Ensaio O Pintor De Retratos

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Fundação Universidade Federal do Rio Grande - FURG Departamento de Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Letras Mestrado em História da Literatura Disciplina: História e Literatura Professora: Drª. Núbia Jacques Hanciau

O pintor de retratos de uma época em transformação José Antonio Klaes Roig *

Introdução A novela O pintor de retratos, do escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, traça um painel artístico, histórico, político e cultural de um período de grandes transformações, tanto na história e literatura, como na pintura e fotografia, ocorrido entre o final do século XIX e o início do século XX. O autor, com uma narrativa concisa, aborda tais transformações sociais, mesclando figuras reais com personagens fictícias, em que o pintor de retratos italiano, Sandro Lanari, depois de tentar a sorte em Paris, acaba por vir ao Rio Grande do Sul, em busca de uma nova vida, e involuntariamente torna-se fotógrafo-retratista. A fotografia na novela de Assis Brasil serve como a metáfora da transformação da sociedade agrária gaúcha para o modelo industrial, e o confronto entre a civilização européia, responsável pelos avanços tecnológicos, e a barbárie, personificada na Revolução Federalista, conhecida também como a da Degola, em que Sandro Lanari, personagem principal do enredo, terá uma participação emblemática ao capturar em uma fotografia o instante brutal, por ele batizado de a Foto do Destino. Destino esse que lhe trará muitas surpresas. * Mestrando em Letras/História da Literatura. FURG 2007/2008.

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Do mito a humanidade: história local versus história universal Embora os descaminhos futuros, Sandro Lanari nasceu pintor. Seu pai era pintor, seu avô também fora, e assim por anteriores seis gerações, todos foram pintores. 1

Luiz Antonio de Assis Brasil, ao declarar em entrevista de que “[...] O mito é revisitado para se descobrir sua humanidade” 2, talvez queira mostrar que a própria história idealiza demais seus personagens reais, podendo a literatura fazer o caminho inverso ao dar a seres míticos uma personalidade humana, e menos glorificada. Se a história é o pano de fundo de seus escritos, e, em especial, do livro O pintor de retratos, humanizar uma personagem glorificada é promover nas entrelinhas sua desmistificação. E desse diálogo constante entre o escritor e o leitor surgem diversas possibilidades de leituras de uma obra de arte, que não se deve propor jamais ser histórica, sob pena de deixar de ser literatura, como decretam os teóricos. A história de O pintor de retratos, dividida em quatro partes, é o retrato de uma época de consideráveis transformações científicas, filosóficas, históricas e literárias. E a passagem da pintura para a fotografia, expõem indiretamente a mudança de civilização, da naturalista para a mecanicista. Em que o homem cederá mais e mais seu lugar na sociedade industrializada para a máquina. Na primeira parte, conta a história de Sandro, que nasceu pintor por que era o destino de sua família seguir a tradição dos Lanari. Mas os tempos eram outros, e os pintores vão cedendo lugar para os retratistas. Assim com o teatro cederá espaço ao cinema, que perdeu espaço no século XX para televisão, que enfrenta a concorrência da internet, e assim vai. A cada revolução industrial, e um novo mecanismo passa a ser o centro das atenções. É a mecânica da sociedade. O jovem pintor, nascido na pequena cidade italiana de Ancona, apaixona-se por uma modelo de seu pai Curzio, chamada Catalina, que o esnoba. Iniciado nos ofícios da família, Sandro começa a pintar. Seu pai o encaminha a Paris, com algumas economias, para trabalhar com um artista conterrâneo. Mas em Paris, descobriu que ao invés dos pintores, famoso era o fotógrafo Nadar, que tinha, segundo alguns, elevado a fotografia ao status de arte superior. A foto de Sarah Bernhardt torna-se ícone daquele tempo. Lanari vem a conhecer pessoalmente 1 2

ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Porto Alegre: L & PM, 2005, p. 11. ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Entrevista. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, sábado, 02 jul. 1993, p. 6.

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Nadar e até posar para o mesmo, mas dias depois ao receber pelo correio a foto, é tomado de ódio, não somente por Nadar, mas por todos os fotógrafos-retratistas, já que não se reconhece naquele retrato. Acaba, em crise, decidindo viajar para o Brasil, em busca da terra prometida. “Lá abaixo, na metade inferior do planeta, ficava o Rio Grande do Sul, a selva que nunca teria escutado o nome de Nadar. 3 Na segunda parte do livro, Lanari desembarca no cais de Porto Alegre, com todos os seus apetrechos de pintor, mais o livro inseparável de Cenino Cenini, que seu pai lhe deu de presente. Espanta-se com a quantidade de negros na rua, confundindo-os com maometanos. Acaba se instalando na Pensão Itália, de um compatriota, localizada no coração da cidade, a popular e conhecidíssima Rua da Praia. Na sala da pensão há um retrato de Garibaldi, o Herói de Dois Mundos. Lanari, um forasteiro em terra estrangeira aprende a se moldar ao local e suas idiossincrasias para não chamar a atenção. “No terceiro dia não o notavam mais”. 4 Não demora e Lanari descobre que em Porto Alegre já havia outro pintor de retratos, chamado Alcides, considerado por ele inofensivo e primário. Porém, logo vem a saber que a cidade está repleta de fotógrafos-retratistas, em sua maioria italianos como ele. Como todo europeu, tinha uma visão estereotipada do país, pois “Julgava que no Brasil a fotografia não fosse desenvolvida”. 5 O mito do bom selvagem que perdura até hoje impede que a metrópole enxergue a periferia. Desgostoso com a monotonia da cidade e sua arquitetura portuguesa, coloca um anúncio em jornal fazendo propaganda de si mesmo. “E ele, Sandro, era um artista que trazia nas costas a Europa e seus séculos de civilização”. 6 Um dia, passeando pela cidade encontra uma adolescente com incrível semelhança com o retrato de Sarah Bernhardt. “Chamou-a de Sarah, embora sua homônima fotográfica fosse bem mais bonita”. 7 Devido a pintura de um retrato do Bispo da cidade vira celebridade. Num dos encontros seguintes com o religioso há um diálogo interessante, em que o Bispo compara a pintura feita por Lanari ao retrato tirado por Carducci, um fotógrafo italiano destacado na cidade, em que o mesmo conclui: “Estive pensando (...) até que ponto é lícito intervir na representação do homem, que é feito à imagem e semelhança de Deus?” 8; referindo-se aos retoques á imagem pintada e fotografada por ambos, que não são de fato a imagem real e sim uma representação. Em crise, passa a refletir 3

ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Op. cit., p. 48. Idem, p. 52. 5 Ib idem, p. 53. 6 Ib idem, p. 55. 7 Ib idem, p. 56. 8 Ib idem, p. 61. 4

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sobre o ato de criação: “Aqueles retoques eram o símbolo da mediocridade. Nadar jamais fizera retoques na imagem e semelhança de deus. Nadar era único” 9; concluindo que “Ele, Sandro Lanari, sim, melhorava os modelos. Mas enfim, ele se constituía da mesma podre matéria de Carducci”. 10 No velório de um pintor paisagista, acaba conhecendo pessoalmente o fotógrafo Carducci. Da conversa entre ambos, algumas farpas do fotógrafo ao chamar o defunto de artista e comentar que as pessoas estavam, preferindo a fotografia à pintura, pelo fato que esta tornara-se cara. “E no século do telégrafo e da locomotiva as pessoas têm pressa”. 11 Em resposta, Lanari alfineta, contra-argumentando que “A fotografia apenas capta um instante do fotografado. (...) O retrato pintado, pela observação demorada que o pintor faz do caráter do retratado, só esse retrato produz toda a verdadeira psicologia do modelo”. 12 Ao que Carducci rebate dizendo que essa fidelidade a realidade só existe “se o artista assumir toda a estrutura moral do retratado”,

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e que se assim for, ele prefere a fotografia à

pintura, pois haverá sempre o distanciamento entre o retratado e o retratista. Sandro Lanari ao receber convite de um advogado influente opositor do Presidente do Estado, e apreciador das belas artes, para morar de graça em sua casa, logo vem a descobrir que a idéia deve ter partido da moça que o impressionara antes por ser a sósia de Sarah Bernhardt. Todavia, apesar da incrível semelhança, “enjoava-o à morte o sutil mas real cheio de cavalariça que emanava das roupas de Violeta”

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; e apesar desse desconforto, Lanari

“Passou a fantasiá-la perfumada, recém-saída do banho, envolta na veste romana, como no retrato de Nadar”. Desconforto e idealização comprovam a intenção do autor em mostrar que a personagem principal da novela, mesmo que integrando-se cada vez mais à sociedade e sem paulatinamente aceito por esta, mantém no seu íntimo o apego às tradições do Velho Mundo e seus referenciais. Em sua errância, continua sendo o estrangeiro a olhar para aquele povo com os mesmos olhos de quando estava na Europa. Como não poderia deixar de ser, em se tratando de uma novela, cujo personagem tem uma admiração por um retrato de Sarah Bernhardt que toma vida num clone, no outro lado do oceano, o envolvimento dos dois acontecerá ao natural, ainda mais que os quartos de ambos ficam um de frente ao outro. E o inevitável acontece e o tempo passa.

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Ib idem, p. 62. Ib idem, p. 62. 11 Ib idem, p. 70. 12 Ib idem, p. 70. 13 Ib idem, p. 71. 14 Ib idem, p. 74. 10

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Por conta de surpreendente autorização conseguida pelo pai de Violeta, ferrenho opositor do governo, Sandro Lanari é contratado para pintura do retrato de Júlio de Castilho, Presidente do Estado. Da narrativa de Assis Brasil há breves e efetivas pinceladas sobre o que era a política, a história e a cultura do Rio Grande do Sul naquele tempo: O Presidente, um insone, exigira iniciar o trabalho às seis da manhã “para não perder tempo com essas frivolidades artísticas”. Sandro abominava o horário. Seus dedos enregelados não comandavam os pincéis. O Presidente lia jornais enquanto posava. Riscava marcas a lápis vermelho nas matérias da Oposição. Era baixo, inflexível, e o cabelo rapado davalhe um certo tom militar. Era adepto de Auguste Comte. Meio gênio, redigira sozinho a Constituição do Estado, a primeira e única constituição positivista do mundo. Tinham como certo que ele se eternizaria na Presidência, pois doutrinava que as funções de governo eram destinadas aos melhores. 15

Política lembra, de certa forma, o ato de posar e defender uma imagem pública que nem sempre é o retrato fidedigno da realidade privada. Entrementes, na opinião do Presidente, ocorre justamente o oposto, quando reclama que “Por mim, mandaria fazer uma fotografia. É mais rápido, custa menos e é autêntica. Sob esse prisma, a fotografia pode até ser autêntica a pose, não ao homem, enquanto a pintura pode retratar nuances e tons em claro-escuro do objeto retratado que a fotografia, por ser instantânea, não consegue capturar. O próprio ato de deixar-se posar permite ao pintor ─ mais do que ao retratista, pelo tempo maior de exposição ao olhar do artista ─, a percepção de detalhes de mudança de comportamento, enquanto o modelo está em um estado de suspensão de suas atividades normais. Ao final da segunda parte do livro, Sandro precisa fugir da casa do advogado, pois este deseja matá-lo. Aconselhado por Antonia, meretriz da rua dos Pecados Mortais, foge pelo rio até a cidade de Rio Pardo. Na terceira parte de O pintor de retratos, Sandro Lanari, ainda pintor e agora fugitivo da ira do pai de Violeta que descobri seu envolvimento afetivo, viaja de barco pelo rio Jacuí em direção a cidade de Rio Pardo. Se em Porto Alegre, que acabara por acostumar-se, já tinha restrições, viver como fugitivo, sem nenhum conforto, no interior do Rio Grande do Sul era uma nova dolorosa experiência para o pintor. Três meses se passam e Sandro sonhava, ora com Violeta, ora com o retrato de Sarah Bernhardt. Trouxe consigo o inseparável livro de pinturas de Cenino Cenini. Em troca do pagamento da pensão de dona Moça, pinta em três dias seu retrato, deixando-a “com dez anos a menos, e com um chapéu francês. Era um retrato

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Ib idem, p. 91.

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rude, sem verniz, mas o acharam ‘bem parecido’, embora não fosse mais do que isso”.

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Por

causa disso, torna-se famoso no bordel. Em uma noite foi acordado por um freqüentador do bordel, que veio lhe pedir para pintar seu pai morto, um coronel, como eram chamados os estancieiros no Rio Grande do Sul. O inusitado e paradoxal da situação era que, segundo o filho, “(...) o defunto odiava fotografias, pois as pessoas lhe pareciam mortas. Os parentes não queriam que ele partisse levando a lembrança de sua figura. Mas queriam-no vivo, para que o enxergassem pendurado num prego”.

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Interessantíssima construção narrativa, passível de diversas interpretações,

como a de que a fotografia, pela sua instantaneidade não traz a emoção que uma pintura provoca. Um retrato de Mona Lisa ladeado por uma fotografia de La Gioconda ─ se isso fosse possível ao tempo de Leonardo Da Vinci (embora isso ele tentara inventar 18) ─, mostraria que a fotografia seria um instantâneo histórico da musa de Da Vinci, enquanto o quadro, como uma obra-prima inigualável por nenhum retratista que não seu autor, é passível, até hoje das teorias mais mirabolantes, dentre elas de que seja o auto-retrato de Leonardo, por exemplo. O que corrobora com a impressão de que fotografia está para história, como a pintura para a literatura. Se o primeiro par busca com sofreguidão retratar o verídico, o instantâneo, o real; o segundo, ao contrário, utiliza-se da realidade como pano de fundo para retratar fatos imaginários, que, embora fictícios, poderia ter acontecido ou vir a acontecer, mas que só existem no universo mágico criado pelo pintor em sua tela e o mundo diegético criado pelo escritor em seu livro. Só existem enquanto arte. E só enquanto arte tem significado, inclusive, quando fito para contestar ou criticar a realidade, de fotógrafos e historiadores, que reproduzem instantes, que não podem nem devem ser a expressão do todo. Outros retratos foram solicitados nas redondezas pelos moradores, e a cada descrição do autor estão ali presentes os arquétipos dos habitantes do Rio Grande do Sul, estancieiros, matronas, políticos, novos ricos, viúvas e outros personagens típicos do Sul do Brasil, acabando por tornar-se artista ambulante. Nessa trajetória, de estância em estância vai conhecendo o Estado, ouvindo notícias de uma possível revolução E por onde passa o pintor de retratos vai colecionando paixões fugazes.

16

Ib idem, p. 104. Ib idem, p. 105. 18 Por volta de 1554, Leonardo Da Vinci descobriu o princípio da câmera escura: a luz refletida por um objeto projeta sua imagem no interior de uma câmera escura a partir de um orifício para a entrada da luz. Baseados nesses princípios, os artistas simplificaram o trabalho de copiar objetos e cenas, entrando dentro de câmeras para apreciar e apropriar-se da imagem refletida em uma tela ou um pergaminho preso na parede oposta ao orifício da caixa. In: Esko Männikkö e a linguagem fotográfica. Disponível em: . Acesso em: 06 mar. 2008, p. 3. 17

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Após três anos da sua fuga estoura a Revolução de 1893, que irá marcar por completo sua viagem e vida. É um momento histórico que ainda hoje divide historiadores, em vista de que tanto a Revolução Farroupilha como a Federalista de 1893 ─ mais conhecida como a da Degola, pela maneira que eram executados os inimigos sem fazer prisioneiros ─, tiveram momentos de barbárie. O próprio uso do termo Revolução, que remete a intensa participação da população, é discutível, já que ambas formam movimentos organizados por estancieiros, representantes da oligarquia política sul-rio-grandense contra o poder oficial, do Império, no primeiro levante, e do Estado do Rio Grande do Sul e seu Presidente, com poderes ilimitados. Entretanto, a de 1835 foi glorificada, mitificada e idealizada na historiografia oficial pelos mesmos que, partidários do castilhismo-borgismo e do positivo adotado por ambos, e vencedores na encarniçada guerra fratricida, elegeram a revolta contra Júlio de Castilhos, como algo a ser varrido dos livros de História, ou quando muito mencionada de forma depreciativa. Tal atitude terá reflexos inclusive na literatura gaúcha, que glorificará a Revolução Farroupilha e tecerá sobre a Federalista um painel de sangue, violência e barbárie, como de fato o foi, e em quantidade superior a dos Farrapos, mas não tão diversa como a maioria das guerras o são. Emblemática é a opinião do historiador militar Emilio de Souza Docca que silencia sobre um aspecto relevante da historiografia sul-rio-grandense, que trata da revolta de federalistas contra ditadura científica (e positivista) de Julio de Castilhos, riscando-a do seu livro História do Rio Grande do Sul.

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Cabe esclarecer que Souza Docca era positivista e

simpatizante do castilhos-borgismo, como muitos homens das letras de sua época, que foram responsáveis pela elaboração discursiva, em prosa e/ou verso, de exaltação da Farroupilha e do banimento (ou redução da importância) da Federalista dos livros de História. Alheio a tudo isso, o italiano Lanari, em suas andanças pelo Rio Grande, resolve desfazer-se do inseparável Il Libro dell’Arte, de Cenino Cenini, jogando-o num arroio, como forma de demarcar a nova vida, dizendo: “Vai-te, petulante, que não tens nenhum valor nesta parte do mundo”.

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Numa prova inequívoca de que s valores do hemisfério Sul são

radicalmente diversos do Norte. Não demora e o pintor de retratos encontra pelo seu caminho a tal Revolução, ficando no olho do furacão político e militar que irá dividir novamente o Rio Grande do Sul.

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TREZZI, Humberto. A degola como vingança. In: Memorial da Barbárie. Caderno de Cultura, Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 02 nov. 2002, p. 5. 20 ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Op cit., p. 118.

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Enquanto no Sul impera a barbárie, banalizada culto a valentia e machismo, na Europa Rodin, Debussy, Nadar e outros tantos dedicam-se a atividades criativas e civilizadas, em contrapartida com o desolador panorama no pampa gaúcho. Encontrado por uma tropa ─ a Quinta Unidade Legalista ─ que conduz um prisioneiro amarrado, Sandro é confundido pelo sotaque com um argentino. Ao saberem que é pintor italiano, é levado ao acampamento onde o “marechal” Praxedes lhe pergunta se sabe mexer numa rústica câmera fotográfica confiscada do inimigo, que fora degolado. Graças às conversas com Carducci, Lanari lembra-se em parte das técnicas fotográficas, e por experimentação e erro acaba obtendo algumas fotografias satisfatórias, tendo como modelo os próprios soldados. Tornado fotógrafo oficial da tropa, ainda que de forma forçada, o pintor de retratos começa a perceber que “Os oficiais queriam fotografar-se a toda hora, dizendo que talvez fosse á última foto da vida” 21, o que remete ao valor histórico que terá a fotografia desde seus primórdios. E o interessante, na ótica de Lanari é que “Os oficiais tornavam-se crianças ao ver a foto, riam e apontavam. Difícil imaginar que praticassem atos tão desumanos” 22, numa alusão, quem sabe, que o autor faz ao mito do bom selvagem. O que reforça tal opinião, quando o narrador onisciente retrata em seu foco ampliado que “Como se oferecessem para pagar ─ eram desalmados, mas honestos ─, Sandro aceitou, e acrescentava mais moedas no bolso”.

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Desalmados, ou melhor, sem alma, também eram considerados os

índios levados por Montaigne a Europa, dando suporte ao mito do bom selvagem do Novo Mundo, vivendo alheio à civilização, que terá sua representação no Velho Mundo. E o movimento contrário, da adaptação do civilizado à barbárie é demonstrada na descrição feita a seguir de Lanari: Quem o visse meses mais tarde, não o reconheceria com aquela barba e as duas cartucheiras de bandido atravessadas ao peito. Deram-lhe um fardamento pela metade, um poncho e o posto de capitão honorário. Como passasse a usar o chapelão militar, largou o panamá sobre uma pedra. Dois cães o disputavam numa briga colossal. Rolavam pelo chão e levantavam poeira. O panamá ficou em frangalhos. 24

E ainda que não se intenção do autor, tal descrição da aculturação inversa do civilizado pelo bárbaro remete por parte do leitor de uma novela ambientada em um conturbado período histórico diversas interpretações. A mudança radical de vestimenta e de hábitos, do chapéu 21

Ib idem, p. 125. Ib idem, p. 125. 23 Ib idem, p. 125. 24 Ib idem, p. 126. 22

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panamá para o chapelão militar e o aspecto fotográfico de bandidão, aliado a figura simbólica de dois cães furiosos disputando um símbolo de civilização que jaz em frangalhos, remete à imagem do monumento erguido à memória de Julio de Castilhos, em 1913, na Praça da Matriz, em Porto Alegre, em que o “bárbaro togado” 25 é encarado por um dragão com feições de cão. O irônico é saber que “Júlio de Castilhos morreu em agosto de 1903, durante uma cirurgia da garganta. Nunca anistiou os vencidos”

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. A garganta, por ironia do destino ou

simples fatalidade, foi a região da anatomia humana utilizada pela Degola, como ficou conhecida a revolta contra o governo centralizador de Castilhos, e o mais irônico em tudo isso é que tal prática foi usada indiscriminadamente por ambos os lados da disputa, entre federalistas (maragatos) e pica-paus castilhistas (chimangos). Não se pode aludir a essa dicotomia a intenção de Assis Brasil em colocar o público e notório degolador maragato Adão Latorre, em sua trama como um castilhista. Porém, tal fato dá margem a diversas elucubrações. Em sua filosofia da composição de O pintor de retratos o autor abre espaço para diversas discussões entre atos e práticas civilizatórias e bárbaras. O próprio termo bárbaro, em sua origem era designação de estrangeiro e não necessariamente um invasor violento. De certa forma, etimologicamente, por mais paradoxal que seja, Lanari poderia ser considerado era um “bárbaro” civilizado entre bárbaros incultos. É o que deprecia o próprio pintor de retratos, acostumado ao uso das tintas e colorações: “Para ele, a revolução era um embate de lenços brancos contra vermelhos”

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sem maiores nuances que não as cores

em disputa. É naquela errância pelo interior do Rio Grande do Sul, em sua história local, que vai aos poucos descobrindo o sentido da própria vida. Sem remorsos, constatou que a pintura não era forte em seu espírito, tanto que a abandonara como se nunca a tivesse praticado. Aquilo era coisa de Curzio, que o obrigara a ser pintor. Mas o que ele, Sandro, na verdade queria? Era um menino, em Ancona, e naquele tempo, o mais importante era Catalina. E fizera uma mistura tremenda. Dois homens o habitavam: aquele que pintava e o Outro, que precisava seguir a obscura vida. 28

E é nessa alteridade que o pintor de retratos descobre que a pintura era uma imposição familiar, hábito comum àquela época dos filhos seguiram a profissão dos pais, gostassem dela ou não. 25

TREZZI, Humberto. Castilhos e os republicanos. In: Memorial da Barbárie. In: Caderno de Cultura, Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 2 nov. 2002, p. 5. 26

TREZZI, Humberto. Op. cit., p. 5. ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Op. cit., p. 126. 28 Ib idem, p. 127. 27

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Naquele mundo em guerra, o papel de Sandro era de registrar via fotografia a campanha da tropa que pertencia, para o resultado ser enviado ao Presidente do Estado. E é nesse contexto que torna-se irremediavelmente um fotógrafo ao registrar o que depois intitularia de a Foto do Destino: momento em que o degolador Adão Latorre corta o pescoço de um prisioneiro. Momento em que, a exemplo da imagem no obturador é vista pelo fotógrafo de forma invertida, a posição de Lattore no sangrento confronto também está inversa ao que os livros de História demonstram. Afinal, a Quinta Unidade Legalista, a qual Sandro Lanari prestava serviços de fotógrafo era tropa a serviço do regime castilhista, que tinha no maragato Latorre um opositor. Nessa exposição entre o negativo e o positivo fotográfico e o fato histórico, através da literatura, eis um pequeno enigma que Assis Brasil brinda ao leitor. Traumatizado e tendo pesadelos constantes com a degola capturada em retrato, Lanari pede ao major Praxedes para ir embora, alegando falta de material fotográfico, o que é aceito, desde que deixe as fotografias com ele. Ali também, ao partir, numa simbologia habilmente construída pelo autor, mostra o rito de passagem do Lanari pintor para o fotógrafo, fruto do meio em que vive. “(...) Deixava para trás sua vida de pintor. Tudo ficara sobre uma coxilha. A primeira geada do ano recobriria a maleta dos pincéis. A chuva, ao penetrar a caixa de cartolina das aquarelas, dissolveu e misturou as cores, criando um arco-íris que foi aos poucos absorvido pelo solo. Em novembro em quero-quero depositou os ovos ali perto”. 29

Geada, chuva e quero-quero, símbolos da vida campeira e da cultura gaúcha irão “dissolver” os valores do pintor de retratos, que tornar-se-á um fotógrafo-retratista, incorporando cultua a macheza e valentia em seu discurso, quando Lanari passa a pensar e a falar como um típico gaúcho, vangloriando-se do que denominaria de Foto do Destino: Copiou-a. Nadar nunca teria obtido uma foto como aquela. Nadar era um fotógrafo de maricões, safados e financistas. Em tempo algum passara por seu efeminado estúdio algo que se comparasse com aquele drama. Sandro mergulhava o papel no fixador. Essa foto seria o sinal de sua arte. Valia mais que todas as fotos de Nadar. E voltaria muito a ela, como quem volta a um fetiche. Para sinal visível do caráter único daquela foto, quebrou a chapa e o negativo. 30

29 30

Ib idem, p. 136. Ib idem, p. 137.

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Na quarta e última parte do livro, após a passagem de um ano, em que esquecera a revolução, montou o próprio estúdio. Aconselhado por dona Moça, volta a Porto Alegre, voltando a mesma pensão e quarto que o abrirá quando chegara à cidade. Ali assumirá de vez o ofício de fotógrafo. Ali descobre que o advogado, pai de Violeta, e opositor do governo, fora assassinado por um desafeto durante a guerra civil. Descobre que a mesma mora agora com uma tia e passa a fazer-lhe a corte, como manda o costume da época. Já não são os mesmos nem têm a mesma paixão um pelo outro. A pintura em cores vivas deu lugar a uma fotografia em tons claros e escuros. Apesar disso, em setembro pediu em casamento Violeta. Fruto da industrialização de do capitalismo em expansão, Lanari instala-se com seu atelier de fotografia na rua da Praia, e “Com os preços mais baixos da cidade, seus primeiros fregueses eram balconistas e criadas de servir”. 31 Um dia Carducci, o fotógrafo vem visitar o ex-pintor de retratos e dali em diante começam a falar sobre avanços da fotografia e outros modernismos. Todavia, o Rio Grande do Sul, continua historicamente a incorporar tardiamente usos e costumes das grandes metrópoles, já que foi povoado mais de dois séculos após o Descobrimento do país, a industrialização e movimentos literários também chegaram defasados, mas com ar de modernidade ao Estado. Seguindo essa linha do tempo, Lanari “Foi o primeiro a instituir em Porto Alegre o sistema carte de visite, já abandonado na Europa: com uma geringonça dotada de quatro objetivas, tirava simultaneamente quatro fotos do mesmo modelo. Depois, recortava o papel em quatro partes e colava-os nos cartões. Isso diminuía os custos”. 32

É a essência do capitalismo regendo seus passos: menos custos e maior produção, equivalem a maior margem de lucro. E seguindo esse raciocínio, já escaldado pela viagem, guerra civil e o casamento, o fotógrafo passa a se intitular retratista. Carducci passa a enviarlhe fregueses, e Sandro começa a ter mais clientes com o colega e compatriota, que irão tornar-se sócios no empreendimento fotográfico, numa fusão de interesses em comum para enfrentar a concorrência e dividir as despesas, numa clara alusão mudança do perfil comercial que a sociedade assiste nessa passagem do século XIX para o XX, do negócio individual e familiar para a associação de antigo concorrentes em sócios, e que simbologicamente Assis Brasil utilizará com a pintura e a fotografia, como metáforas da sociedade. 31 32

Ib idem, p. 147. Ib idem, p. 153.

1

Enquanto isso, em contrapartida, na política gaúcha a tradição vigora, a despeito das modernidades em curso, conforme atesta essa passagem do livro: Em outubro de 1899, quando Violeta já dera à luz três meninas, Sandro foi convidado para ser o fotógrafo oficial da exposição da próxima passagem do século. Isso resultou num livro comemorativo, ilustrado por ele: ali está o novo Presidente do estado, um homem pequeno, seco e tirânico, herdeiro político do predecessor. Fotografou-o na sua circunstância estadual, de chapéu gelot, a mão pousada sobre uma pilha de livros. Também há, nesse livro, fotos dos grandes industriais e comerciantes da época. 33

Descrição com refinamento e objetividade, retratando um painel político e social daquele tempo de mudanças e alternâncias. Lanari que pintara em sua primeira passagem por Porto Alegre o retrato de Julio de Castilhos, tem agora, na segunda passagem, a oportunidade de, já estabilizado no ramo e em ampla ascensão, fotografar Borges de Medeiros, que como Castilhos são a descrição acabada do gaúcho típico, pela estatura física e moral. E o mais interessante desta narrativa é o rito de passagem, não apenas da pintura para a fotografia, mas desta retratar agora não mais estancieiros e sim industriais e comerciantes prósperos, demonstrando a mudança do perfil sócio-econômico que enfrenta o Rio Grande do Sul, sem mudar o perfil político de quem detém o poder. Borges, por sinal, ficará mais de duas décadas, consolidando e ampliando o legado de Julio de Castilhos. No tal livro comemorativo, que Lanari é contratado para ilustrar, há, em parte, a chave para a compreensão da própria narrativa do livro maior: O pintor de retratos. Para embelezar a página de rosto, Sandro desenhou uma alegoria representando o Comércio e a Indústria como um casal de mãos unidas, tendo ao chão um recém-nascido segurando uma bandeirinha em que estava escrito: Progresso. 34

Arquitetura textual que demonstra total domínio do autor sobre a história que é contada, sob o enfoque local e nacional, que evidencia o declínio da pecuária e da agricultura como forças decisórias, e a ascensão da indústria e do comércio, em busca do Progresso. Ordem e Progresso são lemas positivistas, que estão expressos na Bandeira Nacional do Brasil. E se Sandro Lanari utiliza dessas alegorias para a capa do livro comemorativo, está aderindo, como a maioria dos homens de seu tempo ao ideal positivista que encontrará no Brasil, e mais precisamente no Rio Grande do Sul um ambiente propício para que tal doutrina 33 34

Ib idem, p. 157. Ib idem, p. 157.

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perdure por longo prazo. Curiosamente, os ensinamentos de dois franceses, Auguste Comte (positivismo) e Allan Kardec (espiritismo), encontrarão no país uma repercussão e experimento que nunca obtiveram na terra natal de seus autores. Segundo Lanari, a associação com Carducci revelara-se (mais que um trocadilho) mais útil do que imaginara, pelo conhecimento que este tinha e as sugestões que ele dava para as dúvidas que o outro tinha. Aprendeu tudo o que pôde, pois Carducci começara a apresentar os sinais do tempo. Apenas Sandro passa a fotografar e tornar-se cada vez mais conhecido, sendo notícia de jornal. E quando uma dessas notas compara suas fotos com a impressão de ganharem vida, tal comentário remete imediatamente seu autor à imagem de Nadar. Então surgiu Paris, despontando do nevoeiro dos anos: ele chegava ao atelier de La Grange, arrebatado pelo retrato de Sarah Bernhardt, que vira pela primeira vez. Eram as mesmas palavras suas, naquele dia de exaltação, dedicadas a Nadar. Agora, sem provocação nem ardil, vinham ditas no jornal a respeito da arte dele, Sandro Lanari. 35

Como uma teia de aranha, que parte do centro da questão e vai ampliando seu enfoque a partir da periferia, a narração volta-se agora para o centro da questão: O que é afinal arte? Pode a fotografia ser comparada á pintura no quesito artístico? E mais, quem é de fato o artista? Aquele que cria ou o que copia, e persegue um modelo até que se assemelha sua cópia ao original? Poderá a arte marginal ou de periferia, do Novo Mundo, comparar-se ao do centro cultural da Humanidade, que é o Velho Mundo? Pode-se almejar à fama e o reconhecimento fora do eixo cultural que determina o que deve ser considerado belo e o que é a mera representação do banal? A própria visão que Sandro Lanari tem da esposa Violeta presta-se a interpretações. Já não possui o mesmo frescor da juventude, isso é fato, contudo, olhar que o marido distende a esposa não é mais o do pintor de retratos, mas do fotógrafo, que procura no objeto focado a expressão mais espelhada da realidade. Quando Carducci morre, a placa no estabelecimento comercial é substituída por: “Sandro Lanari ─ Retratista. Sucessor do Comendador L. Carducci”. Logo em seguida, o autor demonstra como funciona o mecanismo capitalista em que temos valor enquanto produzindo para a manter a engrenagem social em funcionamento. E “Todos que a viam [a placa anteriormente citada] afirmavam: assim deveria ser a ordem lógica das coisas. Um ano depois, constava apenas o nome de Sandro”. 36 35 36

Ib idem, p. 161. Ib idem, p. 163.

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A mudança é considerável na vida de Lanari, de um pintor de retratos sem posses e de futuro incerto, passa a ser um próspero comerciante, reconhecido e atuante, em um bem acabado modelo burguês, que vai importando e incorporando aos usos e costumes da sociedade em que vive novos equipamentos, sendo o precursor de algumas delas no Brasil, vendendo as primeiras câmeras portáteis, e obtendo com isso lucros de cerca de 500%. E como um bom burguês, “Seu grande trunfo, que lhe garantiu rendimentos permanentes, era o fato de possuir exclusividade na venda e revelação dos filmes de celulóide que a Brownie exigia”.

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E nesse processo de incorporação à sociedade burguesa ─ quase rico ─, passa a

“colaborar com o Asylo de Mendicidade do Padre cacique e ser o festeiro da Novena do Menino Deus” 38 Ao receber telegrama do cônsul da Itália, avisando-lhe da morte do pai, Curzio Lanari, pedindo-lhe a presença lá para tratar de questões de herança, Sandro acabará tendo que voltar à Europa, mas antes de ir a sua Itália, visitará Nadar para um ajuste de contas com seu Destino. Chegando a Pais, procura por Nadar, mas descobre pela empregada da casa que este se encontra em Marselha, justo a cidade de onde o pintor de retratos partiu para o Brasil para tornar-se fotógrafo-retratista. Do encontro e, mais precisamente, do diálogo que se estabelece entre Lanari e Nadar há indicações do que faz um foto ou uma pintura serem consideradas arte. Sandro, agora como fotógrafo já estabelecido, pede a Nadar que lhe faça um retrato artístico, recebendo em resposta uma lição do mestre: “A arte, meu caro Senhor Lanari, é a única filosofia que pode explicar natureza humana. (...) A arte não existe sem a humanidade do homem que a cria, e a humanidade de quem a vê.”

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E continua mais adiante repreendendo os elogios de Lanari

sobre sua obra, e, em especial, sobre o retrato de Sarah Bernhardt, uma fixação para Sandro, dizendo: “A questão é saber apanhar o caráter moral do modelo: isso é arte. Ouça: eu jamais conseguiria essa foto se, antes de ser fotógrafo, eu não fosse ser humano. O resto é para divertir ou ganhar dinheiro”. 40 Então, Lanari deixa-se fotografar por Nadar, e dessa feita, apresentando-se como fotógrafo, pode assistir todos os passos da fotografia, do clic até a revelação. E novamente terá a sensação de desconforto: 37

Ib idem. p. 165. Por Brownie, entenda-se a câmera recém-lançada pela Eastman Kodak. Deve-se ao industrial norte-americano George Eastman a popularização da fotografia, que foi a invenção e construção da máquina Kodak, primeira máquina feita especialmente para as películas em rolo. Disponível em: http://www4.machenzie.com.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutarado/Letras/Cadernos?Volume_3/Entre_a_pintu ra.pdf. Acesso em: 06 mar. 2008, p. 14. 38 Ib idem, p. 165. 39 Ib idem, p. 175. 40 Ib idem, p. 175.

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Sandro via a imagem que emergia do papel. Reconhecia seu sorriso, mas era o sorriso do Outro. Veio-lhe a indisposição que sentira anos atrás, quando em Paris abria o envelope com aquele seu primeiro retrato: agora estava, entre suas mãos, aquele mesmo olhar. 41

Diante de Nadar, apesar de ter mudado e incorporado ao seu ofício o mesmo do famoso fotógrafo francês, Lanari continuaria a ter o mesmo olhar, pois incorporara irremediavelmente a sua vida a visão de mundo de onde vivia. O mesmo olhar de errância interior, de quem partira, fizera sucesso mas continuava sem compreender que a sua alma era de empreendedor e não de artista. E, frente a um Nadar zombeteiro, não lhe resta outra alternativa do que contra-atacar mostrando-lhe a Foto do Destino. Horrorizado, o mestre decreta: “Isso não é arte. Isso é um ato de barbárie. (...) Fotografar condenados à beira da morte é um ato imbecil e torpe. Para captar a alma de alguém, é preciso que seja o homem por inteiro. Aí teremos arte. E só possuindo uma alma de artista”. 42 Posto a correr dali, pelo dono da casa, Lanari furioso desabafa: “Ora! O senhor, quem pensa que é?”

43

E a resposta não poderia ser outra que não a afirmação do grande artista

diante do homem errante: “O que sempre fui: Nadar.” 44 Em contraponto a Nadar, Lanari busca a auto-afirmação pelo inusitado, pensando que ao captar pura e simplesmente um flagrante bárbaro, poderá conseguir o reconhecimento de quem tanto detesta. Nadar rechaça Lanari, pois a fotografia é para ele uma expressão de arte, enquanto a Foto do Destino é o retrato cruel de um mundo perdido. Dali, Sandro parte de trem para a Itália, e no meio do caminho, olha de novo a Foto do Destino e resolve que, na volta a Porto Alegre irá ampliá-la, colorindo-a para futura exibição no seu estúdio. Enquanto que o seu retrato feito por Nadar prefere rasgar em diversos pedaços, jogando-o pela janela do trem; vindo após isso a dormir tranqüilo e feliz. Prova de que o olhar na foto continuava o mesmo, pois Lanari mudara sua vida e não a sua alma. Continuava um tosco, ainda que realizado profissional e financeiramente. E a cena final do livro representa justamente essa fragmentação do homem moderno, que ainda que se veja retratado por inteiro é um homem fragmentado, dividido interiormente, um ser humano em que “Faltam muito pedaços, muitos...” 45

41

Ib idem, p. 177. Ib idem, p. 178. 43 Ib idem, p. 178. 44 Ib idem, p. 178. 45 Ib idem, p. 181. 42

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Entre a pintura e a fotografia: retratos de uma época em transformação O livro O pintor de retratos de Luiz Antonio de Assis Brasil, traça um painel político e social, artístico e cultural de uma época, que promove o entrecruzamento de discursos e de narrativas entre História e Literatura, mesclando figuras históricas com personagens fictícias. Com o deslocamento de Sandro Lanari, personagem principal da novela O pintor de retratos, do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, ocorre o primeiro rito de passagem, entre o mundo do europeu, em que vive sem posses, ocupação e futuro incertos, vindo para a terra desconhecida e exótica do Novo Mundo, e, ao mesmo tempo, local das infinitas possibilidades no imaginário do Velho Mundo. No Brasil, tudo sempre foi tardio, desde os movimentos literários e artísticos, até as questões científicas e tecnológicas. Mas ironicamente, neste ambiente em que Lanari vem se instalar já é conhecida a fotografia ─ a grande revolução tecnológica da época ─, graças a compatriotas seus que se estabelecem em Porto Alegre. Ainda que haja o natural choque de culturas, por causa de hábitos e costumes diferenciados, logo Lanari vê-se incorporado àquele ambiente primitivo, pois ele próprio paradoxalmente um provinciano no Velho Mundo, que partindo primeiramente de sua pequena cidade na Itália, não se adapta à Paris cosmopolita. Ainda que sendo um artista, com passado familiar na pintura, ele não deixa de ser um homem rude, que acaba encontrando ironicamente refúgio em um rude e dividido Rio Grande do Sul de guerras fratricidas. Um destino a procura de uma foto para ser emoldurada? A relação entre a Foto do Destino e o imaginário do personagem, deve-se ao fato de que através dela, Lanari pensa atingir o status de um Nadar, sem dar-se conta de quem a imagem deve ter uma significação e um sentido, e não a mera exposição de um fato a uma câmera fotográfica. O livro discute a relação entre o retratista e o retratado, o quadro e a moldura social, a ética e a moral. A pintura e a fotografia são duas linguagens distintas, mas que andam juntas e se influenciam mutuamente. Desde sua criação, nos meados do século XIX, a fotografia tem sido influenciada pela pintura, pois os primeiros fotógrafos eram também pintores e transmitiam para suas fotos o gosto pictórico reinante. A influência da fotografia foi marcante principalmente nos movimentos de vanguarda do século XX. 46

Entre a pintura (retrato pictorial) e o retrato fotográfico. A primeira, lembra literatura na impressão artística dos fatos; fotografia a precisão que a história deseja ter, como fiel 46

In: Esko Männikkö e a linguagem fotográfica. Disponível em: . Acesso em: 06 mar. 2008, p. 3.

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retratista da realidade. Mas ambas são formas de mostrar a realidade, mas não a realidade em si, já que ambas captam apenas um fragmento do tempo, e o ponto de vista do retratista, seja artista plástico ou fotógrafo. Assim como a fotografia foi influenciada em seus primórdios pelo que existiam antes dela, a pintura, e pelos primeiros usuários que eram justamente os pintores; assim ocorreu com a história, mais precisamente, a historiografia, em vista que os primeiros historiadores eram homens das letras, em sua maioria escritores e poetas, que imprimiam aos seus relatos históricos o Romantismo a que estavam atrelados por convicções literárias e políticas. Sobre a linguagem fotográfica, Barthes diz que “Com a fotografia, a imagem captada pelo olhar pode ser eternizada e o acontecimento ressuscitado. A fotografia permite, ainda, o resgate do instantâneo acontecido e a reprodução infinita de determinado acontecimento, ou seja, ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente”. 47

Para Barthes, a arte e a realidade são distintas, pois A foto, ao contrário da pintura, remete não somente a um objeto “possivelmente real”, mas também a um objeto “necessariamente real”, e não se pode negar que o “objeto exista”. A foto é uma “emanação do referente” e testemunha um “aconteceu assim”. 48

Da mesma forma, em relação a História e a Literatura, pode-se afirmar que a primeira remete ao “fato existente”, ainda que o relato do historiador seja o de testemunha ocular, ou de coletor de evidências do acontecido. Enquanto que o escritor parte de uma fantasia, da idealização, de um ato puramente imaginativo, que poderão ter como pano de fundo um fato real e personagens históricas de fato contracenando com personagens meramente literárias, sem vida fora do papel. Considerações finais Se “A fotografia nasce na primeira metade do século XIX, época marcada por rápidos e importantes progressos ocorridos nas mais diversas áreas, desde a agricultura até os transportes e a indústria” 49, que culminará com os avanços proporcionados pela Revolução 47

Idem, p. 5. Ib idem, p. 5. 49 GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres. Entre a pintura e a fotografia publicitária, o desfocar: um discurso do texto imagético. In: Cadernos de Pós-Graduação em Letras. São Paulo: Mackenzie. V. 2. n. 1., p. 13-21. 2003. 48

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Industrial, com a formação dos Estados-Nacionais, se evidenciará o processo de criação das identidades nacionais, que terão na História e na Literatura, bem como na pintura e fotografia as suas formas mais usuais de expressão. O termo fotografia tem sua origem na “composição de duas palavras da língua grega: photos = luz e graphein = descrever, escrever. Vê-se pela análise etimológica do nome a escrita ou descrição feita por meio da luz”.

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Ou seja, algo como “escrita de luz”. A História

usualmente utiliza a expressão de colocar luz sobre o passado, tentando trazer ao presente os dados mais fidedignos coma realidade. “Esta idéia de reflexo da realidade mantém um paralelo com a exatidão com que a fotografia representava a realidade, fator surpreendente e fascinante em seu princípio, tendo em vista as suas inevitáveis comparações com a pintura”. 51 Entretanto, durante a segunda metade do século XX, e principalmente o início do século XXI, proporcionaram um avanço tecnológico que permite a manipulação de imagens obtidas por meio fotográfico, seja maquiando os possíveis defeitos das modelos que posam para revista masculinas; seja retirando da cena, personagens políticos caídos em desgraça, como fazia Stálin com suas fotografias com fins propagandistas e ideológicos. Presume-se, assim, que mesmo que a fotografia seja, na maior parte dos casos, aceita como verdade, como prova dos fatos, como um documento histórico, ela pode também ser utilizada com fins não tão confiáveis desta forma, de maneiras questionáveis. A partir do momento em que o contexto pode ser transformado, esta esfera de realidade fotográfica se esvai. 52

Assim também, na modernidade e pós-modernidade, a História, fruto de um discurso, que se assemelha em sua narrativa à Literatura, mas que se propõe ser fiel à realidade, pode conter um enfoque questionável, e manipulador. Não fosse assim, e os livros de História, que se propõem ser o relato fiel da verdade não precisariam de tempos em tempos serem reescritos, reavaliados, reeditados com novas “atualizações” do passado. Já um clássico literário jamais poderá ser reescrito, quando muito reinterpretado por novos leitores que terão recepção diversa da que a obra ficcional teve quando da primeira edição. Diante dessa complexidade e problemática há que se observar o que propõe Kossey apud Guimarães que “a fotografia seja tratada como os demais documentos, contextualizandoDisponível em: http://www4.mackenzie.com.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutorado/Letras/Cadernos/Volume_3/Entre_a_pintur a.pdf. Acesso em: 06 mar. 2008, p. 14. 50 Idem, p. 15. 51 Ib idem, p. 15. 52 Ib idem, p. 16.

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a em seus desdobramentos sociais, políticos, econômicos, religiosos, artísticos, culturais que envolvem o tempo e o espaço do registro” 53; e, portanto, múltiplas leituras, como a própria Literatura, a História, a pintura e outras manifestações de registro humano sobre o mundo em que se vive. O pintor de retratos, por este prisma, apesar de uma narrativa curta e um texto “talhado a golpes de faca” 54, mescla com grande habilidade e estilo refinado as imbricações que possuem História, Literatura e Pintura em um mundo em transformação, como o que é narrado por Assis Brasil, que proporciona ao leitor diversas possibilidades de interpretação. Nesta foto panorâmica, o autor não pretende rivalizar com a História, nem fazer um romance histórico, e sim, diante da pesquisa acurada, marca registrada de suas produções literárias, propor outros enfoques e revelações, que por serem ficcionais ousam dizer o que a História Oficial normalmente prefere silenciar, seja por falta de provas documentais, seja por interesses contraditórios de quem escreve sobre o passado imbuídos dos reflexos do presente em seu discurso. Ao recobrar as manipulações, entende-se que quando estas se dão por parte do fotógrafo, no instante de ser apertar o obturador, devem ser tomadas como possibilidades de escrita, como instrumentário da grafia objetivada pelo escritor da luz. O destaque em primeiro plano, a mancha continua de um movimento, a escolha de um determinado enquadramento fazem parte de um conjunto de ações e decisões deste profissional ao intencionalmente gravar uma cena, uma parte do real. 55

Todos fazem escolhas, sejam historiadores, escritores, pintores ou fotógrafos, e a partir dessas escolhas o resultado de sua obra, que se proponha real ou ficcional, será a visão subjetiva de mundo daquele que atua sobre o objeto, e não o objeto em si. (...) De todo texto pode-se fazer uma leitura ficcional ou histórica, ilustrativa ou simbólica. Isso depende do leitor, não tanto de uma decisão pessoal que poderia tomar esse leitor, mas do quadro “epistemológico” dentro do qual se efetua sua leitura. 56

53

Ib idem, p. 17. Expressão cunhada por José Castello, na resenha “O Pintor de Retratos” é talhado a golpes de faca, publicada em O Estado de São Paulo. Caderno 2. 12 ago. 2001. 55 GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres. Entre a pintura e a fotografia publicitária, o desfocar: um discurso do texto imagético. In: Cadernos de Pós-Graduação em Letras. São Paulo: Mackenzie. V. 2. n. 1. p. 13-21. 2003. Disponível em: http://www4.mackenzie.com.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutorado/Letras/Cadernos/Volume_3/Entre_a_pintur a.pdf. Acesso em: 06 mar. 2008, p. 19. 56 LEENHARDT, Jacques. Leituras de fronteiras. Modelos de leitura, história e valores. In: AGUAIR, Flávio e alii (orgs.). Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1987, p. 282. 54

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E a novela O pintor de retratos traz em seu corpo as muitas possibilidades de ver uma imagem e contar uma história, a partir da fragmentação do personagem principal e da própria sociedade real, em plena transformação. E é o próprio Assis Brasil quem melhor discute as relações entre história e literatura, pintura e fotografia, ao escrever que Pretender que o chamado romancista histórico contemporâneo seja fiel ao documento é o mesmo, por exemplo, que negar a pintura, que, segundo alguns afoitos, teria sido superada depois da invenção da fotografia. Aliás, entusiasmado pelo invento, algum insensato declarou a morte do genro pictórico em meados do século XIX. Vimos, ao contrário, que a pintura chegou a todas as suas possibilidades criadoras depois que a fotografia substituiu a pintura acadêmica. E já nem a fotografia mantém-se fiel ao real. 57

Assis Brasil não se considera um escritor de romances históricos. Confessa que “Só pela história se entende um povo e sua cultura” 58, e que seu maior interesse “é entender os personagens, o que está por baixo. As pessoas, mais do que o fato histórico, que é o pano de fundo. (...)” 59. Como faria um fotógrafo-retratista, colocou um dos períodos mais delicados da história do Rio Grande do Sul como pano de fundo para retratar personagens, que partem do mito ─ do Novo Mundo ─ encontrando nesse caminho a redenção e a própria humanidade. Se, como o próprio autor, declarou em entrevista que “(...) O mito é revisitado para se descobrir sua humanidade”, sua narrativa é plenamente exitosa nesse objetivo. Referências: ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. História e literatura. In: MAZINA, Lea e APPEL, Mirna (orgs.) A geração de 30 no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000, p. 255-261. . Entrevista. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, sábado, 02 jul. 1993, p. 6. . O pintor de retratos. Porto Alegre: L&PM, 2005. CASTELLO, José. “O Pintor de Retratos” é talhado a golpes de faca. São Paulo, O Estado de São Paulo. Caderno 2. 12 ago. 2001.

57

ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. História e literatura. In: MAZINA, Lea e APPEL, Mirna (orgs.). A geração de 30 no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000, p. 259. 58 ASSIS BRASIL, Luiz Antonio. Entrevista. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, sábado, 02 jul. 1993, p. 6. 59 Idem, p. 6.

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GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres. Entre a pintura e a fotografia publicitária, o desfocar: um discurso do texto imagético. In: Cadernos de Pós-Graduação em Letras. São Paulo: Mackenzie. V. 2. n. 1. p. 13-21. 2003. Disponível em: http://www4.mackenzie.com.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutorado/Letras/Cadernos/Volum e_3/Entre_a_pintura.pdf. Acesso em: 06 mar. 2008. HANCIAU, Núbia Jacques. Literatura e História em O Pintor de Retratos, de Luiz Antonio de Assis Brasil. In: Cadernos Literários, Rio Grande: Editora da FURG, vol. 12, 2006, p. 55 a 59. HUTCHEON, Linda. Metaficção historiográfica: “O passatempo do tempo passado”. In: Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 141-162. LEENHARDT, Jacques. Leituras de fronteiras. Modelos de leitura, história e valores. In: AGUAIR, Flávio e alii (orgs.). Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1987 LUKÁCS, Georg. La forma clasica de la novela histórica. In: México: Ediciones Era, 1966, p. 15-102.

.

La

novela

histórica.

MIGNOLO, Walter. Lógica das diferenças e política das semelhanças. Da literatura que parece história ou antropologia, e vice-versa. In: CHIAPPINI, Língua & AGUIAR, Flávio. Literatura e História na América Latina. São Paulo: EDUSP, 1993, p. 115-135. TREZZI, Humberto. Memorial da Barbárie. In: Caderno de Cultura, Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 2 nov. 2002. ZILBERMANN, Regina. Um artista e seus limites. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 ago. 2001. XXIV Bienal de São Paulo – Núcleo de Educação. Esko Männikkö e a linguagem fotográfica. Disponível em: . Acesso em: 06 mar. 2008.

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