ARISTÓTELES E UMA VISÃO DE SEUS TRATADOS ÉTICOS Ernesto Theodoro Krumenauer Filho*
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1. Contexto histórico aristotélico Aristóteles nasceu em Estagira em 384-83 a.C. Entrou logo em seguida na Academia de Platão. Permaneceu na Escola até os 20 anos, tempo que corresponde mais ou menos à data da morte de Platão (348-47). Segundo o doxógrafo Diógenes Laércio, Platão teria dito: “Aristóteles calcou-me como os potros calcam a mãe quando os dá a luz” (apud ABBAGNANO, 1981, p. 191-192). Fala-se que Aristóteles teria vivido parte de sua infância em Pela, cidade sede da corte dos reis da Macedônia, e que tenha herdado de seu pai todo o interesse pelas ciências naturais. Logo em 343 lhe chega uma proposta do rei Filipe da Macedônia para que ele se encarregue da educação de seu filho, Alexandre. Aristóteles aceita o convite e passa a conviver entre os mestres e os discípulos, construindo com ambos uma sólida amizade. Quando ocorre a morte de Alexandre, vítima “de seus excessos”, e a notícia chega a Atenas, Aristóteles, que fora sempre fiel e grato a favores, viu-se alvo da mais triste ingratidão por parte da cidade que muito lhe devia por interferência sua junto à corte da Macedônia. Em seguida ele é acusado de delito religioso: tributar honras divinas a um mortal, crime gravíssimo naquela época. Embora se tivesse
alheado
manifestações do macedônio. *
UNISINOS
da
política
ódio
de
Alexandre,
longamente
sufocado
alcançaram-lhe contra
as
o poderio
Aristóteles, então, é condenado à morte por sedição.
Sedição seria uma espécie de revolta do público, ou seja, uma sublevação contra a autoridade legal.
2. Obras
Comenta-se que Aristóteles teria escrito aproximadamente quatrocentas obras. Mas só restariam quarenta e sete, sendo algumas consideradas legítimas e outras apócrifas. Entre as obras esotéricas chegadas até nós são geralmente consideradas autênticas as seguintes: Primeiros Analíticos, Segundos Analíticos, Tópicos, Refutações,
Sofisticas,
Física,
Do
Céu,
da
Geração
e
da
Decomposição, Metereológicos, Da Alma; os opúsculos seguintes entre as chamadas Pequenas Obras sobre Ciência Naturais: Do sentido e das Coisas Sensíveis, Da Memória e da Reminiscência, Do Sono, Dos Sonhos, Da Adivinhação pelo Sono, Da Longevidade e da Brevidade da Vida, Da Juventude e da Velhice, Da Vida e da Morte e Da Respiração Histórias dos Animais, Da Marcha dos Animais, Da Geração dos Animais, Metafísica, Ética a Nicômacos, Política, Retórica e Poética, Da Interpretação, Do Movimento dos Animais, Ética a Êudemos. São consideradas apócrifas: Do Mundo, Do Espírito, Das Cores, Das Coisas Ouvidas, Fisionômicos, Das Plantas, Das Coisas Maravilhosas que se Ouvem, Problemas Mecânicos, Problemas, Das Virtudes e dos Vícios, e Da Economia e Retórica a Alexandre (Ética a Nicômacos, 1999 p.8- 09).
2.1 O lado ético para Aristóteles
A renomeada ética de Aristóteles chegou até nós por intermédio de três redações: Ética a Nicômacos, em dez livros; a Ética a Eudemos, em oito livros; e a Grande Ética, em dois livros. Comenta-
se que a palavra ética significaria “ciência do costume”. Ela também se tratava de um conhecimento prático, que tinha como objeto peculiar a ética. Aristóteles distingue alguns pontos, um seria a dialética filiada ao conceito aristotélico de dianoia, um termo grego retirado do próprio livro da poética de Aristóteles para traduzir o tema ou o sentindo global de uma obra literária. Essa suposta dianoia está então presente em toda a sua obra, mas nunca se revelaria por parte do conjunto, porque seria a própria totalidade significativa da obra. A ética de Aristóteles vai ser diretamente ligada a alguns conceitos fundamentais da Metafísica.
3. Análise dos primeiros livros da Ética a Nicômacos de Aristóteles Toda arte e toda indagação , assim como toda ação e todo propósito visam a algum bem; por isto foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas as coisas visam. Mas nota-se uma certa diversidade entre as finalidades; algumas são atividades, outras são produtos distintos das atividades de que se resultam; onde há finalidades distintas das ações os produtos são por natureza melhores que as atividades. Mas como há muitas atividades, artes e ciências, suas finalidades também são muitas; a finalidade da medicina é a saúde, a da construção a nau e da estratégia é a vitória, a da economia é a riqueza. Onde, porém tais artes se subordinam a uma única aptidão – por exemplo, da mesma forma que a produção de rédeas e outras artes relativas a acessórios para a montaria se subordinam à estratégia, de maneira idêntica umas artes se subordinam sucessivamente às outras – as finalidades das artes principais devem ter precedências sobre todas as finalidades subordinadas; com efeito, é por causa daqueles que estas são perseguidas . Não haverá diferença alguma no caso de as próprias atividades serem as finalidades das ações ou serem algo distinto delas, como ocorre com as artes e ciências mencionadas (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos 1999, livro I, 1094a).
Aqui se percebe claramente que essas primeiras premissas vão nos servir de proêmio, de introdução ou até mesmo de um principio ético e de uma própria ligação com a Política escrita por Aristóteles.
Logo em seguida vem o discurso da teoria da virtude, onde começa uma exposição metódica sobre esse assunto. Seria, por sua vez, um discurso doutrinário elaborado sobre a base concreta da historia. Um exemplo dessa primeira parte da ética ter uma semelhança com a política é que toda ação tem como finalidade um bem; toda comunidade se criou tendo em vista qualquer bem; para alcançar o bem supremo do Estado, que seria, portanto, a agremiação mais primorosa e maior.
3.1 A Ciência política e a influência dos jovens
Cada homem julga corretamente os assuntos que conhece, e é um bom juiz de tais assuntos. Assim, o homem instruído a respeito de um assunto é um bom juiz em relação ao mesmo, e o homem que recebeu uma instrução global é um bom juiz em geral. Conseqüentemente, um homem ainda jovem não é a pessoa própria para ouvir aulas de ciência política, pois ele é inexperiente quanto aos fatos da vida e as discussões referentes à ciência política partem destes fatos e giram em torno deles; além disso, como os jovens tendem a deixar-se levar pro suas paixões, seus estudos serão vãos e sem proveito, já que o fim almejado não é conhecimento, mas ação. Não fará qualquer diferença o fato de a pessoa ser jovem na idade ou no caráter; a deficiência não é uma questão de tempo, mas depende da vida que a pessoa leva, e da circunstancia de ela deixar-se levar pelas paixões, perseguindo cada objetivo que se lhe apresenta. Para tais pessoas o conhecimento não é proveitoso, tal como acontece com as pessoas incontinentes, mas para quem deseja e age segundo a razão o conhecimento de tais assuntos é altamente útil (ARISTÓTELES, ÉTICA A NICÔMACOS, 1999, livro I, 1095a).
Aqui, temos a certeza de que os jovens não seriam os mais aptos a exercer um cargo político, uma vez que eles se deixariam levar pelas paixões, pelo entusiasmo propriamente dito.
4. O saber teorético e o saber prático
Para Aristóteles, o objeto do conhecimento pode ser classificado em dois grandes grupos: o saber teorético e o saber prático. O primeiro trata daquilo que é necessário, incontingente. Dele fazem parte a física, a matemática, a lógica e a filosofia primeira (que trata da metafísica e da teologia) (ARISTÓTELES, 1998, 980a – 993a). O segundo grupo trata das coisas que são contingentes, ou seja, daquelas que assim são mas que assim poderiam não ser. Este grupo se divide no conhecimento da práxis2 e da póiesis3. O escopo da práxis coincide com a deliberação: No sentido mais geral a pessoa capaz de bem deliberar é dotada de discernimento... o discernimento não pode ser conhecimento científico nem arte, pois a ciência se refere ao invariável e a arte ao fazer (póiesis), não à ação (práxis). O discernimento é uma qualidade racional que leva à verdade no tocante às ações relacionadas com as coisas boas ou más para os seres humanos (ibidem, 1140a).
É
a
razão
prática,
portanto,
que
deve
ser
usada
nas
deliberações. Até então a filosofia moral só conhecia dois esquemas antagônicos e concorrentes, a saber, o relativismo sofista e
o
essencialismo platônico. 4.1. O homem como medida Buscando sempre o convencimento das platéias, a máxima que mais se enquadra a essa prática é aquela proferida por Protágoras de Abdera, depois definida como “axioma do homo mensura2” : “O homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são” (apud REALE; ANTISERI, 2002, p. 76). Seu corolário é que: “Assim como parece para mim cada coisa, assim é para mim e assim como te parece, tal é para ti: porque tu és homem e homem sou também” (apud ABBAGNANO, 1955, p. 43) Como apontam Reale e Antiseri:
A virtude que Protágoras ensinava era exatamente essa ‘habilidade’ de saber fazer prevalecer qualquer ponto de vista sobre a opinião oposta... Para Protágoras, portanto, tudo é relativo: não existe um “verdadeiro” absoluto e também não existem valores morais absolutos (“bens” absolutos). Existe, entretanto, algo que é mais útil, mais conveniente e, portanto, mais oportuno. O sábio é aquele que conhece esse relativo mais útil, mais conveniente e mais oportuno, sabendo convencer também os outros a reconhecê-lo e pô-lo em prática (REALE; ANTISERI, 2002, p. 77).
4.2 A busca pela essência do Bem Expondo o danoso relativismo proveniente do vazio de valores absolutos, o vigilante raciocínio de Sócrates introduz a máxima de Delfos4 como um novo passo em direção à virtude. Ela consistia em procurar em si mesmo, enquanto cidadão da pólis5 e também enquanto indivíduo racional e livre, um conhecimento verdadeiro e capaz de basear um ideal de ação. A busca de si mesmo é ao mesmo tempo busca do verdadeiro saber e da melhor maneira de viver: em outras palavras, é ao mesmo tempo busca do saber e da virtude. Saber e virtude se identificam, segundo Sócrates (ABBAGNANO, 1955 p. 51).
Platão sistematiza a doutrina de seu mestre na doutrina do bem supremo, onde o apresenta como a idéia mais perfeita que o mundo supralunar contém e na qual devemos basear nossas ações6. Imbuído do conhecimento de si mesmo (desamarrar-se das correntes) é que o homem alcança esse bem; pela iluminação.7 O ato de conhecê-lo, para Platão, é condição sine qua non para o agir virtuoso: Pois, segundo entende, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a idéia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública (PLATÃO, 2000, livro VII, 517a-e)
4.3 A questão da razão prática e o encontro do fundamento ético mais sólido Segundo Platão, para uma virtude suprema é necessário conhecer algo que sequer sabemos se existe: o bem como essência única. “Obviamente ele não pode ser algo universal, presente em todos os casos e único, pois então ele não poderia ter sido predicado de todas as categorias, mas somente de uma” (ARISTÓTELES, 1985, 1096a). Ou seja, cada atividade humana tende a um bem, a um fim específico; sendo os fins de uns subordinados ao fim de outros. Se há um fim mais essencialmente humano que os da economia, retórica, estratégia, etc, este é o da política (ibidem, 1094b). O homem como zoon politicon8 não tem por normalidade a virtude suprema nem a deficiência moral, mas sim o meio termo (mesotes)9, que será chamada por ele apenas de virtude. Definindo a vida em sociedade como a realização da finalidade humana, é com vistas à felicidade que dela provém a máxima de que o homem deve ordenar suas ações, procurando sempre trazer felicidade à sociedade e a si próprio. É, portanto, por prioridade teleológica que o bem das outras atividades humanas deve sempre tender ao que é tido como bem na vida em sociedade. Mesmo assim, não se pode dizer que Aristóteles busque uma receita universal de boa convivência, mas sim que o homem procure refletir sobre suas ações no momento mesmo em que as executa. “Uma ética do particular voltada para o universal”, nas palavras de Manfredo A. Oliveira. (1993, p. 58-59) É no âmbito das atividades humanas (e nos seus “melhores possíveis”) que devemos procurar a resposta à pergunta “que devo fazer?”; uma solução que encerra tanto o relativismo sofista quanto o essencialismo platônico, ambos justificados no meio termo da razão prática.
4.4. Telos
Só um “objetivo maior” ou um “fim maior” (um telos) pode ser fundador de uma ética, e este fim é presente na teoria aristotélica: a felicidade (eudaimonia) como predicado de uma vida perfeita e íntegra, admirável por toda a polis. 4.5 O hábito como formador da razão prática – o círculo virtuoso “As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemolas fazendo-as” (ARISTÓTELES, 1985, 1103b), logo, só podemos predicar felicidade a um ato depois de sua concretização. “Tornamonos justos praticando atos justos” (loc. cit.). Uma boa formação de hábitos desde a infância é fundamental para a formação do caráter e da razão prática. Para Aristóteles, um ser que ainda é irracional tem desejo e prazer insaciáveis e generalizados. A tendência a querer saciá-los é tão violenta que pode aniquilar a própria capacidade de raciocinar. Por isso sua satisfação deve ser pouca e moderada, não devendo nunca se opor à razão (ibidem, 1119b). Nesse sistema, portanto, a virtude alimenta e constrói a razão prática que, por sua vez, constrói a virtude – e assim temos um círculo virtuoso O bom funcionamento da razão prática – “A escolha é um desejo deliberado [...] para que a escolha seja boa, tanto a razão deve ser verdadeira quanto o desejo deve ser correto, e este deve buscar exatamente o que aquela determina.” Mas também a inteligência prática deve perceber a verdade conforme ao desejo correto. (ibidem, 1139b). Jacques Maritain contundentemente observa que: “Não existe sistema moral mais real e autenticamente humanista. E não existe nenhum sistema moral que mais decepcione o homem” (1955, p.
69). Com o auxílio da razão prática aristotélica, é tão simples quanto difícil ser virtuoso. Saber como agir é simples, a razão prática nos diz como. Difícil é querer agir conforme a reta razão. A virtude anda ao lado daquele que sabe como agir e que quer agir de acordo com o que sabe – e é exatamente deste desejo que carece o homem desde a modernidade, pois a ele não é dado um script ou sinal que lhe oriente para a virtude concreta. O mar de individualidades em que vivemos padroniza em ondas disformes o virtuoso curso dos rios que a ele inocentemente correm.
4.6 O guia para o reto agir é o meio termo
Assim como toda exposição ou elaboração de teoria a respeito de casos particulares, as matérias relativas à conduta nada têm de fixo. Aristóteles, de família tradicionalmente ligada à medicina e biólogo por vocação, vê a excelência moral como “constituída por natureza de modo a ser destruída pela deficiência e pelo excesso [...] e preservada pelo meio termo” (ARISTÓTELES, 1985, 1104a). Ou seja,
ausência de leis fixas no estudo da conduta é, para ele,
semelhante à das relações do homem com o seu corpo, em que excessos e faltas na alimentação e nos exercícios pode levar ao colapso. A busca do meio termo, ou seja, “agir de acordo com a reta razão” (ibidem, 1104a) deve ser o princípio geral da ação. Não basta mais conhecer um suposto “Bem melhor que qualquer outro”, há que analisar o melhor bem conhecido (conforme dito anteriormente, o bem que a vida em sociedade aponta), aplicá-lo ao princípio do meiotermo, à moderação, para aí então agir. “O conhecimento não traz ética, como ouvir o médico e não agir conforme sua prescrição não traz saúde.” (ibidem, 1105a)
4.6.1. A deficiência moral é voluntária
Aristóteles
classifica
como
irracional
(ibidem,
1114a)
a
suposição de que os injustos não desejam sê-lo. São injustos atualmente porque de início, quando puderam evitar este estado de coisas, escolheram voluntariamente as formas da deficiência moral (vício) ao invés do justo meio. Agora que são injustas não conseguem mais deixar de sê-lo. “Ninguém censura as pessoas feias por natureza, censuramos aquelas que o são por falta de exercícios e cuidados” (loc. cit.). 5. As virtudes O livro IV da Ética a Nicômacos trata de algumas virtudes encontradas por Aristóteles nos homens virtuosos:
5.1 Liberalidade
É o meio termo no tocante a dar e obter riquezas que sejam mensuráveis por dinheiro. Os liberais são aqueles que usam melhor seus recursos que as outras. É, portanto, proporcional às posses e pode ser resumida na máxima “A liberalidade consiste em dar às pessoas certas e não obter de fontes erradas” (ibidem, 1119b1121a).
5.2. Magnificência
Semelhantemente à liberalidade, se relaciona com a riqueza porém apenas no tocante aos gastos. A adequação do desembolso é relativa a quem o faz, as circunstâncias e seu objetivo. É o meio termo entre a mesquinhez e a vulgaridade ou mau-gosto. Pode ser
resumida na máxima “O resultado deve estar à altura do dispêndio e o dispêndio à altura do resultado, ou deve até excedê-lo.” Também é relativa às posses da pessoa que gasta (ibidem, 1122a-1123b).
5.3 Magnanimidade
“Considera-se magnânima aquela pessoa que aspira as grandes coisas e está à altura delas [...] que seja incapaz de viver em função de outras pessoas, a não ser de amigos. Que não seja propensa a elogiar, tampouco falar mal” (ibidem, 1124a-1125a). Quem aspira menos que merece é pusilânime, quem aspira mais que merece é pretensioso.
5.4. Amabilidade
É o meio termo entre a cólera e aquilo que poderíamos chamar de
“amabilidade
puritana”.
Para
Aristóteles,
encolerizar-se
por
motivos justos com as pessoas certas é também uma demonstração de observância do meio termo (ibidem, 1125b).
5.5 Sinceridade “Os sinceros merecem mais honras que os jactanciosos e os falsos modestos” (ibidem, 1125b).
5.6 Presença de espírito
É o meio termo entre a fanfarronice de gracejar a todo o momento e grosseria ou o silêncio enfadonho. “São dotados de presença de espírito aqueles que traduzem repentes pertinentes, que são considerados movimentos do caráter” (ibidem, 1128a).
5.7 A Justiça
A justiça e seu inverso, a injustiça, pode se dar em dois tipos de relação: uma diz respeito à convivência das pessoas e outra diz respeito às distribuições (de dinheiro, funções, etc). A primeira, segundo Aristóteles, é a prática efetiva da excelência moral, ou seja, em sua plenitude, se constitui pelo agir guiado pela justiça. Ser injusto é não desejar o bem e o mal na mesma medida (ibidem, 1129a-b). Outro aspecto importante da justiça é o da proporcionalidade, não só de quantidades, mas também de qualidades. Com efeito, a proporcionalidade é uma igualdade de razões, envolvendo no mínimo quatro elementos: a razão entre um par de elementos é igual á razão existente entre o outro par. Nesta acepção o justo é o meio termo entre dois extremos desproporcionais, o justo é o proporcional (ibidem, 1131b).
A ação justa é o meio termo entre agir injustamente e ser tratado injustamente. A injustiça, por outro lado, se relaciona com os extremos da falta e do excesso. A justiça corretiva – é feita quando se busca o meio termo entre a perda e o ganho. Consiste em se ter o mesmo quinhão antes e depois da ação. A reciprocidade – A vida em comunidade se baseia em permutas de produtos e serviços (ibidem, 1133b) entre homens naturalmente
desiguais.
Essa
relação
de
reciprocidade
não
é
necessariamente justa. A relação entre homens justos busca sempre a proporcionalidade. O meio mais fácil para obter proporcionalidade é mensurar e igualizar os produtos das atividades humanas sob uma mesma medida. Este, e tão somente este, é papel que cabe ao dinheiro.
Liberdade de consciência – Aristóteles se aproxima novamente de Sócrates ao colocar a voluntariedade presente em um ato como critério para a censura do agente. “Todo ato praticado na ignorância, ou que, embora não sendo praticado na ignorância não depende do agente” e, portanto, “sem deliberação” não é passível de julgamento. (ibidem, 1135a), onde a palavra “voluntariamente” é usada para designar “o conhecimento da pessoa em relação a qual se age, o instrumento e a maneira pelo qual se está agindo” (ibidem, 1136b). 6. Crítica à acusação de elitismo É patente que virtudes como a magnificência, a liberalidade e até mesmo a magnanimidade são compatíveis apenas com certa camada social – aquela que era contemplada pelo pensamento de Aristóteles: cidadãos gregos livres e suficientemente providos para manter seu sustento sem trabalho (póiesis). Essa classe social se constitui hoje em clara minoria, o que transforma, aparentemente, a ética de virtudes aristotélica em um sistema elitista. Uma “popularização” da ética das virtudes, no entanto, depende muito mais da difusão de conhecimento, culto e honra a essa cultura, além de dedicação pedagógica por parte da sociedade; do que de uma
distribuição
de
renda
que,
embora
desejável,
não
é
indispensável para, no mínimo, evitar a falha moral (o pólo negativo da dialética do meio termo). 7. Ética para a polis global Dentre as propostas atuais, podemos apontar três linhas como herdeiras de Aristóteles: o universalismo, o comunitarismo e o subjetivismo.
7.1 Universalismo
O universalismo pode ser definido como uma busca por valores universais (transculturais) que possam fundamentar uma guia de comportamento. Dois autores que trabalham nessa linha, Hans Küng e John Rawls, podem ser citados. 7.1.1 Hans Küng Küng, como Tomás de Aquino, esmera-se na busca por fundamentos morais nas Escrituras Sagradas bem como nas práticas presentes no convívio das sociedades cristãs. O legado de Aristóteles, portanto, chega até ele por intermédio de Tomás, isto é, aplicado a uma cristandade que se encontrava em situação semelhante à que vivemos atualmente. Do aquinate, herda a razão prática como exploradora e organizadora de preceitos éticos que condigam com uma lei natural (que no caso de Küng deve ser produto de consenso intercultural), bem como a busca por uma ética que valorize virtudes e não apenas por normas de ação. Do estagirita, herda a busca pelo bom senso (meio termo), trazendo para o diálogo inter-religioso e intercultural o saudável relativismo imprescindível ao entendimento mundial. 7.1.2 John Rawls O americano John Rawls prega uma teoria de justiça eqüitativa de maximização dos mínimos, isto é, fortalecimento dos mais desfavorecidos. Sua teoria pretende revisar o contrato social dos empiristas, colocando na “posição original” um homem que seja, por natureza, político. Há, aí, influência de Aristóteles em dois pontos: 1) a busca pelo meio termo (estratégia de maximização dos mínimos) e 2) a própria ontologia que Aristóteles faz do homem: na perfeita vida em sociedade estaria finalidade do ser humano. A teoria de justiça de Rawls constitui sólido apoio a uma ética global porém descuida de um ponto: sua interculturalidade tem como
pressuposto a democracia como sistema social, o que, para muitos povos, é apenas um conceito distante, a mais das vezes até desconhecido. Em busca de uma saída que não fira as liberdades de cada povo encontramos os filósofos comunitaristas.
8. Comunitarismo
Os comunitaristas colocam a liberdade cultural dos povos acima de qualquer sistema social, vale dizer, encaram a democracia como produto da cultura ocidental e, portanto, adequada como medida de liberdade apenas para a cultura da qual foi gerada Dentre outros comunitaristas, destacam-se o irlandês Alasdair MacIntyre e o norte-americano Michael Walzer. Alasdair MacIntyre em seu livro “Depois da virtude” empreende rigorosa análise do desenvolvimento da filosofia moral, desde seus momentos mais rudimentares até os dias atuais. Ele conclui que à dicotomia presente entre o ceticismo de Hume e a deontologia de Kant, a teleologia aristotélica do zoon politicon (cuja realização é a boa vida em sociedade) pode ser resposta conciliadora. Para o irlandês, só a busca pela virtude no seio da sociedade pode trazer obrigatoriedade ética, pois A virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício costuma nos capacitar a alcançar aqueles bens internos às práticas e cuja ausência nos impede, para todos efeitos, de alcançar tais bens (MACINTYRE, 2001, p. 321).
O agente ético, aí, se adapta ao meio em que vive, aos scripts de sua sociedade e não a regras de valores supostamente universais. Ao contrário, elas é que são produzidas pela práxis humana. Em que consiste a unidade de uma vida individual? A resposta é que sua unidade é a unidade de uma narrativa expressa numa única vida. Perguntar o que é bom para mim? É perguntar como devo viver melhor essa unidade e levá-la a cabo. Perguntar o que é bem para o homem? É perguntar o que todas as respostas à pergunta anterior devem ter em comum (ibidem, p. 367).
Sua filosofia moral é, portanto, um redirecionamento quase que completo a teoria de Aristóteles e, levada à prática, traz à tona algumas questões: em que polis estamos inseridos? Quem são nossos vizinhos? Quais virtudes são valorizadas na nossa sociedade? No capítulo final, MacIntyre exemplifica, com as comunidades cristãs que se opunham ao império romano nos primeiros séculos de nossa era, a possibilidade de surgimento de novos agrupamentos sociais. De fato, novos ditames morais, distintos daqueles que a massa costuma
usar,
parecem
cada
vez
mais
necessários
para
um
desenvolvimento salutar e não uniformizado das culturas humanas Segundo Walzer, a justiça distributiva têm sido adotada pela sociedade de diversas formas em diversos arranjos, uma vez que nunca se viu um meio universal de troca que facilitasse a distribuição de bens. Mesmo o dinheiro não atinge todas as esferas de ação do homem (como por exemplo amor, saúde, etc.) Segundo ele, as esferas são: 1) dinheiro e mercadorias, 2) profissão, carreira e trabalho, 3) educação, 4) trabalho duro e perigoso, 5) lazer, 6) afeto e amor (família e casamento), 7) esfera do sagrado, 8) reconhecimento e 9) poder político. “Cada bem social ou conjunto de bens sociais constitui... uma esfera distributiva dentro da qual apenas alguns critérios e arranjos são apropriados.” (WALZER apud MACEDO, 1997, p.342). Qualquer inobservância na autonomia intrínseca a cada uma das esferas de ação constitui, portanto, tirania, com por exemplo, amor pago, amor por interesse, propina, assédio sexual no trabalho para promoção, etc. Walzer desenvolve a teoria de que existem dois níveis de moralidade autônomos e que, um deles, pode ser universalizável. Trata-se da teoria “Thick and Thin”, segundo a qual os povos constituem, como uma espécie de solo, um código denso (thick) que dita punições ou prêmios às ações. Esse solo, no entanto, esconde
raízes morais menos densas (thin) as quais podem ser fundamento para uma ética global. O roubo, por exemplo, é imoral tanto na cultura árabe quanto na cultura cristã, porém a punição ocidental constitui-se na perda temporária do direito natural à liberdade, enquanto o código muçulmano manda mutilar o corpo do criminoso buscando eliminar o órgão transgressor e disciplinar o agente que perpretou a ação recriminada por aquela sociedade. 9. Subjetivacionismo O subjetivacionismo vê, a partir das leituras que G. Deleuze e M. Foucault fazem da sociedade pós-moderna, a inexistência da liberdade individual na referida sociedade. Chamada por eles de “sociedade de controle”, é ela que cria as potencialidades de subjetivação do
indivíduo contemporâneo, tolhendo aquilo
que
pretendia como base da instituição do Estado moderno: liberdade. Neste contexto, fazer-se livre constitui um esforço individual, como era para os gregos da polis: o homem livre era aquele que melhor comandava a si mesmo, pois a cidade não era formada por sujeitos livres e sem regras, mas autônomos. A virtude é protagonista nessa visão, sendo que Foucault, por exemplo, coloca a espiritualidade platônica e o preceito estóico “ocupa-te de ti mesmo” como centro da busca pelo fundamento do agir virtuoso: O que interessava aos gregos era a constituição de uma ética que fosse uma estética da existência... Pois bem, me pergunto se nosso problema de hoje não é de certo modo similar, dado que a maioria de nós não crê que a ética esteja fundamentada na religião nem desejamos que um sistema legal intervenha em nossa vida privada de caráter moral e pessoal (FOUCAULT, 1996, p.11).
A busca estética da existência como formadora da autonomia parece casar-se perfeitamente com a proposta comunitarista, sendolhe complemento referente à realização pessoal e subjetiva do indivíduo dentro de sua comunidade.
NOTAS 1
Lógica: estudo do logos (discurso, razão) e de suas leis. Práxis: prática, deliberação, tomada de decisão. 3 Póiesis: arte, tecnologia, técnica, realização da decisão tomada na práxis. 4 Delfos: oráculo grego em cuja entrada se encontrava a máxima “conhece-te a ti mesmo”. 5 polis: o conjunto dos cidadãos gregos que mantém relações entre si. É a cidade grega e todos seus componentes. 6 Conforme a Alegoria da Caverna, presente no livro VII de “A República” (p. 514ac a 517a-e). 7 Note-se que o conhecimento é, aí, revelado e não produto da pura intelecção. 8 Zoon politicon: Animal essencialmente político. 9 Mesotes: Alguns tratam o termo como “justo meio”. Será adotada esta nomenclatura nos momentos mais apropriados, tendo em vista que o termo mesotes abrange muitos significados de uso variado. 2
Bibliografia ABBAGNANO, Nicolas. Historia de la filosofia – Filosofia Antigua, Filosofia Patrística e Filosofia Escolástica. Barcelona: Montaner y Simon, 1955, 516p. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Editora UnB, 1999, 238p. ARISTÓTELES. Metafísica. Madri: Gredos, 1998, 3.a ed., 830p. FOUCAULT, Michel. Hermenéutica del sujeto. La Plata, Argentina: Altamira, 1996, 130p. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In: KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret,2002, p.13-96. MACEDO, Ubiratan Borges de. A crítica de Michael Walzer a Rawls. Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo, v. XLIV, n. 187, p. 335351, jul./set. 1997. MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Bauru: EDUSC, 2001, 478p. MARITAIN, Jacques. A filosofia moral. Rio de Janeiro: Agir, 1973, 2.a ed, 508p. NIETSZCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2003, 247p. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993, 2.a ed., 290p. PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000, 320p. REALE, Giovani; Dario ANTISERI. História da filosofia – Antigüidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 2002, 7.a ed, 712p.