Erik

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  • Words: 35,179
  • Pages: 160
1

ERIK

Rosane Álvares da Silva

2

I

Novamente em fuga. De volta aos esgotos. Mais uma vez, rejeitado. Christine me abandonara definitivamente. Tinha esperanças que ela ficasse comigo, mas seu amor por Raoul era maior. Devia saber que ela não trocaria o belo visconde por um deformado como eu. Ela não merecia o meu amor. Em nosso único beijo pude perceber que ela faria qualquer coisa para salvar seu amante. Eu podia entender agora. O amor nos faz cometer loucuras. Agora, seguiria meu caminho. Começaria do zero, mais uma vez. Esta era a minha vida, minha sina, meu destino. Quando poderia dar sossego a minha alma atormentada? De tudo que aconteceu, levara uma lição... Nunca mais colocaria alguém acima de mim mesmo. Tudo que conseguira ao longo dos anos, perdidos numa só noite, por causa de uma mulher. Uma mulher... Christine... Ouvi as vozes dos soldados ao longe. Gritos de pavor vindos das ruas, acima de mim. O calor das chamas. Podia senti-lo, queimando toda a beleza daquele teatro magnífico, que por tantos anos fora meu lar. Um lar de sombras, de noite eterna, mas um lar. De repente, ouvi em forte estrondo e alguns destroços caíram sobre mim. Entre as pedras que desabavam, enfraquecidas em suas ligas, pelo fogo, havia estacas de madeira. Uma delas precipitou-se rapidamente sobre minhas costas, cravando-se em minha carne, provocando uma dor intensa. Devo ter perdido os sentidos naquele momento, pois não me lembro de ter visto mais nada depois

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disso. Não sei quanto tempo ali fiquei deitado, naquelas ruelas fétidas, subterrâneas, até recuperar a consciência. Levantei-me e continuei

minha

fuga. Agora, sentia muita dor. Minha camisa estava colada ao corpo. Não pelo suor ou pela água, mas por sangue, que fora perdido em grande quantidade. Sentia-me

fraco.

Precisava

sair

daquele

lugar,

antes

que

alguém

me

encontrasse. Todos deviam estar ansiosos por encontrar este “ser maligno, deformado, homicida sanguinário”. Ninguém sentiria compaixão por mim, nem ouviria minhas explicações. Nada explicaria aquela violência e aquela raiva contida numa só pessoa. Talvez Christine compreendesse. Vi nos olhos dela que sim. Outra pessoa já tinha entendido este meu lado. Não podia esquecê-la. Madame Giry. Annie Giry.

Minha salvadora. Talvez... Quem sabe ela não

pudesse ajudar-me agora. Seria ela capaz de arriscar-se novamente por mim? Depois de tudo que ocorrera naquela noite? Ao encontrar uma saída para o ar livre, cobri-me com minha capa. A máscara que usava ficara perdida no meio dos escombros. Para onde Annie e sua filha poderiam ter ido? Seu lar também fora destruído. Lembrei que, certa vez, ela havia falado na casa de um irmão em Monmartre, próxima a Sacré-Couer Talvez tivesse ido para lá, até encontrar um lugar definitivo. Segui em sua direção. Lembrei do endereço. Não era difícil de achar. Com dificuldade, andei, esgueirando-me pelas ruas de Paris, como facínora perseguido que era. Cerca de quase duas horas depois, estava lá. Havia uma fraca lamparina acesa. Procurei

a

porta

dos

fundos.

Consegui

abri-la

com

facilidade.

Entrei

silenciosamente, indo na direção da luz. Num instante, ouvi vozes femininas, sendo que uma estava chorando. Era Meg. Pareciam estar sozinhas. Não queria assustá-las.A dor nas costas estava incomodando muito. Tropecei num pequeno tapete, não visualizado no escuro. - Quem está aí? – perguntou a voz conhecida. Ela pegou um pesado candelabro que estava sobre a mesa e levantou-o no ar, pronta para desferir um golpe no intruso oculto nas sombras da sala.

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- Sou eu, Annie! Erik! - Minha voz saía fraca. Perdia as forças rapidamente. - Erik! Meu amigo! O que houve com você? Ela ainda me considerava seu amigo. Era uma pessoa especial. Tinha muito a aprender com ela. Desperdiçara meu tempo com vingança e um amor tolo, ao invés de prestar atenção a quem tinha algo de valor a ensinar. Talvez

fosse

tarde demais para isso. - Annie, me perdoe. A culpa foi toda minha. Fui um estúpido. Deveria ter morrido naqueles subterrâneos. Só agora vejo que você tinha razão. - Erik! O que aconteceu? Você está sangrando muito. - Mamãe! Nós não podemos ajudá-lo! Ele está sendo perseguido pela polícia. Se souberem que o ajudamos, seremos presas como cúmplices! - Cale-se, Meg! Não foi assim que a ensinei! Ajude-me aqui, agora! Com muito esforço, conseguiram levantar-me do chão e levar-me até um pequeno sofá, onde, após despir-me da capa e de minha camisa, puderam ver um ferimento cortante, amplo, com uma séria hemorragia. - Meg, traga-me água quente, panos limpos, agulha de bordar e uma linha de algodão. Rápido! - Melhor deixar que eu morra. Já prejudiquei muita gente. - Cale-se, você também, Erik. Agora vou dar um jeito neste ferimento. Não quero vê-lo morrer dentro de minha casa, na frente de minha filha. Assim que você estiver recuperado, poderá fugir e tentar refazer a sua vida. Agora, temos de pensar numa maneira de diminuir a dor que você irá sentir quando eu tiver de costurá-lo.

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Falando isso, foi a cozinha, onde pegou uma garrafa de conhaque. Fez-me beber vários goles. Em pouco tempo já estava tonto. Não estava acostumado a beber tanto. Meg voltou com o pedido da mãe. O ferimento foi limpo e logo, ela fazia o seu trabalho de costureira. Durante o procedimento, desmaiei. Não só pela dor, mas por estar fraco demais com a perda de sangue.

Acordei. Estava deitado em uma cama, com lençóis limpos. Meu peito encontrava-se enfaixado com gazes brancas. A dor recomeçara. Não conseguia mexer-me. Ainda estava fraco. - Bom dia! Como está meu paciente? Sobreviveu ao meu trabalho de açougueiro? Trouxe-lhe um caldo de galinha quentinho, para recuperar suas forças. - Annie... Como vou poder agradecê-la por tudo que está fazendo por mim? - Ficando bom logo, para poder ir embora daqui - falou sorridente. - Erik, falando sério, o seu

ferimento foi bem profundo. Você tem que

repousar, pois ele pode sangrar de novo. Não tente fugir. Você está seguro aqui. - E o seu irmão? - Ele faleceu há cerca de seis meses. Deixou-me esta casa como herança, pois não tinha herdeiros. - Eu não sabia. Porque não me contou?

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- Você estava muito envolvido com os seus planos e com a sua pupila. Não quis incomodá-lo. - Annie, eu sinto que tudo isto que aconteceu mudou o meu modo de pensar. Parte daquele ódio que eu sentia deu espaço para outros sentimentos. Se eu conseguir sobreviver a tudo isto, vou embora para outro país, tentar recomeçar minha vida, de outra maneira. - Erik, como é bom ouvir isto! Já é tempo de você deixar o passado de lado. Você é um homem muito inteligente e talentoso. Não pode deixar que um simples defeito físico atrapalhe sua vida. Você sabe que pode contar comigo... Sempre. - Eu sei, Annie, e sou profundamente grato a você. Mais uma noite de sonhos terríveis me aguardava. Sempre a perseguição era o tema principal. Era perseguido por sombras demoníacas, ávidas por meu sangue. Por minha cabeça. Às vezes, Christine surgia do nada. Por vezes queria ajudar. Via suas delicadas mãos tentando alcançar-me ou puxar-me para fora da escuridão. Outras vezes, ela surgia

unida às sombras ou a Raoul,

vociferando contra mim. A sensação de morte iminente era quase real. Ao final, acordava banhado em suor e com as têmporas latejantes.

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II

Na

manhã seguinte, fui acordado por batidas fortes na porta, no andar

debaixo. - Abram! É a polícia! Levantei-me da cama, com dificuldade, devido à dor, mas pude chegar até a porta do quarto, abrindo-a, para tentar escutar as vozes lá embaixo. - Calma! O que está havendo? Porque a pressa? Annie abriu a porta. - Bom dia, madame. Fomos informados que um homem estranho, usando uma capa, foi visto andando por estas ruas. Pode ser um assassino. Estamos a sua procura. Deve ter ouvido falar do incêndio na Ópera, há duas noites, não? - Sinto muito, mas não posso ajudá-lo. Não vi ninguém com esta descrição. - Tem certeza? - Claro! Se souber de alguma coisa, avisarei. Fechou a porta. Respirou fundo, com olhar preocupado.

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- Eu falei, mamãe. Vamos ter problemas. Ela tinha razão. Se eu continuasse ali, elas poderiam ser intimadas e presas por cumplicidade. Precisava deixá-las. Não podia lhes causar mais este sofrimento. Annie abriu a porta e surpreendeu-se ao me ver em pé. - O que você está fazendo aí? Não pode levantar-se. - Vou embora esta noite. Precisam conseguir-me roupas e algum disfarce para o meu rosto. - Mas, você não pode sair. Você vai acabar sangrando até morrer, se não cuidar. - Vocês estão correndo perigo enquanto eu estiver aqui. - Está bem. Vou ver o que posso arranjar. - Obrigado, Annie. É o melhor para todos nós. Você sabe disto... A noite chegou. Um chapéu de abas largas e uma venda preta sobre o olho direito serviram para disfarçar minha face desfigurada. Annie conseguira retirar meu dinheiro do banco, guardado em seu nome, a meu pedido. Era uma quantia

razoável,

produto

do

salário

pago,

por

anos

a

fio,

pelos

administradores da Ópera. Com ele poderia iniciar algum negócio, em outro país. Resolvi guardar a maior parte dentro de minhas botas e numa faixa usada junto ao corpo. Mais tarde, veria que tinha sido uma sábia decisão. - Boa sorte, Erik! Deus o proteja. Aqui estão alguns mantimentos para a sua viagem. – falou, entregando-me uma bolsa de couro. - Obrigado, Madame Giry. Nunca vou esquecer o que você fez por mim. - Por favor, assim que possível, escreva e mande notícias.

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- Adeus. - Adeus, Erik – e abraçou-me, como a um irmão. - Erik... – falou Meg. - Eu peço desculpas pelo meu comportamento nestes últimos dias. Desejo que você seja feliz. Tenho uma coisa para lhe dar, que achei nos seus aposentos durante a

confusão daquela noite – dizendo isto,

alcançou-me a minha máscara que cobria a metade de meu rosto desfigurado. - Eu não a culpo pelos seus pensamentos, Meg. Você tem toda a razão em ter medo. E obrigado por recuperar o meu “rosto”. Adeus. Saí pela porta dos fundos. Já era madrugada. Só os bêbados e as poucas prostitutas que ainda não haviam conseguido completar a féria da noite, ainda perambulavam pelas ruas. A dor na ferida já recomeçara.. Não podia arriscarme a pegar um coche. Tinha de seguir para o Norte. Calais? Não, muito movimentado. Talvez Boulougne fosse melhor. Estava próximo ao mercado, que já começava a movimentar-se com a chegada das mercadorias, vindas em carroças, das pequenas propriedades da periferia da cidade. Se eu conseguisse pegar um daqueles cavalos. Um pequeno furto não mancharia muito mais a minha ficha policial. Aproximei-me, cuidadosamente, ainda coberto pela escuridão da noite, do bebedouro público onde os cavalos saciavam sua sede. Consegui desatrelar um deles e silenciosamente afastei-me do local sem ser percebido. Quando o dono deu-se conta, já era tarde demais. Já cavalgava livremente pela estrada, rumo a Beauvais. De lá seguiria para Boulougne. Apesar da dor, não podia arriscarme a parar para descansar. Eram cerca de 250 km a percorrer a cavalo. Não seria fácil, considerando meu ferimento. Contudo, cheguei a Beauvais no início da tarde.

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Apesar do bom trabalho de Annie, o esforço de cavalgar era grande e uma pequena hemorragia insistia em voltar. Coloquei minha capa por cima do corpo, para esconder o sangramento. Logo na entrada da cidade, encontrei uma velha taverna, onde pude beber um copo de vinho, com pão e queijo. Sentindo-me observado pelos poucos freqüentadores do lugar, tentei não lhes dar atenção. O taverneiro não resistiu à curiosidade e perguntou: - Foi ferimento na guerra? Percebi que esta seria uma bela desculpa para aquela deformidade. - Sim. Lembrança de uma batalha. Iniciamos uma conversa muito animada, principalmente por parte de meu interlocutor, que viu em mim um companheiro de lutas. Passou a contar das batalhas que participara. Minha sorte foi que ele gostava mais de falar do que de ouvir. Quando terminou seu monólogo, pude pagar e despedir-me. Já não via desconfiança ou horror nos rostos a meu redor. Sentiam admiração e pena pelo herói que me supunham ser. A partir daí, decidi não fazer mais paradas nas localidades por onde passasse. Poderia ser reconhecido. Não tinha idéia de como estava a caçada ao Fantasma. Havia visto alguns policiais andando pela cidade, sendo que um deles ficou olhando-me suspeitamente. Provavelmente, devido ao meu aspecto e por curiosidade em relação ao meu “ferimento” no rosto, mas eu não podia arriscar. Resolvi manter a venda preta e não minha antiga máscara, para não chamar mais a atenção. Foram três dias de longo e cansativo trote, tentando evitar as estradas principais, com a dor nas costas a me infernizar. Noites mal dormidas em meio ao mato, alimentando-me com o pão, a geléia de maçã e alguns biscoitos que Madame Giry colocara na bolsa de couro. A água, para saciar a sede, vinha dos

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córregos por onde passava. Estava exausto, sentindo-me fraco e febril. Precisava de um banho. Precisava trocar os curativos. Finalmente, ao final do terceiro dia, as poucas luzes de Boulogne surgiram no horizonte, misturando-se ao lusco-fusco do anoitecer. Podia sentir o cheiro de peixe em minhas narinas. Se pudesse achar um lugar para repousar à noite. Poucas luzes acesas. Consegui encontrar uma pequena pousada próxima à praia.

Ao entrar, mais uma vez o olhar desconfiado do

caseiro. Em tom de gracejo, comentei sobre o presente de Napoleão III em meu rosto. Fiquei impressionado com a simpatia que veio substituir a expressão de horror que havia segundos antes. Passei a surpreender-me com a maneira como as portas se abriam diante deste argumento. Consegui um modesto quarto, mas com uma cama limpa e uma bacia com água para a higiene. Claro, que tinha um preço alto, além do cavalo que ficaria para completar o pagamento. Mas, considerando o cansaço e as dores que sentia, foi bem pago. Tentei cuidar de meu curativo da melhor maneira possível, mas, pela localização, tive dificuldades em fazer uma limpeza adequada. Como já não estava sangrando, apenas lavei-o como pude. No dia seguinte, colocaria uma camisa

limpa.

Certamente

Não

estava

consegui

dormir

infectada.

direito.

Mantinha-me

Sentia em

a

ferida

estado

latejante. de

alerta

constantemente pelo medo de ser descoberto e ter meus planos jogados por terra. Tão logo amanheceu, levantei-me e desci para comer alguma coisa e procurar uma embarcação que me levasse para Dover. Se não estivesse ferido, eu mesmo poderia remar e atravessar La Manche. Porém, no estado em que me encontrava, seria assinar o meu óbito em meio às ondas do mar. Conversando com o dono da pousada, consegui descobrir que seu irmão estava saindo dentro de uma hora, com seu barco a vapor, para atravessar o canal, levando algumas mercadorias para o território inglês. Como as coisas

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funcionavam a contento quando havia dinheiro para gastar... Esta seria a minha orientação a partir de então. Ganhar dinheiro. Todas as barreiras eram superadas na presença de algumas moedas. Não havia preconceito ou dificuldades. Após um

brevíssimo “petit déjeuner”, fui apresentado a Jean, irmão de meu

hospedeiro. Era um homem de meia idade, forte, queimado pelo sol, de poucas palavras, diferente do seu consangüíneo. Pareceu-me meio desconfiado. - Espero que você seja discreto a respeito deste nosso “passeio”. - O mesmo espero de você. Portanto, não teremos problemas. Após este breve entendimento, partimos mar adentro. Pude entender que o seu carregamento era ilegal e que não passaria por tarifa alfandegária. Isto ficou mais claro, quando, ao chegarmos

ao outro lado do canal,

aproximou-se de uma praia deserta, onde dois

o barco

homens aguardavam, para

descarregar a mercadoria, num pequeno barco a remo, que logo alcançounos. Após uma breve apresentação, fui levado com a primeira série de caixotes.

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III

O centro de Dover ficava distante cerca de 3 km a nordeste. Segui na direção indicada. Desta vez teria de fazer o percurso a pé. Tinha que agüentar. Agora faltava pouco. Pelo menos conseguira cruzar a fronteira. Por enquanto, seria mais seguro. Provavelmente teria dificuldades com a língua. Talvez pudesse passar por mudo, ao menos no início. Tentava imaginar o que poderia fazer para começar minha nova vida. Com isso tentava esquecer a febre que atordoava meus sentidos e a pontada insistente em meu dorso. Consegui chegar a Dover, mas já estava sentindo-me muito mal. Sentia calafrios, apesar de o corpo queimar. As pernas fraquejavam. A bolsa de couro pesava como se lá tivesse colocado chumbo. As pessoas que transitavam nas ruas deviam pensar que eu era mais um estrangeiro bêbado. Logo, cambaleei e, sem forças, caí. Conseguia ouvir o burburinho à volta. Alguém me arrancou a bolsa de couro das mãos. Não tinha forças para segurála. Mais alguns gritos. Uma voz sobressaiu-se das demais. Era a voz de um homem. Tentaram me reerguer, mas acabei soltando um grunhido de dor, pois as mãos pressionaram diretamente meu ferimento. - Sangue! – disse a mesma voz de antes. Pude entender que minha ferida reabrira e sangrava.

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- Você! Ajude-me a levar este homem para dentro de casa. Ele está ferido! My God! Ninguém tem misericórdia nesta cidade. Eu mesmo o levo. Além de roubálo, ficam olhando para ver o homem morrer. Entendi que o rapaz estava fazendo um esforço sobre-humano para poder tirarme do solo. Assim, juntei o resto de forças que ainda achava ter e levantei meus braços, para dar a entender a ele que eu estava consciente e que ajudar a levantar-me. - Vamos! Venha! Se continuar aqui vai acabar sendo depenado por estes ladrões inúteis e, provavelmente atropelado por alguma carroça desavisada. Com muito esforço, conseguimos atravessar a rua e entramos por uma porta que me pareceu ser de uma loja. Havia uma pequena vitrine na frente. Teria visto algo reluzente por trás do vidro? Mal conseguia abrir os olhos. Devia estar tendo alguma alucinação. Era uma joalheria? Passamos pelo pequeno recinto da frente e fomos para o que devia ser os fundos da casa. - Você consegue ficar sentado? Gesticulei, para que ele soubesse que eu não estava entendendo o que ele me dizia. - Você é surdo? – falou, cobrindo os ouvidos. Acenei negativamente com a cabeça. - Você não fala minha língua? É isso? Será? - François... – disse com voz quase inaudível. - Francês?

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A partir daí, ele conseguiu falar algumas palavras em meu idioma, tentando fazer-se entender. Ele queria que eu ficasse sentado para ver meu ferimento. Ao permitir isto, ouvi sua exclamação horrorizada: - Oh, God! Acho que precisamos de um médico. Pensei ter entendido a sua intenção e balancei a cabeça negativamente, vigorosamente. - É, meu amigo. Não se preocupe. Não tenho dinheiro mesmo, para chamar este tipo de ajuda. Já vi que você não vai querer gastar o seu. Vamos ter de nos virar com o que tenho em casa e rezar para que o seu organismo dê conta de recuperá-lo. Melhor deitar-se, enquanto pego água e panos para limpar esta ferida - Ficou falando comigo, enquanto pegava o material de higiene. - Já vi que você é um homem prevenido. Carrega seu dinheiro colado ao corpo. Sua sorte, pois se aqueles ali fora soubessem você já estaria sem um tostão e morto há estas horas. Ainda bem que eu estava em frente à loja e vi tudo. Só não consegui segurar o malandro que arrancou a sua bolsa. Ele parecia não dar muita atenção para o meu rosto, curiosamente. - Agora, fique firme. Vou começar a limpar este corte e acho que vai doer. Ele falava muito enquanto fazia o seu trabalho de limpeza. Alguma coisa podia entender. Paul. Este era o seu nome. Paul havia herdado a pequena joalheria de seu pai, ourives conhecido da região. Tinha aprendido o ofício com ele, mas não tinha o seu talento. Assim, quando o pai morreu, a procura por suas jóias foi diminuindo. Agora,

poucas encomendas eram feitas. Considerava-se um

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criador de “bijuterias” finas, sem grande valor, a preços módicos. Parecia ser uma pessoa bem humorada, falante, humilde, sem grandes aspirações na vida. Vivia o presente, sem ligar para o futuro. Conseguia uma pequena renda mensal na loja, que lhe permitia viver com simplicidade, sem extravagâncias. Só sentia não ter o suficiente para trazer a irmã caçula para viver em Dover com ele, pois se sentia muito só. Ela morava numa cidade do interior, distante uns 150 km dali, ao norte, com uma tia rabugenta, irmã de seu pai, desde que este falecera, há 2 anos. Mais uma pessoa

que me tratava como ser humano. Parece que o destino

resolvera compadecer-se de mim nesta nova trilha de minha vida. Só depois de alguns dias, quando viu seu paciente em melhor estado, sentiu maior intimidade para perguntar-me sobre meu rosto. Resolvi contar-lhe a verdade. Senti que não havia necessidade de mentir para ele. E, realmente, tinha razão. Não notei pena em seu comentário, apenas um toque de tristeza por esta fatalidade. - Deve ser difícil agüentar os olhares dos curiosos. - O pior são os olhares que o fazem sentir-se monstruoso. Nesta minha viagem, descobri uma bela falsa explicação para este meu “defeito”. Ferimento de guerra. - É. Talvez seja uma boa opção para fugir de várias explicações.

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IV

Os dias foram passando e a minha recuperação era visível, graças aos cuidados de meu jovem amigo. Durante este tempo, passei a receber algumas aulas de inglês, para melhorar nossa comunicação, e também, a acompanhar o seu trabalho. Era interessante vê-lo trabalhar com o ouro, a prata e as pedras preciosas. Porém, faltava-lhe imaginação na confecção das peças. Passei a dar sugestões e arrisquei-me a fazer alguns desenhos. Surpreendentemente, ele aceitara de bom grado meus conselhos e rabiscos. Mais surpreendente ainda foi quando as novas jóias passaram a não permanecer mais que um dia na pequena vitrine. O movimento da joalheria começou a aumentar e os novos pedidos já não eram mais minguados, como antes. - Erik, acho que formamos uma bela dupla. Você como designer imensamente criativo e eu com minha habilidade em transformar sua criação em jóia. - Eu estava pensando em partir. Você sabe que já estou plenamente recuperado. Não vou esperar que você me expulse daqui. Pretendia partir antes disso – falei sorrindo. - Olhe. Vou te propor uma sociedade. Você entra com a sua inventividade e eu com o trabalho braçal. Dividimos os lucros meio a meio. O que acha?

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Ele parecia bem empolgado. Não seria má idéia. Meu medo era ainda estar muito próximo da fronteira com a França

e ser descoberto. Era arriscado

continuar ali. Mas não podia descartar este convite. Talvez pudesse ganhar dinheiro com esta sociedade. Não precisava aparecer muito. Deixaria o brilho para o jovem Paul e guardaria meus lucros. Sentia certa culpa por não contar toda a verdade a meu novo amigo. Talvez um dia. - Está certo, Paul! Se você não se importar de dividir sua casa com um pobre deformado - quando imaginei que poderia brincar com minha maior miséria, daquela maneira. - Acho que nossa sociedade vai ser um sucesso. Logo, logo, poderemos comprar uma casa maior, onde a gente não se cruze a todo o momento e eu não precise ver esta sua cara feia a toda o instante – deu um amplo sorriso e abraçou-me. Apesar de tudo, continuei a usar minha venda negra sobre o lado direito do rosto. Ela substituíra a velha máscara da Ópera. Já conseguia sair às ruas sem atrair tanta atenção. Começava a sentir-me integrado aquela comunidade. O sucesso de nossa sociedade era evidente. O dinheiro passou a entrar mais facilmente a cada dia. Ao final do primeiro ano, mudamos para uma loja maior, num bairro mais nobre de Dover e nossos clientes passaram a vir em carruagens elegantes. Ricos comerciantes e alguns nobres eram nossos clientes, na aquisição de presentes para suas esposas e... para suas amantes. Como havia exigido de Paul, que não quis entrar em detalhes sobre meu pedido, meu nome não aparecia de maneira alguma. Todos os louros eram para ele. Não me importava o sucesso pessoal. Meus planos iniciais, de ganhar muito dinheiro pareciam estar dando certo. Isto é o que importava. O medo do passado parecia estar ficando longínquo. Até os pesadelos já não visitavam minhas noites com tanta freqüência. Até o dia em que, passando em frente à cadeia municipal, vi fixado um cartaz, que fez todos meus temores serem arrancados do limbo em que se encontravam até então. Era o retrato de

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um homem, com uma máscara que cobria seus olhos, como aquela em que eu usara na primeira e última apresentação de “O Triunfante Don Juan”, na Ópera de Paris. Em grandes letras, lia-se a palavra “Procurado”. Em letras mais miúdas, indicava que o sujeito era de nacionalidade francesa e de extrema periculosidade. Corri para casa. Acho que chegara a hora de partir. Logo agora, que tudo ia tão bem. Por quê? Já não sofrera o suficiente para pagar minha dívida? Teria de contar a Paul minha verdadeira história. Certamente ele me expulsaria de sua casa. Com toda a razão. Eu não o culparia. Como sempre, ao chegar, Paul encontrava-se debruçado em sua mesa de trabalho, sobre um lindo broche, desenhado por mim, em forma de borboleta, em ouro, cravejado de pequenas esmeraldas

e brilhantes, que davam uma

delicadeza e uma leveza esplêndida à pequena relíquia. - Paul, precisamos conversar... - Sente-se aí e fale. Algum problema? Sua voz está estranha. Parou seu trabalho e levantou um olhar preocupado em minha direção. Sentei-me, e sem conseguir enfrentar sua face inquiridora, falei: - Há cerca de um ano, quando cheguei aqui e fui bondosamente acolhido por você, estava fugindo de meu país natal, a França. - Até aí, Erik, não vejo novidade alguma. - Como? Você sabia que eu era um foragido? - Podia ter alguma dúvida? Uma pessoa que chega no estado em que você chegou, num dos principais portos ingleses e sem falar uma palavra de nossa língua, faria pensar em que? Que você estava aqui a passeio?

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Tive que rir de minha ingenuidade ao subestimar a inteligência de meu sócio. - Porque você nunca quis saber de meu passado? - Não achei que fosse importante. O tempo me deu razão. A nossa parceria tem sido um sucesso. Nós estamos indo bem, não? - Estamos, Paul. Mas, infelizmente, meu passado pode voltar para atrapalhar nossos planos. - Deve haver algo que possamos fazer. - Estão a minha procura. Hoje vi um cartaz, com um retrato falado. Muito mal feito, é verdade, mas que mostra um homem com uma máscara, igual a que eu usava antes de fugir, cobrindo meus olhos e parte da desfiguração. Dizem que o homem é muito perigoso. Oferecem uma recompensa. Logo alguém vai lembrar-se de mim e fazer a ligação. Preciso ir embora, Paul. - Vamos pensar, Erik. Tem que haver uma maneira. Talvez você pudesse viajar – enquanto pensava, vi sua face transformando-se, de uma expressão preocupada para um sorriso maroto. - Já sei! Olhe, já venho pensando há algum tempo que Dover já está ficando pequena demais para nós. Temos tido alguns clientes de Londres, que vêm para comprar nossas jóias. Talvez esteja na hora de mudarmos para um centro maior e expandir nosso negócio. Para isso, preciso que alguém que vá na frente para conseguir um lugar

para abrir a nova loja, ter contatos com clientes,

enfim, preparar o terreno. O que acha? - Acho uma boa idéia, mas o problema só seria adiado. Eles vão continuar a caçada. Um dia vão chegar a Londres. Se já não chegaram. - Então temos que dar um jeito para eles pararem com esta caçada.

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- Como? Eu errei muito, Paul. Um dia você vai saber de meus crimes. Arrependi-me profundamente de todos eles e acho que já sofri o bastante para redimir-me. Mas, a maioria das pessoas não pensa assim, e só vão descansar quando me virem com a cabeça dentro de uma cesta de palha. - Tem que haver uma maneira. E... Se você morresse? - Como assim? - Claro! Eles não o querem morto? Achamos um corpo qualquer, o que não é difícil hoje em dia, e o enterramos como se fosse você. O que ele estava dizendo parecia um absurdo total, mas quem sabe? Talvez não fosse uma idéia tão absurda assim. - Paul, estou começando a pensar num plano tão louco quanto sua idéia e que pode dar certo. Vou precisar da sua ajuda, de qualquer maneira. Durante mais de duas horas arquitetamos um esquema, que aparentemente seria perfeito. Revisamos os riscos, todas as arestas possíveis, de forma a não deixar nenhum detalhe de fora. Ao final deste tempo, ficou resolvida minha ida para Londres, onde ficaria isolado de tudo por alguns dias, até que minha “morte” estivesse definida. Naquela

noite, tive pesadelos mais terríveis que os anteriores. Acordava aos

sobressaltos, suando frio. Meus sonhos sempre me encontravam num labirinto escuro. O barulho de água interminável, águas escuras e malcheirosas, que escorriam das paredes, vozes, murmúrios ameaçadores. Eu correndo, meu rosto sangrava, embaçando minha visão... Os sussurros tornavam-se mais audíveis... “Filho do demônio, filho do demônio... Peguem-no!” Finalmente,

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sentia mãos, como garras, forçando-me a parar. Neste ponto, acordava, ainda com a sensação daquelas mãos frias cravando suas unhas em meus ombros. No dia seguinte, bem cedo, uma carruagem me aguardava nos fundos da joalheria. Paul havia dado uma ordem bem clara de que não devíamos parar por motivo algum. Indicou ao cocheiro o hotel, discreto segundo ele, nos arredores de Londres, para onde devia levar-me. Lá, eu aguardaria suas notícias. Se tudo corresse conforme o planejado, receberia, em breve, notícias suas de que já estaria livre para circular novamente e cuidar de nossa mudança. No mesmo dia, duas cartas atravessariam o canal da Mancha, em direção a Paris, endereçadas a duas mulheres: Madame Giry e Viscondessa de Chagny.

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V

Eu ainda podia vê-lo, em meio às chamas, as lágrimas em seu rosto, sinceras, chorando o amor perdido. Não sei como conseguira forças para continuar a viver. Em grande parte, claro,

pelo amor de Raoul. Mas uma parte de mim

ficara naqueles subterrâneos, enterrada com a dor do Fantasma. Aquele beijo... Aquele beijo, que devia ser apenas uma súplica por liberdade, transformara-se, naquele momento, na dúvida que passaria a carregar por toda a vida. O fogo da paixão acendeu-se em mim. Um fogo que consome a alma e trai nossos sentidos. Diferente do amor que sentia por Raoul -

calmo, seguro, pueril. A

razão acabou falando mais forte. Fiquei feliz por libertar meu companheiro de infância, meu amor adolescente. Por outro lado, deixara minha idolatria, meu Anjo da Música, abandonado em meio ao inferno. Ao olhar para trás, meu coração despedaçou-se ao vê-lo tão arrasado em meio ao caos. Desde então, a vida continuava. O casamento fora marcado, em data que não ofendesse aos afetados pelo incêndio. Muito adequado. Não voltei a cantar. O encantamento me abandonara. Minha voz perdera sua motivação maior. Meu professor se fora. - Christine! Meu bem! O que está fazendo aí? Nossos convidados chegaram. - Ah! Estava pensando em um nome para o bebê. Temos que resolver logo, para começar a bordar as iniciais nas roupinhas.

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Tão fútil. Tão frágil. Era assim que esperavam que eu me comportasse. E assim eu seria. Não, não era ruim. A vida estava sendo boa comigo. A escuridão só chegava até mim em sonhos, pesadelos que eram bem compreendidos por meu esposo. Acho que ele sabia de como eu me sentia dividida, mas nunca comentou nada a respeito, como cavalheiro nobre e educado que era. Talvez tivesse medo do que eu teria a dizer se perguntasse. - Não se preocupe com isso agora. Venha! Você está linda, como sempre



dizendo isso, depositou um beijo carinhoso em minha face direita. A face direita... A deformação de meu mestre. Pare de pensar nisso, Christine! A sua vida é ao lado de Raoul. Você o escolheu. Ele merece o seu respeito e o seu amor. Os dias corriam tranqüilos, apesar dos recentes

confrontos com a Prússia,

quando vivia amedrontada com a possibilidade de Raoul ser chamado para o campo de batalha. Mas, logo fui tranqüilizada. Sua família era bastante influente. Bastante o suficiente para deixar o filho de fora dos conflitos. A gravidez viera alegrar nossa união. Uma nova vida estava sendo gerada, trazendo novas expectativas. A notícia havia chegado como um bálsamo para acalmar meu espírito angustiado. Mal sabia eu que, em breve, notícias viriam do outro lado do canal, para reacender minhas aflições e ofuscar minha alegria gerada pela maternidade.

Lá estavam o Conde e a Condessa de Vincenne, o Duque e a Duquesa de Orleans

e

o

Marquês

de

Cluny,

que

enviuvara

recentemente.

Esta,

aparentemente, era sua primeira aparição em um acontecimento social. Todos sorriam e davam suas congratulações pela chegada do mais novo herdeiro dos Chagny. Nenhum problema parecia afetá-los. Os assuntos eram amenos. Provavelmente, após o jantar, quando os homens estivessem fumando seus charutos, no salão destinado a eles, longe de suas frívolas mulheres, os assuntos tornar-se-iam menos suaves. Certamente a política de Napoleão III

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seria criticada, a perda da Alsácia e de Lorena para a Alemanha e...sobre as novas meninas nos prostíbulos de Monmartre. Neste último assunto, acreditava eu, que Raoul não estivesse interessado. Pelo menos por enquanto. Porém, durante o jantar, as conversas acabaram por retornar ao velho assunto, ainda não esquecido, da tragédia da Ópera de Paris. As buscas pelo facínora responsável pela destruição daquele monumento e pela morte de, pelo menos, duas pessoas, continuavam sem resultados. Senti um aperto no coração. Deus queira que ele esteja bem longe daqui. Estaria vivo? Meu coração dizia que sim. Comecei a sentir náuseas. Meu filho, recém gerado, já me ajudava a escapar de momentos pouco convenientes. - O que houve, Christine? Você está pálida. Não está se sentindo bem? - Coitadinha... Deve estar enjoada – falou a bondosa Duquesa de Orleans, Terése.

– Vocês insistem em tocar nestes assuntos desagradáveis durante o

jantar. - Por favor, perdoem-me, mas a duquesa tem razão. Quero dizer, a respeito do enjôo – dei um sorriso amarelo – Não tenho sido uma boa companhia, ultimamente. Com licença... - Quer que eu a acompanhe até seus aposentos? Raoul, como sempre meigo e preocupado comigo. - Não, querido. Fique com nossos convidados. Mais uma vez, me perdoe. Boa noite. Fiz uma reverência com a cabeça e retirei-me, tentando conter a ânsia a todo custo.

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Consegui chegar ao meu quarto, mas não contive a náusea. Esta era a pior parte da gravidez. Os vômitos. Como um ser tão desejado podia provocar tanto mal estar? Depois de lavar-me, coloquei minha camisola e recostei-me na cama. Peguei um livro, com o intuito de ser levada ao sono. Desde a tragédia, tinha certa dificuldade em adormecer. Às vezes, depois de conseguir, acordava no meio da noite, em sobressaltos, com palpitações. Não se passaram mais que duas horas, ouvi os passos de Raoul

subindo as

escadas que levavam ao nosso dormitório. Provavelmente nossos convidados já haviam se retirado. A porta abriu-se: - Ainda acordada? - Não consigo pegar no sono. - Quer que eu durma no quarto de hóspedes? - Não, meu amor. Prefiro que fique aqui comigo, por favor... Seu rosto iluminou-se. Ele também precisava de atenção. Havia sido atingido por aqueles acontecimentos dramáticos tanto quanto eu. Só tentava ser mais forte. - O que você acha do nome Gustav? Pensei em fazer uma homenagem ao meu pai. - Acho uma belíssima escolha, querida. Concordo. Gustav de Chagny... Gostei. - Que bom que lhe agradou a minha escolha. Boa noite, querido. - Boa noite, Christine.

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Dormimos abraçados. Apesar de tudo, eu o amava muito. Como era possível ter amor por dois homens ao mesmo tempo? Talvez porque o outro estivesse perdido na distância, no tempo. Quando aquela lembrança

me deixaria livre

para viver minha vida com Raoul e nosso filho? O tempo. O tempo tudo apagaria. Pelo menos era o que eu esperava. Quando acordei, na manhã seguinte, Raoul já havia saído para os seus compromissos do dia. Acabara

de

tomar

meu

desjejum,

quando

o

mordomo

trouxe

a

correspondência. Mais convites para festas, jantares, chás com as senhoras da nobreza e uma carta sem lacre, comum,

originária de Dover, na Inglaterra?

Endereçada para mim? Rapidamente, desprezei as demais e voltei toda minha atenção para aquele simples envelope, sem brasões nobres. Abri-o com cuidado e comecei a ler seu conteúdo, escrito em francês perfeito, apesar de sua origem:

“Cara Viscondessa de Chagny

Meu nome é Paul Marback. Apesar de não nos conhecermos, tínhamos um amigo em comum. Infelizmente, é com pesar que venho informar-lhe o falecimento do Sr. Erik. Sua saúde encontrava-se muito debilitada, devido a graves ferimentos, o que provocou a sua morte. Ele próprio, antes de falecer, solicitou-me que escrevesse para repassar-lhe seus últimos desejos. O primeiro era ser enterrado nos subterrâneos da antiga Ópera de Paris, local onde passou a maior parte de sua vida. Seu segundo desejo era o de que seu esquife não fosse aberto, em hipótese alguma. Tenho

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em meu poder provas de que o corpo pertence a ele mesmo e que somente a senhora, e talvez seu esposo, possa reconhecer junto às autoridades legais. Chegarei com o corpo de nosso amigo, no porto de Calais, no dia 05 de Abril, pela manhã. Espero contar com seu apoio. Respeitosamente, Paul Marback”

Senti perder minhas forças e o quarto passou a rodopiar a minha volta. Deixei cair a carta ao chão. Uma forte opressão no peito fez com que tivesse dificuldade para respirar. Tudo escureceu a minha volta. - Christine... Christine... Acorde, meu amor. Por favor, responda. Meus olhos pareciam ter chumbo nas pálpebras. Com grande dificuldade consegui abri-los e vi a expressão preocupada de Raoul. - Raoul... Você voltou para casa? - Fui chamado às pressas. Você desmaiou. Só então lembrei o que tinha acontecido. Minha cabeça latejava. Veio uma imensa vontade de chorar, que tentei reprimir. Quis levantar-me da cama onde estava, mas fui impedida por Raoul. - Fique deitada. Já descobri a causa do seu mal estar. Não se preocupe com nada. Vou cuidar de tudo. - Raoul... Ele está morto... – não consegui mais evitar as lágrimas.

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- Foi melhor assim, meu bem. Agora, não existirão mais sombras entre nós. - Ele quer ser enterrado nos subterrâneos. Chegará em quatro dias, em Calais. - Já disse para não se preocupar. Eu, pessoalmente irei até lá e encontrarei o Sr. Marback, para trazermos o corpo “dele”. Fique tranqüila. - Raoul... Obrigada. Desculpe por lhe dar mais este fardo. - Será um alívio poder encerrar este caso. Tenha certeza disto.

Agora,

descanse. Tente não pensar mais nisso. Pense em nosso filho. - Com licença, visconde. Trouxe um chá de ervas para a senhora – falou nossa camareira, Marie. - Ah! Obrigada, Marie – agradeceu meu marido. - Tome, amor. Vai lhe fazer bem. Vou sair novamente, para começar a tratar deste assunto. Descanse. Deu-me um beijo na face e saiu, não sem antes recomendar máximos cuidados à Marie. Conseguira acalmar o choro, mas aquela angústia no peito não me deixava. Será que Raoul tinha razão? As sombras iriam embora, finalmente? Talvez sim, talvez não...

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VI

Um ano já se passara. Nenhuma notícia de Erik. O reinício tinha sido difícil. Esperava que ele tivesse conseguido recompor sua vida. Pelo menos não tinha sido capturado. Meu trabalho atual não era dos mais gratificantes, mas eu continuava atuando junto a espetáculos de dança. Conseguira um emprego no Folies Trévise, um teatro de variedades, onde realizavam operetas, óperas cômicas e audições musicais. Nada que se comparasse com a Ópera, mas muitos políticos eram atraídos para lá. Não só pelas óperas em si, mas pelas dançarinas. Eu atuava como coreógrafa e ensaiava as meninas. Terminava meu trabalho e ia embora. O que elas faziam depois dos espetáculos não me interessava. Não pretendia me envolver com estes “problemas”. Parece que, antes do final do ano, o nome do teatro seria modificado. Estavam pensando em

algo

como

Folies

Bergère.

Queriam

melhorar

a

qualidade

das

apresentações. Talvez melhorasse meu salário também. Quanto a Meg, resolveu abrir uma

pequena escola de balé para crianças.

Esvaziamos o primeiro andar da casa que meu irmão deixara, colocamos barras nas paredes e “voilà”. Ali, ela passava a tarde a dar aulas às filhas dos comerciantes do bairro. Com isso, conseguia complementar nossa renda. Precisávamos sobreviver.

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Quantas mudanças a partir daquela noite. Quantos perderam seus empregos. Meg e eu havíamos tido muita sorte em ter onde morar e por ter conseguido formas de sustentar-nos. A reconstrução da nova Ópera já saíra dos planos e começava a manifestar-se na restauração das estruturas antigas.

O incêndio havia sido controlado a

tempo, poupando as fundações e a estrutura principal de teatro. Um arquiteto desconhecido de nome Charles Garnier assumira o comando dos trabalhos. Ainda tinha esperança de um dia voltar a reassumir meu antigo emprego. Quem sabe? De novo perdida em pensamentos. Mon Dieu!

Vamos trabalhar, mulher! Já

estava na hora de ensaiar aquelas tresloucadas do Folies. Saí para a minha caminhada diária de quase três quilômetros para chegar ao trabalho. Não podia dar-me ao luxo de pegar um coche. Considerava aquilo como um aquecimento antes dos ensaios. Já não tinha mais tanto medo da volta, em torno das 23 horas, pois já era conhecida nas redondezas e os malandros do bairro me respeitavam. Ao voltar para casa, estava tão cansada que nem tive ânimo para comer qualquer coisa, apesar de Meg ter deixado meu prato pronto. Minha querida filha. Sempre tão prestativa e companheira. No dia seguinte, pela manhã, enquanto estava arrumando nossos quartos, ouvi a voz de Meg, chamando por mim: - Mamãe, chegou uma carta para a senhora. Parece que é da Inglaterra? - O quê? – desci as escadas correndo e, por pouco não tropeço nos últimos degraus. - Olhe, mamãe! De quem será? Algum admirador secreto que a conheceu no Folies?

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- Olha o respeito comigo, menina! Onde já se viu? Peguei o envelope e fiquei tentando imaginar quem teria escrito. Será que finalmente eu teria notícias de meu amigo? - Abra, mamãe! Estou curiosa! - Calma... – cuidadosamente, abri o envelope e comecei a ler seu conteúdo. Bastaram poucos segundos de leitura para que minhas lágrimas viessem à tona. Uma grande tristeza abateu-se sobre mim. Não era o tipo de notícia que eu esperava. - O que houve, mamãe? Porque está chorando? Quem escreveu? Não conseguia encontrar palavras para responder a minha filha, por isso deixeia ler a carta. Ele finalmente tinha encontrado paz. Parece que, pelo menos tinha feito um amigo. Paul Marback. Quem seria ele? Pedia para encontrar-se comigo assim que chegasse a Paris. Precisava encontrar Christine. Erik desejava que estivéssemos juntas durante o funeral. Será que ela já sabia do ocorrido? Como ela reagiria a esta notícia? Provavelmente com alívio. - Erik... Ele morreu. Ah, mamãe, sinto muito. Sente-se aqui. Vou buscar um copo de água para a senhora. - Ele queria ser enterrado sob o teatro. Como vão conseguir isto? O prédio está em obras. Preciso falar com Christine – Tomei um gole da água que Meg me oferecia.

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- Coitado. Pelo menos não viveu seus últimos dias dentro de uma prisão infecta. - Tem razão, minha filha. Enxuguei minhas lágrimas. Nunca mais falara com Christine, desde que ela se tornara Viscondessa de Chagny. Evitara procurá-la para não fazê-la sofrer mais com recordações. Ela devia estar tentando esquecer o passado. Mas, agora... Teríamos de nos reencontrar pela memória de Erik. Como reagiria Raoul? Dezenas de pensamentos vieram atordoar-me a cabeça. - Mamãe, fique descansando aqui. Deixe que eu prepare nosso almoço. Logo as crianças chegarão para a aula. A senhora vai trabalhar? - Claro, filha! Imagine! Não posso me dar ao luxo de ficar chorando por um amigo em casa. Vai ser bom trabalhar para distrair-me um pouco desta dolorosa notícia. - Então, fique sentadinha aqui, enquanto preparo algo para comermos. Está bem? - Claro, meu anjo. Obrigada. Beijei suas mãos e ela saiu em direção à cozinha. Ali fiquei. Sentada, inerte, tentando imaginar o que teria acontecido com Erik desde a sua saída de minha casa até este triste desfecho. Como teria conhecido o senhor Marback? Talvez Christine soubesse mais detalhes. De repente, veio uma vontade incontrolável de chorar. Chorei baixinho para não incomodar Meg. Chorava por Erik, por Christine, por minha filha, por mim. À tarde, fui trabalhar. Pelo menos, enquanto ensaiava com as dançarinas, esqueci por alguns momentos da carta.

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Naquela noite, mal consegui pegar no sono, apesar do cansaço. Ao levantar pela manhã, sentia a cabeça pesada e o corpo todo dolorido. Tinha de aprontarme para procurar Christine. Como seria o nosso reencontro? Meg insistiu em ir comigo ver a antiga grande amiga. Apesar de não achar conveniente, devido à motivação que nos levava a fazer aquela visita, permiti que ela fosse. Logo após um breve café da manhã, seguimos as duas rumo ao nobre bairro Champs-Elysées, onde moravam os Viscondes de Chagny.

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VII

Saí de casa, ainda atordoado com a notícia da morte do “Fantasma”. Por outro lado, sentia-me aliviado por aquela história ter chegado ao fim. A certeza de que ele desaparecera para sempre da vida real, talvez o fizesse sumir de nossos pesadelos e temores mais profundos. Christine voltaria a ser somente minha. Teria de partir para Calais no dia seguinte, se quisesse chegar a tempo de encontrar o tal Paul Marback. Precisava falar com as autoridades responsáveis pelas buscas, ainda hoje, e obter a permissão para enterrá-lo nos subterrâneos da Ópera, que já se encontrava em obras de restauração. Acabei decidindo pedir ajuda ao Marquês de Cluny, meu amigo, que mantinha ótimas relações com os funcionários da Justiça parisiense. Tinha certeza que ele conseguiria ajudar-me nesta empreitada. Cheguei a sua casa logo após o almoço. Fui recebido efusivamente: - Meu caro Raoul! O que o traz à minha presença tão prematuramente após nosso jantar de ontem? Christine está bem? Melhorou de sua indisposição? - Ah, sim, obrigado. Ela está bem. Na verdade, vim até aqui para pedir-lhe ajuda numa situação muito delicada que surgiu hoje pela manhã. - Sente-se, meu amigo. Conte-me o que houve.

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Sentei em uma poltrona a sua frente, na sala de fumar. - Aceita um? – falou, oferecendo-me um charuto. - Não, obrigado, Claude. Enquanto ele iniciava a sua cerimônia de cortar, acender e dar uma bela baforada em seu charuto, comecei a contar-lhe os motivos de minha visita: - Em nosso jantar de ontem, havíamos comentado sobre o fato de ainda não ter sido capturado o causador da grande tragédia do ano passado. - E? - Pois hoje, recebemos a confirmação de que ele está morto. Seu corpo chegará em 5 de Abril, no porto de Calais. - Tem certeza disso? - Absoluta. A partir daí, passei a relatar-lhe sobre a carta que Christine recebera e o seu conteúdo. Não sabia dizer quais provas seriam dadas para comprovar o fato, mas estaria em Calais no dia marcado para verificar a veracidade disto tudo. - Mas existem alguns problemas, meu caro Claude. Neste sentido é que precisarei da sua ajuda. - Quais problemas? - O falecido exigiu ser enterrado nos subterrâneos da Ópera. - Como assim, exigiu? - Um último desejo.

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- Mas, um criminoso não tem esse direito – ele estava indignado. - Claude, agora, lhe falando como amigos que somos, gostaria que relevasse este pedido e conseguisse a permissão para tal. - Por quê? - Por Christine. Ela está muito abalada com o que ocorreu. Como você sabe, ele foi seu professor de canto. Apesar de ser um louco, ele representou uma fase importante de sua vida. Ela acreditava que ele era um anjo enviado por seu pai, para ajudá-la após sua morte. Não podia saber da mente insana que estava por trás disso. - Pobre Christine. Eu entendo. Bem, vou fazer o possível. Por Christine e por você, meu bom amigo. Ela não pode incomodar-se no atual estado em que se encontra. Temos que pensar no seu herdeiro. A minha pobre Dauphine não conseguiu me dar filhos, apesar de ter sido uma esposa maravilhosa. Fique tranqüilo, Raoul. Nós vamos conseguir que o último desejo do crápula seja realizado. Não por ele, mas por sua família. - Fico extremamente grato por sua compreensão, Claude. - Você parte para Calais amanhã, eu presumo? - Sim. São dois dias de viagem de carruagem. Quero estar lá quando o corpo chegar. - Bem, assim que você retornar, avise-me, que eu estarei com tudo preparado para dar um fim a esta história lamentável. - Estarei em eterno débito com você, Claude. Despedimos-nos com um caloroso aperto de mãos. O Marquês de Cluny sempre tinha sido um verdadeiro amigo. Sabia que poderia confiar nele numa hora

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como esta. Naqueles tempos, ainda era uma boa coisa ser nobre. A revolução não conseguira acabar totalmente com alguns privilégios. Agora que conseguira resolver meu problema, sentia-me melhor. Melhor seria quando visse o “Anjo da Música” enterrado, definitivamente. Já na rua, depois de minha visita, fui até um café próximo a Sainte-Chapelle. Fiquei degustando uma taça de conhaque, relembrando todos os momentos que passara desde o reencontro com Christine, na Ópera, até os momentos em que vimos Erik pela última vez, no meio das chamas. Como gostaria de acreditar que tudo voltaria ao normal. À tardinha, ao voltar para casa, encontrei Christine com melhor aspecto, carinhosa como sempre, mas ansiosa para saber se tinha conseguido permissão para o enterro. - Não se preocupe, querida. Tudo vai ser como ele pediu. O marques de Cluny me garantiu que conseguirá a permissão. - Ah, Raoul, muito obrigada. Sei que é duro para você vivenciar tudo isso, mas agora este assunto estará encerrado. - Você jura? Acredita realmente nisso? - Claro. Você duvida disso? - Não sei, Christine. Às vezes sinto que os seus pensamentos vão para o seu “Anjo da Música”. Sinto-me sozinho. - Você está imaginando coisas, Raoul. Eu te amo muito. Nunca duvide disso. Ela aproximou-se de mim e abraçou-me, repousando a cabeça de cabelos longos e cacheados em meu peito. Ah! Como eu amava aquela mulher. Seria capaz de qualquer coisa por ela.

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- Amanhã parto para Calais, pela manhã. Espero estar de volta em cinco dias. Melhor não falar com ninguém sobre isso. Não sei como Claude vai conseguir estes favores ou com quem. Assim, é melhor manter o sigilo. Está bem? - Está bem. Daquela noite até o momento de minha partida, na manhã seguinte, não tocamos mais no assunto Erik.

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VIII

Finalmente estava no porto de Dover ao lado do caixão, onde um morto desconhecido me fazia companhia. Este, pelo menos seria enterrado em um ataúde decente. A maioria destes indigentes era sepultada em vala comum, nos arredores da cidade. Tivera algumas dificuldades para conseguir um cadáver recente, mas graças a um amigo que trabalhava no morgue da cidade, pude ir em frente com nossos planos. Também tive de recorrer a um falsário para conseguir os documento de liberação do defunto nos portos. Até aí, já cometera dois crimes. Certamente não pararia por aí. Já estava pensando em regularizar a situação de Erik, talvez com uma nova identidade. Pensaríamos nisso mais tarde. Claro que se não fosse o dinheiro, nada disso seria possível. Mas não tinha outra maneira. Não podia arriscar a perder tudo que conseguira até agora. Para continuar minha sociedade com Erik teria de ser assim. Além do mais, gostava dele. Era um bom amigo. Sofrido, com um passado nebuloso, mas uma pessoa de boa índole. Não conseguia imaginá-lo com um criminoso procurado. Às vezes tinha curiosidade em saber o que ele tinha feito para ser perseguido depois de tanto tempo. Mas não ousaria perguntar-lhe. Nem procuraria informar-me por outros. Não importava. O passado era passado. Seria enterrado para sempre nos próximos dias. Até então, eu não tinha noção da importância do presente no futuro. Mas agora, com o aumento da entrada de dinheiro, as possibilidades

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eram infinitas. Pela primeira vez eu me via fazendo planos. Planos de ampliação da joalheria de meu pai, talvez filiais em outras cidades. Planos para ter minha irmã junto a mim, novamente como uma família. E isto tudo só tinha sido possível graças a Erik. Disto eu tinha plena noção. Como ele já havia declarado um dia, o dinheiro tudo comprava. Compraria nosso futuro, nossa felicidade. Ele me ensinara a ser ambicioso. Esperava que as cartas tivessem sido devidamente entregues às destinatárias. Será que a tal viscondessa estaria a minha espera em Calais? Estava ficando ansioso. Não tinha como voltar atrás. Erik estava seguro em Londres. Já enviara uma mensagem dando conta disto. Ficaria aguardando os acontecimentos de Paris.

Finalmente chegamos. O barco lançou sua âncora. Tentava procurar a figura feminina que meu amigo me descrevera, de uma jovem frágil, de cabelos escuros encaracolados, vestida como uma dama da alta sociedade. Não consegui achar ninguém com esta descrição. Começava a ficar preocupado, quando, ao desembarcar e colocar-me junto ao caixão na alfândega, fui abordado por um cavalheiro alto, de cabelos louros

lisos, elegantemente

vestido, que se apresentou: - Eu sou o Visconde de Chagny. Presumo que o senhor seja Paul Marback? - Ah, sim! Muito prazer, visconde. Vejo que o senhor fala bem o meu idioma. Que bom, pois o meu francês deixa muito a desejar. Tentei cumprimentá-lo com minha mão direita, mas ele não correspondeu. Esnobe!

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- Estou com minha carruagem a espera. O esquife seguirá em uma carroça que aluguei especialmente para isso. Assim que o liberarem, seguiremos viagem. Quero que isto acabe o mais rápido possível. - O visconde não vai querer ver as provas do que estou trazendo? - Ah, claro! Assim que iniciarmos a ida à Paris, poderemos conversar melhor a respeito. Vou aguardá-lo na saída do porto. Ele parecia tão apreensivo quanto eu, apesar da empáfia. Pela segunda vez conseguira passar com os documentos falsos. O sujeito falsificava bem mesmo. Talvez viesse a utilizar seus serviços novamente. Depois de acomodar o morto dentro da carroça de carga, entrei na nobre diligência onde eu seguiria com o aristocrata francês. Pegamos a estrada. - Então, como o senhor pode comprovar que este cadáver pertence àquele marginal? - Gostaria que o senhor se referisse a ele como Sr. Erik. Ele era meu amigo. - Acredito que o senhor não saiba dos atos abomináveis de seu “amigo”. - Nem pretendo saber. O importante agora é levá-lo em segurança a Paris e permitir-lhe seu último desejo. - Se é assim. - Aqui estão as provas de que falei em minha carta. Dizendo isto, abri minha pequena maleta de mão e de lá retirei um embrulho. Cuidadosamente o abri e deixei que o francês visse seu conteúdo.

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Pude observar que ele emocionou-se ao ver a máscara de Erik e o pequeno anel de noivado, que insistia em reluzir à luz do sol que entrava pela janela do coche. Parecia petrificado com aquela visão. - Então? Acha que estas são provas suficientes para acreditar que o cadáver que estou conduzindo naquele ataúde é do senhor Erik? - Como... Como você conseguiu estes “objetos”? - Eles me foram dados pelo próprio, antes de falecer. Guardava-os como relíquias de seu passado. Acabaram tornando-se úteis, pelo que estou vendo. - É, não há dúvida de quem era o seu “amigo”. Seu olhar endurecera-se. A emoção parecia ter abandonado sua face. Na primeira parada que fizemos, o visconde enviou um mensageiro que nos acompanhava a cavalo, levando uma carta. Fiquei curioso para saber quem receberia a missiva. Seria sua esposa, a tal Christine? Logo saberia. Levamos dois dias para chegar a Paris, sem paradas para dormir. Fazíamos refeições rápidas nas tavernas da estrada e prosseguíamos a viagem. Poucas palavras foram trocadas. Ele realmente estava convencido. Mais uma etapa fora ultrapassada, para meu grande alívio. Agora, só faltava o “gran finale”. O sepultamento.

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IX

- Madame, uma senhora e sua filha insistem em lhe falar. Já disse que a viscondessa estava repousando, mas elas dizem que é muito importante. - Duas mulheres? Elas disseram os nomes? - Uma delas, a mais velha, diz chamar-se Madame Giry. - Mme. Giry? Mande-as entrar, imediatamente. Leve-as até a minha sala íntima. Já vou descer. - Precisa de ajuda, madame? - Marie, eu estou grávida, não enferma. Faça o que mandei, por favor. O que as teria trazido até aqui, depois de tanto tempo? Saberiam da morte de Erik? Talvez tivessem sido avisadas também. Que vergonha. Nunca mais procurara a minha querida amiga, Meg. Vesti meu “robe de chambre” e rapidamente desci ao encontro delas. - Meg! Madame Giry! Que surpresa. Há quanto tempo. Abracei-as com força.

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- Deixe-me ver você, Meg. Você está linda! Mme. Giry, que saudades! Estou em falta com vocês. - Nós também, querida. Mas nós sabemos os motivos desta separação. Não se preocupe com isso agora. Acredito que você saiba o pretexto desta nossa visita. - Acho que sim. Por favor, sentem-se. - Você também está muito bonita, Christine. – falou Meg. – Andou engordando um pouquinho com o casamento. - Eu estou grávida de quase quatro meses, Meg. - Mas que maravilha! Parabéns, Christine! - Parabéns, minha filha. - Obrigada. Realmente estamos muito felizes com a futura chegada de Gustav. - Oh, vai colocar o nome de seu pai se for menino. Ele ficaria muito contente com esta homenagem. E se for menina? – perguntou Mme. Giry. - Sabe que não pensei ainda. Aliás, para Raoul não existe outra possibilidade, isto é, não pensamos nesta possibilidade. Senti o olhar compreensivo de minha antiga mestra de dança. - Bem, voltando ao nosso assunto. Vocês foram avisadas da morte “dele”? - Sim, minha querida. Depois de um ano sem nenhuma informação, chega esta triste notícia. Ainda não consigo acreditar. Achei que Giry ia chorar, mas conseguiu controlar-se. - Raoul foi até Calais para buscar o corpo. Deve estar de volta amanhã.

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- Como você ficou sabendo? Por carta, como nós? - Sim. Um tal de Paul Marback, que o conheceu na Inglaterra. Vocês sabiam que ele estava morando lá? - Não temos notícias dele há mais ou menos um ano. Na noite do incêndio, Meg e eu

estávamos desesperadas e acabamos indo para a casa que meu irmão

deixara de herança, em Monmartre, e que eu mantinha fechada. Durante a madrugada, Erik apareceu. Ele estava muito ferido, precisando de cuidados. Consegui que ele ficasse conosco durante dois dias. Quando a polícia bateu a nossa porta querendo informações sobre um estranho que fora visto nas redondezas, ele resolveu ir embora, para não complicar nossas vidas. Pediu que tirasse todo o seu dinheiro do banco. Partiu, no meio da terceira noite, com uma bolsa de couro com alguns mantimentos, dizendo que mandaria notícias. Imaginei que ele tentaria sair da França. Nunca recebi nenhuma linha sobre o seu paradeiro. Só agora, chegou esta carta... Christine? Você está bem? Sentia meu coração mais apertado e tentava controlar as lágrimas. - Apesar de ter medo, eu

gostava dele, madame. Ele foi meu mestre, meu

“Anjo da Música” por todos aqueles anos depois da morte de meu pai. Agora o seu tormento finalmente acabou. Depois de ficarmos em silêncio por alguns segundos, recomeçamos a falar sobre assuntos mais amenos, tentando abandonar um pouco a tristeza que nos envolvia. Elas me contaram sobre suas novas atividades e eu sobre a vida de casada e a chegada de meu bebê. Ali ficamos por mais de uma hora, quando Madame Giry falou: - Christine, gostaria de ficar mais tempo para conversarmos, mas tenho de trabalhar. Meg também tem as suas alunas. - Ah! Fiquei tão feliz por vê-las novamente.

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- Vou deixar nosso endereço. Por favor, avise-nos quando tudo estiver pronto para o funeral. Quero estar presente. É muito importante, está bem? - Pode deixar. Vocês serão avisadas de imediato. Despedimos-nos, afetuosamente. Certamente nos veríamos muito em breve.

Estava bordando algumas peças do enxoval do bebê quando ouvi a sineta da rua tocando. Logo, fui informada que o Marquês de Cluny estava em nossa casa. - Boa tarde, marquês. Por favor, sente-se. - Minha cara Christine, você deve saber, é claro, do pedido que seu marido me fez antes de partir para Calais. - Sim. - Bem, vim aqui especialmente para tranqüilizá-la a respeito daquele assunto. Quero que saiba que já está tudo preparado. Assim que ele chegar, poderemos realizar o enterro daquele “senhor” nas fundações da antiga Ópera, conforme seu desejo. O arquiteto Garnier reservou um local adequado para tal. Não cansarei a minha amiga com detalhes sem importância. Considere tudo resolvido. - Senhor marquês, nem sei como lhe agradecer. Não imagina como fico aliviada em saber disso. - Minha querida, não precisa agradecer nada. Antes que me esqueça, o seu marido mandou-me uma mensagem confirmando sua partida de Calais, ontem pela manhã. Recebi sua missiva hoje, logo após o almoço. Portanto, pelas

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minhas contas, se tudo correr como ele planejou, eles estarão chegando amanhã. A “cerimônia” poderá ser realizada logo a seguir. Peça que ele me avise, assim que possível, por um mensageiro. Estarei em minha casa durante o dia. Depois que o marquês foi embora, experimentei uma gratificante sensação de paz. Voltei aos meus bordados, tentando não pensar mais em Erik. Agora, era esperar a volta de Raoul, para finalizarmos esta história.

Acordei cedo, naquela manhã, ansiosa pela chegada de meu esposo. Mal conseguira dormir. Em torno das 11 horas, ouvi o som do trotar de cavalos e das rodas de uma carruagem, em frente a nossa casa. Desci correndo, para ver se era quem eu esperava. - Raoul! Você chegou! Como foi? Não conseguia disfarçar minha aflição por notícias. Então, percebi que ele não estava só. Um jovem cavalheiro, de cabelos castanhos e grandes olhos azuis, o acompanhava. - Querida! Raoul deu-me um beijo no rosto. Parecia muito cansado. A viagem tinha sido longa e o motivo desagradável. - Quero apresentar-lhe o Sr. Paul Marback. Convidei-o para nossa casa a fim de refrescar-se um pouco. Aliás, nós dois estamos precisando de refrescos e de uma refeição decente depois de uma viagem extenuante como foi a nossa. - Muito prazer, Senhor Marback.

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- O prazer é todo meu, senhora – falou, fazendo uma discreta reverência. - Por favor, Margot. Providencie os refrescos e o almoço - Pois não, madame. – respondeu nossa governanta. - Enquanto aguardamos, vou mandar um mensageiro ao Marquês. - Ele esteve aqui ontem à tarde, para avisar de que estava tudo pronto para o enterro. Era só avisá-lo de sua chegada. Raoul, preciso falar-lhe em particular. O senhor nos dá licença? Só um momento. - Esteja à vontade, senhora... Deixamos o Senhor Marback aguardando no salão de estar, enquanto conversávamos no gabinete de Raoul. - O que é, Christine? - É sobre Madame Giry. Ela esteve aqui ontem pela manhã e disse que havia sido avisada por carta da morte de Erik. Ela também quer participar do funeral. - Isto já está virando um acontecimento social. - Por favor, Raoul. Ela foi muito importante na vida dele. Tenho certeza de que ele desejava isto também, caso contrário não teria pedido ao Sr. Marback que a avisasse. - Está bem, Christine.

Perdoe-me. Estou muito cansado. Não paramos para

descansar, para podermos chegar aqui o mais rápido possível e acabar com este martírio. - Raoul... Onde está o caixão?

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- Mandei deixar

a carroça com o corpo em nosso pátio interno, até que

soubéssemos como agir. Agora, deixe-me escrever a mensagem para Claude e encaminhá-la. Vá até a sala fazer companhia ao Sr. Marback. Está bem? Ele estava visivelmente aborrecido com toda aquela situação. Mas não podíamos agir diferente. Tinha de ser assim. Parecia mentira, mas Erik ainda tinha poder sobre nós. Voltei ao salão principal. Ele estava lá olhando para os quadros da parede e bebericando sua limonada, quando entrei. - Sr. Marback. Desculpe deixá-lo tanto tempo a sós. - Imagine! Não se preocupe com isso. Sentei-me na poltrona próxima à lareira, de frente para onde ele se encontrava e, não resistindo à curiosidade, perguntei: - Como o senhor conheceu seu amigo? - Erik? Eu o recolhi quase morto do meio das ruas e tratei dos seus ferimentos. Infelizmente, ele nunca conseguiu recuperar-se definitivamente. Morou comigo durante todo este tempo, até seus momentos finais. Foi um bom amigo. - Ele lhe contou alguma coisa de seu passado? - Não. E nunca quis saber. Sempre achei que isto não era importante em nossa amizade. Continuo achando a mesma coisa e não gostaria de saber nada a este respeito. - Claro. O senhor tem razão. Não há porque saber. Posso lhe fazer mais uma pergunta? - Lógico.

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- Meu marido não teve tempo de falar-me sobre isto. Quais foram as provas que o senhor citou na carta? O senhor as tem consigo? - Sim, é claro. Aqui estão. Dizendo isto,

abriu sua maleta de couro. Quase desmaiei ao ver a máscara

branca, com a qual Erik

cobria o defeito de seu rosto e que lhe conferiu o

apelido de “Fantasma”, e o anel de noivado que eu lhe devolvera minutos antes de abandoná-lo e sair com Raoul. Mais uma vez, todo o nosso drama correu meus pensamentos, como se tudo estivesse acontecendo novamente. - A senhora está sentindo-se bem? Quer um pouco de limonada com açúcar? Quer que chame seu marido? - Eu estou aqui! O que houve? O que disse a ela? – falou Raoul, quase gritando. Até que ele entendeu o que havia acontecido, ao ver o reflexo do pequeno anel de brilhantes e a máscara em minhas mãos. - O senhor não devia ter mostrado estes objetos a ela. - Mas ela me pediu. Não sabia que passaria mal ao vê-los – falou, já guardando os objetos que haviam sido motivo da ira de meu marido. - Raoul... Eu pedi que mostrasse as provas. - Christine, acho melhor você ir descansar um pouco. Assim que estiver tudo pronto, a aviso. - Não! Eu estou bem. Foi só um mal estar passageiro, comum em mulheres grávidas. – Tentei sorrir, insinuando um gracejo, para amenizar o clima de irritação que Raoul havia criado. - Ah! A senhora está... Oh! Meus parabéns!

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- Está bem. Vamos parar com esta conversa. Este almoço não sai? Que demora? - Vou ver o que está acontecendo. Mal havia feito menção de levantar-me da poltrona, quando Margot entrou, anunciando que o almoço estava servido. O silêncio tomou conta de nós e a refeição foi feita na mais absoluta paz, pelo menos aparentemente.

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X

“Caro amigo Erik, Esta carta tem por função tranqüilizá-lo a respeito do desenrolar de nossos planos. Tudo correu exatamente como planejamos. “Você” já está morto e enterrado em Paris. Maiores detalhes, eu fornecerei pessoalmente em nosso próximo encontro em Londres. Sinta-se liberado para iniciar a procura de um local para nossa nova loja e de uma casa para morarmos. Só lhe peço que ache uma casa com mais cômodos que a de Dover, pois pretendo levar adiante o plano de levar minha irmãzinha para morar comigo. Espero que esta o encontre bem de saúde... Ao contrário do “monsieur” que deixei em Paris em seu lugar. Um abraço, de seu amigo Paul”

Sempre brincalhão este Paul. Finalmente, as notícias que tanto esperara. Apenas continuava curioso para saber como tudo tinha acontecido. Será que ele falara com Annie? Teria visto Christine? Como ela devia estar? Provavelmente, linda como sempre.

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Será que continuava cantando? Melhor não pensar mais nisso. Deveria agradecer por estar livre de meu confinamento naquele hotel de terceira classe. Poderia caminhar pela cidade, fazer um reconhecimento dos lugares e começar a procurar um lugar para morarmos e outro para a nova joalheria. Ainda estava apreensivo de como seria recebido pelos londrinos com meu visual peculiar. Por isso, aproveitei as horas intermináveis em que fiquei naquele hotel, para criar um novo disfarce. Acabei optando pela máscara da face direita, que parecia o que melhor cobria meu defeito. A única diferença é que a fiz em cor neutra, de forma a ser mais discreta. Não queria chamar tanto a atenção ao andar pelas ruas. Assim, dei a ela uma cor que se assemelhava à cor da pele. O chapéu e roupas discretas complementariam meu traje. Meu inglês melhorara bastante com as aulas dadas por Paul. Assim, sentia-me um pouco mais seguro. Londres fervilhava naqueles dias de início da primavera. Carruagens, pessoas passeando e conversando animadamente pelas ruas. Idéias e inventores pululavam por ali. Era o ano de 1872. O Tâmisa exalava um cheiro horrível, mas

o

Parlamento

erguia-se

magnífico

às

suas

margens.

A

obra

de

reconstrução, depois do incêndio de 1834, havia sido concluída somente há 2 anos. Quanto tempo a Ópera de Paris levaria para ser reconstruída? Sentia uma certa nostalgia ao andar por aquelas ruas, lembrando de Paris, por onde passeava, geralmente à noite ou, muito bem disfarçado, durante o dia. Durante minha caminhada, chamava um pouco a atenção. Era difícil para uma pessoa

de

minha

estatura,

de

quase

1.90

m,

passar

despercebida,

principalmente quando esta pessoa tinha metade do rosto coberto por uma máscara e usava um chapéu de abas um pouco mais largas que as ditadas pela última moda.

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Conforme as informações obtidas no hotel, resolvi ir até Mayfair, onde o comércio mais requintado se encontrava. Fiquei sabendo que os membros da corte e da sociedade costumavam fazer suas compras naquela área. Assim, comecei minha procura de um local mais favorecido para abrir nossa joalheria. Depois de caminhar a manhã inteira, a sorte me sorriu ao descobrir um pequeno armarinho, na Bond Street, que estava sendo colocado à venda, pela esposa do falecido dono, por um bom preço. Só não fechei o negócio na mesma hora, pois queria a concordância de Paul. Ele deveria chegar em breve, segundo sua carta. Dei um sinal em dinheiro à viúva, para que ela garantisse minha preferência na compra. Esperava que Paul não demorasse muito a chegar, pois não confiei muito no olhar de cobiça e avidez da senhora. A minha impressão foi de que ela venderia para o primeiro que chegasse com o valor pedido, não importando se eu dera o sinal ou não. Ela havia passado o tempo todo a me observar, com olhos miúdos e assustados, coisa com a qual eu já estava acostumado. Ficou consternada quando, depois de vencer a curiosidade e perguntar qual o motivo da máscara, lhe disse que havia ferido meu rosto em batalha no México, lutando por Napoleão III., em 1865. - Oh, mas lutou tão jovem e tão longe daqui. Pobre rapaz – Foi o comentário da velha senhora. Já estava começando a achar divertido aquele comportamento das pessoas. Era curioso pensar porque um ferimento de guerra era menos aterrorizante que um defeito de nascença? Após as despedidas e promessa de retorno o mais breve possível para realizar a compra, segui a caminhar nas redondezas, em busca de uma residência. Nada mais consegui naquele dia, mas já estava satisfeito. Ao chegar no hotel, qual não foi minha surpresa ao encontrar Paul, todo sorridente, vindo em minha direção, abraçando-me efusivamente.

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- Então, meu querido amigo, aproveitando a liberdade nas ruas londrinas? - Que bom revê-lo, meu caro. Estava sentindo falta de nossas conversas. Não esperava você tão cedo. Recebi a sua carta ontem. - Pois aqui estou eu! Você já jantou? - Não, ainda não. - Que tal comemorarmos a sua nova vida e a minha chegada em grande estilo? Estava conversando com o nosso amigo ali – e apontou para o recepcionista do hotel – e ele me disse que logo ali em Convent Garden, tem um ótimo restaurante, freqüentado pela sociedade e membros da realeza. O que acha? Vamos cometer esse excesso? Só hoje? Não havia como resistir àquele sujeito. Ele parecia estar eternamente de bem com a vida. Esperava que aquilo fosse contagioso. - Você acha conveniente eu ficar mostrando-me por aí? Não é muito cedo? - Qual nada! Precisamos conversar. E você sabe que eu não consigo pensar de barriga vazia. - Está bem, Paul. Já que você insiste... - Deixa de ser pessimista, Erik. Esqueça o passado... Ele foi enterrado nas profundezas de uma certa Ópera. Seguimos para a rua Maiden Lane, em Convent Garden.

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Fomos recebidos com frieza e desconfiança pelo maitre do “Rules”. Não estávamos vestidos adequadamente para o jantar em restaurante tão distinto. Porém, bastou Paul colocar uma gorda gorjeta no bolso do nobre senhor, para que ele nos arranjasse uma mesa. Claro que era uma mesa discretamente colocada nos fundos do salão, mas podíamos ter uma bela visão da “fauna” que estava presente por lá. Até chegarmos às nossas cadeiras, sentimos os olhares de todos a dissecar-nos, como se fôssemos subespécies da raça humana. Era uma apreciação

semelhante a que eu sofria

em Paris, quando fazia minhas

curtas aparições. Senti um leve arrepio. Não era uma lembrança agradável. Pensei que a tinha deixado para trás, mas havia me enganado. Paul carregava um sorriso irônico e discreto nos lábios, andando de cabeça erguida, em frente. Quando sentamos, quase explodiu em uma gargalhada. Teve que por a mão sobre a boca para não rir alto. - Erik, não precisa ficar com este ar preocupado. São um bando de almofadinhas, acompanhados por damas esnobes e insatisfeitas. Não dê atenção a eles. - Não se preocupe comigo. Eu estou bem. Mas, por favor, conte-me como foi a sua viagem. Conte todos os detalhes do meu funeral e das pessoas que o acompanharam. - Já sei. Quer saber de sua Christine. - Ela nunca foi minha! – falei com irritação, pelo termo usado por Paul, em tom um pouco alterado, que fez as pessoas das mesas mais próximas olharem para nós. - Calma, amigo. Perdão. Não sabia que a situação era tão séria. - Desculpe, Paul. Não queria gritar com você, mas ela é uma parte importante do meu passado que eu quero esquecer. Na verdade, estou nesta situação atual.

é por causa dela que

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- Sinto muito, Erik. Mas, vou lhe contar como tudo se passou. Neste momento, o garçom veio tirar nossos pedidos. Assim que ele retirou-se, meu amigo iniciou o relato minucioso de sua aventura.

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XI

Paul Marback... Um homem admirável. Erik teve muita sorte em conhecê-lo. Enfim ele fizera um amigo fora das paredes de seu teatro. Assim que o vi sumir na escuridão das ruas de Monmartre, fechei a porta. Logo ouvi os passos ágeis de Meg, descendo pela escada. - Mamãe? É você? - Sim, minha filha, sou eu. - A senhora está bem? Como foi? Estou morrendo de curiosidade. Queria ter ido junto, mas a senhora não deixou. Agora quero que me conte todos os detalhes. - Calma, Meg, calma. Deixe-me tomar um copo de água, tirar meu chapéu e estes sapatos que estão me martirizando. Aí, lhe contarei tudo

– “ou quase

tudo”, pensei. Assim que relaxei um pouco, não pude escapar do olhar inquiridor de Meg, que estava ávida pelos fatos ocorridos naquele final de tarde. - Sente-se, Meg! Ou você vai ficar a esvoaçar a minha volta desse jeito? Pelo menos, podia respeitar a dor deste momento. Afinal, ele era meu amigo de muitos anos. - Desculpe, mamãe. Sinto muito por ele, também. Só queria saber...

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- Está bem. Vou lhe contar. A partir daí, tudo o que acontecera naquelas últimas horas veio a minha mente. Estava ansiosa a espera do aviso de Christine, conforme ela me prometera. Eram 5 horas da tarde, quando ouvi o trotar de cavalos aproximando-se de nossa casa. Corri até a janela da frente e vi o coche com o brasão dos Chagny. Um rapaz uniformizado desceu e bateu a nossa porta. Era um mensageiro. Rapidamente abri o envelope e pude ver a delicada caligrafia da nova viscondessa: “Cara Madame Giry, Peço-lhe que acompanhe este mensageiro. Ele a levará até a Ópera. Estarei esperando-a para o enterro. Christine” Como já estava pronta, imediatamente fechei a porta e segui o rapaz, entrando na carruagem. Após alguns minutos, que pareceram uma eternidade, chegamos à frente daquela obra monumental, que era a antiga Ópera de Paris. Ainda podia-se ver a movimentação de uns poucos operários, provavelmente encarregados da reforma. Em seguida, vi Christine, com um belo vestido, digno de uma nobre, mas coberto por uma capa preta, com capuz, que quase lhe cobria o rosto. Veio ao meu encontro, acompanhada por Raoul, demonstrando um pouco de nervosismo. Ele, por sua vez,

tentava disfarçar a irritação e a

ansiedade para que aquele “circo” , como se referiu mais tarde, terminasse o mais rápido possível. Seguimos para o interior do teatro onde começamos a descida aos subterrâneos, juntamente com o Marquês de Cluny, o chefe de polícia, o arquiteto Garnier, um

jovem cavalheiro desconhecido e o caixão,

carregado por dois homens vestidos como trabalhadores comuns. Mesmo coberto pela poeira, com andaimes e caixotes espalhados por todo o lado, a Ópera mantinha-se majestosa. Senti uma saudade muito grande dos momentos

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passados entre aquelas paredes e um arrepio na espinha ao lembrar os acontecimentos que precipitaram a interdição daquela casa de espetáculos. Finalmente chegamos até a área onde estavam os túneis alagados. Lá, próximo ao local onde Erik fizera a sua morada, em um dos paredões, havia sido feita uma cavidade profunda, onde o caixão, provavelmente, seria colocado. Após alguns minutos de tenso silêncio, o chefe de polícia, M. Focault, pediu que os homens colocassem o esquife para dentro do buraco. Pode-se ouvir um suspiro escapar do peito pesado de Raoul. Christine estava com olhar tristonho, olhando para baixo, provavelmente lembrando-se de seu mestre. Achei que tinha visto uma lágrima tímida rolando por sua face. Logo ela passou um pequeno lenço, de delicada renda, sobre a face, discretamente, simulando um súbito calor, retirando qualquer vestígio de choro que pudesse ser visto por seu marido ou pelas pessoas que ali estavam. Logo em seguida, um dos trabalhadores, passou a colocar

uma espécie de

massa arenosa, cobrindo toda frente da tumba, lacrando para sempre o corpo de Erik nas entranhas do suntuoso prédio. Não se ouviu nenhuma palavra de pesar ou oração, nem olhares de condolência.

A tristeza por aquela perda,

certamente, estava apenas nos pensamentos daqueles que tinham conseguido vislumbrar a genialidade que existia naquele homem transfigurado, apaixonado pela música e por sua musa... Christine, o desconhecido, que mais tarde apresentou-se como sendo o Senhor Marback, e eu. Terminada a “cerimônia”,

após uma breve troca de cumprimentos entre as

“autoridades”, Marback veio ao meu encontro apresentar-se, seguido por Raoul e Christine. - Graças aos céus, o “circo” terminou – louvou Raoul – Que descanse em paz, já que em vida não pode desfrutar de tal. Vejo que M. Marback já se apresentou. Acho que podemos ir, não é mesmo, Christine? - Claro, querido. Como você quiser – resignou-se Christine.

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O grupo seguiu em silêncio, atrás do senhor Garnier, que nos levou para fora daquele labirinto. Já na saída, pelos fundos do teatro, após mais algumas reverências, o grupo dispersou-se, ficando apenas nós quatro, numa situação quase constrangedora. Só nos restou a despedida. - M. Marback, espero que tenha uma boa viagem de volta a Dover. - Muito obrigado, visconde. Viscondessa – disse, reverenciando Christine. Foi um prazer conhecê-los. - Madame Giry,

é uma pena que tenhamos voltado a nos reencontrar numa

situação como esta. - Madame, espero que possamos nos ver em breve. Vá nos visitar e leve a Meg, por favor. Não vamos nos afastar novamente – sabia que Christine falava de coração, mas achava difícil podermos voltar a ter a relação íntima que tínhamos anteriormente. - Claro, meu bem, é claro – falei sem muita convicção. Os dois seguiram em direção a carruagem que os aguardava e partiram. - Casal estranho, não? – perguntou Marback. - Quando o senhor volta para Dover? – perguntei, evitando tecer comentários a respeito daquele casal. - Provavelmente amanhã. Antes, precisamos conversar, madame Giry. Posso convidá-la para um café? - É sobre Erik?

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- Sim. Tenho muita coisa para contar-lhe. Sei que posso confiar na senhora. Erik me passou esta certeza. Os últimos raios de sol tingiam de tons alaranjados as poucas nuvens que havia nos céus, quando entramos num café próximo à Ópera e sentamos num lugar mais reservado, a pedido de Marback.

Quando ele terminou sua conversa, eu estava pasma e ao mesmo tempo feliz por saber que meu amigo encontrava-se bem de saúde e de espírito. Paul, como ele insistiu em ser chamado, revelou-se uma pessoa de excelente índole e amigo sincero de Erik, em sua nova fase. Disse que tinham muitos planos, apesar de não relatar quais. Mas a idéia de sabê-lo são e salvo, tentando levar uma vida normal, era muito confortante. - Uma última coisa, que nosso amigo pediu-me para fazer. Entregar-lhe este dinheiro e estes objetos pessoais. Ele sabe de suas dificuldades econômicas e sente-se culpado por elas. Por isso encarregou-me de deixá-la em melhor situação. Quanto aos objetos, pediu que lhe entregasse para que a senhora fizesse o uso que melhor lhe aprouvesse. - Diga a ele que não tem porque se sentir culpado de nada. Não posso aceitar este dinheiro. Diga que minhas finanças já estão em ascensão e que agradeço muito a sua preocupação. Ao abrir o embrulho de couro que M. Marback lhe dera, sentiu-se estremecer. - Diga a Erik que guardarei estes objetos até o dia em que ele os quiser de volta. Saímos do café e Paul levou-me até em casa num coche alugado.

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- Desejo-lhes toda a sorte do mundo. Obrigada por ser amigo de Erik. Ele precisa muito disso. - Madame, foi um imenso prazer conhecê-la. Assim, despedimo-nos, sem prazo de reencontro.

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XII

Christine esperava um filho de Raoul. Abandonara a música. Todo meu esforço para transformá-la em uma diva da ópera colocado fora num casamento medíocre. Quase não conseguia prestar atenção no que Paul me relatava. - Erik! Você está me ouvindo?O que há com você? - O quê? Ah, perdoe-me, Paul. O que você disse? - Estava contando como foi o meu encontro com Mme. Giry. - Ah, sim! Como ela está? - Ficou melhor depois que lhe contei a verdade. Ela não aceitou o seu dinheiro. - Eu já esperava por isto. Ela sempre foi muito orgulhosa. Darei um jeito de abrir-lhe uma conta e enviar-lhe uma espécie de mesada. - Sua dívida com ela parece ser grande. - Maior do que você imagina. Ela salvou minha vida por duas vezes. Aliás, vocês são muito semelhantes neste ponto. para mim.

Ambos são amigos muito importantes

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- Isto me deixa muito honrado, Erik – disse Paul, visivelmente emocionado. Que tal mais vinho para o último brinde? - Não, meu amigo. Eu não estou acostumado com bebidas alcoólicas. - Está bem. Você que sabe. Mas, me conte o que tem de novidade para mim, além deste novo visual? Ficou bem melhor do que aquela venda preta. - Obrigado. Quanto ás novidades, hoje consegui encontrar a nossa nova joalheria. O ponto é excelente. Fiquei de retornar assim que você chegasse de Paris. Podemos ir até lá amanhã para fechar o negócio, se você aprovar o local. - Ora, Erik, você sabe que confio no seu bom senso. Comigo, você tem carta branca. -

É, mas sendo sócio, gostaria que você desse a sua opinião, para não termos

problemas mais tarde. - Tem razão. Tudo bem. Amanhã iremos até lá. E quanto a nossa casa? - Não consegui nada. Considerando que hoje foi o meu primeiro dia percorrendo a cidade até que obtive bastante para um dia de procura. - Claro! Com certeza que sim.

Terminamos de jantar e, após pagarmos a conta, saímos e pegamos um coche para voltar ao hotel. Enquanto ainda me perdia em pensamentos lembrando as palavras de meu amigo a respeito de Paris, ele dava as instruções ao cocheiro. Em alguns minutos, estávamos diante de um respeitável hotel em Piccadilly Street, bem diferente daquele em que me encontrava hospedado. - Paul, acho que você bebeu demais e acabou dando instruções nosso condutor.

erradas ao

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- Não, Erik. Considere isto uma melhoria nas condições de hospedagem. Claro que este não é exatamente um hotel de luxo, que é onde mereceríamos estar, mas é muito melhor do que aquela pocilga onde tive de escondê-lo neste período de espera. Espero que, com o nosso sucesso no ramo das jóias, possamos em breve estar nas altas rodas. Confio na sua criatividade e bom gosto. - Você anda sonhando muito alto, senhor Marback. - Qual nada! Não serão apenas sonhos. Tenho certeza disso. - Mas, e a minha bagagem? - Não se preocupe. Eu já havia encerrado a sua conta e pedido para transferir suas coisas para cá, antes de você voltar de seu passeio. - Bem, é uma bela surpresa, devo reconhecer. Já não agüentava ficar naquele lugar. - Agora, ficamos aqui até conseguirmos um lugar definitivo. Espero que consigamos resolver tudo o mais rápido possível, para podermos começar a trabalhar. Terei que voltar a Dover. Deixei um funcionário de confiança, Samuel, para manter o funcionamento da joalheria lá. Como já havíamos conversado, será bom manter a matriz funcionando por lá. Por Dover ser um porto, teremos a chance de vender nossas jóias para estrangeiros e, quem sabe fazer fama no exterior também. - Você está sonhando alto mesmo, não? - Você acha? - Não deixe minhas idéias pessimistas te contaminarem. Admiro muito este seu lado otimista. Você está certo. Para o alto, amigo!

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Naquela semana, conseguimos fechar negócio com a senhora, dona do antigo armarinho. Logo iniciamos uma pequena reforma para acomodar nossa joalheria. Teríamos uma oficina única, onde Paul e eu iríamos trabalhar, nos fundos. Na parte da frente, seria a vitrine e a loja em si. No início, Paul pretendia atender ele mesmo aos clientes. Mais tarde, se tudo desse certo, poderíamos ter um funcionário para o atendimento. Em relação à nova residência, conseguimos encontrar uma bela casa em estilo georgiano, com dois andares e um grande sótão, no terceiro piso, com janelas que proporcionavam uma linda vista da cidade. Havia lareiras na sala principal e nos quartos. A cozinha era bastante espaçosa. “Boiseries” em madeira, finamente trabalhadas, tornavam os ambientes mais aconchegantes. Tivemos sorte em encontrá-la. O melhor de tudo é que ficava a duas quadras da loja, na Dover Street. Para Paul, este era um bom sinal. O nome da rua ser o mesmo de sua cidade natal. Fiquei encarregado de providenciar a mobília e empregados para a casa e cuidar das reformas na loja. Paul teve de voltar a Dover para resolver os assuntos pendentes.

Logo a loja estava pronta e pude começar a trabalhar em novos desenhos de jóias. Já havia feito alguns rabiscos no período em que fiquei “confinado”, mas minha inspiração naquela época não estava em seus melhores dias. Sentia falta da minha música. Por mais que tentasse abafar este meu lado, para evitar a lembrança de Christine, não havia como negar que esta arte fazia parte de minha alma e sem ela eu não era completo. Talvez pudesse voltar a dedicarme ás composições nas horas de folga.

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Comecei a animar-me. Uma nova vida iniciava e sentia-me revigorado com esta perspectiva. Já não me sentia um monstro perseguido por todos. Até os pesadelos já se tornavam raros. Apenas um medo ainda me perturbava de vez em quando. O medo de que Paul, quando soubesse de minha história, me virasse as costas. Se ele descobrisse que eu tinha um passado como homicida, continuaria a me respeitar? A ser meu amigo? Sentia que um dia teria de contar-lhe a verdade, mas não agora. Um dia, andando por Mayfar, descobri uma loja de pianos e órgãos. “Porque não?”, pensei. Poderia comprar um piano para colocar na sala íntima. Era uma peça ampla e comportaria um instrumento daquele porte. Caso Paul não gostasse, poderia levá-lo para os meus aposentos, no sótão. Animado com a idéia de poder tocar novamente, realizei a compra e mandei entregar na Dover Street, na manhã seguinte. Mal podia esperar para dar vida a minha música mais uma vez. No outro dia, a senhora Emma, nossa nova governanta, ficou encarregada de receber a minha recente aquisição. Saí em direção da Bond Street, já pensando em retornar mais cedo para poder desenferrujar um pouco os dedos e ouvidos. Na loja, só aguardava a chegada de Paul para a inauguração. Ele prometera trazer as jóias para a exposição na vitrine e o material para iniciar a confecção das novas peças. Um pouco antes do almoço, resolvi fechar tudo e ir para casa. Caminhava rapidamente, devorando as duas quadras que me separavam de casa. Quando estava muito próximo, pude ouvir o som das teclas de um piano. Quem estaria tocando? Fiquei furioso, enciumado, imaginando como alguém poderia ter entrado em minha casa e ter tido a ousadia de tocar em minha propriedade. Paul, eu sabia, não tinha conhecimento algum de música.

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Entrei correndo, já chamando pela senhora Emma, para questioná-la sobre a invasão e despedi-la sumariamente por aquela falha indesculpável. Fui barrado em meu desvario, na porta da sala íntima, pela visão de uma mulher, de longos cabelos negros, presos por um laço de veludo vermelho, simploriamente vestida. Só podia vê-la de costas, mas percebi que era jovem, esguia e de porte altivo, só pela maneira como se sentava ao piano, com as costas retas e a cabeça erguida. Tocava uma composição popular, tosca, que conseguia melhorar com a introdução de alguns

floreios, dando um ritmo mais

interessante a música. - Quem é você? O que faz na minha casa, sentada ao meu piano? Quem a deixou entrar? Devo ter falado em tom alto e áspero, pois ela virou-se assustada e levantou-se estabanada, deixando cair a banqueta onde estava sentada, soltando uma exclamação de espanto. Olhou-me com dois grandes olhos azuis, arregalados, que quase fizeram com que me arrependesse de minha rudeza. - Desculpe... Eu, eu... – ela mal conseguia articular as palavras com sua voz tremula – Achei que podia tocar um pouco... Eu... - Erik! O que houve? - Paul! Você está aí! Eu encontrei esta jovem invasora tocando no piano que acabei de adquirir. - Jovem invasora? – falou, já esboçando um sorriso sarcástico para logo cair na gargalhada – Ahahaha... Ele se dobrava de tanto rir e eu não conseguia entender o motivo. A moça continuava paralisada. - Erik, Erik. Deixe-me apresentá-los. A “jovem invasora” é Catherine, minha irmã, de quem eu já havia falado, lembra?

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- Sua irmã? Mas eu pensei que ela era uma menina, uma criança. - Para mim, é como se fosse. - Paul! – finalmente ela conseguira articular uma palavra, mas seu olhar já se transformara de assustado para desafiador

– Então, este é o seu famoso

amigo, Erik? Eu o imaginava diferente. - Diferente? Como? – perguntou Paul. - Mais educado – desferiu aquelas palavras com os olhos fixos em mim. - Cathy! Não dê atenção a ela, Erik. Ela é meio... impulsiva, digamos assim. Com isso, Catherine fuzilou o irmão com um olhar raivoso e saiu, pisando duro em direção ás escadas que a levariam ao segundo andar. Ao passar por mim, pude sentir o calor de sua indignação e um perfume suave, levemente almiscarado e delicioso. - Erik, perdoe a Cathy. Ela é adorável, mas ás vezes torna-se um tanto rebelde. Só meu pai conseguia controlá-la. - Absolutamente, Paul. A culpa foi minha. Eu fui grosseiro com ela. Tratei-a como uma marginal. Eu é que devo desculpas. - Eu devia ter enviado uma mensagem para você, anunciando nossa chegada. O erro foi meu. Queria fazer uma surpresa e acabei criando esta situação. - Vamos parar de procurar culpados e falar um pouco de sua viagem. Conseguiu resolver tudo lá em Dover? - Tudo acertado. Samuel demonstrou que está habilitado para gerenciar a loja na minha ausência. Trouxe o material que havíamos combinado para a inauguração de nossa filial londrina. Outra coisa importante – falou baixando o

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tom de voz

para não ser ouvido – É sobre os seus documentos. Já estão

comigo. Agora poderemos sacramentar a nossa sociedade. - Já havia dito que não precisava preocupar-se com isto, Paul. Eu confio plenamente em você. - É, mas assim vou sentir-me melhor. Quer saber seu novo nome? Assenti com a cabeça. - Seu sobrenome ficou como Bell. Seu nome passa a ser Erik Bell. Gostou? - É... Acho que soa bem. Logo a sorumbática senhora Emma surgiu na porta. - Senhores, o almoço será servido em instantes. Devo chamar a senhorita Catherine? - Por favor, senhora Emma. Obrigado.

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XIII

Fechei a porta de meu novo quarto, indignada com o tratamento a que tinha sido submetida por aquele Erik e por meu irmão. Adorava Paul, mas, ás vezes, ele podia ser bem irritante. O modo como o estranho mascarado me questionara

tinha me assustado. Sua voz forte e imperativa me causara

arrepios. Paul já tinha falado sobre ele, sobre o seu defeito no rosto e

sua

austeridade. Não imaginava encontrar um homem imponente, de grande estatura, forte, com olhos verdes profundos e um rosto atraente, pelo menos na face descoberta... De qualquer maneira, tinha sido um estúpido grosseiro ao tratar-me daquela forma, minutos atrás. Mas, não deixaria que ninguém estragasse minhas primeiras impressões da nova vida. Mal podia acreditar no que estava acontecendo. Parecia um sonho. Quando a carruagem entrou nas ruas de Londres, beliscara-me para verificar se aquilo era real. Tudo era muito diferente de Stansted, aquele fim de mundo onde morava a “Bruxa”, minha adorável tia. Não imaginava que pudesse existir pessoa mais mesquinha, estúpida e abominável que aquela. Graças a Deus, meu irmão viera salvar-me de uma morte lenta naquele lugar. Mais um pouco e viraria uma morta-viva. - Ponha esta cabeça para dentro antes que você a perca pelo caminho, antes de chegarmos em casa – gritara meu querido salvador. Olhara fascinada para os lindos chapéus emplumados ou cobertos por flores, de grandes abas, que enfeitavam a cabeça das elegantes mulheres que desfilavam

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nas ruas, acompanhadas por finos cavalheiros ou por velhas damas de companhia. Quantas lojas diferentes, a movimentação intensa de coches, indo e vindo. Não. Não seria este senhor Erik que desbotaria o brilho deste dia inesquecível. Ouvi uma batida leve na porta. - Quem é? – perguntei, desconfiada que pudesse ser Paul e seu amigo. - Sou eu, Emma. - Sim? O que quer? - O almoço está servido, senhorita. Fiquei na dúvida se deveria descer e encontrar novamente aquele “senhor”. O seu olhar havia me perturbado. Não! Não o deixaria me incomodar. - Obrigada. Já vou descer. Acabei por trocar de vestido, colocando algo mais adequado para a ocasião. O primeiro almoço na residência de meu irmão em

Londres. Não podia descer

vestida com aquela indumentária horrorosa feita por minha “querida” tia, especialmente para nossa viagem. Não sei como havia sido convencida a vestir aquilo. Talvez fosse por ser a última vez em que a veria. - Então? Já está mais calma? – perguntou Paul, com seu conhecido sorrisinho irônico quando me viu entrar na sala. - Você deveria perguntar isto ao senhor Erik, não a mim. Nossos olhares se cruzaram mais uma vez. Estremeci.

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- Gostaria de pedir-lhe desculpas por meu comportamento. Não era minha intenção provocar impressão tão desagradável na irmã de meu grande amigo. Espero que possa reverter este mal estar causado na senhorita. Sua voz tornara-se mais suave e agradável. - Está bem... Está desculpado. – respondi após alguns segundos de silêncio. - Bem, vamos sentar e almoçar? Encerramos a sessão de desentendimentos? Vamos ser todos amigos? – Paul tentava quebrar o clima tenso que estava no ar. O almoço iniciou ainda com ânimos pouco apaziguados e mudos. O primeiro a dissolver a nuvem de ressentimentos foi, surpreendentemente, “ele”. - Paul falou-me que a senhorita gosta muito de música – sua voz realmente era linda e provocante. - É, gosto. - Você toca piano muito bem. - Como o senhor pode saber, se estava mais preocupado em expulsar-me de casa quando me encontrou? - Cathy!– exasperou-se, Paul. - Não se preocupe, Paul. A senhorita Catherine tem toda a razão para ainda estar irritada comigo. Saiba que eu pude ouvi-la tocar tempo suficiente para notar o dom musical nas suas notas. Gostaria de dizer-lhe que poderá tocar quando quiser, se isto a fizer feliz. Comprei este piano ontem para meu uso, mas agora faz parte da casa e é de todos nós. Não tinha idéia de que teria mais alguém para compartilhar deste meu prazer.

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Não tive como não me render àquelas palavras gentis, ditas de maneira tão cativante. - Fico muito agradecida com seu oferecimento – falei o mais secamente que pude, ainda tentando manter-me na defensiva. - Eu não sabia desta nova faceta criativa entre suas qualidades, Erik – indagou Paul. - Talvez o senhor pudesse nos agraciar com sua música após o almoço? – falei para provocá-lo um pouco. - Infelizmente, maninha, Erik e eu teremos de ir à loja agora à tarde para resolver os últimos detalhes, antes de abri-la amanhã, pela manhã. Temos que começar a ganhar dinheiro o mais rápido possível. Até agora só tivemos despesas. Não fosse a sociedade com Erik, que tem colocado seu próprio capital no negócio, não sei como estaríamos. - Paul, nós somos sócios e nada mais justo que eu cubra metade das despesas. - Bem, então vamos terminar de almoçar e tratar de negócios depois. - Que tal após o jantar? – perguntei intrometidamente. - O quê? – perguntou Paul. - Que tal o senhor Erik tocar para nós após o jantar? - Ah! Claro. Como quiserem. Será um prazer – respondeu ele, elegantemente. O almoço transcorreu tranqüilo até o final. Ânimos apaziguados, pude observar melhor o meu antagonista de uma hora antes. Tinha maneiras requintadas, contidas, um olhar tristonho, mesmo quando tentava esboçar um sorriso. Parecia carregar uma desilusão muito grande com algo ou alguém. O que escondia atrás daquela máscara, além de uma deformidade física?

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Logo após terminarmos a sobremesa, ambos despediram-se de mim e foram para a joalheria. Durante o início da tarde, não conseguia tirar aquele olhar e aquela voz de minha cabeça. Tentei distrair-me com a arrumação de meu quarto, mas sua figura continuava a assombrar-me. Decidi sair e visitá-los de surpresa. Na vinda para casa, Paul havia me mostrado onde ficava a loja. Assim, não teria problemas em achá-la. Precisava de roupas novas. Aqueles meus antigos vestidos só eram adequados para o campo, não para as distintas ruas londrinas. Estando com meu melhor vestido, não precisei preocupar-me em trocar de vestes, infelizmente. Apesar dos protestos da senhora Emma, respirei fundo e mergulhei no movimento das calçadas da Dover Street. Era um novo mundo. Tinha vontade de cantar e dançar, mas achei que não ficaria muito bem. Apenas um sorriso nos lábios, que insistia em permanecer, denunciava a minha felicidade. Depois de uma dezena de paradas nas vitrines das cercanias, finalmente cheguei diante da Joalheria Marback.

Achava estranho o senhor Erik não ter querido

colocar seu nome junto ao nosso, já que sendo sócio, tinha este direito. A fachada era de muito bom gosto, com a porta em madeira entalhada, emoldurada por um grande arco retangular de mármore negro, com alguns discretos veios mais claros formando desenhos abstratos, onde se podia ver uma placa dourada com o nome da joalheria gravado. A vitrine era pequena, também emoldurada pelo mesmo mármore escuro, mas o veludo vermelho que forrava todo o seu fundo, realçava as belas jóias colocadas de forma estudada sobre ele. Era difícil passar por ali e não ter sua atenção captada por aqueles brilhantes e pedras preciosas. Fiquei orgulhosa de meu irmão. A faixa de “Breve Inauguração” ainda pendia sobre o mostruário. Toquei a campainha e fiquei aguardando. Logo, Paul apareceu surpreso com minha aparição inesperada. - Cathy! Como você veio até aqui sozinha?

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- Ora, você tinha me explicado como chegar. Não foi difícil. Vai me deixar entrar ou vamos ter que ficar conversando no meio fio? -

Mas

você

é

uma

moça

solteira.

Não

pode

ficar

andando

por



desacompanhada – falou ao mesmo tempo em que me deixava entrar. - Ora, irmãozinho, já não sou nenhuma criancinha. Já estou ficando quase uma solteirona e você continua a me tratar como uma deficiente mental. Por favor!! - Solteirona, porque você quer. Com o seu gênio... Mas logo daremos um jeito nisso. - Como assim, daremos um jeito? - Mudando de assunto, minha cara, já que chegou até aqui, o que achou? - Está linda! – falei, ao ver encantada que, internamente, a joalheria lembrava aquelas lojas caríssimas que eu havia visto momentos antes de chegar ali. Um suntuoso lustre de cristal pendia sobre o centro da sala – Não tinha idéia que você tivesse tão bom gosto para decoração, Paul. - O gosto é de Erik. Eu, pessoalmente, achei muito rebuscado, mas já vi que ele a agradou – falou em tom mais baixo. - Eu ouvi isto, Paul – soou aquela voz de barítono, meio que rindo. Será que ele sabia cantar também? Ele ultrapassou a cortina de veludo vermelho que separava a recepção da provável área da oficina. Logo ficou sério e disse: - É um prazer recebê-la aqui, senhorita Catherine. Começava a gostar do som que meu nome fazia ao sair de sua boca. Ele tinha um sotaque encantador. Paul havia me dito que ele era francês. Normalmente,

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eu preferia que me chamassem de Cathy, mas dito por Erik, meu nome inteiro soava como uma nota musical. - O que vocês estão fazendo? – falei, já atravessando a porta onde ele estava postado, roçando de leve em suas roupas elegantes. Logo vislumbrei sua suposta mesa de trabalho, com vários esboços de desenhos, alguns já finalizados, aparentemente. Já sabia que ele desenhava as novas jóias de Paul, só não tinha idéia de quanta criatividade ele era capaz. - Ah! Mas que lindos desenhos. Será que meu irmão vai conseguir transformálos em jóias reais, como merecem? - Minha pequena intrometida, modéstia á parte, seu irmão aqui tem grande habilidade na ourivesaria. Vou lhe mostrar algumas de nossas criações já terminadas. Ele pegou uma caixa de madeira que estava sobre sua mesa, colocada quase ao lado da outra, e abriu-a. As peças eram de uma delicadeza e beleza estonteantes, principalmente as filigranas. Não resisti e pedi para colocar um dos colares. Ele era formado por um lindo cordão de ouro e no centro pendia a silhueta de um buquê de rosas formadas por incrustações de brilhantes e rubis. Broches, anéis, gargantilhas. Uma visão divina para qualquer mulher deixar-se atordoar. Fiquei admirada ao imaginar que todas aquelas formas haviam sido criadas por aquele homem de modos tão contidos. Ele tinha de ter uma alma muito sensível, coisa que não deixava transparecer. Um homem misterioso e muito interessante. Podia sentir os seus olhos buscando saber se eu aprovara o que via. Senti medo do que estava sentindo. Nunca experimentara aquela sensação antes. E ela não era desagradável. - Acho que vocês vão ter muito trabalho pela frente. Talvez precisem de uma funcionária para auxiliar nas vendas. Neste caso, podem contar comigo.

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- Só o que faltava. Você trabalhando aqui? Pode parar de supor qualquer coisa deste tipo. Você não precisa de emprego. Precisa de um marido. - Paul, você é muito antiquado. - Pode ser, mas ainda sou o responsável por você e vou tentar mantê-la dentro da linha, senhorita Catherine. Por falar nisso, pedi a senhora Emma que contratasse uma costureira para lhe fazer roupas novas. Parece que ela vai vêla amanhã pela manhã. - Oh, maninho, você é um amor! – disse, já me jogando em seus braços e dando-lhe um beijo estalado na face. Erik mantinha-se calado durante todo o tempo, com os olhos de um verde intenso a fitar-nos. O que passaria por sua mente? Pareceu esboçar um sorriso tímido ao ver nossos modos efusivos. - Bem, cavalheiros, vou andando. - Vá direto para casa, Cathy. - Se eu disser que sim, estarei mentindo. Tem tanta coisa para se ver por aqui. Só algumas voltinhas para reconhecer meu novo bairro, está bem? – e dei meu conhecido olhar para seduzir irmãos. - Cuidado, menina! - Eu sei cuidar muito bem de mim. Não se preocupe.

À noite, após o jantar, lembrei o senhor Erik do prometido. Estava ansiosa por ouvi-lo ao piano.

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- Se prometi, cumprirei a promessa – falou, dirigindo-se ao piano, onde se sentou serenamente, parecendo reverenciar o instrumento. Suas mãos fortes e grandes percorreram o teclado com delicadeza, com seus dedos acariciando cada tecla como se fosse

uma amante, procurando ver se estava afinado.

Certificou-se que estava tudo em ordem e começou a tocar uma linda melodia que eu nunca ouvira antes. Era triste, melancólica e sensual. Não resisti e perguntei-lhe, tão logo acabou de tocá-la: - Quem é o compositor? Não estou reconhecendo-a. - Eu a compus – falou após um período de incerteza se deveria fazer esta revelação. - Ela é muito bonita – foi o que consegui articular, pois tive medo de perguntar quem teria sido a fonte de inspiração. Alguma paixão mal resolvida? - Por favor, Erik, toque mais para nós. Você é um grande artista – disse Paul – Sempre me surpreendendo, amigo. - Por favor, toque mais - falei, aproximando-me do piano. Ele me lançou um olhar que atravessou minha alma e me fez tontear. Consegui disfarçar esta sensação segurando-me na estrutura de madeira de cor preta e brilhante. A música recomeçou. Agora mais alegre. Era de uma conhecida opereta italiana. Ele tocava esplendidamente. Como eu gostaria de tocar assim, com essa intimidade com as notas musicais. - Agora é a sua vez, senhorita Catherine – falou-me, assim que chegou ao fim de sua música. - Fico até envergonhada de tocar qualquer coisa depois de sua apresentação. Terei que estudar muito para tentar chegar aos seus pés.

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- A senhorita gostaria de tentar? Posso lhe ensinar a aprimorar sua técnica. - Sério? Ah, eu adoraria. Isto é, se não for atrapalhar o seu trabalho. - Claro que não. Será um prazer. Podemos ouvi-la agora? – disse ele, já se levantando e cedendo seu lugar para mim. Sentei-me, tentando evitar seus olhos, e comecei a tocar uma sonata de amor.

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XIV

Catherine. Christine. Não sei por que insistia em compará-las. Talvez porque Catherine também apresentasse um potencial para a música. Ela tocava bem. Esta sonata... Talvez... Não! Não repetiria o erro anterior. Eu a ensinaria a tocar melhor, mas sem grandes pretensões. Ela era encantadora. Tinha um brilho no olhar, uma vivacidade na maneira de falar e de agir, cheia de vida, independente, alegre. Diferente de Christine. Sem comparações. Melhor parar de pensar nela. Não se deixe levar pelo coração novamente. Ele já fez você cometer inúmeros erros. Erros graves, que quase acabaram com sua vida. Pense apenas no seu trabalho e no dinheiro que ele poderá trazer. Nada de emoções, ciúmes, amores não correspondidos. Deixe Catherine em paz. Ela precisa conhecer alguém saudável, que possa lhe dar tudo que ela merece. Além do mais, Paul não ficaria satisfeito com este tipo de envolvimento com sua irmã. Não poderia fazer isto com ele. - Bravo! – Paul gritou alegremente, tirando-me de minha abstração. - O que acha o meu novo professor? – perguntou-me Catherine, com suas safiras incrustadas na face levemente bronzeada a fitar-me, ansiosa por minha opinião. - Acho que você toca muito bem, para os padrões normais – falei, tentando provocá-la.

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- Normal? É... Talvez o senhor tenha razão. Quando começamos as aulas? Notei que ela não havia gostado do comentário. - Senhorita Catherine, eu estava tentando ser jocoso. A senhorita toca muito bem. Acho que minhas aulas serão de pouca serventia. - Não! Eu quero aprender a tocar como uma dama, não como uma camponesa. Por favor, me ensine. A não ser que não queira. - Parece que não tenho outra saída – não tinha mais como negar, depois de ver a sombra de tristeza esfumaçando a sua expressão – Podemos começar quando quiser. - Amanhã? Depois do café? - Calma, Cathy! Pela manhã teremos de abrir a loja. Talvez, depois do almoço eu possa dar uma folga para o seu “professor” por uma hora. Está bem assim para você, Erik? - Sem dúvidas. Estarei a sua disposição após o almoço. Bem, vou ter de pedir licença e recolher-me. Fiz uma reverência e dei boa noite para ambos. - Boa noite, Erik. - Boa noite, senhor – respondeu Catherine, claramente contrariada por eu não ter lhe concedido a oportunidade de ouvi-la mais uma vez. Antes de chegar ao meu sótão, ainda pude ouvi-los conversando. - Toque mais uma vez para mim, querida. - Claro, Paul, com prazer.

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Pude ouvir os acordes de uma nova canção, desta vez

mais triste, mas

igualmente melodiosa. Decidi adiar minha ida para o quarto e fiquei ouvindo-a da escada, entre o segundo e o terceiro pisos. Ao terminar, continuei a escutar sua conversa. - Ai, mano. Não sei como pude agüentar tanto tempo afastada deste prazer. Em Stansted só conseguia colocar as mãos num teclado, por muito favor, nas poucas vezes que visitava uma vizinha velha e amargurada, que vivia a cerca de 1 quilometro de nossa casa. No resto do tempo, ficava imaginando os teclados do piano, dedilhando sobre mesas, sobre meu próprio colo ou em almofadas. Isto quando não era interrompida por tia Lizzie a chamar-me de maluca. Ela dizia que eu nunca arranjaria um marido deste jeito. Eu lhe respondia que preferia ficar sozinha a ter alguém a me corrigir, criticando-me o tempo todo. Não que eu não pense em um dia casar-me e ter filhos, mas sonho com alguém que me aceite como eu sou, que me faça sentir protegida, sem ameaçar minha liberdade. Alguém em quem eu possa confiar plenamente. Você me entende, Paul? - Claro que entendo, minha querida. Eu tenho certeza que você vai encontrar esta pessoa. Mas precisa apressar-se, senão, vai ficar para tia. Ou nem isso, já que eu também estou na trilha dos solteirões. Ahahaha! - Ah, Paul! Você não leva nada a sério! - Melhor irmos dormir. Quem sabe nossos pares não batem na porta amanhã? - Bobo!! - Senhora Emma! Por favor, apague as luzes e uma boa noite – disse Paul, ainda gargalhando. - Boa noite, senhor Marback. Boa noite, senhorita. Recolhi-me rapidamente para que não percebessem minha presença.

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10 horas da manhã. Jóias expostas na vitrine, a placa com a inscrição “ABERTA” na porta e Paul aguardando os novos clientes. Eu já vinha há algum tempo aprendendo muita coisa sobre a arte dos ourives, suas técnicas, criação de ligas metálicas. Assim, enquanto Paul ficasse ocupado na linha de frente, eu poderia dar continuidade ao seu trabalho, para não sobrecarregá-lo após o expediente. Concordamos que eu não seria a pessoa ideal para atendimento da clientela. Algumas vezes eu ficava encarregado da compra de materiais e já estava ficando conhecido de alguns fornecedores. Também estava tornando-me “expert” na avaliação de ouro e jóias de particulares que desejavam obter algum dinheiro extra na venda de bens familiares. Naquela manhã algumas encomendas foram feitas, algumas jóias vendidas. Nada mal para um primeiro dia. Estávamos surpresos com o sucesso. Na hora do almoço, fechamos e fomos para casa com as boas notícias. Catherine aguardava ansiosa. A costureira havia estado lá e logo ela teria um novo guarda-roupa. Estava muito animada.

- Vamos começar a aula? – perguntou após terminar rapidamente a sua sobremesa. - Cathy! O homem nem tomou o seu café. Calma! - Não, pode deixar. Já acabei. Podemos iniciar nossa aula – falei, achando graça na inquietude de minha aluna. - Ótimo! – gritou, satisfeita.

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As aulas iniciaram-se, diariamente. Catherine era uma excelente pupila, aprendendo rapidamente os segredos do teclado. Se deixasse, em breve estaria tocando como uma profissional da música. Mas, como já havia determinado para mim mesmo, ela seria apenas uma dama com conhecimentos musicais além do esperado. Durante as aulas tentava esgueirar-me dos olhares e toques, esbarrões,

aparentemente

despretensiosos,

que

ela

provocava

quando

sentávamos juntos ao piano. Talvez fosse apenas a minha imaginação. O trabalho de manufatura na joalheria era crescente e Paul

já não estava

conseguindo dar conta de atender o público e produzir as encomendas de Londres e de Dover, acabando por passar muitas horas trabalhando depois de encerrar o expediente externo. Pensávamos seriamente na necessidade de ter um funcionário para o atendimento. Ao saber disso, Catherine veio novamente oferecer-se para a função. Depois de muita insistência, mostrando os pontos positivos de seu oferecimento, acabou por vencer a resistência de Paul e iniciou como nossa nova funcionária, atendendo graciosamente na Joalheria Marback. Não saberíamos dizer com certeza, mas acreditamos que o movimento de cavalheiros aumentou depois que ela assumira educadamente e com o distanciamento.

a recepção. A todos tratava

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XV

Já havia se passado algumas semanas da abertura de nossa filial, quando Paul resolveu viajar para Dover para avaliar o andamento dos negócios em nossa matriz e o desempenho de Samuel. Até agora parecia que os negócios iam bem por lá, também. Eles mantinham correspondência semanal e os depósitos no banco continuavam sendo creditados normalmente. De qualquer forma

ele

aproveitaria para levar algumas peças novas e pegar encomendas. Neste período, um jovem de aparência nobre, apresentou-se como Sir Charles Palmer,

filho

do

falecido

Duque

de

Devonshire.

Surgiu

na

joalheria,

aparentemente interessado em nossa ourivesaria.. Porém, seu real interesse, passou a ser Catherine. Ele passou a visitar-nos regularmente, sem nunca levar nada. Apenas conversava com ela, que começou a corresponder àquela corte. Cada retribuição em sorrisos dela, mais parecia um murro em meu peito. Lutava contra este sentimento, mas ele era mais forte que eu. Passei a vigiálos atentamente.Precisava ter certeza de que ele não a magoaria de alguma forma. Tão logo Paul voltou de sua viagem, o senhor Charles apareceu mais uma vez, muito cativante, apresentando-se como admirador de sua irmã e convidando-os para um baile que ocorreria dali a três dias. Como o baile era público, ele não teria como evitar o meu comparecimento. Sim. Ele já me conhecia. Todas vezes que ele visitava Catherine, eu arranjava um modo de aparecer e amedrontá-lo um pouco com minha presença. O que não era difícil. Era uma maneira de fazêlo respeitá-la. Tinha certeza de que ela saberia defender-se de qualquer ataque

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canalha, mas não custava dar uma ajuda extra. Já o surpreendera uma vez tentando insinuar-se mais que o devido e, por pouco não a tocara, em busca de maior intimidade. Ao ver-me, recuara. Naquela ocasião, eu sofrera com o olhar recriminador de Catherine que, para meu infortúnio, começava a gostar da companhia do senhor Charles. Aqueles três dias, antes do grande acontecimento, pareciam ter deixado Catherine ensandecida. Provou inúmeros vestidos até conseguir um que a satisfizesse. Após muito insistir e quase enlouquecer o irmão, conseguiu que emprestássemos um lindíssimo colar da coleção mais cara da joalheria, todo em diamantes e safiras. No dia do baile, quando ela surgiu na sala, quase perdi o fôlego. Provavelmente ela notou, pois esboçou um sorriso orgulhoso naquele seu belo rosto, mostrando os dentes perfeitos e as covinhas graciosas nos cantos da boca. O senhor Charles ficara de nos encontrar no palácio de eventos. Assim que chegamos ao local tentei manter-me o mais discreto possível. Sabia que já era conhecido, não mais tão temido, mas ainda considerado uma figura estranha e pouco sociável. Fiquei surpreso quando Catherine pediu-me para ser seu par na primeira dança. Tentei recusar, achando que talvez ela quisesse fazer ciúmes em seu cortejador. Comentei que não sabia dançar bem, mas, como sempre, os seus argumentos não me deixaram escolha e ela saiu vencedora. Era bom vêla tão alegre, o que chegou a contagiar-me. Há muito não me divertia. Não daquela maneira. - Viu, senhor Erik Bell? É só observar os dançarinos a sua volta, seguir o ritmo e ninguém perceberá que não estamos

acostumados a freqüentar salões de

baile. - A senhorita é muito lisonjeira. Por enquanto estou apenas cuidando para não pisar em seus pés.

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- È tão bom vê-lo sorrindo. Isto é tão raro. - Então tentarei sorrir mais vezes para agradá-la. Não lembrava de ter me sentido tão a vontade alguma vez na vida. Esta sensação de bem estar durou pouco, pois mal a dança encerrou-se, Charles surgiu a cortejar Catherine escandalosamente. Tratei de voltar a minha discrição de sempre, sem deixar de observá-los. Ela parecia muito a vontade na sua companhia. Quanto a ele, tive a impressão de que seus olhos tinham dificuldade em desviar-se do colar que adornava o lindo pescoço de Catherine. A música, a dança, a movimentação alegre das pessoas e a sedução do duque enfeitiçavam-na, afastando-a de mim. Até Paul parecia estar flutuando, buscando uma companhia feminina. Ele também se sentia só. Já não bastavam mais as companhias da irmã e de seu sócio. Ele começava a sentir a necessidade de ter uma família, com esposa e filhos. De repente, pensei que talvez estivesse chegando a hora de afastar-me deles. Ter meu próprio lugar, minha casa. Eu me acomodara naquela situação, por sentir-me finalmente levando uma vida familiar quase normal, a qual eu nunca tivera oportunidade de ter antes. Mas chegara a hora de compreender que eles não eram a minha família. Eu ainda era um intruso, querendo viver na sombra de outros. Já passava da meia noite e o baile começava a perder sua força. Foi difícil para Paul convencer Catherine a despedir-se e sair um pouco mais cedo. Ao subir no coche,

o cansaço finalmente a venceu, fazendo-a adormecer ao meu lado,

repousando sua cabeça em meu ombro. Sentia aquele perfume que me inebriara na primeira vez que a vi, vindo de seus cabelos. Podia ver o arfar de seu peito e a suave curvatura de seus seios adentrando o decote do vestido. Paul logo adormeceu também, pois não estava acostumado a vida noturna. Com o balanço da carruagem,

Catherine escorregou

e precisei segurá-la,

aconchegando-a em meus braços. Poderia ficar assim o resto da noite. Ao chegarmos em casa, acordei Paul e encarreguei-me de levar sua irmã até o quarto, enquanto ele chamava a senhora Emma para ajudá-la a vestir-se para

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dormir. Carregando-a sem muito esforço, subi as escadas e coloquei-a deitada na cama, observando-a em seu sono profundo e sentindo sua doce e cálida respiração em meu rosto. Na manhã seguinte, apesar de ser um domingo, dia de folga do trabalho, Paul acordara, tomara seu café e seguira para a loja, onde resolvera adiantar alguns trabalhos pendentes. Catherine acordou mais tarde e pediu o seu café na cama. Ao descer, perguntou por Paul. - Ele não consegue ficar longe da joalheria. Parece o meu pai. Gostou da festa, senhor Erik? – falou com sorriso zombeteiro – Não o vi dançando com mais ninguém. Não se interessou por nenhuma jovem? - A senhorita deveria dizer: “Nenhuma jovem interessou-se pelo senhor?” – respondi, retribuindo seu sorriso. - Porque acha que ninguém se interessaria pelo senhor? - Quem gostaria de ser cortejada por alguém de rosto disforme, usando uma máscara para disfarçar seu infortúnio. - Acho que alguém que pudesse ver o homem atrás da máscara. Não acredito que a aparência externa de uma pessoa justifique sua personalidade ou seu caráter. - Mas as pessoas em geral não pensam desta maneira. É mais fácil desprezar o grotesco e considerá-lo maléfico. Já sofri muito com este preconceito. Hoje em dia já não me revolto com as expressões de horror que os outros possam lançar por minha aparência. Também sei que nem todos pensam assim. Por isso estou aqui, conseguindo viver minha vida. Não fosse por pessoas como o seu irmão, eu já estaria morto. Este não era de meus assuntos preferidos, portanto fiz menção em levantar-me e sair.

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- Se me der licença, senhorita Catherine, acho que vou atrás de Paul, para ver se não precisa de ajuda. - Por favor, Erik. Eu gostaria que me chamasse apenas de Catherine ou Cathy, como preferir. - Como quiser. - Antes de sair, poderia saber sua opinião a respeito de um pedido que recebi, antes de falar com Paul? Gelei ao pensar que tipo de pedido ela havia recebido e o porquê de querer saber minha opinião antes de Paul. - Fico lisonjeado com tamanha confiança – tentei gracejar, sem muita convicção. - É sobre Charles Palmer. Ele quer freqüentar nossa casa. Gostaria de saber o que você acha disso? Sentia ansiedade nas palavras e um olhar doce e suplicante de Catherine. Minha vontade era dizer que não, mas precisava liberá-la para viver sua vida. Talvez aquele fosse o homem certo para ela. Ele poderia dar-lhe tudo que precisava. Eu continuaria a observá-lo, mas não podia evitar o inevitável. - Como seu amigo, acho que vai ser bom para você. Já está na hora de pensar no seu futuro. Charles parece ser um bom partido. Pode contar com o meu apoio, se isto for importante. - Amigo? Então eu não passo de uma amiga. - Aluna? Irmã? Como você preferir. Saiba que tenho grande apreço por você. Só quero que seja feliz, Catherine.

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Lágrimas pareceram brotar de seus olhos azuis brilhantes, mas logo ela respirou fundo e olhou-me com expressão magoada. - Não sei sobre o seu passado, Erik, mas acredito que você tenha sido tão machucado em seu coração que ele transformou-se em pedra. Não é possível que você não perceba o que venho tentando lhe dizer. Toda a sua sensibilidade foi transferida para folhas de desenho, para uma mesa de trabalho e para coisas materiais? - Não estou entendendo, Catherine – tentei disfarçar, mantendo-me impassível externamente, mas com o coração encolhendo-se no remorso por falar-lhe daquela maneira. - Está bem, Erik. Eu não vou obrigá-lo a tomar

nenhuma atitude. Talvez eu

tenha me equivocado com você. Perdoe-me por esperar encontrar algo mais do que educação e amizade por trás desta máscara. Eu não conseguia articular nenhuma palavra. Minha vontade era beijá-la e abraçá-la no momento em que vi as lágrimas correndo por sua face amada. Ela virou-se e saiu correndo para trancar-se em seu quarto. Por sorte, Paul não estava em casa para presenciar aquela cena. Saí para a rua, transtornado, sem destino, apenas com as últimas palavras de Catherine nos pensamentos. Tentava me convencer de que estava fazendo o melhor para ela. Depois de muito andar, acabei por entrar em um café no centro da cidade e sentei-me num lugar mais reservado. Fui pinçado de meu desespero pelo som de vozes próximas, sendo que uma delas me era bem conhecida. - E, então, Charlie? Como vão os negócios? Algum projeto em vista? – disse o homem, soltando uma gargalhada logo em seguida.

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- Vá rindo, vá rindo. Saiba que estou em vias de finalizar uma grande jogada. - Posso saber qual? - Algo muito rentável e bastante agradável, eu diria. - Ah! Então posso esperar receber o dinheiro que me deves? - Calma, meu amigo. Creio que não deverá demorar muito. Prometo que lhe pagarei com juros e correção monetária. - Humm... Então deve ser um negócio muito interessante. Se for, também quero participar. Não deve ser um novo “golpe do baú”, já que todas as jovens herdeiras do país conhecem a sua fama de nobre falido à procura de um belo dote. - Nem todas, nem todas. - Quem é a otária desta vez? - Não quero que fale de minha futura noiva nestes termos, Ethan. - Está bem. Então, quem é a “felizarda”? - Uma jovem encantadora, com futuro muito promissor e extremamente agradecida a mim por salvá-la da solteirice. Digamos que ambos farão um belo negócio. Ela ganha um marido elegante, um suposto título de nobreza, e eu fico algumas milhares de libras mais rico. - Você quer dizer menos pobre. Sim, porque você não tem uma libra em seus bolsos. Não fosse aquela pobre prostituta que lhe dá os míseros centavos que ela consegue em suas noites por aí, por estar apaixonada por você, não sei em que sarjeta estaria caído.

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- Estes são meros detalhes, meu caro, que não devem ser lembrados, pois logo farão parte do passado. - Então, que tal um joguinho esta noite, para comemorar? - Quem sabe amanhã, quando terei uma resposta definitiva de minha “amada” – falou sir Charles Palmer, Duque de Devonshire em meio a uma sarcástica risada. Senti minhas têmporas

latejarem e o estomago embrulhar ao ouvir aquele

diálogo asqueroso. Tive de segurar-me para não me lançar sobre aquele rato de esgoto e esmurrá-lo até a morte. E pensar que eu acabara de lançar Catherine em seus braços. Tinha que reverter aquela situação imediatamente. Precisava esfriar a cabeça e pensar. Esperei que Charles e o tal de Ethan fossem embora. Quando saí do café, estava atordoado, mas decidido a contar a Paul sobre o que acabara de ouvir. Deixaria para ele resolver a melhor saída daquela situação. Não tinha certeza se isto seria suficiente. O sujeito era da pior espécie possível.

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XVI

- Meu amigo, você tem certeza que foi ele que manteve esta conversa abominável? Não está enganado? – perguntou-me Paul, ainda abalado com o que ouvira. - Eu não teria procurado você para falar de um assunto tão delicado se não tivesse certeza. Sabe como prezo a sua amizade e a de Catherine.

Não

admitiria nada que pudesse magoá-los ou lesá-los de alguma forma. Vocês têm sido como irmãos para mim. - Inclusive Catherine, Erik? - Como assim? O que você está insinuando? Que estou tentando desfazer a imagem daquele marginal por ciúmes? - Erik, sei que você não mentiria por despeito. Acredito que este homem possa ter más intenções para conosco. Eu quero que entenda é que não sou tão inexperiente nas artimanhas do amor que não possa reconhecer quando alguém está apaixonado, ou pelo menos, interessado em outra pessoa. Há muito tenho notado

suas

trocas

de

olhares

com

Cathy



e

ele

dizia

isso,

surpreendentemente, sorrindo. - Mas, Paul... De maneira alguma. Como você pode pensar... Eu não... – aquela declaração de Paul me deixara completamente aparvalhado.

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- Erik, por favor, não se intimide. Eu acho isto muito natural e até aprecio esta aproximação entre vocês. Catherine não poderia escolher pessoa melhor que você. Infelizmente, surgiu este novo pretendente, jovem, com título de nobreza. Até entenderia seu interesse e deslumbramento se ela não fosse minha irmã. A maioria das mulheres ficaria fascinada com este tipo de cortejador, mas não a nossa Cathy. Se ela realmente estiver se apaixonando por este canalha, será muito difícil convencê-la de que ele não presta. - O que você quer dizer com tudo isto? – perguntei, ainda abismado com a naturalidade com que ele falara de um possível relacionamento entre Catherine e eu. - Acho que devemos ficar apenas mais vigilantes quanto a este jovem. Vou procurar informar-me melhor a respeito dele. Na verdade, ele ainda

nem a

pediu em namoro. Não há nada de concreto entre eles. Acho prematura uma ação inibitória agora. Conhecendo Catherine como conheço, isto poderia levá-la a manter um relacionamento com ele só por teimosia ou para provocar ciúmes em você. No fundo, confio na argúcia de minha irmã. Vamos esperar os acontecimentos e agir na hora certa, se isto for inevitável. Espero que você me ajude, neste sentido, a cuidar da segurança dela. Ou?

Temos uma segunda

opção. - Qual? – ficava cada vez mais surpreso com a perspicácia e objetividade de Paul. Este tipo de visão certamente me teria poupado de grandes problemas no passado. - Declare seu amor a ela. - O quê? - Você a ama, não? - Paul!

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- Já se esqueceu de Christine? - Christine é passado há muito enterrado – pela primeira vez sentia esta afirmação como uma verdade absoluta. - Então? Você não respondeu a minha primeira pergunta. - Amo. Amo, como nunca pensei que pudesse voltar a amar novamente. Não mais uma paixão doentia como foi antes, mas um amor redentor, tranqüilo. Mas eu não posso esperar que ela me retribua da mesma forma. - Porque não? - Olhe para mim, Paul! Catherine é uma jovem saudável, cheia de vida, linda, que pode ter qualquer um aos seus pés. Eu sou um homem deformado. Segundo algumas pessoas que me conheceram, não só física, mas também mentalmente. Fora isso, vocês não tem idéia das coisas ruins que já fiz nesta vida. Qual o futuro de sua irmã com alguém como eu? - Erik, desde que o conheço tenho visto apenas demonstrações de grande caráter, honradez, criatividade e inteligência. Um homem absolutamente normal e melhor que a maioria que conheço. Acha que eu o teria convidado a morar comigo, ou melhor, a conviver sob o mesmo teto com minha irmã, que é o bem mais precioso que tenho, se não confiasse plenamente em você? O que me entristece é pensar que tenha desistido de querer viver um novo amor. Não sei por quais dificuldades passou até chegar neste ponto, mas não podem ser suficientes para você deixar enterrar seus sentimentos. Cabisbaixo, comecei a pensar que ele talvez tivesse razão. - Erik, pense bem a respeito de tudo que lhe falei. Pense! O que você resolver, saberei aceitar e apoiá-lo.

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Quando estava pronto para sair, bateu amigavelmente em meu ombro e perguntou: - Você vem comigo? - Não. Vou ficar um pouco mais. - Não se atrase para o jantar, senão a senhora Emma pode ter um colapso nervoso. Não tive como não sorrir ao ouvir este comentário e lembrar a imagem melancólica de nossa governanta que nunca deixava escapar uma opinião que fosse. - Claro... Paul? - Sim? - Obrigado. Saiu, com um largo sorriso estampado no rosto.

Paul estava certo. Após sua saída fiquei repensando toda minha vida até aquele momento, todo o sofrimento de ser rejeitado por minha mãe, os maus tratos recebidos de meu tio, até ser vendido para o circo de aberrações dos ciganos, onde cometi meu primeiro crime, aos 13 anos de idade. Eu já não suportava ser tratado como um animal. Matei meu algoz em defesa própria, pois se continuasse a ser espancado daquela forma não teria muito tempo de vida. Aí, surgiu minha redentora, Annie, que me levou as escondidas para os labirintos da grande Ópera de Paris. Ela não tinha medo de minha face horrenda. Ensinou-me a ler e escrever. Forneceu-me os livros que me tirariam da ignorância e me dariam o conhecimento sobre artes, arquitetura, magia,

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música.

Ao ouvir os grandes mestres tocarem suas obras na orquestra do

teatro, meu gosto pela música cresceu, fazendo com que aprendesse mais e pudesse compor minhas próprias composições. Para ganhar o dinheiro necessário para bancar meus padrões, cada vez mais elevados, de bem vestir e de alimentação, comecei a provocar pequenos acidentes e a criar a imagem do Fantasma. Após um tempo, passei a pedir um “salário” para que os incidentes não ocorressem, em que fui satisfatoriamente atendido, depois de uma aparição junto ao administrador, sem minha máscara. Comecei a tirar proveito de minha deformidade para conseguir o que queria pelo medo. Achava que só assim teria acesso ao que desejava. Até que surgiu Christine. Uma criança órfã, levada por Annie Giry para aprender dança e integrar futuramente o corpo de baile da ópera. Ela tinha uma voz angelical. No início, sentia prazer em ensiná-la a cantar. Desejava transformá-la numa diva e, através de sua voz, tornar conhecida minha música. Pensava que esta seria a melhor maneira de apresentar-me ao mundo, deixando de ser visto como um monstro, para ser conhecido como compositor sensível. Christine foi crescendo e tornou-se uma linda mulher. Passei a desejá-la, não mais apenas como aluna, mas como mulher e companheira. Tinha certeza de que ela me amaria, afinal, eu era o seu “anjo da música”, enviado por seu pai para protegê-la. Anjo... Um anjo deformado. Não contava com a intromissão de Raoul, seu amigo de infância, e o surgimento de um romance entre os dois. Quando finalmente resolvi apresentar-me a ela, já era tarde. Notei o pavor em seus olhos quando tirou minha máscara pela primeira vez. Ali, fiquei com a certeza de que nunca poderia ser amado como homem. Mais uma vez usei minha técnica de apavorar e ameaçar para conseguir meu intuito. Voltei a matar novamente, por ódio e revolta contra todos que eu imaginava

ser

um

empecilho

a

minha

felicidade.

Percebi, tarde demais, que esta não era a melhor maneira de conseguir um amor. Por isso, fugi.

101

E agora me encontrava aqui, novamente apaixonado, com medo de uma nova rejeição. Medo de

ser ridículo ao revelar meu amor a Catherine, como seu

irmão havia aconselhado. Se ela realmente tivesse algum sentimento por mim, resistiria ao deparar-se com minha face de gárgula? Talvez fosse chegada a hora de vencer o medo e revelar o que sentia. Talvez com ela fosse diferente. Talvez eu pudesse quebrar mais esta barreira e finalmente ser feliz. Tantos talvez... Tão perdido estava em meus pensamentos que não vi a tarde passar. Já era quase hora do jantar. Resolvi seguir o conselho de meu amigo e aguardar os acontecimentos. Não me atrasaria para o jantar.

102

XVII

- Eu já sabia de tudo isto. Charles contou-me do seu vício pelo jogo, sua falência e sua má reputação entre as famílias daqui. Ele foi muito sincero comigo. Jurou que se arrependeu de tudo e que está mudado. - Mas, Catherine, você não o ama. Porque insistir neste relacionamento? - O que você sabe sobre isto? Quem disse que eu não o amo? - Cathy.

Eu a conheço muito bem e sei por que está fazendo isso

– Paul

abrandou o tom de voz. - O que você sabe, Paul? – não conseguia mais disfarçar minha tristeza. - Você está apaixonada por outro homem e nós sabemos muito bem quem é ele. Não fiquei surpresa

ao ouvir aquelas palavras, mas não consegui segurar as

lágrimas. - De que me adianta este amor se ele não é correspondido? - Você já conversou com Erik?

103

- Já!

E ele demonstrou claramente que me considera apenas como amiga.

Assim, decidi direcionar meus sentimentos para quem me quer. - Você tem certeza disso? - Paul, não me atormente! - Não quero atormentá-la, minha querida. Só quero que dê mais uma chance a ele. Erik já sofreu muito, pelo que sei, e tem medo de não poder fazê-la feliz. Por isso tem se esquivado. Converse com ele. Senti minhas esperanças renovarem-se. Teria Paul conversado com Erik a meu respeito? Neste momento, ouvimos a porta da frente abrir-se. Era ele que chegava em casa, com aspecto triste e abatido. Senti meu coração encher-se de carinho e uma vontade enorme de abraçá-lo. Paul e eu encerramos nosso assunto. - A isto chamamos de pontualidade britânica, Erik. Chegou na hora do jantar! – Paul falou em tom de brincadeira. Nem parecia que até há pouco estávamos falando de algo muito sério. Não sei como ele conseguia fazer isso. - Como você havia me pedido, meu amigo. Neste instante, a porta da sala de jantar abriu-se e a inexpressiva, porém competente, senhora Emma surgiu. - Senhores, o jantar está servido.

Durante o jantar podia-se ouvir apenas a voz de Paul, contando seus casos divertidos, tentando animar os ânimos dos “demais” presentes, que só

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contribuíam com muxoxos para a conversação. Às vezes podia sentir os olhos de Erik a seguir meus mínimos movimentos, mas assim que o encarava, ele desviava rapidamente. Encerrada a refeição, ninguém parecia disposto a conversar ou a ouvir um pouco de música. Paul acabou por dizer que ia sair para dar uma volta e perguntou se Erik não gostaria de acompanhá-lo, ao que recebeu uma resposta negativa. Referiu que estava muito cansado e pretendia recolher-se mais cedo. - Bem, então vou eu. Catherine, terminamos a nossa conversa depois. - Claro. - Então, boa noite para todos – disse, já cruzando a soleira da porta de casa. Assim que a porta fechou-se, Erik deu-me boa noite e subiu para o seu quarto no sótão. Eu não consegui dizer nada. Continuava aflita para falar-lhe. Talvez eu devesse abrir meu coração para ele de forma mais clara. Porque ele achava que não poderia fazer-me feliz? Fiquei um bom tempo na sala, aflita com meus pensamentos, dedilhando um pouco ao piano, criando coragem para falar com ele. Finalmente, decidi-me. Não havia porque esperar mais. Subi as escadas que levavam aos aposentos no sótão. Nunca tinha ido até lá, apesar da curiosidade de conhecer o lugar onde ele se refugiava nos momentos de solidão.Fiquei parada diante de sua porta alguns minutos, temerosa do que estava por vir. Bati, a princípio sem muita força no punho. Como não obtivesse resposta, lancei a mão fechada com mais vontade. Ouvi movimento no interior da peça até que a porta se abriu. Lá estava ele, com sua camisa branca aberta até metade do peito, mostrando seu tórax forte e amplo, deixando-me quase

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sem fôlego. Oh! Como eu queria recostar minha cabeça sobre ele, escutar e pronunciar palavras de amor. - Catherine! O que faz aqui? - Erik. Eu... Eu gostaria de conversar com você mais uma vez. Acho que fiquei nervosa hoje pela manhã. Gostaria que me perdoasse pelas coisas que falei. - Não há nada a perdoar, Catherine. Olhe, vou me arrumar e já desço para conversarmos na sala. - Não! Podemos conversar aqui? - Aqui? Acho que não fica bem uma moça solteira conversar no quarto de um homem, a sós. O que Paul ia pensar? - Não me importa o que os outros pensam. Você me conhece. Além do mais, eu confio em você como cavalheiro, que sei que é. Posso? – disse, já fazendo menção de invadir o cômodo. Ele me olhava intensamente, quando recuou, deixando-me entrar. Não fechou a porta, deixando-a entreaberta, respeitosamente. - Por favor, já que é assim, entre. Fui caminhando em passos lentos,

observando todos os detalhes, tentando

decifrar nas pequenas coisas os segredos daquele homem que eu tanto desejava. Não havia nada em especial. Parecia um dormitório convencional, masculino e organizado. Nenhuma revelação escondida. Comecei a falar sem encará-lo, para não perder a coragem. - Erik, vim aqui para... Quero te dizer que não o considero apenas como amigo ou irmão, como você falou hoje pela manhã. O que sinto é mais do que isso. O

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que preciso saber com certeza é se o que me disse hoje sobre seus sentimentos em relação a mim são apenas fraternais ou... Achei que não estava conseguindo ser clara o suficiente, quando senti a sua aproximação atrás de mim e o calor de seu corpo muito próximo ao meu. Sua mão forte segurou meu braço, forçando-me delicadamente a virar-me de frente para ele, de forma que podia sentir a sua respiração cálida em minha face. - Catherine, eu a amo... Muito. Pensei que meu peito fosse explodir de felicidade. Teria mesmo ouvido aquelas palavras? - Ah, Erik, como eu sonhei em ouvir isso de você. Minhas pernas tremiam e meu coração palpitava de emoção. Aproximei-me mais um pouco dele, oferecendo meus lábios para o beijo tão esperado, mas ele afastou-se bruscamente, como que fugindo de mim. - O que houve? - perguntei surpresa com a sua reação. - Catherine, isso não pode dar certo. Eu a amo demais para condená-la a uma vida com um homem como eu. Você não me conhece, não sabe de meu passado, que é tão desfigurado quanto meu rosto. Se você pudesse ver minha face e saber das coisas terríveis que já fiz, o seu amor deixaria de existir. - Você acredita que eu seja tão fútil e que o meu amor seja superficial a ponto de desvanecer-se por sua aparência sem a máscara ou por saber de seus erros passados, dos quais você continua se penitenciando até hoje, castigando-o a viver solitário, sem direito a amar? Erik, meu amor, você precisa deixar estes medos de lado e olhar em frente. Olhar para mim. Dar-me uma chance de fazêlo feliz. Esqueça tudo o mais.

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Aos poucos fui reaproximando-me dele, como se tentasse acalmar um animal acuado e medroso, até conseguir enlaçar meus braços em torno de seu dorso, abraçando-o com força. Senti seu corpo relaxando e passando a envolver-me carinhosamente. Levantei minha cabeça, de forma a olhá-lo diretamente e disse: - Por favor, me beije. Finalmente, vi a sua aproximação, os olhos verdes, muito ternos, brilhando de desejo, olhando-me intensamente, sua boca tocando meus lábios e a sensação de sublimação ao sentir o seu gosto. O tempo deixara de existir naquele momento. O paraíso realmente existia e não era só uma balela dos crentes. Beijamos-nos muitas vezes. As palavras pareciam desnecessárias. Até, que terminamos

por

permanecer

apenas

abraçados,

compartilhando

o

calor

confortável de nosso amor. - Erik, deixe-me ver o seu rosto sem a máscara, para afastar esse seu medo bobo de que eu vou deixar de amá-lo ao vê-lo sem ela. - Não! Não... - Por favor... Fique de olhos fechados se não quiser ver a minha expressão, mas deixe-me tirá-la. Esqueça o que quer que tenha acontecido no passado. Aos poucos fui vencendo a sua resistência, aproximando minhas mãos de seu rosto, fazendo-o fechar as pálpebras e acariciando sua face. Quando o senti mais relaxado, comecei a retirar a máscara com delicadeza, até expor o seu lado direito. Ao ver o motivo de sua maior dor e humilhação, meu coração encheu-se de ternura. Ele ainda permanecia de olhos fechados, como uma criança à espera de punição. Comecei a beijar suavemente cada centímetro de sua terrível cicatriz, revoltada por não ter a capacidade de removê-la com o toque de meus lábios. Talvez meu carinho pudesse cicatrizar a sua alma e fazê-

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lo esquecer de todas as humilhações pelas quais passou devida aquela fatalidade. Finalmente ele abriu os olhos. - E então? Não desistiu de mim ainda? - Você ainda não me conhece o suficiente para saber como eu sou teimosa? Não vai ser uma

“marquinha de nascença” qualquer que vai me fazer abdicar de

você. Agora eu conseguira arrancar um sorriso de meu amado. - Catherine, você não existe. - Existo sim e vai ser muito difícil se livrar de mim. Pode contar com isso. Mais uma vez nossos lábios se encontraram e o desejo começou a tomar conta de nossos corpos. Minha vontade era de entregar-me naquele momento, mas Erik, como um “gentleman”, não permitiu, afastando-me docemente. - Precisamos falar com Paul, antes de qualquer coisa, para contar o que está acontecendo. Não acha? - Infelizmente, você tem razão, meu amor. Acho que podemos esperar. Ouvimos um barulho na escada. Erik correu para ver quem era e, ao desencostar a porta, deparou-se com a senhora Emma, que soltou um grito de horror ao vê-lo.

Imediatamente cruzei a porta e a segurei, tentando fazê-la

voltar ao normal. - Emma, Emma! Calma! Não se assuste, por favor. Aos poucos ela foi recuperando alguma cor ao rosto normalmente pálido.

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- Perdão, senhor Erik. Perdão! Eu nunca tinha visto o senhor sem sua máscara. Sinto muito, sinto muito – estava quase chorando, mas mostrava-se, não mais amedrontada, mas compadecida por seu patrão – Eu vim até aqui para saber se ainda precisava de algo. Eu não queria incomodá-los. Longe de mim... - Não se preocupe, senhora Emma. Fique tranqüila. Não é a primeira vez que eu desperto esta reação em alguém. Por isso uso esta máscara - falando isto, recolocou seu “disfarce” mais uma vez. - Perdoe-me por minha reação. Em nada vai mudar o apreço que tenho pelo senhor. De forma alguma. - Obrigado, senhora Emma, mas pode ir dormir agora. Nós não precisamos de mais nada. A senhorita Catherine também já estava se retirando para os seus aposentos. Se Paul precisar de alguma coisa quando chegar, ele mesmo pode arrumar. - Obrigada e boa noite, senhor. Boa noite, senhorita. - Boa noite, senhora Emma. Assim que ela desapareceu nas curvas da escada, me virei para Erik, mas não notei nenhuma expressão de mágoa pelo ocorrido. Apenas um sorriso.Um sorriso apaixonado. - Você está bem? - Surpreendentemente, sim. Em outros tempos eu ficaria totalmente alquebrado com esta reação, mas hoje, agora, levei foi um susto com o grito que ela deu. O que a vizinhança vai pensar? - Ah, meu querido, que bom que você reagiu assim. Se quiser, posso ficar aqui mais um pouco com você.

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- Nada disso. A senhorita vai recolher-se ao seu quarto agora mesmo. Amanhã teremos de estar bem dispostos para anunciar nossa decisão, de ficarmos juntos, para Paul. Além do mais, você terá de dispensar o “pobre” do senhor Charles Palmer. Esqueceu? - Oh! É mesmo. Já tinha esquecido ele. Ele ficou de ir à loja. Assim, Paul estando presente, vai ser mais fácil, espero. Lancei-me em seu pescoço, procurando seu beijo mais uma vez. - Assim, fica difícil de resistir a você – disse, correspondendo com paixão ao meu oferecimento. Depois disso, pegou-me pelos ombros, virando-me em direção ao corredor e empurrando-me de leve. - Vou precisar levá-la para o segundo andar ou... - Se quiser me acompanhar até meu quarto, eu apreciaria muito – falei, sedutoramente. - Cathy, Cathy... Sou um cavalheiro, mas não sou de ferro. Não fique me tentando. -

Está

bem,

desculpe.

Realmente

eu

não

estou

me

comportando

adequadamente. O que você vai pensar de mim? - Não vou pensar nada. Vá dormir, meu amor. Após um beijo depositado suavemente em minha fronte, ficou observando-me descer a escadaria, em direção ao meu quarto. Quase não sentia meus pés no chão.

Restava-me

aguardar

ansiosamente

precisaríamos nos separar nunca mais.

o

momento

em

que

não

111

XVIII

Faltava pouco para o dia amanhecer quando consegui conciliar o sono. Este veio por pura exaustão, após passar um bom período pensando em tudo que acontecera em tão curto espaço de tempo. A emoção de poder ter Catherine ao meu lado, correspondendo ao meu amor, construindo uma vida junto a mim, uma família. Tudo parecia um sonho. Tudo que conseguira até aqui. Tinha tido muita sorte. Preocupava-me a reação daquele embusteiro do Charles Palmer, quando Paul e Catherine abortassem os seus planos de casamento com uma rica herdeira. Não imaginava que nossa joalheria estivesse com tamanha fama, a ponto de tornar Catherine alvo deste tipo de caçador de dotes. Ele devia estar realmente desesperado. Com alguma dificuldade, acordei para trabalhar. Lavei-me e desci para tomar o desjejum. Na sala,

já me aguardavam, com expressões de contentamento,

Paul e Catherine. - Bom dia, meu caro Erik! Dormiu bem? – saudou-me

jovialmente o meu

amigo. - Bom dia. Não tanto quanto gostaria, mas o suficiente. Bom dia, Catherine. - Bom dia - falou com um sorriso maroto nos lábios. - Estávamos aguardando-o para tomar o café da manhã. Vamos sentar?

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- Claro! A senhora Emma, aparentemente já refeita do susto da noite anterior, cumprimentou a todos e passou a servir-nos. - Catherine me falou que talvez tenhamos novidades nesta casa. Será que eu posso saber do que se trata? Paul não conseguia disfarçar a alegria pelo que, certamente, já tinha ouvido de Catherine antes de minha chegada. - Paul, eu gostaria de falar sobre este assunto de maneira mais formal, como o tema exige, mas pelo visto a senhorita, sua irmã, não conseguiu esconder os fatos que ocorreram após a sua saída, na noite de ontem – tentei falar em tom formal, mas o clima reinante era de descontração. - Ah, Erik, eu não resisti e acabei contando a Paul a nossa conversa. Você não está chateado, está? – aquele olhar de súplica quase infantil no rosto de Catherine ao falar só me incitava a beijá-la. - De forma nenhuma. Pelo contrário, me poupa de dar explicações para o seu irmão – ponderei lascivamente. - Como assim? Vou querer um pedido formal. O que você está pensando? – disse Paul, caindo na gargalhada logo em seguida. Levantou-se da cadeira e veio em minha direção. - Erik, você não tem idéia de como estou feliz com este entendimento de vocês. Finalmente vou tê-lo como um legítimo irmão. É isso, não? Ou estou sendo precipitado? - Paul, você me deixa sem palavras falando desta maneira. Não sei se mereço tanto.

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Não conseguia esconder minha emoção ao levantar-me e ser abraçado efusivamente por Paul. - Desse jeito eu vou começar a chorar... Voltei-me na direção da responsável por aquelas últimas palavras, que estava ao meu lado, e disse, pegando firmemente em sua delicada mão e mirando o fundo de seus olhos. - De hoje em diante, uma de minhas prioridades na vida vai ser fazê-la feliz. Portanto, nada de choro. - Bem, – falou Paul, visivelmente emocionado – vamos terminar o café. Infelizmente o trabalho nos espera. De qualquer maneira podemos fazer uma comemoração hoje á noite. O que acham? A resposta foi unanimemente positiva. Durante todo aquele clima de festejo e descontração, notei a senhora Emma com uma nova expressão, que não aquela melancolia permanente. Ela quase estava sorrindo, parecendo regozijar-se com a nossa alegria.

Passei a manhã um pouco tenso, apesar do clima de congraçamento reinante na loja. Estava apreensivo pelo aparecimento de Charles e a finalização deste relacionamento abominável com Catherine. Porém, ele não apareceu, apesar da ansiedade que demonstrava no dia anterior, em sua conversa no café. Talvez tivesse desistido. Seria bom demais ficar livre daquele marginal sem discussões desagradáveis.

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Durante o almoço, resolvemos sair à noite para um jantar especial de comemoração. Paul e eu decidimos levar Cathy no “Rules”, onde já tínhamos tido a oportunidade de saborear a cozinha maravilhosa. À tarde, Catherine teria que abrir a loja sozinha, pois Paul e eu teríamos de dividir tarefas fora. Ele combinara de visitar um cliente importante e eu teria que comprar material para fazer ligas metálicas necessárias para nosso trabalho de ourivesaria O que se passou após nossa despedida em frente à joalheria, me foi relatado mais tarde por Catherine. “Ela deu início ao atendimento. Quando Charles apareceu, com um ramo de rosas nas mãos, um largo sorriso nos lábios e extremamente galanteador, não havia nenhum outro cliente no local. - Bom dia, minha cara. Seu irmão está? Vim conforme tínhamos combinado. - Bom dia, senhor Charles. Estávamos esperando-o no período da manhã. - Sinto tê-la deixado apreensiva com meu atraso. Agora estou aqui para compensarmos esta minha falta. - Não é essa a questão. Paul teve de ausentar-se agora neste início de tarde e não poderá falar-lhe. - Ah, mas eu posso adiar meus outros compromissos e aguardá-lo em seu retorno para conversarmos. Você sabe como é importante para eu ter você ao meu lado o mais breve possível. Meu amor não resiste mais esperar para poder visitá-la em sua residência e firmarmos o nosso compromisso o mais cedo possível – disse-lhe, lançando um olhar lânguido e apaixonado. - Ele não deve demorar, mas talvez possamos começar nossa conversa antes da chegada de Paul.

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- Querida! Não imaginava que você fosse tão fogosa. O seu guarda-costas mal encarado também não está? - Acho que o senhor está sendo precipitado em suas palavras. - Não creio, meu amor. Que tal aproveitarmos que estamos a sós? Ele foi aproximando-se dela com olhos de cobiça. Entregou-lhe o ramalhete e aventurou-se a envolver-lhe a cintura com as mãos. Imediatamente foi rechaçado, o que o deixou muito surpreso. - Está bem, se você prefere ser difícil. Tenho toda a paciência do mundo, Cathy. - Senhor Charles, por favor. Sinto dizer que as coisas mudaram. Após alguns segundos, com olhar atônito, conseguiu falar: - Como assim, mudaram? O que mudou? Há dois dias atrás combinamos que hoje eu falaria com seu irmão para que ele permitisse minhas visitas em sua casa, no que você concordou muito satisfeita. Ele falava com a voz rouca, em tom cada vez mais baixo e a face alterada. - Acalme-se, por favor. Não temos nenhum compromisso. Achei que éramos amigos. Nada mais. - Como assim, amigo? Você acha que eu vinha aqui quase que diariamente para perder meu tempo com uma amiga? Que a convidei para ir ao baile, como amiga?

Que

perdi

de

dançar

com

dezenas

de

outras

mulheres

mais

interessantes e mais ricas que você, por amizade? - O senhor está me assustando. Não era minha intenção dar-lhe falsas esperanças. E, como o senhor mesmo insinuou agora, deve haver dezenas de moças mais prendadas e mais RICAS do que eu, que o interessariam mais e que adorariam jogar-se em seus braços. Sinto saber que o seu interesse não

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estava centrado apenas em mim como pessoa, mas no dote que eu pudesse lhe oferecer. Vou ser obrigada a pedir-lhe que se retire.Além do mais, já estou comprometida. Aquela foi a gota d’água aos ouvidos de Charles, que se viu completamente transtornado por ver seus planos esfacelados, lançado novamente na miséria. Segurou Catherine pelos ombros, num rompante de fúria, puxando-a contra si com força. - Pare! O senhor está me machucando! Não faça isso! – Catherine estava chocada com a reação de seu “amigo”. - Então, alguém foi mais esperto que eu. Quem é o felizardo? Não me diga que é aquele aleijado? - Não fale dele dessa maneira. Infelizmente, só agora percebo que você não chega aos pés dele. - Então é ele. Ora, então me deixe beijar a noiva. Ela viu a boca asquerosa aproximando-se da sua, enquanto tentava de todas as maneiras safar-se daquele abraço indesejado. Quando já estava quase sem forças para lutar, repentinamente, Charles foi como que arrancado do chão, de tal maneira que a soltou imediatamente. Quando ela conseguiu sentir-se livre, viu Charles caído no chão com um fio de sangue a escorrer da narina direita, ainda tonto com o murro que levara de Erik.”

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Quase enlouqueci ao ver aquele desgraçado agarrando Catherine. Eu poderia matá-lo naquele momento, mas algum poder maior segurou minhas mãos. Eu tinha de saber se ela estava bem, por isso fui ajudá-la a levantar-se, abraçando-a. - Você está bem, querida? - Ohhh! Mas que amoroso! Veio salvar sua pobre noivinha? Mesmo abatido e sangrando, sua língua bestial continuava fazendo sarcasmo e escoando veneno. - Vocês vão me pagar. Isto não vai ficar assim. Pode ficar com a sua roceira. Ela nunca vai passar disso mesmo. Talvez vocês se mereçam. Um aleijão e uma camponesinha ignorante. - Vá embora daqui, seu verme, e não apareça nunca mais ou vai se haver comigo. - Ah, estou morrendo de medo. Você já matou alguém? Provavelmente sim. Você não me engana. Você não perde por esperar. Dizendo isso, levantou-se com dificuldade e saiu mancando, com um sorriso diabólico impresso na face inchada, de nariz quebrado, pelo soco recebido. Na saída, esbarrou em Paul que vinha chegando de seu compromisso. Quase foi derrubado por Charles, que atravessava a porta, ofuscado pelo ódio. - O que houve? - perguntou pasmado. - Charles tentou agarrar Catherine. Ainda bem que cheguei na hora. - Mas, por quê?

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- Eu falei a ele que o tinha em consideração, como amigo. Aí ele pareceu enlouquecer e começou a mostrar seus verdadeiros propósitos para comigo. Praticamente deixou claro que estava interessado apenas no meu dote. Foi horrível! – falou Catherine, começando a chorar e escondendo o rosto no peito de Erik, que ainda a mantinha abraçada. - Acho melhor irmos para casa. Paul, eu vou levá-la. Você não se importa de ficar sozinho? - Não, claro que não. Você está bem, Cathy? - Estou. Não se preocupe. - Vou ficar aqui mais um pouco e trabalhar na oficina. Assim que terminar, fecho a joalheria mais cedo e vou para casa. Cuide dela, Erik. - É claro. Ao chegarmos em casa, levei Catherine para o seu quarto para que ela pudesse trocar de roupa e descansar um pouco. Pedi ajuda a senhora Emma. - Você está bem, mesmo? - Estou, meu amor. Se não fosse você, não sei o que poderia ter acontecido. - Agora descanse. Eu vou estar lá embaixo. Se precisar de qualquer coisa, me chame, está bem?

- disse isso e dei-lhe um beijo na face.

Deixei-a aos

cuidados de Emma. Fui para o meu quarto pensando sobre o ocorrido. Teríamos que ter cuidado. Charles tinha sido ferido em seu orgulho próprio e visto seus planos desfeitos de uma hora para outra. Sendo ele quem era, pelo que pude ouvir da conversa naquele café, ele procuraria vingar-se. Infelizmente, eu conhecia aquele tipo de sentimento muito bem.

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Quando desci, resolvi tocar um pouco de piano para desanuviar a mente e relaxar. Enquanto tocava, distraidamente, senti dois braços enlaçando-me o pescoço e aquele perfume suave, que eu tanto apreciava, envolvendo-me. Parei de tocar e prendi as mãos de Catherine, ainda em torno de mim, contra meu peito. - Não acha melhor descansar um pouco mais? - Não. Prefiro ficar aqui com você, ouvi-lo tocar – suas palavras faziam cócegas em meu ouvido, o que era muito agradável. Rodei a banqueta onde estava sentado, de forma a ficar de frente para ela, passando meus braços em torno de sua cintura delgada. Abracei-a e deitei minha cabeça sobre seu colo. Ela passou a acariciar-me os cabelos e o pescoço. Uma sensação de bem estar tomou conta de mim, como se me sentisse em casa pela primeira vez, depois de uma longa viagem. Levantei a cabeça, de forma a olhá-la de frente, querendo gravar cada milímetro daquele rosto amado em minha memória, para poder lembrá-lo quando não estivéssemos juntos. Aqueles olhos, sua boca...Catherine foi aproximando-se. Seu olhar apaixonado era um bálsamo para minha velha alma atormentada. Finalmente, nossos lábios tocaram-se, num beijo muito doce. - Toque para mim, Erik. Até o momento em que Paul chegou, ficamos a tocar piano e a trocar carícias. - Desculpem ter demorado tanto, mas clientes acabaram aparecendo e não pude fechar a joalheria mais cedo. Você está bem, Catherine? Pelo que estou vendo já se recuperou do susto – disse maliciosamente, olhando para os dois abraçados – Agora quero me contem exatamente o que aconteceu. Catherine passou a relatar o ocorrido em detalhes. Assim que terminou, Paul falou, impressionado com o que acabara de ouvir:

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- Realmente, Erik, você tinha razão em ficar preocupado com as atitudes daquele sujeito. - Como assim? Que atitudes? – perguntou Catherine - Lembra quando lhe falei que tinha sabido que Charles era jogador e que estava falido e por isso tinha se aproximado de você? - Sim. - Pois é. Foi Erik que ouviu uma conversa dele com outro jogador, num café da cidade. Ele estava se preparando para pedi-la em casamento e conseguir dinheiro através do dote. Eu pedi a ele que não tomasse nenhuma ação precipitada e que aguardasse os acontecimentos. - Que sujeito repelente. E pensar que acreditei e fiquei com pena dele, quando me contou de sua luta contra o vício e a má fama improcedente junto às famílias daqui. - Bem, agora que tudo está resolvido, que tal nos prepararmos para a nossa noite comemorativa. Ou já esqueceram?

- Paul não perderia um festejo por

nada deste mundo. - Claro que não. Vamos festejar – falou Catherine alegremente.

Cerca de uma hora mais tarde, estávamos os três a caminho do Rules. Desta vez, com lugares reservados e trajes adequados.

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XIX

Já nem pensávamos mais no ocorrido naquela última segunda feira, quando um mensageiro chegou na joalheria, no início da tarde, com uma mensagem para mim. “Senhor Erik Bell, Estarei aguardando-o na rua Durward, 55, em Whitechapel, esta noite, às 23 horas, para tratar de assunto do seu interesse. Venha sozinho. Charles Palmer” O que este canalha esperava falar comigo? Provavelmente vingar-se ou talvez quisesse algum dinheiro para deixar-nos em paz. Teria ele descoberto alguma coisa de meu passado? Em nosso último encontro ele perguntara se eu já havia matado alguém. Será? Eu precisava ir a este encontro para esclarecer tudo de uma vez por todas. Tomaria minhas precauções. Tinha de manter Catherine e Paul afastados disso. No horário marcado eles provavelmente já teriam se recolhido e eu poderia sair sem ser visto. Este bairro, Whitechapel, era muito pobre. Seria este o seu endereço? De qualquer maneira só teria minhas respostas rebatidas ao encontrá-lo.

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As horas restantes da tarde pareceram passar mais lentamente que o habitual. Tentava prever o que ocorreria naquele encontro da noite. Não pretendia ir armado. Chegaria mais cedo para observar o local e tentar descobrir algum tipo de emboscada. A noite ainda poderia ser minha camuflagem, como em tantas outras ocasiões.

- Você parece preocupado com alguma coisa, querido. O que é? - Não é nada, Catherine. Acho que estou apenas cansado. Tivemos muito trabalho hoje. - É verdade. O movimento da loja e das encomendas é cada vez maior. Logo teremos de pensar em ampliar nossa oficina. Talvez procurar um local maior, contratar um ourives e um novo funcionário para atender no balcão – disse Paul todo orgulhoso com nosso sucesso. - Vocês não estão satisfeitos com o meu trabalho? – disse Catherine simulando uma carinha de choro. - Não é isso, querida. Acho que não fica bem a irmã de um próspero comerciante, noiva de seu sócio, ficar atendendo como uma simples balconista. Você não acha, Erik? - Concordo plenamente com você, Paul. Já tinha pensado nisso, mas não quis arranjar briga com a Catherine. Foi bom você ter tocado no assunto – falei assim, dando uma piscada de olho para meu sócio. Nesta semana eu havia desenhado o anel de noivado de Catherine e Paul ficara encarregado de torná-lo real Assim que ele o tivesse terminado, combinamos que eu pediria oficialmente a mão de Cathy em casamento. - Parece que há um complô armado contra mim. O que posso eu fazer, a não ser acatar as ordens de meus senhores?

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Eram 20 horas quando acabamos de jantar. Catherine tocou um pouco de piano para nós. Ela estava tocando cada vez melhor. Cerca de uma hora depois todos concordaram que estava na hora de nos recolhermos. Demos boa noite para Paul e acompanhei Catherine até a porta de seu quarto. - Boa noite, meu amor - Boa noite, Erik. – disse, abraçando-me. Tinha medo de que, dependendo dos acontecimentos ao cabo daquela

noite, não pudesse mais vê-la ou

beijá-la.

Por isso, abracei-a com força e dei-lhe um longo e ardente beijo. - Oh, meu amor. Não vejo a hora em que possamos passar o resto da noite juntos. Sem despedidas na porta de meu quarto. Te amo muito, Erik... - Também te amo, Catherine. Nunca se esqueça disso. Nos despedimos. Fui para o sótão iniciar meus preparativos para o encontro. Voltei a vestir minha velha capa preta e meu chapéu de abas largas, que há muito não eram usados, mas

que poderiam ajudar-me como disfarce. Assim

que não ouvi mais rumores na casa, desci silenciosamente, saindo pelos fundos. Peguei um coche que me levou até as imediações de Whitechapel.

Não foi

difícil chegar até o endereço dado por Charles. Não se via nenhum movimento por ali. O relógio já marcava 22:10 horas quando procurei olhar pelas janelas, do outro lado da rua. Era um prédio miserável, pouco iluminado. Enquanto tentava descobrir se havia alguém de tocaia nas proximidades, ouvi um grito terrível de mulher, vindo do interior da moradia, seguido pelo som de dois tiros de pistola. Corri até a porta da entrada. Ela abriu-se e, para meu espanto Charles apareceu com olhar apavorado.

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- Erik, entre! Aconteceu uma coisa horrível! Ingenuamente, atendi ao seu apelo, preocupado com a mulher que emitira o pedido de socorro. Tão logo a porta fechou-se atrás de mim, ouvi a voz fria de Charles, que já me olhava com ar zombeteiro: - Você chegou cedo, Erik. Mas não tem problema. A minha frente, deparei-me com a figura de uma mulher semidespida, morta, com um tiro no peito e outro na cabeça. - Você a matou? - Não, meu caro. VOCÊ a matou. Infelizmente vocês discutiram. Você contou a ela que não a queria mais por estar noivo de uma bela jovem. Ela pegou uma arma que tinha guardado e atirou em você. Antes de morrer, você teve forças de alcançar a pistola e atirar nela. Eu olhava incrédulo para o que aquele louco estava me dizendo. - A polícia deve estar chegando Convenci um conhecido a avisá-los, pois temia que algo de mal acontecesse a minha querida Polly esta noite. - Ela deve ser a pobre apaixonada que ainda o sustentava. - Parece que você está bem informado a meu respeito, não? Pena que toda esta informação não terá valor algum no próximo minuto. Planejei tudo muito bem. Imagine a pobre Catherine e seu irmão otário quando souberem que você tinha Polly, uma prostituta, como amante. Ela vai ficar completamente arrasada. Antes de a polícia chegar, terei armado a cena do crime passional perfeita, e saído calmamente pelos fundos. Agora, vamos parar de conversar e acabar logo com isso. Aproxime-se dela. Não estou querendo fazer muita força para colocála ao seu lado. AGORA!

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- O que você ganha com tudo isso, Charles? Não tem sentido! - Vingança, meu caro. Vingança! Pensava numa maneira de escapar de sua mira. Como eu tinha me deixado cair naquela emboscada? Realmente eu já não era mais o mesmo. Quando pensava que tudo estava perdido e meus últimos pensamentos iam para Catherine, uma voz feminina e enfraquecida se fez ouvir na sala, atrás de Charles. - Largue esta arma, Charles. Você não vai arruinar a vida de mais ninguém. Eu não conseguia acreditar no que via. Era Emma. Mas o que ela tinha a ver com aquele bandido? - Mãe? O que você está fazendo aqui? Saia! A polícia já deve estar chegando. - Que bom. Assim eles vão poder jogá-lo numa prisão, onde não poderá prejudicar mais ninguém. Senhor Erik, por favor, vá embora. Eu resolvo esta situação com o meu filho. - Filho? - Eu me sinto responsável por tudo que está acontecendo. Fui eu que, inocentemente, falei sobre a senhorita Catherine para ele. A partir daí, ele passou a assediá-la. - Mãe! Você não vai ter coragem de fazer isto comigo! - Vou! A não ser que você queira matar a mim também. Mas aí ficará difícil de explicar a minha presença na sua cena perfeita. Além do mais, deixei uma carta na casa do senhor Erik explicando tudo e contando a nossa história. Vá, senhor Erik, agora, antes que seja tarde. Não o quero envolvido nesta sujeira. O senhor foi das poucas pessoas que me trataram trinta anos. Vá! Fuja! Eu vou ficar bem.

com respeito

nos últimos

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Ainda estava pasmado com tudo que estava acontecendo, mas compreendi que ela tinha razão. Eu não podia envolver-me com a milícia. Assim, segui a sua ordem e saí em direção aos fundos da casa. Charles tentou seguir-me, com olhar desvairado, mas Emma jogou-se a sua frente, entre nós, lutando contra ele. Pude ouvir os gritos dos policiais, batendo na entrada da casa e o som de arrombamento, seguido de um tiro. Fiquei tentado a voltar, preocupado com o que poderia ter acontecido a Emma, mas meu instinto de sobrevivência foi maior. Ainda estava chocado com tudo que acontecera, quando cheguei em casa. Fui procurar pela tal carta da qual Emma falara durante sua discussão com Charles. Lá estava ela, sobre a cômoda de seu dormitório. Subi até meu quarto, onde, após desvencilhar-me de minhas vestes noturnas, pude revelar o conteúdo da sua carta.

“Meu caro Senhor Erik, Deixo este relato minucioso de minha vida, na esperança de que algum dia o senhor, o senhor Paul e a senhorita Catherine possam me perdoar por ter sido a responsável involuntária em fazê-los cruzar com uma pessoa chamada Charles Palmer, meu filho. Tudo começou há 30 anos quando eu trabalhava como empregada na mansão do Duque de Devonshire. Lá fui envolvida amorosamente por este nobre senhor, que me expulsou de sua casa tão logo soube de minha gravidez, deixando-me sem recursos para sustentar a mim ou ao seu filho que estava por nascer. Graças a bondade de algumas mulheres de um prostíbulo nas margens do Tamisa, que me acolheram ao verem meu estado, grávida e esfomeada, meu filho pôde nascer em lençóis limpos. Após o parto, para pagar a hospedagem, trabalhava para elas, fazendo pequenos serviços, cozinhando e limpando os cômodos. Infelizmente, acabei por ter de sair de lá e tentar

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conseguir emprego em outro lugar. Com um filho recém-nascido nos braços era difícil de conseguir qualquer ocupação. Por isso, fui obrigada a deixar Charles em um orfanato local, para poder buscar nosso sustento. Esperava tirá-lo de lá assim que conseguisse fazer algumas economias, mas o tempo foi passando e isto não se realizou. Apesar de visitá-lo sempre que possível, meu filho cresceu revoltado, sempre se metendo em confusões ou provocando brigas. Até que, aos 16 anos, foi expulso do orfanato, pois já não agüentavam a sua presença lá. Na época, eu trabalhava como cozinheira na casa de uma nobre senhora, viúva do Barão de York. Charles foi á minha procura. Consegui, com a permissão da baronesa, um lugar para ele dormir, nas estrebarias da propriedade. Logo ele armou uma briga com um dos empregados e foi expulso de lá. Por pouco não perdi meu emprego. Antes de ir embora, obrigou-me a revelar quem era seu pai. Quando soube que era filho ilegítimo do Duque, passou a ter como idéia fixa tornar-se um distinto nobre. A partir daí não descansou até conseguir falar com o pai. Quando conseguiu, começou a fazer chantagem para poder extorquir dinheiro, ameaçando contar a verdade para a duquesa e seus filhos. Exigiu uma renda mensal, que nunca era suficiente, pois gastava tudo em jogos de azar e com prostitutas. O Duque, cansado de ser explorado por solicitações cada vez maiores de dinheiro, passou a negar o auxílio. Isto deixou Charles enfurecido. Poucos dias depois de negar novos pagamentos ao bastardo, o Duque de Devonshire foi morto durante uma caçada. Foi considerada morte acidental. Nunca se soube

qual espingarda

disparara o tiro fatal, mas eu sabia. Charles, então com 26 anos, passou a viver do jogo. Às vezes estava bem, mas na maioria das vezes mal tinha o que comer. Era quando recorria a mim, que acabava por dar-lhe todas minhas parcas economias. Por ter boa aparência e ser bom observador dos modos elegantes dos nobres, passou a galantear as jovens abastadas de Londres ou ligadas à nobreza. Porém, quando a família investigava seu passado, tudo acabava. Meses atrás, havia sido despedida de meu emprego, graças a Charles ter ido a minha procura e feito um escândalo por eu não ter dinheiro para lhe dar, na

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frente de minha patroa. Mais uma vez estava na rua, sem ter para onde ir. Foi então que o conheci, senhor Erik. Jamais esquecerei sua bondade ao me ver perdida, pedindo dinheiro a quem passava, pois não conseguia uma colocação devido a minha idade e por não ter referencias. O senhor levou-me para trabalhar em sua casa como governanta, acreditando apenas na minha palavra sobre os meus empregos anteriores. Nesta época fiquei sabendo que meu filho andava de caso com a pobre Polly. Ele arranjara alguém que o sustentasse entre uma jogatina e outra, quando as coisas iam mal.

Passei a visitá-la de vez em quando para ter notícias de

Charles. Ainda me sentia culpada por ele ter se transformado naquele tipo de homem. Numa destas visitas, contei sobre meu novo emprego e citei a senhorita Catherine. Só dei conta de meu erro, quando soube que ele estava flertando com ela. Comecei a ter medo do que poderia acontecer. Passei a ficar atenta às suas conversas, para saber até onde aquele infeliz poderia chegar. Dei graças aos céus quando soube que ela estava apaixonada pelo senhor e não por Charles. Temi por vocês quando os vi chegar naquela segunda feira, com a senhorita Catherine abalada pelo ataque sofrido. Polly me alertou sobre os planos de vingança de Charles. Ele enlouqueceu de vez. Por isso, após concluir este meu relato, pretendo ir até lá para tentar impedir que meu filho torne a cometer outro crime. Novamente, peço-lhe perdão por tudo de ruim que possa ter provocado. Sinceramente, Emma Palmer Chapman”

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XX

Levantei mais cedo que o de costume. Na sala, surpreendi-me ao ver Erik já sentado numa das poltronas, pensativo e preocupado. - Bom dia! O que houve? Má noite de sono? – perguntei. - Bom dia, Paul. Para dizer a verdade, ainda não consegui dormir. - Como assim? O que aconteceu? Por um momento, durante o relato de Erik, pensei se ainda não estaria dormindo e tendo um pesadelo. Custava a crer que tudo aquilo houvesse acontecido. Meu assombro foi maior quando ele contou do envolvimento da senhora Emma e pude ler a sua carta. - Que história!

É inacreditável! Você devia ter me avisado do bilhete. Eu

poderia tê-lo ajudado. Você poderia estar morto a estas horas e ninguém saberia. O miserável podia conseguir o seu intento. - Ontem, por um momento, pensei que não fosse vê-los nunca mais. Foi quando Emma me salvou. Preciso saber o que aconteceu a ela depois que saí de lá. Talvez ela esteja precisando de ajuda. Aquele tiro disparado... Os jornais certamente não darão notícia alguma a respeito, pelo menos hoje. Ainda é cedo.

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- Talvez se eu fosse até a polícia notificar o desaparecimento de nossa governanta? Certamente eles informariam alguma coisa. - Não, Paul. Eles vão achar muito estranha a sua preocupação só porque a governanta faltou um dia. De qualquer forma, acho que logo irão bater a nossa porta ao descobrir que ela trabalhava aqui. Não... - E, se eu for até Whitechapel, como quem não quer nada. Próximo ao endereço da tal Polly já devem estar comentando o que aconteceu. Se alguém perguntar o que estou fazendo lá, posso dizer que fui comprar algumas ferramentas para a nossa oficina. Um de nossos fornecedores mora lá, lembra? O senhor Nichols? - É. Quem sabe você tem razão. Eu posso ir também. - Acho melhor não. - O que os meus dois cavalheiros estão cochichando aí na sala? Levei um susto ao ouvir a voz de Catherine. Ainda não decidira se era o momento de contar-lhe sobre aquela tragédia toda. Olhei para Erik, sem saber o que fazer. Ele acabou por decidir. - Bom dia, querida. Estávamos definindo quem faria o café da manhã, já que a nossa governanta não está em casa. - Como assim? Será que ela saiu para fazer compras e esqueceu o café? Ela não está no quarto? - Já verificamos. A cama nem está desfeita. A sineta da porta da frente tocou naquele instante. Prontifiquei-me a atender. Deparei-me com uma rapariga magra e alta, de nariz adunco, cabelos ruivos e um sotaque irlandês ao falar:

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- Bom dia, senhor. Meu nome é Mary Ann Shell e vim a pedido da senhora Emma Chapman para substituí-la temporariamente. Tenho experiência no trabalho doméstico

e

trago referencias. Erik e eu nos entreolhamos.

Realmente Emma tinha planejado tudo para não sentirmos a sua falta. - Bom dia, Mary Ann. Por favor, entre. Paul... – chamado por Cathy, dei-me conta que estava obstruindo a passagem para a entrada da moça. - A senhorita sabe o que aconteceu com a senhora Emma e o que significa exatamente este “temporário” a que se referiu? – perguntou Catherine, preocupada. - Não, senhora.

Ela me procurou ontem à tarde e pediu-me para

oferecer

meus serviços até ela voltar, mas não falou nada sobre o motivo ou por quanto tempo seria. Nós nos conhecemos quando trabalhávamos na casa da baronesa de York. Reencontramos-nos a cerca de um mês. Ela estava tentando me ajudar a conseguir um emprego. - Está bem, Mary Ann. Venha comigo. Vamos conversar sobre o seu trabalho “temporário”. Vou mostrar-lhe a área de serviço e seus aposentos. Por aqui, por favor. Catherine e Mary Ann desapareceram ao atravessarem a porta da cozinha. - Que eficiência, não? Ela parece que previa não poder voltar tão cedo. - Pobre Emma. - Erik, que tal tomarmos café na cafeteria próxima a joalheria. Depois eu sigo para Whitechapel e você me aguarda na loja, entretendo a Catherine até a minha volta. Teremos que contar tudo a ela, mas será melhor que eu tenha mais esclarecimentos do que aconteceu. O que acha? - Combinado. Vou avisar Cathy e já volto.

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O movimento nas proximidades da rua Durward, 55 parecia normal. Ao chegar mais perto, percebi alguns bisbilhoteiros tentando olhar para dentro da casa, através das janelas. Como qualquer fuçador, aproximei-me e perguntei a um homem careca e mal vestido o que havia acontecido. - A “mocinha” que morava aí foi assassinada pelo amante. Parece que a polícia chegou a tempo de evitar que ele matasse uma outra mulher que viu o crime – ele falava sem me olhar, com os olhinhos miúdos e curiosos a tentar ver algo mais do que já sabia. - E o amante? – perguntei, quase cochichando. - A polícia matou. Os mortos ainda estão lá dentro esperando para serem levados. Daí tive a explicação do porquê da curiosidade. Apesar de a morte ser algo muito próximo no dia a dia daquelas pessoas, ainda assim exercia uma fascinação mórbida sobre elas. Pareciam pensar: “Desta vez, escapei...”. - Sabe o que houve com a mulher salva? - Acho que a polícia levou. Como ele continuasse com o olhar perdido além das vidraças da janela, segui meu caminho, em passo acelerado, para afastar-me logo dali. Já conseguira todas as informações que queria. O importante é que Emma não havia sido morta. Assim que foi possível encontrar um coche liberado, voltei para o nosso bairro, com grande alívio, por sair daquelas ruas insalubres e mal freqüentadas. Catherine estava apresentando nossos mostruários de broches de filigranas de ouro para um cliente, quando cheguei. Cumprimentei-os e fui direto para a

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oficina, ao encontro de Erik, que certamente estaria aflito aguardando minhas notícias. - E então, Paul? O que conseguiu? - Parece que o tiro que você ouviu foi dado pela polícia e acabou matando o nosso amigo.

Emma foi levada. Certamente para esclarecimentos. Ela deve

aparecer assim que puder. - Então, só nos resta esperar - a voz de Erik parecia aliviada. - Esperar o quê? - O cliente já foi? – perguntei, meio sobressaltado com a interjeição inesperada de Cathy. - Já!

Esperar o quê? O que vocês estão me escondendo? Desde hoje pela

manhã estão de segredos e cochichos. O que está havendo? Podem começar a contar. - Acho melhor você sentar-se. Não é uma história muito agradável – falou Erik, enquanto deslocava uma cadeira para que ela pudesse acomodar-se melhor e ouvir o nosso relato.

Ao terminar, Catherine parecia em choque. - Eu não estou me sentindo bem. É inacreditável. Nós estávamos em contato com um assassino perigoso e nem sabíamos. Notei que Erik pareceu desconfortável com aquela declaração de Catherine. Eu desconfiava que ele tivesse eliminado alguém na França, mas não tinha certeza. De qualquer forma, certamente ele teria tido os seus motivos. Podia imaginar o seu medo de perder Cathy, principalmente ao ouvi-la falar daquela maneira.

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- Quer que eu a leve para casa? – perguntou ele, visivelmente preocupado com a reação dela. - Não, Erik. Pode deixar.

Vou sozinha. Acho que vou caminhar um pouco.

Encontro vocês na hora do almoço. - Tem certeza? - Claro, meu amor. Não se preocupe - disse isso e levou a mão para acariciar o rosto dele. - Nos vemos no almoço, então – falou, retribuindo com um beijo na mão carinhosa. Ela arrumou-se e saiu logo em seguida. - Paul, precisamos conversar. - Sim? - Quero pedir a mão de Catherine. O anel já está pronto? - Acho que mais um dia e acabo. Porque a pressa? - Depois da noite de ontem, quando pensei que não ia vê-la nunca mais, decidi definir a nossa situação o mais rápido possível. - Ótimo! Como hoje é sábado e não atendemos a tarde, vou fazer hora extra e terminar o seu anel de noivado. Poderemos comemorar amanhã. O que acha? - Muito bom – apesar do sorriso nos lábios, notei certa insegurança em sua voz. Aliás, não via a hora de terminar aquele bendito anel. O desenho de Erik era muito peculiar e ficaria muito bonito feito em ouro e inúmeros brilhantes. Ele gastara uma pequena fortuna só com o material de confecção. Representava o

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símbolo do infinito, o “oito deitado”. Eu nunca tinha ouvido falar em tal simbologia, mas achei muito interessante pelo significado que a jóia teria. O corpo do “oito” seria formado por 5 hastes de ouro, com pouco mais de 1,0 milímetro cada, uma ao lado da outra, e pequenos brilhantes incrustados ao longo destas. Tudo isto soldado a aliança de ouro com 3 milímetros de espessura, de forma que, quando colocada no dedo da dama, o símbolo permaneceria deitado, transversalmente as falanges. Daria um efeito lindo na mão de qualquer mulher. Neste caso, na de minha irmã. Ele me fez prometer que não faria nenhum outro igual a este, o que era uma pena, pois se os cavalheiros mais abastados soubessem da simbologia inerente à aliança, nenhuma noiva ou amante deixaria de ganhar uma igual. Mas, tinha dado a minha palavra. Talvez daqui a alguns anos ele mudasse de idéia.

Não tínhamos muitos amigos com quem compartilhar aquele momento tão especial,

por

isso

o

noivado

de

Erik

e

Catherine

resumiu-se

a

uma

comemoração a três. Conseguimos manter tudo em segredo, até o momento em que Erik pediu a palavra, após o jantar, quando estávamos na sala, com a futura noiva a preparar-se para sentar ao piano. - Querida, antes de começar a tocar para nós, tenho um pedido importante a fazer a Paul. - O que seria este pedido, meu caro? – perguntei, simulando surpresa. -

Desde que vim para este país, tive a sorte de conhecer duas pessoas

excepcionais. A primeira foi Paul, que demonstrou ser, desde o início de nossa amizade, um homem de caráter, honrado e de grande coração e que tem sido o irmão que nunca tive. Mais tarde, veio Catherine, que me deixou, a princípio... exasperado, por sua aparição inesperada – disse isto com um sorriso

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jocoso – e, mais tarde, enfeitiçado por sua beleza e vivacidade, as quais não resisti e acabei me apaixonando. Foi na direção de Catherine, que já estava com os olhos marejados, pegou-lhe a mão e a beijou. Só então falou, dirigindo um olhar intenso e carinhoso para ela: - Paul, tenho a honra de pedir a sua irmã, Catherine, em casamento. - Erik, ter você como amigo e sócio tem sido uma grande honra. Agora, tê-lo como cunhado e irmão é a realização de um desejo há muito idealizado. O seu pedido está mais que aceito. - Catherine, com este anel quero, não só materializar o meu pedido, mas demonstrar a extensão de meu amor por você. Com estas palavras e um olhar probo e apaixonado direcionado a sua noiva, colocou a aliança em sua mão direita. Ela já não conseguia represar as lágrimas, que passaram a correr calmamente em seu rosto. - Erik, ela é linda... Foi você que desenhou? - Esta forma representa o infinito na matemática. Em suas mãos, representará o quanto eu a amo. - Ah, meu amor, te adoro! - Pode beijar a noiva.

Faz de conta que não estou aqui. Aliás, vou buscar a

champagne que adquiri especialmente para esta ocasião. Aquela foi uma noite inesquecível para todos nós. O casamento ficou combinado para o final do ano, o que seria em dois meses.

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XXI

Passados três dias do nosso noivado, Paul e Erik iniciaram as entrevistas com os candidatos a minha vaga na joalheria. Agora eu estaria ocupada em fazer o meu enxoval e não poderia ficar o tempo todo para atender aos clientes. Mary Ann vinha desempenhando suas funções de forma competente. Naquela manhã, eu estava a fazer a lista de compromissos a cumprir, quando soou a campainha. - Senhora Emma! - Bom dia, senhorita Catherine. Perdoe-me por importuná-la. Prometo que depois de hoje nunca mais me verão. - Por favor, Emma... Posso chamá-la assim? - Claro, senhorita. - Entre, por favor. Estávamos preocupados, esperando que a senhora retornasse a nossa casa. Erik queria muito saber de seu estado, depois de tudo que aconteceu. Paul, inclusive foi até Whitechapel para obter informações sobre o que teria ocorrido após a chegada da polícia. Infelizmente, soubemos do que aconteceu com Charles.

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- Ele teve o fim que procurava. Era meu filho, mas devo reconhecer que era de péssima índole. Jamais acabaria bem. Por pouco ele não acaba comigo, não fossem os policiais. Uma lágrima insistiu em correr pela face triste, enrijecida pelo sofrimento. - Todos nós lamentamos muito tudo isso. - Senhorita, na verdade eu voltei hoje para pegar o resto de minhas coisas que ainda ficaram aqui. Mary Ann está servindo bem aos senhores? - Sim, claro. É uma ótima moça. Mas para onde a senhora vai? Já tem outro emprego? - Enterrei o corpo de Charles ontem, depois que a polícia o liberou. Não cheguei a procurar nada.

Tenho alguns parentes distantes, que moram no interior.

Talvez precisem de alguém para ajudar nas coisas da casa, na roça. - Emma, não vejo motivo para que você vá embora. Tenho certeza que falo em nome de todos os moradores desta casa. O que aconteceu não foi culpa sua. Além do mais, é muito difícil arrumar uma governanta dedicada como você. Mary Ann poderá continuar e ajudá-la no serviço doméstico. A algum tempo, antes desta fatalidade toda ocorrer, já tínhamos discutido a necessidade de mais alguém para ajudá-la. - Oh, senhorita, é muita bondade, mas não tenho certeza se isto é correto. - Emma, eu li a sua carta e sei o quanto já sofreu. Por isso, não recuse a nossa oferta. - Nem sei como agradecer. Deus a abençoe. - Eu é que devo lhe agradecer por ter salvado a vida de Erik. Tenho uma grande dívida com você.

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- Eu não poderia deixar nada acontecer a ele, depois de tudo que fez por mim. Bem, senhorita Catherine, vou para o meu quarto preparar-me para o trabalho. Mais uma vez, muito obrigada. Pobre mulher. Certamente Paul e Erik concordariam com a minha atitude. Contaria tudo a eles na hora do almoço. Pouco antes de eles chegarem, a campainha tocou mais uma vez. “O dia hoje está movimentado” – pensei, ao abrir a porta e receber uma carta endereçada a Erik, originária de Paris, das mãos de um mensageiro. Depois que este se foi, fiquei a revirar o envelope, tentando imaginar o conteúdo da mensagem. O remetente era uma mulher. Annie Giry.

Quem seria ela? Pela

primeira vez tive real curiosidade pelo passado de Erik. Antes de o almoço ser servido, contei-lhes sobre a presença de Emma naquela manhã e a minha resolução de mantê-la como nossa governanta. A minha decisão foi totalmente bem vinda, bem como a própria Emma, quando surgiu para organizar a mesa de refeições. Mais uma vez, Erik agradeceu-lhe por ter salvado sua vida e prestou suas condolências. Decidi entregar a correspondência mais tarde, após a refeição. Ele me pareceu nervoso ao ver o nome daquela mulher. Pediu licença e subiu para o seu quarto para ler a carta. No fundo, senti-me rechaçada e magoada por ele ter preferido ficar só

para abrir aquele envelope misterioso. Eu não

fazia parte daquele canto obscuro na vida de Erik, o que me fez ter um pouco de ciúme. Eu o queria por inteiro. Talvez eu devesse conhecer toda a sua história, por mais escabrosa que ela fosse. - Em que está pensando esta cabecinha? Que idéias fantasiosas estão se passando aí dentro? É possível penetrar em seus pensamentos?

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- Ora, Paul. É claro que estou curiosa. O que você sabe sobre ele, Paul? Você sabe quem é essa Annie Giry? - É uma amiga de Erik. Não se preocupe. Eles não têm nenhuma ligação amorosa, se é isso que a está preocupando. - Não é bem essa a minha preocupação, Paul. É que estou me sentindo meio que excluída. É difícil de explicar. - Nós havíamos dito a ele que seu passado não importava, Cathy. Você vai mudar de idéia? - Ela tem razão, Paul - Erik! Ele vinha descendo as escadas silenciosamente e entrou na sala do piano. - Acho que chegou a hora de contar a vocês sobre o meu passado. - Porque isso agora? O que diz esta carta? - Ela é de Mme Giry. Você a conheceu, lembra? - Claro. Como ela descobriu o nosso endereço? - Através do banco onde deposito uma quantia mensal em seu nome, como eu havia lhe dito que faria. Annie está me avisando que Raoul está a caminho de Londres para resolver alguns negócios de família. - Mas o que pode acontecer? Tem medo de cruzar com ele por aí? Londres é muito grande, Erik. Seria muita coincidência encontrá-lo.

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- Ele sabe o seu nome. A nossa joalheria é muito conhecida nas altas rodas. Se ele souber da fama das jóias, talvez fique curioso em conhecer, ligando o nome à sua pessoa. - Alguém pode me explicar quem é esta pessoa de quem vocês estão falando? – falei, pois até aquele momento eu estava me sentindo um espectro, a quem não olhavam ou dirigiam a palavra. - Desculpe, querida, mas vou contar tudo a vocês. Todo este meu passado que continua a assombrar minha vida. Paul já conhece uma pequena parte desta história, pois ele foi um elemento importante num plano para proteger-me e resgatar a minha tranqüilidade para poder refazer meu destino. Erik foi até a porta da sala para verificar se realmente estavam a sós e se a porta estava bem fechada. Só então voltou a falar: - Por favor, sentem-se e, depois que eu terminar, façam o seu julgamento. Senti medo pelo que ouviria a seguir, mas consegui dizer-lhe: - Ninguém está aqui para julgá-lo, Erik. Só para compreendê-lo e ajudá-lo a virar esta página definitivamente. - Assim eu espero, Catherine. Assim eu espero. A partir daí, o homem que eu amava iniciou a narrativa da sua história. A história do Fantasma da Ópera, como ele próprio se autodenominou.

Estava penalizada, chocada e, ao mesmo tempo solidária com o narrador e a história que acabara de ouvir. Diversos sentimentos e sensações debatiam-se como as ondas do mar em rochedos durante uma tempestade. Este era

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exatamente o efeito que a descrição de Erik havia deixado em mim. O de uma tempestade violenta. Sentia a preocupação no seu olhar e o medo de perder o meu amor. Olhei para Paul, que parecia ter assimilado tudo sem maiores problemas. Dele vieram as primeiras palavras de apaziguamento para Erik. - Meu amigo, eu já esperava uma história de vida bem complicada, mas como havia sido falado antes, vou continuar aqui, ao seu lado, para ajudá-lo a virar esta página infeliz de uma vez por todas. Nada disso vai mudar o meu modo de encará-lo. Pode continuar contando com o seu amigo aqui. - Obrigado, Paul. Pode ter a certeza que jamais terá motivos para arrependerse dessa sua posição. Seu olhar novamente voltou-se para Catherine. Parecia relutar em perguntarlhe qualquer coisa. - Catherine? Demorei alguns segundos para encontrar as forças para responder-lhe, mas finalmente consegui articular as palavras: - Erik, eu ainda estou tentando colocar os pensamentos em ordem. Não está sendo fácil. Vou precisar de um tempo. Acho que vou para o meu quarto descansar um pouco. - Eu entendo. Aquele olhar terno e suplicante... Eu queria dizer que o amava, mas não conseguia. Não naquele momento. Talvez mais tarde, a sós. Saí da sala, sem olhar para trás. Subi as escadas olhando o meu “infinito”, que brilhava como um farol em minha mão, tentando iluminar a minha travessia. Ao

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fechar a porta de meu quarto, nem sei bem porque, joguei-me sobre a cama e comecei a chorar. Pensava em Erik, em seu passado atormentado e em nosso futuro. Precisava me controlar, voltar

à razão. Não podia deixá-lo só, abandonado.

Toda a sua vida tinha sido solidão. Eu tinha dado a ele a esperança de ter amor e cumplicidade. Não podia tirar isto dele. Não agora, quando o medo de ver sua vida arrasada novamente estava presente.

144

XXII

- Você não está pensando em fugir daqui? Está? – perguntou-me Paul, preocupado. - Parece que a história se repete. Pensei por um tempo que as coisas estavam estabilizadas, mas agora vejo que foi só por um curto período. Mesmo que Raoul não me encontre, sempre haverá a possibilidade de que outra pessoa me reconheça e me denuncie. Aqui ou em outro lugar da Europa. - Você está pensando em mudar de continente? - Talvez. É uma possibilidade. Lembra daquele comerciante de pedras que vive fazendo a rota para o Brasil? Lá tem um mercado de ouro, prata e pedras preciosas importante. É uma monarquia independente, pronta para ser explorada, com uma burguesia em ascensão, pronta para consumir produtos que os diferenciem das classes inferiores, entre estes indumentárias e jóias. Sem contar com a aristocracia local que deve sentir falta dos requintes das cortes européias. - O que você quer dizer com tudo isso? Está pensando em abrir uma filial das Joalherias Marback no Brasil? - Para ser mais preciso, no Rio de Janeiro, que é a capital do Brasil. Eu continuaria a mandar-lhe as minhas idéias para

a confecção de novas jóias.

145

Talvez pudéssemos adquirir materiais de qualidade a preços mais baixos. Eu passaria a ser nosso próprio fornecedor. O que acha? - Erik, como você consegue, em meio a todo este problema, visualizar uma saída estratégica, que ainda por cima poderá nos trazer lucros. Sem falar que continuaríamos nossa sociedade. - Exato. - Falando deste jeito, parece muito animador. Teria que pensar um pouco. - Não tenho muito tempo. A pessoa em questão deverá chegar em menos de 10 dias. Este será o tempo máximo que teremos para resolver minha partida e os negócios. - E Catherine? Você poderia esperar a data do casamento e partir depois. Senti um peso descendo sobre o peito ao lembrar-se da reação dela. - Isso se ela ainda me quiser. Não quero sacrificá-la numa aventura a um país distante, deixando-a longe de você e de tudo que ela mais aprecia. Por enquanto, não conte nada a ela. Não quero forçar nenhuma atitude impulsiva. Deixe-a resolver se ainda me ama como antes e se vale à pena ficar comigo nestas condições. - Ainda acho que você está sendo precipitado, mas posso entender o seu receio. - Não posso arriscar a perder tudo que conseguimos até aqui, Paul. Jurei a mim mesmo que não deixaria isto acontecer. - Está bem. O que você pretende fazer de imediato? - Soube que aquele mercador, de quem falei, está em Londres. Vou procurá-lo e obter mais informações sobre a situação no Rio de Janeiro e sobre os navios que partem da Inglaterra esta semana.

146

Despedi-me de Paul. Ainda olhei na direção do quarto de Catherine, na esperança de vê-la com uma decisão a nosso respeito, o que infelizmente não ocorreu. Consegui localizar o senhor Jackson

em um pequeno hotel em Southwark.

Conversamos muito a respeito de meus planos e suas palavras só serviram para fortalecer a minha convicção de que deveria partir naquela aventura. Ele poderia estabelecer ligações entre mim e os comerciantes locais a fim de que eu pudesse iniciar meu estabelecimento no Rio de Janeiro. Ele próprio estaria embarcando de volta ao Brasil dentro de uma semana, no porto de Southampton, a cerca de 110 quilômetros ao sul do país. Poderíamos seguir juntos, se eu realmente estivesse disposto a investir nesta idéia. Ele me forneceu nomes de outros conhecidos no ramo da ourivesaria, residentes em Londres, que poderiam informar-me melhor a respeito do Brasil e as vantagens de realizarem-se negócios por lá. Começava a ficar animado com a idéia de iniciar vida nova naquele jovem país. Seria melhor ter mais tempo para definir todas as questões, prós e contras de uma resolução como aquela, mas não tinha. Resolvi que o dia seguinte seria utilizado para alicerçar melhor meu plano, de forma a poder convencer

Paul

desta minha empreitada. Segui para casa bastante excitado com tudo que tinha ouvido de Jackson, mas com o coração apertado pela possibilidade de perder aquela a quem eu propusera amor infinito. Ao atravessar a porta da entrada, procurei em vão a presença de Catherine. Será que ainda estava recolhida em seus aposentos? - Senhor Erik? - Sim, Emma?

147

- O senhor Paul pediu-me que o avisasse que ia jantar fora esta noite. A senhorita Catherine não está

bem disposta e disse que não vai descer para

jantar. Posso servi-lo agora? Parece que estaria sozinho naquela noite. - Não,

Emma. Não se preocupe comigo. Estou sem fome. Mary Ann e você

estão liberadas por esta noite. Até amanhã. -

Posso ajudá-lo em alguma coisa? O senhor parece um pouco abatido. Se

precisar de qualquer coisa é só chamar que estarei ao seu dispor. - Obrigado por sua preocupação, mas realmente só estou um pouco cansado. Nada mais. Boa noite. - Boa noite, senhor.

Ao chegar ao primeiro piso, fui até a porta do quarto de Catherine. Ali fiquei parado alguns longos segundos, pensando se deveria bater e conversar com ela. Porém, faltou-me coragem para isso. Não queria forçá-la a nada. Finalmente, tomei a direção de meu sótão. Livre de meus trajes e de minha máscara, permaneci um bom tempo sentado junto a janela de meu quarto, vendo as luzes dos lampiões de Londres a flamejarem e a névoa começando a tomar conta das ruas. Enquanto isso, tentava tirar Cathy de minha cabeça e concentrar-me em todos os acertos que teria de fazer para poder partir dali o mais breve possível, deixando meu sócio em boa situação até organizar meu estabelecimento no Rio. O tempo era curto, mas intimamente sabia que havia grande chance de toda esta loucura dar certo. Fui subtraído de minhas reflexões, por uma batida leve na porta. Senti minha pulsação acelerar-se ao abri-la e deparar-me com Catherine, vestida apenas

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com uma camisola branca, ligeiramente transparente, parada a minha frente, corada como se estivesse febril. - Catherine! O que houve? Você está bem? - A-acho que sim. Posso entrar? – sua voz era tremula. - Não acho muito adequado. - Não estou preocupada com o que é adequado ou não. Só sei que preciso falar com você agora. Nestas últimas palavras, já parecia mais segura.

Entrou, fechando a porta

atrás de si. - Venha, sente-se aqui – falei apontando-lhe a poltrona onde eu estava sentado até a pouco e já puxando uma cadeira, de forma a ficarmos frente a frente. Porém, ela preferiu manter-se de pé. - Parece que sou sempre eu que o procuro para expor meus sentimentos. Às vezes isso me preocupa. - Meu bem, a pouco quase invadi o seu quarto para falar-lhe, mas desisti ao pensar que poderia estar forçando você a uma decisão prematura. Quis dar o tempo que você pediu, depois de ouvir minha lúgubre história, hoje à tarde. - Já tive tempo suficiente para pensar e decidir o que quero. Esta decisão está tomada há muito tempo. Desde o dia em que o conheci e tive certeza de que você era o homem da minha vida. Nada vai fazer mudar este sentimento dentro de mim. Não vou mentir e dizer que não fiquei chocada com o que ouvi. Por isso pedi um tempo para refletir sobre tudo. Nestas últimas horas, a admiração que tinha por você só cresceu, fortalecendo ainda mais o meu afeto. Você poderia ter se deixado levar por toda aquela loucura em que estava envolvido, mas não. Conseguiu lutar contra os piores sentimentos e sobreviver, libertando

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a pessoa empreendedora, amável e sensível que é hoje. Esta pessoa que eu amo mais que tudo. É este Erik que eu quero ter ao meu lado para sempre. - Cathy... Mal podia crer no que acabara de ouvir. A emoção tomou conta de mim. Enlacei-a em meus braços, estreitando-a junto a mim, inalando seu perfume e deixando o desejo

tomar conta de meus sentidos. Experimentei seus lábios

carnudos e macios, aumentando minha pressão sobre eles, sentindo o gosto e o calor de sua boca até ouvi-la gemer baixinho. Suas mãos me acariciavam ansiosas. As formas delgadas de seu corpo amoldavam-se ao meu, provocando uma onda de calor arrebatadora. Por um momento, tentei frear os anseios de possuí-la, mas fui barrado pelo seu olhar intenso que implorava para que eu continuasse, ao mesmo tempo em que deixava deslizar as mangas de suas vestes pelos ombros, deixando entrever seus seios perfeitos, de mamilos enrijecidos, exigindo carícias e beijos. Logo, a camisola deixou-se escorregar por inteiro, expondo o paraíso diante de meus olhos. Não podendo mais resistir, tomei-a nos braços e levei-a para o leito. Sentia seu corpo tremer de prazer, quando iniciei a exploração de seus contornos sinuosos com as mãos. Despido, pude unir pele a pele, brasa com brasa e terminar por possuí-la cuidadosa e completamente, em meio a gemidos,

suspiros e palavras de amor. Nunca

experimentara tais sensações, de um prazer indescritível, impossíveis de traduzir em palavras. Um torpor delicioso tomou conta

de meu corpo e de

minha mente. Caímos preguiçosamente, lado a lado, expressões serenas e agradavelmente cansadas. Abracei-a, para prolongar o prazer

de sentir

seu

calor e sua doce respiração junto a mim. Gostaria que aquele momento se eternizasse.

150

O dia amanheceu resplandecente. Sentia meu espírito rejuvenescido e pronto a enfrentar quaisquer dificuldades que pudessem surgir. Fiquei observando aquele belo rosto adormecido por um bom tempo, com medo de acordá-la e desfazer o encantamento. - Bom dia – falei

ao ver seus lindos olhos azuis abrirem-se de encontro aos

meus. - Bom dia, meu amor – cumprimentou-me com ternura – Já amanheceu? - Sim. - Talvez seja melhor ir para o meu quarto.

Não vai ficar bem o Paul ou a

Emma descobrirem que nós... Bem... Você não acha? – sua fala parecia a de uma menina travessa que acabara de roubar um doce. - Acho – disse, enquanto acariciava e afastava os cachos de seus cabelos que insistiam em cair-lhe sobre a face. - Com você me olhando desse jeito fica difícil. Faz-me pensar em bobagens. - Está bem. Tem razão. Não vai ficar bem para mim se a pegarem aqui. - Seu bobo – sorriu faceira e, enrolando-se nos lençóis pudicamente, foi procurar a camisola que deixara cair no chão do quarto, horas antes. Assim que a encontrou, vestiu-a e voltou ao meu encontro para despedir-se. - Nos encontramos no café? - Pode estar certa disso – falei, já retribuindo o beijo carinhoso que me oferecia. Apreciei cada passo seu até vê-la fechar a porta cuidadosamente, olhando para todos os lados, sorrateiramente, antes de sair.

151

Apressei-me em vestir-me para o café, a fim de encontrar Paul antes de Catherine. Eu lhe pediria que não contasse nada sobre meus planos para ela. Pelo menos por enquanto. Hoje teria a oportunidade de novos contatos para apaziguar as dúvidas de meu sócio. Se tudo desse certo, em 6 dias estaria partindo de Southamptom, a caminho de um país exótico chamado Brasil.

- Não há problema, Erik. Você vai buscar mais dados para embasar nosso negócio, enquanto vou para a joalheria com Catherine. Ficamos de receber os interessados na vaga de atendente e entrevistá-los hoje pela manhã. Ela vai ajudar-me nesta tarefa, pois ninguém melhor do que a antiga funcionária para avaliar os candidatos. - Sem dúvida. - Bom dia, rapazes! – cumprimentou-nos alegremente. - Ora, vejo que tivemos uma boa noite de sono. Está linda, minha irmã. - É... Deve ter sido a longa noite de sono. Pude ver suas maçãs do rosto corando-se intensamente, provavelmente ao relembrar a noite anterior.

152

Dois dias passaram-se e a minha certeza de que abriríamos um bom negócio no novo mundo só aumentara. Chegara a hora de contar a Catherine sobre meus planos. Reunimos-nos naquela noite, como sempre, após o jantar. - Cathy, você sabe que está para chegar a Londres uma pessoa que pode me reconhecer e arruinar tudo o que conquistei até aqui. - Sim... - Bem. Desde que soube disso, eu venho pensando numa maneira de evitar que isto ocorra a qualquer custo, pois além de prejudicar-me fatalmente, acabaria com a sociedade que tenho com Paul. Infelizmente, não posso continuar a viver na Inglaterra ou em outro país europeu, pelo maior risco de ser encontrado e caçado neste continente, já que as pessoas que mais me odeiam são da nobreza e, portanto, pessoas com livre trânsito

nos países em questão. Não

quero arriscar nada. Por isso, a melhor saída mostrou-se como sendo a ida para o Rio de Janeiro, no Brasil. - Brasil? – perguntou espantada. - Sim... Brasil. Lá teremos, não só o esconderijo ideal, mas também uma opção de mercado para as Joalherias Marback. Talvez um pouco precocemente, mas com perspectivas muito grandes de expansão. Lá existe a matéria prima e mão de obra a custos menores que aqui. Além disso, existem rotas de navegação quinzenais que ligam o Brasil à Inglaterra, facilitando a comunicação entre os dois países. Eu poderia continuar enviando meus desenhos para Paul, mantendo a criação de jóias exclusivas, além de eliminar os intermediários na compra de vários elementos como ouro, prata e pedras preciosas. O próximo navio rumo ao Rio de Janeiro sai dentro de quatro dias, do porto de Southamptom.

153

Catherine permanecia estática em sua poltrona, com o olhar perdido, provavelmente imaginando os horrores que poderiam aguardá-la em um lugar, considerado selvagem, como a América do Sul. - Cathy, você não é obrigada a vir comigo. Podemos nos casar antes de minha partida e combinar o meu retorno a cada três ou quatro meses. - Três ou quatro meses? - Cathy, muitos casais vivem assim. Não é o ideal, nem o que eu gostaria, mas infelizmente não tenho alternativa melhor. Sinto muito ter que colocá-la nesta situação de escolha mais uma vez. - Você prefere que eu fique aqui com Paul? - Não, claro que não. Você sabe como eu a amo e como seria penoso para eu ter que me separar e vê-la esporadicamente. - Então, está resolvido! - Como assim? O que quer dizer? - Você não pensou que fosse se livrar de mim tão fácil, pensou? – disse, olhando-me de um jeito malicioso. - Catherine... Você caiu diretamente do Céu para a Terra. - Além do mais, sempre sonhei em realizar uma aventura como esta, numa terra distante. Vai ser maravilhoso satisfazer este sonho com você ao meu lado. Dizendo isto, selou meus lábios com um beijo caloroso, para desconcerto de seu irmão.

154

XXIII

No dia 31 de Outubro de 1872, embarcávamos no navio a vapor “Douro”, da Royal Mail, com escalas em Lisboa, Madeira, São Vicente, Pernambuco e Bahia, e finalmente no Rio de Janeiro. Era um navio imponente, equipado com uma única hélice e com chaminé inclinada. Seu casco era de ferro, com dois mastros com velas auxiliares. Ele fazia esta rota desde Dezembro de 1864, sendo muito seguro. Paul acompanhou-nos até Southamptom para o embarque. Infelizmente ele não estaria presente em nossa cerimônia de casamento. Catherine e eu havíamos resolvido pedir ao Capitão Kemp, comandante do “Douro” que realizasse nossa união a bordo do navio, durante a viagem. Em meio a acenos, lágrimas e o som ensurdecedor do apito do grande vapor, partimos rumo ao Rio de Janeiro, com a esperança

de que em breve

pudéssemos enviar boas notícias para Londres. Olhei mais uma vez para a minha amada Cathy, como o faria ainda por milhares de vezes, com a brisa marítima a bater em meu rosto, pensando que agora finalmente o medo desaparecera e o novo Erik assumia uma nova existência. O Fantasma finalmente era sepultado. Não nos porões da Ópera, mas em pleno alto mar.

155

“Que descanse em paz”.

FIM

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CARTAS Carta de Mme Giry para Erik: “Meu caro Erik, Consegui o seu endereço com o gerente do Banco da Inglaterra, através do qual tenho recebido a sua generosa mesada há 6 meses. Gostaria que soubesse que relutei em aceitar estes francos, pois não temos dívidas entre nós. Logo estarei estornando os próximos depósitos para sua conta. De qualquer forma, quero prestar contas do que fizemos com o dinheiro utilizado. Com ele, Meg pôde alugar um local melhor e amplo para a sua escola de dança, que por sinal tem cada vez mais alunas. Quanto a mim, continuo meu trabalho no “Folies Bergére”, que está fazendo muito sucesso entre os cavalheiros da alta sociedade, o que se refletiu em minha remuneração. Sendo assim, agradeço-lhe de coração sua preocupação com nossas finanças, mas garanto que sua ajuda não será mais necessária. Espero que me perdoe por invadir sua privacidade, mas precisava avisar-lhe sobre um acontecimento que poderá por em risco a sua segurança. O fato é que Raoul

fará uma viagem a Londres no próximo dia 3 de Novembro, para

tratar de negócios de família. Irá sozinho, já que Christine encontra-se a cuidar de seu filho de 3 meses, Gustav. Receio que ele o reencontre acidentalmente. A polícia francesa suspendeu todas as buscas, depois da notícia da morte do “Fantasma”, mas persisto temerosa de que alguém o reconheça, desconfie do embuste e o denuncie, reabrindo, assim, o processo judicial.

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A par de tudo isto, quero que saiba que desejo imensamente que você tenha encontrado a paz interior que tanto almejava. De sua amiga, Annie Giry”

Carta de Erik para Mme. Giry, enviada 6 meses após sua ida para o Brasil: “ Minha cara Annie, Venho por meio desta tranquilizá-la sobre minha atual situação. Sinto não ter escrito antes para agradecer-lhe sobre seu aviso a respeito da visita de Raoul. A partir de sua carta, fui obrigado a tomar decisões desesperadas, que acabaram por determinar uma venturosa mudança em minha vida. Como pode ver pelo selo desta missiva, estou residindo na capital do Brasil, Rio de Janeiro. Vim para cá com minha esposa, minha amada Catherine, irmã de Paul Marback, para iniciar uma vida nova. Estou dando continuidade à sociedade que comecei com Paul em Dover, no ramo da ourivesaria, expandindo nosso negócio, que a cada dia torna-se mais rentável e próspero. Aqui, estamos construindo um verdadeiro lar, que em breve terá mais um membro. Catherine e eu aguardamos o nascimento de nosso primogênito, com muita alegria. Este jovem país tem se mostrado um lugar surpreendente em todos os sentidos. Espero que você e Meg encontrem-se bem e que saibam que tem em mim um amigo leal, sempre pronto a ajudá-las no que precisarem. De seu amigo, Erik”

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