«Claire, a minha mãe, nunca falava do seu ofício de revisora. Explicoume sumariamente, de uma vez por todas, que o seu trabalho consistia em corrigir os erros de ortografia e gramaticais cometidos pelos jornalistas e autores menos atentos ao emprego do conjuntivo ou à concordância dos particípios passados. Seria de crer que se trata de uma tarefa relativamente calma, repetitiva e, em todo o caso, pouco angustiante. É exactamente o contrário. Um revisor nunca está descansado. Reflecte sem descanso, duvida e, acima de tudo, receia deixar passar faltas, erros, barbarismos. O espírito da minha mãe nunca estava em sossego, pois ela sentia constantemente necessidade de verificar, num monte de livros sobre as particularidades do francês, o uso correcto de uma regra ou a legitimidade de uma das suas intervenções. Um revisor, dizia ela, é uma espécie de rede encarregada de reter as impurezas da língua. Quanto maiores eram a sua atenção e a sua exigência, mais as malhas se apertavam. Mas Claire Blick nunca se satisfazia em pescar os erros crassos. Pelo contrário, obcecavam-na as faltas minúsculas, o krill de incorrecções que constantemente vinha à rede. Era frequente que a minha mãe se levantasse da mesa a meio do jantar para ir consultar uma das suas enciclopédias ou uma obra especializada, e isso com o único objectivo de desfazer uma dúvida ou, então, de apaziguar um acesso de angústia. Este comportamento não era específico da personalidade da minha mãe. A maior parte dos revisores desenvolve este género de obsessão verificadora e adopta comportamentos compulsivos gerados pela própria natureza do trabalho. A busca permanente da perfeição e da pureza é a doença profissional do revisor.»
Jean-Paul Dubois, introdução a Uma Vida Francesa, Lisboa, Asa, 2005.