequência de uma era condenada ao esquecimento, para utilizar uma interessante ideia de Nora (1984). “Há lugares da memória porque não há mais meios de memória” (Nora, 1984:23); esta afirmação, embora um tanto enfática, induz a pensar o arquivo não apenas como um repositório no qual as potencialidades de reconstituir o passado são praticamente inesgotáveis, dada a imensa massa documental que capturou o tempo, mas também o contrário: lugar que sintomaticamente revela a fugacidade da memória numa época cada vez mais acelerada. Num famoso conto, Borges (1996) recorda a história de um personagem dotado de uma rara capacidade de memorização, Funes. Recordações que sozinho teve-as mais que todos os homens, a memória de Funes é um despejadouro de lixos, pois é incapaz de esquecer diferenças, generalizar e abstrair. Com o tempo foi ficando evidente para mim que minha pergunta deveria ser por que lembrar determinado evento (e não outro) é importante para os integrantes de Cambará, e não quais suas limitações mnemônicas. Os rastros do passado respondem antes a um trabalho de seleção e fixação de relevância do que a uma incapacidade. Assim, é importante dar um passo atrás e perguntar por que não se lembra. Como nota Fabian (2007:72), esquecer que outros povos lembram é um mecanismo para deixá-los esquecidos. Ironicamente, continua Fabian, esquecer que outros povos lembram é um risco premente justamente nos estudos de tradições orais que só as levam em conta desde que correspondam ao mesmo tratamento metodológico dado às fontes escritas. A constatação de Fabian é fundamental não só por expor o (recorrente) etnocentrismo, mas principalmente por apontar para um problema metodológico que consiste no pouco preparo em identificar distintas formas de lembrar, na medida em que a rememoração não necessariamente se dá através da verbalização. De acordo com Finnegan (1992), os estudos das formas orais não se caracterizam por uma terminologia comum ou claramente delimitada, mas pelo conjunto de questões que atraem o foco investigativo dos pesquisadores. O interesse deve recair, portanto, nas formas de lembrar – que não se limitam apenas à verbalização, incluindo músicas e cantos, imagens visuais, práticas corporais, performances, rituais, etc. A maneira de escapar à avaliação da oralidade em função do escrito parece-me ser inserir os relatos orais no interior das formas de lembrar e do trabalho da memória específicos (não exclusivos, note-se bem) a Cambará.

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Como demonstrei alhures (Mello, 2008a; 2008b), o “trabalho da memória” (Godoi, 1999) em Cambará está diretamente referido a uma série de elementos que geralmente não são expressos em documentos escritos. Ao traçar as raízes históricas do “paradigma indiciário”, Ginzburg (1989:157-158) salientou a progressiva “desmaterialização do texto”, continuamente depurado de todas as referências sensíveis ligadas à oralidade e à gestualidade. Esse processo, em grande medida tributário de duas cesuras históricas decisivas – a invenção da escrita e da imprensa – reflete, também, uma “escolha cultural”. Quer pensemos nas funções decisivas da entonação da voz, dos gestos ou mesmo dos silêncios nas tradições orais, vemos que o texto escrito relega ao mutismo os aspectos sensíveis que estão na base da produção de documentos. Se aceitarmos o pressuposto de Ong (1998:16) de que a escrita nunca existe sem a oralidade, cabe perguntar qual o estatuto da oralidade quando o historiador se debruça sobre documentos, tentando perceber os diferentes tempos que ficam subsumidos pelo tempo cronológico, para utilizar outra ideia de Fabian (1983). O registro de transmissão de terras revelava não só padrões de acesso a terra, estatísticas fundiárias, a correlação entre capital fundiário e ocupação territorial, mas também uma dramaticidade da existência. Os locais apontados em mapas, medições e registros fundiários eram menos uma localização geográfica e mais um palco onde pessoas construíram suas casas, frequentaram festas, trabalharam sua lavoura, criaram seus filhos, plantaram árvores. A escritura de compra e venda estava circundada por outras versões, outras visões do fato. Por trás de termos regimentais, afiguravam-se meandros ausentes na memória oficial, mas que são prementes hoje, no presente cotidiano do grupo. Uma alforria remetia às políticas de liberdade de certo período; mas remetia também a um “causo” protagonizado por seu beneficiário. Muitos documentos tratavam de eventos protagonizados por pessoas que eu conhecia por meio de relatos. Nesses encontros com o arquivo, visualizava os gestos, as expressões, as reações e falas dessas pessoas filtradas pelos narradores do presente. Esses efeitos de conhecimento, transmitidos por homens e mulheres de Cambará, acresceram uma maior sensibilidade para os fatos que lia e ouvia nos encontros com o campo e com o arquivo. A produção de um texto descritivo sobre esses encontros tornou-se o registro de várias historicidades: a dos artefatos que capturam o tempo, a das memórias e lembranças compartilhadas em um momento específico e aquela produzida pela narrativa antropo-

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lógica9. São esses diferentes encontros e relações de conhecimento que descortinam outras possibilidades na produção de uma narrativa sobre o passado. O passado compartilhado pelos homens e mulheres de Cambará com pesquisadores coloca a possibilidade de trazer à lembrança memórias e narrativas que estão ausentes justamente nos espaços e lugares repositórios do passado, oferecendo uma possibilidade ímpar de pensar distintos tempos e registros da história. Referências bibliográficas ANJOS, José Carlos Gomes dos. Remanescentes de Quilombos: reflexões epistemológicas. In: LEITE, Ilka Boaventura (org.). Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: Nova Letra/NUER, 2005. p.89-112. ARRUTI, José Maurício. Mocambo. Antropologia e história no processo de formação quilombola. Bauru: Edusc, 2006. BORGES, Jorge Luiz. Funes, o memorioso. In: ________. Ficções. São Paulo: Globo, 1996. CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Do ponto de vista de quem? Olhares, diálogos e etnografias dos/nos arquivos. In: Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 36, p. 7-32, 2005. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. FABIAN, Johannes. Time and the Other. How Anthropology Makes Its Object. New York: Columbia University Press, 1983. ________. Memory against Culture. Arguments and Reminders. Durham: Duke University Press, 2007. FINNEGAN, Ruth. Oral Traditions and the Verbal Arts. A Guide to Research Practices. New York: Routledge, 1992. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber (7aed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 [1969]. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinas. Morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.143-179. 9.  Cunha (2005) oferece reflexões interessantes sobre esses aspectos.

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Como qualquer etnografia: fundamentos para uma etnografia dos documentos escrito

Olivia G. Janequine1

A contemporaneidade radical da humanidade é um projeto (Johannes Fabian)2 Introdução Na primeira metade do século XX, período de consolidação da antropologia como disciplina acadêmica, a relação entre pesquisa de campo e antropologia foi naturalizada e valorizada na forma de um modelo – a combinação malinowskiana de observação participante e escrita etnográfica – elevado a cânone. Posteriormente, este modelo veio a ser criticado e o lugar da pesquisa de campo na antropologia foi historiado e revisto. Hoje, a ideia de uma antropologia sem pesquisa de campo já não é tão estranha e muitos trabalhos recentes têm contribuído para sua legitimação. Contudo, se a relação entre campo e disciplina já não é automática, problemas metodológicos e epistemológicos associados ao automatismo antes vigente permanecem. Limitações da crítica ao evolucionismo social com base na oposição entre presença e ausência de documentos escritos engendraram a manutenção de mecanismos epistemológicos de distanciamento que, nas palavras de Johannes Fabian (1983), tornam a antropologia uma atividade aporética. Os dois pilares básicos sobre os quais se eri1.  A autora agradece às seguintes pessoas pelos comentários ao texto e a fragmentos mais antigos que o constituem: Daniela Moreno Ferriani, Danilo P. Ramos, Flávia Melo da Cunha, Iracema Dulley, Leandro M. de Lima, John M. Monteiro, Julia R. di Giovanni, Marta Jardim, Omar R. Thomaz, Ronaldo Almeida e Stella Z. Paterniani. 2.  Esta e as demais traduções foram feitas por mim.

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giu a atividade antropológica institucionalizada no início do século XX – a pesquisa de campo e o texto etnográfico – subsumem usos do tempo diametralmente opostos. O pressuposto da pesquisa de campo é o compartilhamento do tempo com o objeto da pesquisa, requisito de qualquer diálogo; o pressuposto do texto etnográfico é que ele seja um discurso sobre um objeto, sustentado, assim, por dispositivos discursivos que produzem o afastamento em relação ao objeto. Ainda segundo Fabian, a chamada crítica pós-moderna, apesar de debater questões próximas a esta, não teve fôlego para superar esses mecanismos. Acredito que eles sejam de dois tipos: um compreende os dispositivos de distanciamento temporal através dos quais construímos o objeto do discurso antropológico, conforme procura demonstrar Fabian em Time and the Other (1983); o outro tipo inclui os mecanismos de formação de matrizes analíticas fundamentadas em grandes divisores. A crítica destes últimos também diz respeito ao problema do distanciamento, embora nesse caso a questão do tempo não ocupe um lugar tão central. O presente artigo apresenta uma síntese dos argumentos da crítica metodológica e epistemológica à antropologia centrados nesses mecanismos para fundamentar referências metodológicas para a análise etnográfica de documentos escritos. O argumento geral é reforçado pelo comentário analítico de exemplos concretos de pesquisa centrado no artigo “Memory-work in Java”, de Ann Stoler (2002). Como complemento à defesa da etnografia de documentos aqui proposta, percebemos que soltar os nós que amarram a disciplina a uma técnica específica implica também em desfazer o encadeamento aporético dos procedimentos de construção do conhecimento que caracteriza o modelo rígido (dito clássico) de antropologia. Trabalho de campo e antropologia No artigo intitulado “The Ethnographer’s Magic”, publicado pela primeira vez em 1983, Stocking Jr. analisa o lugar do trabalho de campo (fieldwork) na antropologia e o legado de Malinowski. O autor argumenta que a elevação da técnica de trabalho de campo/ observação participante a fundamento da antropologia apoia-se na ênfase dada à “dimensão experiencial” do trabalho de campo, uma novidade do modelo malinowskiano de pesquisa antropológica baseada em observação participante. A pesquisa de Malinowski junto aos trobriandeses representou uma ruptura técnica importante com

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uma “antropologia de varanda”, sobretudo por substituir interrogatórios visando o preenchimento de questionários formulados de antemão por observação do cotidiano e conversas menos dirigidas. Porém, argumenta Stocking Jr. com base em ampla pesquisa acerca do exercício profissional de Malinowski, a forma do texto etnográfico apresentado n’ Os argonautas do Pacífico Ocidental (1978) é que permitiu ao autor ser alçado à posição de herói do mito evemerístico do surgimento da antropologia moderna. A “magia do etnógrafo” que alimenta o mito encontra-se na passagem do trabalho de campo ao texto etnográfico: na leitura, é como se víssemos através dos olhos do autor-testemunha as coisas vividas por ele em campo, enquanto, na verdade, como demonstra Stocking Jr., muito do que é descrito como experimentado por Malinowski não o foi. Ele nunca navegou numa canoa do kula, por exemplo, embora o texto nos leve a acreditar nisso (Stocking Jr., 1983a). Ao longo das décadas de 1920 e 1930, esse modelo de pesquisa de campo e monografia etnográfica se consolidou no contexto da investida estrutural-funcionalista para superação do evolucionismo social, protagonizada pelo próprio Malinowski e por Radcliffe-Brown. Um dos elementos centrais da reação contra o evolucionismo social é a recusa canônica da diacronia expressa nos termos de uma impossibilidade técnica: a ausência de documentos sobre os povos estudados pelos antropólogos. Para Radcliffe-Brown, o grande problema do evolucionismo social é a tentativa de fazer uma historiografia sem documentos, uma “história imaginária”. Ele estabelece a distinção entre a tarefa da reconstrução histórica e a tarefa da compreensão cumulativa das leis gerais da organização social; entende-as como tarefas complementares, mas separadas: a primeira sendo matéria de historiadores e etnógrafos e a segunda, de antropólogos/sociólogos munidos do método comparativo. O autor parece radicar sua distinção entre antropologia e história no fato de a coleta dos dados com que o antropólogo lida não se dar em arquivos, mas presencialmente. O trabalho do etnógrafo justifica-se e define-se pela ausência de documentos escritos sobre as sociedades estudadas pela antropologia social (Radcliffe-Brown, 1978). A centralidade do trabalho de campo no argumento contra o evolucionismo social teve como resultado uma naturalização da relação entre antropologia e trabalho de campo. O trabalho de campo e a escrita etnográfica, como delimitadores metodológicos da disciplina associados à experiência individual do pesquisador,

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tornaram-se chancela necessária (e até suficiente) da antropologia como profissão e vocação (Giumbelli, 2002). O comentário de Stocking Jr. sobre o arquétipo do “antropólogo enquanto herói” dá a dimensão dessa centralidade do trabalho de campo em relação ao conjunto das características fundamentais da antropologia naquele momento: É um tipo de experiência arquetípica compartilhada que informa, ou mesmo gera, um sistema de valores metodológicos ou ideologia disciplinar generalizado: o valor atribuído ao trabalho de campo em si como a experiência básica constitutiva não só do conhecimento antropológico, mas dos antropólogos; o valor atribuído a uma abordagem holística das culturas (ou sociedades) que são tema desta forma de conhecimento; o valor atribuído à igual valoração de tais entidades; e o valor atribuído em seu papel especialmente privilegiado na constituição da teoria antropológica. Em resumo, esta tem sido a base de legitimação da alegação de autoridade cognitiva especial da antropologia. (Stocking Jr. , 1983b: 7-8)

Uma passagem de Edmund Leach, possivelmente o mais rebelde dos herdeiros imediatos do estrutural-funcionalismo, reforça este argumento. Em conferência proferida em 1959 e posteriormente publicada com o título “Repensando a antropologia”, o autor faz considerações acerca do método da antropologia a partir de uma visão muito clara sobre o desenvolvimento da disciplina na Grã-Bretanha. No início do texto, é afirmada a unidade e a dupla paternidade da antropologia, reconhecendo a centralidade de Radcliffe-Brown e Malinowski e louvando a contribuição ao campo mais consagrada de ambos, respectivamente, as propostas teórico-metodológicas de um e o modelo empírico paradigmático do outro. Em seguida, critica pesadamente o modelo metodológico estrutural-funcionalista, sugerindo sua substituição por outro, voltado para generalizações abstratas, no marco da aproximação de Leach em relação ao estruturalismo de Lévi-Strauss. O interessante é que Leach pensa esse outro método como derivado da técnica estabelecida por Malinowski e devendo respeitá-la. O resultado é uma proposta ambígua, em que o nexo da atividade do antropólogo está ora na especulação abstrata, ora na empiria radicalmente individual. O trabalho de campo é abordado nos seguintes termos:

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O âmago da antropologia social é o trabalho de campo – a compreensão do modo de vida de um determinado povo. Esse trabalho de campo é um tipo de experiência extremamente pessoal e traumática, e o envolvimento pessoal do antropólogo em seu trabalho reflete-se na sua produção. (Leach, 2005: 14)

Uma sequência de comentários metodológicos de EvansPritchard também é reveladora da naturalização da relação entre antropologia e pesquisa de campo e da mencionada ambiguidade metodológica decorrente disso. Menos polêmico do que Leach, Evans-Pritchard, embora tenha sido também aluno de Malinowski, é considerado o grande discípulo de Radcliffe-Brown, principalmente pela notória etnografia sobre Os Nuer, publicada em 1940 (1978). No período subsequente a esta publicação, porém, o autor gradativamente redimensionaria a centralidade do estrutural-funcionalismo na antropologia social britânica, afastando-a das ciências naturais (Evans-Pritchard, 1950). Em “Anthropology and History”, já no início dos anos 1960, o mesmo autor falaria sobre a profunda afinidade, e até mesmo sobreposição, entre antropologia e história. O ponto fundamental do texto em questão é o refinamento da metodologia da disciplina a partir da consideração da relação entre antropologia e história (assim como tempo e mudança). Para os presentes fins, entretanto, interessa mais notar a apologia ao trabalho de campo, identificado como traço distintivo da antropologia, ao mesmo tempo em que é classificado como técnica. A diferença entre antropologia e história é colocada como uma diferença de “orientação”, não de “objetivo”. A orientação peculiar da antropologia, curiosamente, “deve-se em grande medida à ênfase que damos ao trabalho de campo como parte de nossa formação”. O autor completa o raciocínio dizendo que os “historiadores escrevem a história como foi, do começo para o fim, e nós tenderíamos a escrevê-la do fim para o começo” (Evans-Pritchard, 1964: 184-186). A perenidade da indefinição metodológica em torno do trabalho de campo pode ser identificada até mesmo em autores que se opõem declaradamente ao estrutural-funcionalismo. Na formulação de Clifford Geertz, a etnografia ”escrita aqui” deve se apresentar como “um relato autêntico elaborado por alguém pessoalmente familiarizado com o modo pelo qual a vida ocorre em algum lugar, em algum tempo, entre algum grupo.” (Geertz, 1988: 153). Se o questionamento do modo como se faz e se escreve sobre e a partir

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do trabalho de campo é um foco central de discussão, esta parece não afetar a ideia de que o trabalho de campo, especialmente em sua dimensão experiencial, deve ser a base de qualquer antropologia. A fórmula “anthropology is what anthropologists do”, portanto, também coloca a técnica de trabalho de campo numa posição sui generis, pois a autoridade científica é baseada na particularidade radical da experiência individual a ele associada. A ênfase na dimensão experiencial da pesquisa de campo, naturalizada como elemento central e definidor da disciplina antropológica, é, assim, responsável por uma confusão entre método e técnica. Por trás do problema de como classificar a pesquisa de campo está uma suposição de consistência metodológica e epistemológica. Muitas vezes, a naturalização da pesquisa de campo como método inibe a reflexão sistemática sobre procedimentos de pesquisa que são um requisito da atividade da científica, o que o próprio Malinowski denomina “sinceridade metodológica”. Segundo Giumbelli (2002), isso se expressa na ausência de codificação e normatização da prática antropológica, marcada por uma falta de reflexão sobre coleta, análise e interpretação de dados, empiricismo exagerado e ausência de treinamento formal para pesquisa de campo. Assim, por exemplo, a solução que a proposta estrutural-funcionalista representou no esforço de suplantar o evolucionismo social teve como efeito colateral, no plano epistemológico, a manutenção do procedimento de constituição do objeto do conhecimento da antropologia através de operações de distanciamento. Segundo Fabian, a crítica elaborada a partir dos anos 1969 ao positivismo embutido nas práticas da escola estrtural-funcionalista, por sua vez, embora pertinente, tem sérias limitações. O problema maior estaria em fazer da proposta de exercício crítico e reflexivo na construção de conhecimento – que deve ser uma condição da prática científica – eixo central de uma suposta grande revelação. Perde-se de vista “que crítica e reflexão não são virtudes extraordinárias ou, pior, especialidades filosóficas, [mas] o modo como a antropologia é feita mesmo por aqueles que dão pouca atenção ao assunto ou rejeitam a ideia como não científica”. Conforme o autor, faltou reconhecer que a crítica ao positivismo e a ideia de que a subjetividade do observador não deve ser ignorada e não pode nunca ser completamente neutralizada “tem sido colocada e debatida ao menos desde a reação romântica ao Iluminismo” (Fabian, 2000: ix-xi). Este hiperdimensionamento do conteúdo da crítica reflexiva às correntes antropológicas precedentes

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levou a um sentimento de falência referencial e um grande esforço de auto-análise sem que, contudo, as operações de distanciamento fossem satisfatoriamente superadas, conforme pretendo demonstrar a seguir. Distanciamento temporal e outros isolamentos Em Time and the Other, Fabian (1983: 21) define três modos como o tempo aparece e é manipulado na antropologia. O tempo físico é o tempo das cronologias de longo prazo do processo de evolução biológica, da pré-história. São escalas amplas entendidas como objetivas e neutras e estão associadas à antropologia física – tanto a clássica quanto a que até hoje é produzida em departamentos de antropologia, principalmente em universidades norte-americanas – e à arqueologia. O segundo modo identificado pelo autor contempla dois subtipos: um é o tempo mundano, marcado por periodizações mais detalhadas, que encenam um distanciamento objetivo em relação às “idades” e “estágios” que definem, como nas escalas produzidas por evolucionistas sociais; o outro subtipo, mais independente do tempo físico como vetor, é o que Fabian denomina tempo tipológico: aquele que marca o intervalo entre eventos significativos do ponto de vista sociocultural numa linguagem superficialmente não temporal. Trata-se do tempo por trás das categorias de classificação de estados como “com escrita vs. sem escrita, tradicional vs. moderno, agrário vs. Industrial, (...) tribal vs. feudal, rural vs. urbano”. A tipologização do tempo mundano também permeia a discussão sobre povos com e sem história, inclusive em suas versões mais sofisticadas, como a distinção lévi-straussiana entre sociedades quentes e frias (idem: 23). O terceiro modo, finalmente, é o que reconhece o tempo como “dimensão constitutiva da realidade social” e enfatiza a “natureza comunicativa da ação e interação humanas”, denominado tempo intersubjetivo. Este é, evidentemente, o modo temporal da pesquisa de campo. A partir desses conceitos, Fabian identifica a contradição que expressa o problema metodológico básico a que dirige sua crítica. Por um lado, uma vez que seja mantido o pressuposto de que a antropologia se baseia necessariamente em pesquisa de campo, o tempo intersubjetivo ocupa o lugar de fundamento epistemológico da disciplina. Por outro, o conhecimento produzido a partir daí, o texto etnográfico, articula-se, em geral, em torno de uma atitude de distanciamento que se realiza em mecanismos baseados nos tempos fí-

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sico, mundano e tipológico. Segundo o autor, o distanciamento temporal produzido no texto etnográfico é a garantia da objetividade – e, portanto, condição da legitimidade – do conhecimento produzido a partir de uma situação necessariamente intersubjetiva. Eis a contradição. Esta “esquizocronia” da antropologia é um indício da postura epistemológica que caracteriza a disciplina: “a tendência persistente e sistemática a situar o(s) referente(s) da antropologia num Tempo que não o presente do produtor do discurso antropológico”, ou “negação da coetaneidade” (1983: 31). Coetaneidade ou compartilhamento do tempo é um modo temporal de relação que vai além do simultâneo – coexistência no tempo físico – e do contemporâneo – coexistência no tempo tipológico. É condição de possibilidade da ação mutuamente referida de observadores e observados e, especialmente, da ação política pautada no reconhecimento da possibilidade de ação política do outro. Compartilhar o tempo é reconhecer ativamente que minhas ações afetam o outro e me afetam, assim como as ações do outro afetam a mim e a ele próprio. O distanciamento temporal identificado por Fabian como chave epistemológica da construção pela antropologia de seu objeto é, portanto, fundamentalmente a mesma coisa que, em recente prefácio a um livro de Pierre Clastres, Márcio Goldman e Tânia Stolze Lima (2007) identificam como “isolamento do político” na constituição da antropologia. Os autores argumentam que a antropologia fundou-se a partir de um “grande divisor” entre um “nós” e um “eles” cujo critério primeiro, já contido na oposição entre sociedades do contrato e sociedades do status, foi a presença ou ausência do Estado, identificando sociedades mais ou menos evoluídas. À antropologia caberia o estudo das sociedades sem Estado. Posteriormente, a antropologia britânica incorporou a política como tema sem, contudo, eliminar a divisão e a assimetria entre as sociedades com Estado constituído e as outras, onde as funções do Estado estão por surgir ou são exercidas em outras instâncias da vida social, por exemplo, no parentesco, no caso das sociedades de linhagens. O “nós” continuava a ser definido pelo Estado, e é o Estado, portanto, o parâmetro para olhar para e falar sobre o “eles” sempre afastado do lugar do político onde se situa o antropólogo (Goldman e Lima, 2003: 11-3, Mello, cap.). Foi só a partir da abordagem de Pierre Clastres – e, devemos acrescentar, de Foucault, sendo que ambas foram elaboradas sob o pano de fundo do pós-guerra e do fim dos Estados coloniais europeus em África –, que

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a antropologia logrou alcançar uma transformação epistemológica de sua abordagem do político. Assim como as formas de “isolamento do político” vigentes na metade do século XX foram desdobramentos do grande divisor presente nos primórdios da disciplina, remontando a meados do século XIX, a negação da coetaneidade é uma herança epistemológica persistente das opções primeiras da disciplina. Segundo Fabian, na crítica estrutural-funcionalista ao evolucionismo, marcada pela opção radical pela sincronia, ao invés de ser superada, “a negação da coetaneidade intensifica-se na medida em que o distanciamento temporal deixa de ser uma preocupação explícita e passa a ser um pressuposto teórico implícito”. Isto significa que, se a antropologia já há algumas décadas elabora a questão de seu envolvimento moral e político com o colonialismo, é preciso, ainda hoje, ir mais a fundo na questão do envolvimento cognitivo (Fabian, 1983: 53). A questão da mudança social e o estudo de contextos urbanos foram inovações sensíveis introduzidas na antropologia social pelo grupo de pesquisadores liderados por Max Gluckman e relacionadas ao momento de insurreição anticolonial em grande parte do continente africano. A escola de Manchester e o Rhodes-Livingstone Institute foram também responsáveis por inovações técnicas importantes, apresentando um grau de elaboração e formalização dos procedimentos de pesquisa possivelmente sem par na história da disciplina (Epstein, 1967; Gluckman, 2006; Mitchell, 2006). O problema desta grande contribuição é a marca do pressuposto da tendência à estabilidade, também presente na obra de Evans-Pritchard. Estruturas, sistemas e premissas de organização social aparecem como sujeitos últimos da “mudança social” e, portanto, da própria história. A noção de etnicidade – formulada inicialmente por Barth (1997), um discípulo de Gluckman inspirado pelo individualismo metodológico weberiano – alcança o limite dessa concepção ao radicar a dinâmica das relações sociais no presente na reinvenção situacional, contrastiva e política de uma história putativa. Segundo Manuela Carneiro da Cunha: é nesse sentido que os estudos de etnicidade, essa construção de uma cultura da diferença, põem em causa a própria noção de cultura. (...) A produção cultural em uma sociedade dada é uma inovação constante e perceptível: a ênfase está na continuidade, não na imutabilidade do produto. Ao contrário, na constituição

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da etnicidade, há uma descontinuidade real e uma ênfase na imutabilidade aparente do produto. (1985: 107-8)

Diante da percepção incontornável da “inovação constante”, os modelos da estabilidade encontram seu último recurso ao localizar no coração do próprio movimento o elemento que recoloca a estabilidade: não são os modelos dos antropólogos que forjam a estabilidade, mas as próprias culturas através do mecanismo da etnicidade. O conceito de etnicidade realiza, no marco da perspectiva relativista, um isolamento da história. A noção de historicidade, ou melhor, de historicidades, por sua vez, atribui a sociedades diferentes modos distintos de lidar com o tempo. Mas este abster-se de impor as próprias concepções de tempo e história aos povos que se estuda é também um mecanismo bastante claro de distanciamento. O que se tem são historicidades inconciliáveis, uma diferença que afirma num plano ao mesmo tempo abstrato e englobante a mesma divisão radical entre o que estuda e o que é estudado, que discutimos até aqui como negação da coetaneidade e grande divisor. O problema não é simples, pois os procedimentos do “mecanismo relativamente simples de produção de assimetrias” facilmente passam despercebidos; o caminho para evitá-lo começa com uma postura epistemológica crítica e 3autocrítica4: a partilha é o espaço que habitamos, a fronteira que transgredimos e um certo tipo de linha que traçamos. Ela é a própria condição do projeto antropológico e de seu exercício; que seja sua consequência é algo que nos cabe evitar. (Goldman e Lima, 1999: 84)

Etnografia e documentos Em texto recente, Márcio Goldman (2006) advoga a favor da exigência da pesquisa de campo em antropologia, não pelas dimensões técnica e metodológica, que o autor também identifica, mas porque “as próprias características epistemológicas da disciplina exigem a experiência de campo”. A etnografia baseada em pesquisa de 3

Bourdieu et. al., em discussão afim, trabalham com o conceito de “vigilância epistemológica”. 4.  Para uma outra discussão sobre o problema das fronteiras na construção do objeto de pesquisa, ver Melo, nesta coletânea. . 

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campo seria “a única forma de operar a síntese de conhecimentos obtidos de forma fragmentada e a condição para a justa compreensão até mesmo de outras experiências de campo”. Sua particularidade estaria associada ao fato de “que o etnógrafo também é, ou deveria ser, modificado por ela” e à “ideia estruturalista de que cada sociedade atualiza virtualidades humanas universais e, portanto, potencialmente presentes em outras sociedades” (2006: 29-31). Na argumentação de Fabian, o tempo intersubjetivo ocupa, num primeiro momento, o lugar de fundamento epistemológico da disciplina, pois é a condição de sua premissa, a pesquisa de campo. Ao longo do texto, enquanto o problema do distanciamento temporal é revelado e problematizado nas dimensões técnica, metodológica e epistemológica, o tempo intersubjetivo passa a ser também um modo de construir o conhecimento a ser elaborado e defendido. Não se pode perder de vista que a pesquisa de campo foi elemento fundamental do processo de emergência da mais elaborada consciência antropológica, os fundamentos metodológicos da etnografia: a busca pelo deslocamento do ponto de vista através do deixar-se afetar pelo outro. Ciente disso, e uma vez esclarecido o nó entre técnica, método e episteme ensejado pela centralidade da pesquisa de campo na antropologia, não obstante sua pertinência num certo período, é preciso reconhecer que a pesquisa de campo, por si só, não garante a consistência do método historicamente associado a ela. A associação entre antropologia e pesquisa de campo reiterada por Fabian e Goldman é questionável, mas isso não compromete os pontos fundamentais dos argumentos dos dois autores e de Tânia Stolze Lima apresentados anteriormente. Descartamos a suposição de uma raiz intersubjetiva comum a toda a disciplina, mas podemos manter no horizonte, simultaneamente como premissa e objetivo, a coetaneidade de sujeitos e objetos na construção do conhecimento. É possível, assim, expandir a ideia de etnografia, entendendo-a como um conjunto de princípios metodológicos a orientar pesquisas sobre certo conjunto de questões valendo-se, para isso, das técnicas que a conjuntura aprouver, entre as quais as de pesquisa de campo e as de leitura de fontes documentais. O trabalho de Ann Stoler, em especial o artigo entitulado “Memory-work in Java” (2002), é um exemplo interessante desse tipo de abordagem. No artigo, a autora relata como – após anos de trabalho documental sobre raça, gênero, vida doméstica e relações de trabalho na ilha de Java, no período da

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colonização holandesa – um incômodo crescente em relação à experiência dos trabalhadores domésticos javaneses e aos desdobramentos históricos das relações que estudava levou-a a realizar uma série de entrevistas com essas pessoas, em 1998. Marshall Sahlins elabora questão semelhante, por exemplo, em Adeus aos tristes tropos (2004). O autor defende uma proposta de elaboração conjunta de pesquisa de campo e documental ao falar dos equívocos das interpretações correntes sobre a prática da dança do hula-hula no Havaí contemporâneo. Tais interpretações consideram o fenômeno do renascimento do hula-hula como um uso comercial, no contexto do capitalismo contemporâneo, de uma invenção feita a partir da imagem da dança e da havaianidade produzida por marinheiros, colonizadores e missionários no contexto do colonialismo. Para o autor, as supostas invenções são formas locais de apreender e provocar a mudança, e não novidades que só podem ser entendidas a partir do que vem de fora. Sahlins propõe que se busque entender os havaianos como agentes da história do colonialismo e do capitalismo tanto quanto os europeus, através de uma “etnografia histórica cujo objetivo é sintetizar a experiência de campo de uma comunidade através de seu passado documental” (idem: 503-4). Em Sahlins, trata-se de confrontar os documentos com o conhecimento construído a partir da pesquisa presencial; em Stoler, o caminho é o inverso e os resultados, algo diversos5. Nesse caso, a necessidade da pesquisa campo surgiu de um longo trabalho de problematização da relação de dominação colonial, no sentido da compreensão do sujeito e da ação histórica, na análise de fontes documentais diversas: fotografias, atas jurídicas e manuais de boas maneiras, por exemplo. Esse trabalho resultou numa perspectiva de não vitimização dos colonizados e num questionamento sobre o significado histórico dos marcos cronológicos do colonialismo que, por sua vez, possibilitaram e demandaram a incorporação daquela outra fonte. Pesquisadora experiente até então sem experiência de campo, Stoler não foi a campo para suprir a necessidade de uma transformação pessoal com alcance epistemológico, ainda que viagens possam ser experiências interessantes em diferentes momentos da vida. O contato pessoal com ex-trabalhadoras e trabalhadores domésticos e 5.  Para reflexões aprofundadas sobre a consideração conjunta de fontes documentais e pesquisa de campo ver os capítulos de Feriani e Mello, nesta coletânea.

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a análise contextualizada de seus discursos acerca da experiência do período da dominação holandesa respondem à necessidade do esforço continuado de deslocamento do ponto de vista que marca a reflexão antropológica, como vimos acima. A pesquisa presencial, entretanto, não significou um contato mais imediato com “as percepções e práticas coloniais” (Stoler, 2002: 162) que constituíam os problemas de pesquisa da autora; pelo contrário, “estes relatos rechaçaram o colonial como domínio discreto de relações sociais e políticas, de experiência e memória” (idem: 203). Pregunto si en el caso de la perspectiva antropologica – cuyo acceso al “otro” pasa obligatoriamente por la consideración de sus “otros” - este acceso no será siempre, y de manera ineludible, indirecto, independientemente de las técnicas empleadas. (Peixoto, 2008: 30)

Esta colocação de Fernanda Peixoto é um referencial interessante para situar o percurso de Stoler. A investigação acerca das “percepções e práticas coloniais” na ilha de Java entre os séculos XIX e XX levou a pesquisadora a buscar os discursos de diferentes agentes coloniais – homens e mulheres, administradores coloniais, capitalistas e trabalhadores, ricos e pobres –, isto é, holandeses, e brancos em geral, ocupando diferentes posições na dinâmica colonial. A sucessiva consideração desses pontos de vista através dos arquivos delineou a ausência discursiva que levou a autora a buscar um outro “outro”. Na obra de Stoler, o ponto de vista de trabalhadores e trabalhadoras javaneses, inobservável nos documentos, é colocado em cena através da pesquisa presencial. Se os discursos das diferentes categorias de brancos se revelaram indiretamente na análise e confrontação de diferentes tipos de documentos, o mesmo ocorre com os relatos de javaneses, ainda que a análise destes demande técnicas específicas. Não só foi a busca dos relatos provocada indiretamente pelo vazio encontrado nos documentos como, uma vez recolhidos, os relatos passam a ser observados como documentos discursivos, cuja compreensão é mediada pela construção analítica de um contexto de significação (Comaroff e Comaroff, 1992: 16). No caso dos diversos tipos de arquivos analisados pela autora, a contextualização passa por abordar o processo de produção e arquivamento daqueles documentos e a complexidade das relações entre as diferentes categorias de brancos na metrópole e na colônia. Na análise dos relatos

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dos javaneses, por sua vez, a contextualização passa por identificar o conjunto de novos referentes ali presentes, dentre os quais se destacam: um outro conjunto de marcadores cronológicos, em que o período da ocupação japonesa é central; e a ansiedade, os silêncios e as meias-palavras que permeiam um discurso sobre o poder elaborado à sombra do regime político autoritário que sucedeu os japoneses. Tanto no trabalho de Sahlins (2004) quanto no de Stoler (2002), a consideração conjunta do documental e do presencial, assim como do presente e do passado, implica uma problematização muito importante da relação entre história e memória. A ideia reificada de cultura como jogo de interesses, em que se baseia a interpretação do renascimento do hula-hula como resquício do sistema mundial colonial-capitalista, implica uma desqualificação da memória local em que está implícita uma noção de verdade histórica. Entendo que só é possível a Sahlins recorrer aos documentos a partir de uma postura epistemológica diversa, que estabelece uma equivalência entre os documentos e os relatos orais e, numa outra dimensão, entre memória e história. No caso de Stoler, uma postura semelhante e o recurso à pesquisa presencial são alcançados a partir do refinamento da análise das fontes documentais coloniais. Além disso, a autora dá um passo a mais ao contrapor, sob a perspectiva da equivalência epistemológica, os diferentes discursos presentes nos documentos e nos relatos presenciais e, assim, problematizar os grandes divisores: global vs. local e colonial vs. pós-colonial. Procuramos aqui demonstrar que a análise de documentos escritos ou de discursos recolhidos em pesquisa presencial pode ser realizada num mesmo marco metodológico e epistemológico. A diferença na abordagem de um e outro tipo de objeto restringe-se ao tipo de contextualização adequada a um e outro tipo de discurso, assim como diferem a contextualização de arquivos públicos e privados, por exemplo. Desse modo, devemos concluir que os fundamentos para uma etnografia dos documentos são os fundamentos de qualquer etnografia: a postura epistemológica e os princípios metodológicos que nos permitam lançar mão das (ou mesmo inventar as) técnicas mais apropriadas para discutir os problemas que nos instigam.

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Os autores

Adriana Dias é doutoranda em antropologia social pela Universidade de Campinas, membro da Associação Brasileira de Antropologia e da Latin American Jewish Studies Association. Seus interesses de pesquisa têm sido a etnografia virtual, o discurso racista e neonazista, a discussão acerca de crimes de ódio. Há três anos acrescentou a relação entre biografia e etnografia. Desenvolve banco de dados desde 1999 e sistemas e websites na Internet desde 2001 e participa de movimentos sociais pelos direitos humanos das pessoas com deficiência há mais de duas décadas. Carolina Parreiras é mestre em antropologia social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do IFCH/Unicamp. Atualmente trabalha no Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp e é doutoranda do Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp. Seus principais interesses de pesquisa se relacionam aos estudos de gênero e sexualidade, às homossexualidades, aos estudos sobre o ciberespaço e, mais recentemente, pornografia e erotismo. Daniela Moreno Feriani é mestre em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a dissertação “Entre pais e filhos – práticas judiciais nos crimes em família”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Possui experiência de pesquisa em processos criminais, trabalhando com os seguintes temas: violência, crime, família, geração, gênero, direito penal e Tribunal do Júri.

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Flávia Melo da Cunha é  mestre em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas. Compõe o corpo docente do Instituto de Natureza e Cultura da Universidade Federal do Amazonas, onde desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão nas seguintes áreas: estudos de gênero, antropologia jurídica e segurança pública. Cauê Kruger é mestre em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), graduado em ciências sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em artes cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Atualmente é professor de antropologia e sociologia no curso de Licenciatura em Sociologia da PUC-PR. Paulo Ricardo Müller é mestre em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e tem como principais temas de interesse os processos de circulação transnacional em suas relações com a política, a economia, o direito e a cultura. Iracema Dulley graduou-se em filosofia pela USP, tem mestrado em antropologia social pela Unicamp e atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, com trabalho sobre a obra de Roy Wagner. Desenvolve pesquisa acerca das missões católicas e protestantes em Angola no período colonial no Cebrap e é autora do livro Deus é feiticeiro. Entre suas áreas de interesse estão teoria antropológica, etnografia, tradução, missões e as relações da antropologia com a filosofia, a linguística e a literatura. Marcelo Moura Mello é bacharel e licenciado em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestre em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – UFRJ e membro do Laboratório de Antropologia e História. Seus interesses de pesquisa articulam-se em torno dos seguintes temas: comunidades negras rurais e remanescentes de quilombos; etnicidade; arquivos; oralidade e memória; espiritualismo e Kalimai Puja na Guiana.  Olivia G. Janequine é mestre em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas, com pesquisa sobre administração

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colonial e comércio na então Guiné Portuguesa, hoje Guiné-Bissau, na primeira metade do século XX. Migrações, metodologia da antropologia social e desenvolvimento social são outras áreas de interesse.

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