Doutrina Da Floresta(tese De Mestrado)

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Universidade Federal de Juiz de Fora Instituto de Ciências Humanas e Letras Mestrado em Ciência da Religião

Experiências e Símbolos de Transformação na Doutrina da Floresta

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Ciência da Religião por Sérgio Alex Silva Lima sob orientação do Profº Dr. Raul Francisco Magalhães

Juiz de Fora – 2005

Dissertação apresentada à Banca Examinadora, composta por:

_____________________________________________________ Prof. Dr. Raul Francisco Magalhães

_____________________________________________________ Prof. Dra. Fátima Regina Gomes Tavares

_____________________________________________________ Prof. Dra. Sandra Maria Corrêa de Sá Carneiro

Uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo

Marcel Proust

AGRADECIMENTOS:

A CAPES, pelo incentivo à pesquisa. Aos meus pais Antonio e Vilma, pelo amor, cuidado e confiança. Aos meus irmãos Mara, Marcos, Márcio, André e demais familiares (em especial tia Bernadete, tia Helena e tia Zete), pela força e atenção sem medida. A todos que compõem o Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, por tornar possível a realização deste trabalho. Ao meu orientador Raul Francisco Magalhães, pela interlocução e sugestões imprescindíveis. A toda comunidade do Padre Gaspar Lourenço, através de D. Zezé. A cada um dos amigos de jornada, fraternas companhias a suavizar as turbulências do seguir. Ao G-11 (Kely, Alex, Patrícia, Marcos, Andréa, Marcelo, Nanah, Alain, Reuber e André) e hermanos mineiros, dos tempos da PC e todos os outros. A Gal, Edel, Joãozinho e Dr. Marcelo por suas edificantes colaborações. A toda família Juramidã, a irmandade do Santo Daime, especialmente à comunidade do Matutu (Ruth, Sidney, Mestre Paulino e Guilherme, em nome de todos) e irmãos da igreja do Céu das Estrelas (Rodolfo e Ângela, Fernando e Tonha, Márcio e Adélia, Cláudio, Alain, Daniel, Cristina, Érika, Bimbim e Piota em nome dos demais), Gabriel e Vera Fróes; Olívio e Rodrigo do Céu da Campina. Ao Mestre Irineu e o Padrinho Sebastião. Ao Santo Daime, o ‘Professor dos Professores’, por todos os ensinos, Luz e Força. A Infinita Soberania Divina em todas as suas manifestações e formas.

INDICE Resumo ...................................................................................................................... p.02 Apresentação.............................................................................................................. p. 04 I - Primeira Parte - Introdução .............................................................................. p. 16 1 - Os contextos de uso da ayahuasca........................................................................ p. 16 1.1 - Ayahuasca entre os índios ................................................................................ p. 22 1.2 - População mestiça amazônica .......................................................................... p. 24 1.3 – As principais religiões ayahuasqueiras ............................................................ p. 25 1.3.1 - O Santo Daime .............................................................................................. p. 26 1.3.2 - A Barquinha .................................................................................................. p. 31 1.3.3 - A União do Vegetal (UDV) .......................................................................... p. 32 2 - Êxtase, Luz e transformação ............................................................................... p. 37 3 - A cura na pesquisa sobre a ayahuasca ................................................................ p. 40 4 - Aspectos etnobotânicos, psicofarmacológicos e químicos da Ayahuasca.......... p. 44 5 - Sincrético, eclético... híbrido .............................................................................. p. 46

II - Segunda Parte – Experiências e Símbolos de Transformação ..................... p. 51 1. Daime: compreensão do chá e dos seus efeitos / Do auto-conhecimento ............ p. 60 2. Sobre a individuação.............................................................................................. p.70 3. Da Purificação ...................................................................................................... p. 76 4. Outros apontamentos sobre a transformação em Jung.......................................... p. 78 5. Sobre o Renascimento .......................................................................................... p. 85 6. Sofrimento, Morte e Renascimento ...................................................................... p. 91 III – Considerações Finais...................................................................................... p. 96 IV – Bibliografia...................................................................................................... p. 100 V – Anexos............................................................................................................... p. 104 1

RESUMO

O trabalho que segue versa sobre experiências de transformações existenciais mencionadas como decorrentes do contato com o universo simbólico da doutrina do Santo Daime, conforme relatadas por membros de dois grupos da religião localizados no estado de Minas Gerais, nas cidades de Aiuruoca e Juiz de Fora. Na primeira parte buscamos nos aproximar da diversidade que caracteriza o mundo da religiosidade ayahuasqueira. Ayahuasca é um dos nomes indígenas do chá do Santo Daime. Esse grupo religioso que considera a bebida um sacramento instituiu-se por volta da década de trinta do século XX, na Amazônia, a partir das revelações recebidas pelo maranhense Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, possuindo hoje núcleos por vários países além dos que existem no Brasil. Aborda-se ainda a questão da terapêutica relacionada a experiências extáticas desencadeadas por psicoativos, bem como detalhes psicofarmacológicos do Santo Daime. Na segunda parte apresentamos os resultados do trabalho de campo, associando-os a reflexões sobre alguns estudos de Mircea Eliade e Carl Gustav Jung. Foram enfocados aspectos simbólicos e míticos relacionados ao tema das transformações, priorizando elementos correlacionáveis às experiências de transformação apresentadas pelos religiosos como conseqüência do contato com o Santo Daime.

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ABSTRACT

The following work is about experiences on existential transformations, mentioned as result of the contact with the symbolic universe of the Santo Daime doctrine, as told by members of two groups of the religion located in the state of Minas Gerais, in the cities of Aiuruoca and Juiz de Fora. In the first part of it, we try to get closer to the diversity that characterizes the world of the ayahuasqueira religiosity. Ayahuasca is one of the indian names for the Santo Daime tea. This religious group that considers that drink a sacrament was born at about the thirties in the 20th Century, in Amazonia, on the revelations received by Raimundo Irineu Serra from Maranhão, the Master Irineu, has nowadays nucleus in various countries besides the ones it has in Brazil. It still touches the therapeutic question related to ecstasy experiences unleashed by psychoactive, as well as psychopharmacologic details of the Santo Daime. The second part of this paper presents the results of the research field, associating them to reflections on some studies by Mircea Eliade and Carl Gustav Jung. It was focused symbolic and mythic aspects related to the theme of transformations, preferring elements that could be correlated to the transformation experiences presented by the religious as consequence of the contact with the Santo Daime.

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APRESENTAÇÃO

Esta dissertação de mestrado pretende dar visibilidade a experiências e símbolos relacionados a processos de transformação, especialmente de caráter subjetivo - ligados à cognição, à esfera dos valores e crenças, às relações interpessoais e ao auto-conhecimento, também ao plano corporal e à remissão de doenças, tal como mencionados por adeptos da religião do Santo Daime, especialmente nos dois grupos por nós pesquisados (que serão melhor apresentados adiante), bem como nas referências a imagens e símbolos que compõem o universo da Doutrina e que também remetam ao tema das transformações. Buscando dimensões teóricas que abordassem o tema das mudanças ontológicas recorremos a alguns estudos de Carl Gustav Jung e Mircea Eliade. O primeiro, com seus estudos em psicologia, sempre teve o tema colocado de maneira central na sua obra, por essa razão pareceu-nos ainda mais apropriado para ajudar a compor esse trabalho por seu interesse pelas pesquisas de História das Religiões e religiosidade comparada, resultando de tal motivação artigos e livros de valor inegável para o estudo acadêmico. Já Eliade, além da contribuição de sua História Comparada das Religiões, fornecenos um entendimento sobre o mito enquanto dimensão viva, determinante da vida daqueles que por ele se norteiam, bastante condizente com a lógica de orientação religiosa, tal como ficou evidente também na perspectiva daimista. Cabe esclarecer que a importância do estudo sobre a narrativa mítica nesse trabalho recai sobre o fato de que certa sociedade ou meio cultural que presentifica a dimensão mítica atualizando-a através de uma determinada ordem ritualística instaura uma outra relação com a temporalidade e com a subjetividade, o que resulta, e essa é uma hipótese, em conseqüências que podem facilitar a instauração do que chamamos mais amplamente de transformações psicológicas e mudanças ontológicas, mais que se traduz de maneira mais prática em mudanças de hábitos (na relação com o corpo ou abandono de vícios, por exemplo) de crenças e valores (visão de mundo e compreensão da constituição do cosmos, etc.) e nas relações sociais (com familiares, no trabalho). Não pretendemos, como ficará claro no decorrer do texto, lançar mão das teorias referidas a fim de propor uma interpretação sobre as conseqüências da experiência religiosa daimista, tampouco parece-nos legítimo afirmar conclusões definitivas a partir do nosso estudo. Interessou-nos, sobretudo, encontrar semelhanças e paralelos entre as narrativas a respeito dessas conseqüências consideradas como decorrência do pertencimento ao universo simbólico daimista, e alguns apontamentos e reflexões referentes aos processos transformacionais, especialmente às que transcorrem em meios sociais que vivem sob forte influência da dimensão mítico-religiosa.

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Dividimos o trabalho em duas partes: as informações da pesquisa de campo, bem como as reflexões teóricas a elas associadas estão na segunda parte. Inicialmente nos preocupamos em fazer uma aproximação aos universos religiosos erigidos em torno do consumo da ayahuasca1, como também apresentar alguns dados provenientes das pesquisas já realizadas, principalmente aqueles que discorrem sobre os efeitos mais comumente atribuídos ao chá/sacramento, como por exemplo, os efeitos terapêuticos, tão comumente mencionados pelos que conhecem o chá. Toda essa primeira parte, portanto, deve crédito aos pesquisadores do fenômeno ayahuasca, sem quem ela não ganharia forma tão facilmente. Todo o trabalho, por sua vez, não poderia nascer sem a colaboração das pessoas que se dispuseram a nos ajudar nos dois grupos do Santo Daime com quem principalmente nos relacionamos. O primeiro a comunidade do Matutu, localizada na reserva natural Serra do Papagaio, uma extensão da Serra da Mantiqueira, situada na cidade de Aiuruoca, Minas Gerais, onde residem cerca de 120 pessoas. De acordo com um dos primeiros moradores da comunidade, a quem chamaremos ‘Neyson’, o primeiro trabalho oficial com o Daime aberto no Matutu ocorreu a 19 de março de 1989; boa parte das pessoas que começaram a viver no local estavam nessa sessão, para muitos aquela fora sua primeira experiência com o chá.2 O segundo grupo constitui a igreja Céu das Estrelas, localizado no bairro Floresta, na cidade de Juiz de Fora. Há quatro anos o centro vem fazendo regularmente as celebrações conforme o calendário oficial da Doutrina; o Céu das Estrelas está vinculado ao CEFLURIS (Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra) entidade com sede no Céu do Mapiá, na Amazônia, e que coordena os diversos núcleos nacionais e estrangeiros do Santo Daime a ele associados. A igreja do Céu das Estrelas ou CEFLUAPAS (Centro da Fluente Luz Universal Antonia Paz Souza) conta com aproximadamente 30 fardados.3 Essa pesquisa valeu-se do que se chama em antropologia

observação participante.

Nossos contatos com os grupos foram, principalmente, através da nossa participação em sessões rituais, ou ‘trabalhos espirituais’, como costumam referir os daimistas. No decorrer da pesquisa, participamos de cerca de 20 sessões com o Santo Daime registradas no nosso diário de campo. Geralmente no dia seguinte à participação do trabalho anotamos nossas impressões e vivências 1

Ayahuasca significa em língua quéchua, cipó das almas, uma vez que aya remete a alma, espírito e huasca a corda, liana ou cipó. Segundo LUNA, L. E. apud GOULART, S.L. “O contexto simbólico do uso do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual” in: LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. (orgs). O Uso Ritual da Ayahuasca. Mercado de Letras; São Paulo: FAPESP, 2002. 2 Todos os colaboradores dos dois grupos pesquisados estão identificados por pseudônimos. 3 Fardado é a forma de designar todo aquele que se reconhece adepto do Santo Daime e aceita as obrigações e prescrições doutrinárias. 5

subjetivas e detalhes sobre a estrutura, funcionamento e duração das sessões, quantidade de doses servida em cada cerimônia, orações e fórmulas de abertura e fechamento dos trabalhos, características específicas, etc. Além das sessões com o Santo Daime, no diário de campo também foram registradas muitas das informações e esclarecimentos obtidos através de nossos colaboradores em conversas mais informais geralmente dadas antes ou depois dos trabalhos, mas também em outros encontros especialmente propostos para conversar sobre as experiências de cada um com o chá. Apenas nove fiéis tiveram suas entrevistas gravadas. Foram ao todo onze horas de áudio registradas em fitas K-7 onde, através de roteiro de entrevistas semi-estruturado, o adepto era convidado a falar sobre suas experiências religiosas, o contato com o Santo Daime, e as principais conseqüências para sua vida encaradas como decorrência de tal contato. O roteiro é considerado semi-estruturado porque possuíamos alguns tópicos-sugestão a propor no diálogo, porém o encaminhamento dos temas abordados era flexível aos rumos apontados pelo entrevistado, o que nos pareceu bastante produtivo pois permitia a emergência de temas considerados importantes por eles e que nem sempre havíamos pretendido abordar deliberadamente. Em se tratando o Santo Daime de uma doutrina eminentemente musical, uma vez que todo o cerimonial tem como peça chave os hinos, cujas letras os fiéis se referem não como composições de indivíduos, mas como ‘recebidos’ sob inspiração dos planos espirituais, esses hinos também foram uma fonte importante de conhecimentos a respeito dos principais ensinamentos e valores que circulam entre os daimistas. Desse modo, comumente nos valemos das citações de trechos de hinos que ajudem a ilustrar determinado tema abordado. Um conjunto de hinos recebidos por alguém é denominado hinário. A respeito do recurso metodológico da observação participante cabem ainda algumas palavras, não apenas sobre suas vantagens, mas também quanto às dificuldades que a ela estiveram ligadas na realização dessa pesquisa, mas que são nuances que parecem próprias do fazer antropológico. Analisando as especificidades da prática antropológica, Laplantine defende a impossibilidade de dissociar observador e observado, apesar da necessidade de distingui-los, num estudo que considere a totalidade do fenômeno social pesquisado, e demonstra que a pretensa neutralidade absoluta, busca dos fatos “objetivos”, e a eliminação da implicação do

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pesquisador no evento pesquisado, ao invés de contribuir pode justamente afastar a possibilidade da emergência de uma objetividade aproximada4. Indagando-se sobre as razões para a repressão da subjetividade do pesquisador como não constituinte da pesquisa, o autor demonstra que a idéia de independência entre os elementos constituintes da situação de observação provém do modelo “objetivista” que na física predominou até fins do século XIX, sendo importado pelas ciências do homem sem nenhuma preocupação com a inconveniência de tal modelo para o estudo de valores, crenças, significações e sentimentos, típicos do comportamento humano. Tal impropriedade foi remediada de maneira curiosa, nas palavras do antropólogo:

“Paradoxalmente, a volta do observador para o campo da observação não se deu através das ciências humanas, nem mesmo da filosofia, e sim por intermédio da física moderna, que reintegra a reflexão sobre a problemática do sujeito como condição de possibilidade da própria atividade científica.”5

Trata-se aí do famoso “princípio de incerteza” de Heisenberg que demonstrou que um elétron não podia ser observado sem a criação de uma situação que o transformasse. Na etnologia a consideração da influência em mão dupla é, não um problema, mas “uma fonte infinitamente fecunda de conhecimento”. Caso não se tente dissimular a presença do pesquisador na pesquisa, a influência dele pode se fazer notar já muito precocemente: na escolha do tema pesquisado, por exemplo. No meu caso não foi diferente. Aliás, minha implicação pessoal nesse processo de pesquisa é bastante profunda, em se tratando de uma abordagem participante relacionada ao consumo religioso de um psicoativo, não me parece que podia ser muito diferente. Não fui levado a estados subjetivos incomuns a partir dos relatos dos adeptos da doutrina apenas, mas também os experienciei diretamente; tendo sido tal experiencia, inclusive, que me insuflou o tipo de fenômeno religioso que deveria estar circunscrito enquanto objeto da pesquisa. Se por um lado o fato de não ser um fardado colocavame a certa distância do cotidiano dos fiéis, fazendo-me, por exemplo, não poder participar de todo tipo de cerimônia, vez que a literatura indicava que alguns ritos eram abertos apenas aos fardados, estrategicamente a não adesão pareceu-me, de saída, um recurso interessante pois, apesar de alguns acessos limitados, isso ajudava a preservar um certo distanciamento benéfico ao 4 5

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 169. Op. cit., p. 172. 7

fazer acadêmico, no sentido de não gerar um identificação completa com o discurso religioso, por outro lado, eu não era um estranho que nada sabia concretamente acerca da experiência ritual com o sacramento, vez que eu conhecera o Santo Daime pouco antes de começar os estudos no mestrado em Ciência da Religião. Inclusive, apesar de já ter pretensões anteriores em dar seguimento aos estudos através de um mestrado, a opção por realizá-los em tal curso foi, sem dúvida, endossada pela vivência com o Santo Daime e suas conseqüências. A princípio pensava em fazer uma pesquisa num curso em Psicologia Social, que é a área de reflexão e prática do campo ‘psi’ com que mais nos alinhamos, mas no transcorrer da vida foram se delineando outros caminhos. Falando em caminhos, aproveitando que em tela está minha implicação pessoal na pesquisa, permitam-me uma rápida digressão aos meandros do contexto de nascimento das idéias que vieram culminar nesta pesquisa. No ano de 2001, inquieto por algumas dúvidas relacionadas à minha inserção profissional, um certo mal-estar difuso e sensação de falta de nexo, comecei a planejar um modo para imprimir novo sentido à vida. A idéia de fazer uma viagem, que já existia, fortaleceu-se. Conhecer novas terras, pessoas, idéias, além de fascinante, parecia poder me ajudar a sair daquela crise. Uma certa indignação com o descompasso entre os grandes avanços tecnológicos e científicos, por um lado, e do outro uma raquítica estrutura nas relações humanas, no cuidado com a saúde, com a educação e com o outro, típicas da nossa sociedade, potencializavam o quadro. Alegrei-me ao descobrir que muitas pessoas subvertiam os códigos convencionais da nossa existência urbana, vivendo em comunidades alternativas existentes pelo Brasil e deliberei que nas cidades por onde eu passasse, deveria conhecer essas pessoas. Na escolha de um roteirosugestão de viagem privilegiei alguns ‘santuários naturais’, lugares em que poderia mais facilmente encontrar tais comunidades, assim fui levado a algumas das principais chapadas desse nosso belo país: Diamantina, dos Veadeiros e dos Guimarães (como também às imediações da Serra da Mantiqueira, no sul mineiro, onde conheci o Santo Daime). Acreditava que, caso tal empreitada não se validasse em si mesma, nas vivências e aprendizagens que teria, poderia ao menos despertar alguma idéia para um projeto de mestrado futuro. Quanto a essa segunda possibilidade já possuía a seguinte perspectiva: buscaria conhecer como essas comunidades lidavam com a questão da auto-sustentação. Talvez dessa forma entendesse melhor através de quais mecanismos buscava-se criar padrões sociais diferenciados e relativamente recortados da sociedade mais ampla na qual estão inseridos. Suspeitava que poderia depois associar à questão da auto-sustentação, o conceito de autopoiesis, que Maturana e

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Varela, em sua biologia cognitiva, tratam como das características básicas do viver; a capacidade de geração, de criação das próprias condições de existência, que pode ser vista desde os organismos unicelulares até as formações mais complexas, a busca de condições que garantam a sobrevivência é geral. Para não prolongar muito, foi nessa rota que cheguei à comunidade do Matutu, em Aiuruoca e lá entrei em contato com a doutrina daimista. Pois bem, apesar de não ter me tornado um fardado eu freqüentei alguns trabalhos espirituais da doutrina. Sem dúvida nenhuma, tal participação foi fundamentalmente enriquecedora. Aos que já conhecem o Santo Daime não é difícil compreender porque os vegetais que lhe compõem são designados de “plantas professoras” ou “plantas mestras”, sobretudo nos meios curandeiros da vasta região amazônica. As aprendizagens, especialmente relacionadas ao auto-conhecimento (no primeiro experimento, por exemplo, fui levado a ressignificar diversas situações da minha história pessoal, presentificadas em flashes de várias circunstâncias já vividas, especificidades a respeito de relacionamentos interpessoais, inclusive detalhes não mais presentes na memória, tudo sob novas perspectivas, instaurando outros sentidos indubitavelmente vivenciados como mais amplos e esclarecedores), à tessitura do real (que facilmente pode ser sentido como comportando dimensões existenciais mais sutis e menos concretas que o visível mundo físico, o que os religiosos vão designar por “plano espiritual”, que também faculta um sentimento de unidade conectando tudo que compõe a vida, experimentado com tanta convicção quanto o é a certeza do teor de inenarrável que a acompanha), etc. Como é fácil notar, a importância e o caráter especial com que foram vividos tais efeitos, comportam uma complexidade dificultosa de se falar a respeito num universo tão distinto do religioso quanto o acadêmico. A linguagem científica e a religiosa parecem opor-se largamente quanto à forma de perceber e explicar o mundo à sua volta, de modo que algo dessa empreitada de fazer comunicar tais esferas parece fadada ao fracasso. Cada universo pauta-se numa lógica de apreensão e codificação da realidade às vezes inversa à do outro. Um mal-estar aflorava ao perceber em alguns conteúdos uma impossibilidade de tradução em palavras ou numa narrativa descritiva objetiva. Muito se inscrevia na ordem do não-dito, não pronunciável porque profundamente marcado no registro do sensível, uma experiência afetiva e corporalmente registrada mas com poucas chances de se transmutar ao simbólico. Lembrava-me de Verger e do título da exposição de fotos e artefatos de sua vida e obra organizada pela Fundação Pierre Verger: “O mensageiro entre dois mundos, o olhar viajante de Pierre Fatumbi”. Pensei na dureza de pretender-se tradutor entre mundos que falam línguas tão distintas.

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A convicção quanto à importância e ao saber inerentes aos vividos em alguns ritos daimistas nem sempre comportavam a possibilidade de uma justificação segundo os critérios da racionalidade ocidental, cartesiana, o que em nada parecia invalidar ou desvalorizar o aprendido. Apesar das dificuldades de tal magnitude, outra sensação nos acompanhou: uma tentativa de tanger o experimentado não deveria, contudo, ser abandonada, apesar das limitações explanadas. Ademais, assumimos um compromisso com a academia ao transformarmos o que poderia não passar de uma experiência pessoal em projeto de pesquisa a respeito de um fenômeno descrito pelos daimistas: haviam experimentado mudanças ontológicas percebidas como decorrentes das vivências com o Santo Daime. Agora os critérios de elucidação e validação do evento estudado passavam a depender, não mais da minha experiência, mas das declarações e posicionamentos manifestados pelos que colaboraram para a realização dessa pesquisa, os daimistas dos grupos estudados. O trânsito entre o espaço acadêmico e o religioso não foi nada fácil e as especificidades desses deslocamentos são discutidas também por outros pesquisadores do campo ayahuasqueiro. Bia Labate, importante estudiosa do assunto, busca estimular a reflexão sobre os aspectos dessa “dupla inserção”. Co-organizadora de O Uso Ritual da Ayahuasca6 com Wladimyr Sena Araújo, publicação que reúne pesquisas nacionais e estrangeiras muitas das quais foram apresentadas no I CURA (I Congresso sobre o Uso Ritual da Ayahuasca) que aconteceu em 1997, na cidade de Campinas no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Tal evento foi idealizado e organizado por Labate que também publicou recentemente um outro livro, fruto da sua dissertação de mestrado: A Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos7. Na introdução deste trabalho, a autora trata do histórico da sua pesquisa e de aspectos metodológicos típicos dos estudos sobre o que denomina “religiões ayahuasqueiras brasileiras” cujos principais representantes são o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal, grupos que tem como centro de suas práticas o consumo religioso do chá ayahuasca, nesses grupos mais conhecido por “Daime” (na Barquinha e no Santo Daime) ou “Vegetal” (na UDV – União do Vegetal). A bebida tem ainda várias outras denominações indígenas, além de ayahuasca, que são adiante mencionadas no tópico sobre os distintos contextos do consumo da ayahuasca. A antropóloga que é fardada no Santo Daime, descreve as dificuldades sentidas pelo pertencimento duplo: “Para ser sincera, sinto-me num fio: para os daimistas talvez eu seja mais uma cientista, uma pesquisadora, na academia, a minha filiação religiosa pode ser vista com

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LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. (orgs). O Uso Ritual da Ayahuasca. Campinas, SP: Mercado de Letras, São Paulo: Fapesp, 2002. 7 LABATE, B. C. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas, SP: Mercado de Letras, São Paulo: Fapesp, 2004. 10

desdém ou preconceito”8. Também experimentei tal sensação, apesar de não ter aderido ao grupo pesquisado da mesma maneira que Labate. Se num dos grupos religiosos, quando falei da pesquisa fui logo no começo indagado com uma atmosfera tipo: o que pretendes? Na universidade tive que ouvir posições claramente preconceituosas, fruto de um desconhecimento do assunto que eu tratava, travestido em piadinhas feitas por colegas de curso insinuando dever ser bom estudar algo que produz um “barato legal”. Naturalmente tais “brincadeiras” refletem uma ignorância a respeito da complexidade do processo desencadeado pela experiência ritual daimista, o que muitas vezes impôs travessias vivenciais bastante dolorosas e difíceis, que bem distantes de ser um “barato” confrontavam com experiências limite de quase-morte, só amenizadas com a posterior percepção e desencadeamento de insights ligados ao que então podia ser compreendido como mortes simbólicas, reviravoltas de significações ligadas à vida. A esse respeito vale citar uma passagem do interessante artigo de Soares no qual ele diz:

“Hipóteses sociológicas à parte, não há como negar que estão em jogo temas, concepções e comportamento referentes a esferas básicas da vida social e da experiência existencial: da família à política, da educação aos caminhos profissionais, da identidade aos cuidados com o corpo – frequentemente, aliás, ao contrário de certas experiências e determinadas observações do senso comum, mais próximos da disciplina espartana do que de um vago e pervasivo “narcisismo hedonista” (...).”9

Aproveitando essa menção aos cuidados com o corpo, notamos que Soares observa com bastante precisão as especificidades e nuances que essas relações assumem na cultura daimista. Ele demonstra que há uma inseparável articulação entre o físico e o “psicológico espiritualizado” e que a

“(...) saúde supõe qualidades extrínsecas ao funcionamento autônomo da máquina humana, como a adesão a valores, o padrão de atitudes, a relação com os outros e com a natureza, com a própria espiritualidade e com a alimentação. Saúde é o índice de ‘integração cósmica’ ou de equilíbrio com a unidade harmônica do todo”10. 8

Op. cit., p. 34. SOARES, L. E. “O Santo Daime no contexto da Nova Consciência Religiosa” in: LANDIM, L. (org.). Cadernos do ISER, nº. 23 – Sinais dos Tempos-Diversidade Religiosa no Brasil. Rio de Janeiro, ISER (Instituto Social de Estudos da Religião), 1990. 10 Op. cit., p. 266. 9

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Isso nos recorda que, no decorrer dessa pesquisa, várias expressões ocorreram para nos referirmos às mudanças existenciais mencionadas como conseqüência da experiência extática daimista: cura, transformação, saúde, renascimento espiritual, enfim, a dificuldade revelava nosso impasse. Usar a palavra cura parecia remeter, de maneira muito intensa, à dimensão orgânica e privilegiava, assim, um modelo de compreensão de influência biomédica pouco condizente com a perspectiva daimista. Saúde nos trazia essa mesma dificuldade exceto se lembrássemos das especificidades mencionadas na citação acima, ou ainda, se retomássemos a informação trazida na raiz latina da palavra: Salus, que vem a ser a mesma que compõe a palavra salvação; “coincidência” preciosa pois nos coloca em contato simultâneo com uma imagem de ocorrências tanto bio-psíquicas, quanto metafísicas e religiosas. Renascimento espiritual apontava, em sentido inverso, para um privilégio da leitura religiosa podendo vir a dificultar o entendimento dos que não se situam internamente em tal discursiva. Portanto falar em transformação foi despontando como mais apropriado para esse estudo, primeiro porque se presta bem a descrever as modificações narradas pelos adeptos da doutrina, apesar de que, mesmo tendo sido usada por alguns, era principalmente cura a palavra preferida pela maioria dos fiéis; depois a palavra ajudava por ser típica do nosso próprio campo de reflexão original: a psicologia. O próprio Jung a ela recorre para remeter a esses processos, como será visto na segunda parte do trabalho. A expressão Doutrina da Floresta será usada como sinônimo para Santo Daime. ‘Doutrina’ é como frequentemente os daimistas se referem ao corpo institucional de que fazem parte, a palavra também aparece em muitos hinos com esse sentido. Floresta, evoca o contexto de origem dos primeiros cultos daimistas, nascidos na região amazônica e é também usada aqui em referência à forma como é tratada por Jung, enquanto metáfora para falar do inconsciente, por remeter ao tema do desconhecido, de mundo inexplorado, lembrando o obscuro e profundo, fonte de vida e mistério. Curiosamente ‘Floresta’ é também o nome do bairro onde se situa um dos grupos daimistas aqui estudado: a igreja de Juiz de Fora, o Céu das Estrelas. Também Soares, em artigo já mencionado, articula a continental floresta Amazônica com a dimensão inconsciente; depois de sugerir numa espécie de topologia nacional, situar-se no Sul e Sudeste nossa racionalidade, nossa afetividade no Nordeste e Centro-oeste, ele diz da Amazônia:

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“Nem coração, nem razão: pulsa, lá no interior sombrio e imperscrutável da selva, algo que é vivo e se manifesta por excessos, é fonte inesgotável de vida e ameaça de aniquilamento e morte, algo que é irredutível e irremediavelmente outro, exterior, distante e também central, intimo próximo, presente; enfim, algo que na topologia simbólica da nação ocupa o lugar do inconsciente ou, talvez mais precisamente, do Isso, no modelo freudiano da alma humana.”11

Como já dissemos, o trabalho está dividido em duas partes. Na primeira pretendemos dar uma visão ampla e rápida sobre o universo da assim chamada religiosidade ayahuasqueira. Que universos sociais, simbólicos e míticos agregam-se em torno da bebida ritual dos povos da Amazônia, o chá ayahuasca, o vinho das almas em língua quéchua? Desde pilar central do edifício cosmogônico de dezenas de nações indígenas, onde geralmente é dos principais recursos da tecnologia sagrada de que os xamãs lançam mão, passando pelas comunidades ribeirinhas, os designados mestiços, grupos dos descendentes do encontro entre colonizadores e nativos, que herdaram, entre outras coisas, muitos dos conhecimentos fitoterápicos e relacionados ao reino vegetal que possuíam os antigos moradores do local. Estudaremos instigantes movimentos religiosos de híbrida constituição que aglutinam em suas crenças e práticas elementos cristãos, xamânicos, esotéricos, espíritas e afro-descendentes, dos quais destacaremos os três mais conhecidos e pesquisados: a Barquinha, a União do Vegetal, e o Santo Daime, este último grupo aquele que enfatizaremos naturalmente por tratar-se do que mais conhecemos teórica e experiencialmente, mesmo sabendo que há muito mais a saber do que conseguimos metabolizar e concretizar no texto que segue. No tópico intitulado Êxtase, Luz e Transformação antecipamos de algum modo a tônica da segunda parte da dissertação, pois aí referenciamos certas dimensões míticas da doutrina daimista, como por exemplo alguns dos seus aspectos

apolíneos e dionisíacos. Buscamos

também introduzir algumas comparações entre vivências recorrentes a diversas tradições como, no caso, a experiência de uma Luz enquanto evento místico e essa estratégia voltará a ser usada sempre que pudermos nos valer dos estudos comparados que contribuam nesse sentido. Tratamos ainda nessa parte das classificações etnobotânicas das plantas que compõem o chá, bem como dos elementos químicos mais destacados presentes no cipó Jagube e na folha Rainha, maneira principal como os daimistas designam cada um dos elementos constituintes do chá que resulta da sua união. Santo Daime é o nome dado a esse Ser Divino, conforme compreendem, produzido pela fervura do cipó (macerado pelos homens) mais a folha 11

Op. cit., p. 272-273. 13

(criteriosamente selecionada e livre das impurezas eventuais pelo trabalho exclusivamente feminino). Como atuam na dinâmica dos nossos neuro-transmissores esses elementos responsáveis pelo efeito-ayahuasca e que desdobramentos ocasionam? Por fim abordamos os principais apontamentos encontrados nas pesquisas já realizadas sobre a questão da cura, ou como preferimos tratar nesse trabalho, das transformações cujo desencadeamento é atribuído ao contato com o Santo Daime. De qualquer forma esse tema não estará apenas circunscrito a esse último ponto, uma vez que a atribuição do valor terapêutico , as mudanças ontológicas amplas por que passaram, por experiência, as principais lideranças ou fundadores de alguma das religiões ayahuasqueiras, enfim, a atribuição desse caráter transformacional, perpassam os contextos simbólicos e imaginários por onde se costuma consagrar essa bebida. Tratamos, ainda no último ponto dessa parte, sobre o hibridismo típico das religiões ayahuasqueiras e nos questionamos sobre o valor de algumas posturas dicotomizantes, próprias do discurso racionalista, na abordagem de manifestações culturais como a religião. Apontamos as proximidades estruturais e históricas entre o Santo Daime e a Umbanda, ambas bastante flexíveis aos contatos e rearranjos promovidos pela comunicação intereligiosa, e também às diferenças, em especial, no que tange às modalidades do contato com o mundo espiritual. Já na segunda parte desejamos trazer as informações vindas da pesquisa de campo, das entrevistas, do diário, das leituras dos hinos e orações daimistas, dos símbolos e imagens que estimularam o entendimento de como se processam os eventos existenciais e psíquicos vivenciados no âmbito da cultura daimista, compreendidos como facilitadores e instauradores de processos transformacionais. Para isso tentamos mostrar os principais modos de como os fiéis se referem ao sacramento psicoativo, à dialética entre a dimensão sagrada e a dimensão técnica, e como elas funcionam, ou melhor, como é percebido seu funcionamento no que tange à sua ação e efeitos produzidos na interação com o dinamismo humano. Paralelamente à apresentação das experiências de transformação relatadas pelos colaboradores da pesquisa, bem como sugeridas em imagens do universo daimista, trabalharemos com as reflexões sobre mitos e símbolos relacionadas à problemática circunscrita em nossa investigação. Eliade e Jung, principalmente, nos fornecem as bases teóricas para tal empreitada: o primeiro com seu método comparativo da História das Religiões favorece a compreensão de alguns fenômenos que abordamos através da evocação das similaridades que guardam com outros fatos culturais mais estudados, ou já bem conhecidos, como o êxtase xamânico ou o fenômeno da luz mística, por exemplo. É também por esse mesmo viés que

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resolvemos trazer à cena histórias da mitologia grega nas quais identificamos temas comuns à nossa pesquisa, como por exemplo, o da morte e renascimento, tão central nos relatos de alguns heróis míticos quanto em descrições de aspectos da ritualística do Santo Daime. Quanto a essas cenas mitológicas o auxílio valioso é, sobretudo, o de Junito de Souza Brandão. Já Jung nos ajuda a pensar como uma prática religiosa pode influenciar na ordenação de conteúdos simbólicos e experiências, fornecendo sua assimilação à dinâmica da subjetividade humana. Também nos permite abordar como se desenrolam os processos de transformações psíquicas e, mais especificamente, quais os aspectos mais destacados da sua teoria sobre a individuação, que é como o autor se refere aos processos de desenvolvimento psicológico. Cabe frisar que pretendemos, com a presença nesse trabalho de conceitos da psicologia junguiana, não uma tentativa de propor uma interpretação da experiência religiosa daimista à luz de tal teoria, porém encontrar paralelos, evocar semelhanças entre ela e os processos transformacionais subjetivos, tais como descritos pelos adeptos do Santo Daime bem como sugeridos em símbolos e imagens presentes na doutrina. Sem pretensões amplas nem definitivas seria ensaiar um movimento análogo ao do pensador suíço em suas obras posteriores a 1930 onde, após ter demonstrado o processo de desenvolvimento humano acompanhando vários casos individuais ele os compara: “(...) às vias de aperfeiçoamento propostas por certas vias de aperfeiçoamento espirituais. O analista se torna de algum modo historiador das religiões, e sua pesquisa se focalizará principalmente sobre três universos tradicionais: o lamaísmo tibetano, (...) a alquimia ocidental (...) e finalmente, o cristianismo (...)”12. Focalizaremos seus estudos sobre o cristianismo e a alquimia, por razões que nos parecem claras: o primeiro por ser o principal universo de referência, ao lado do universo xamânico, na constituição da simbólica daimista e a alquimia por ser abordada como filosofia oculta, que projeta sobre a matéria química eventos que se processam no âmbito do psíquico, o que nos estimula a fazer assossiações com os desdobramentos subjetivos disparados pela química, mas não somente, do chá psicoativo que estudamos.

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MASQUELIER, Y. T. C. G. JUNG – A sacralidade da experiência interior. São Paulo: Paulus, 1994, p. 78. 15

I – Primeira Parte - Introdução 1. Os contextos de uso da Ayahuasca

Ayahuasca, Santo Daime ou Vegetal são as formas mais usadas para referir-se ao chá feito a partir de um cipó e das folhas de um arbusto, considerados sagrados pelos adeptos das religiões que o utilizam, bem como por várias tribos da Floresta Amazônica. O chá é consumido também por muitas pessoas do meio caboclo amazonense, que o conhecem através dos curandeiros locais. A planta foi classificada em 1852 pelo botânico Richard Spruce, mais adiante apresentaremos outras informações a respeito da história da pesquisa acadêmica sobre esse recurso da medicina natural amazônica. Tradicionalmente usada pelos índios amazonenses em seus rituais xamânicos, contexto em que apresenta uma variedade de outras designações13, o vegetal logo foi incorporado por algumas pessoas do meio caboclo, especialmente através dos xamãs mestiços, reconhecedores dos amplos poderes atribuídos ao mesmo. Mas a expansão dos usos cerimoniais da ayahuasca ainda ganharia novas feições. Na primeira metade do século passado, nos limites da Amazônia brasileira, começaram a se institucionalizar os primeiros grupos religiosos estruturados em torno do consumo ritual da ayahuasca, constituídos num âmbito de predominante catolicismo popular, mas também sob influência afro-descendente, espírita e esotérica. O uso institucionalizado da ayahuasca entre grupos não indígenas começou na Amazônia na década de 30 do século XX, tempo da criação do primeiro centro daimista, hoje conhecido como Alto Santo. Seu fundador, Raimundo Irineu Serra, nascido no Maranhão, chegou em 1912 à região para trabalhar nos seringais. Não só entre índios, mas também entre a população mestiça ou cabocla, já há muito tempo utilizava-se cerimonialmente o chá, atribuindo-lhe importância na identificação, prevenção ou tratamento de doenças; nos rituais mágico-religiosos ou como facilitador dos contatos sociais. É divulgado que grupos indígenas peruanos foram responsáveis pela iniciação de Raimundo Irineu, mais tarde conhecido como Mestre Irineu. Acredita-se que através da tradição espiritual dos Incas, a ingestão da Yajé foi transmitida às populações ainda residentes na região. A designação Santo Daime foi inicialmente feita pelo Mestre Irineu, criador do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo (CICLU). A forma Santo Daime tornou-se comum, tanto para referir-se ao chá quanto aos cultos vinculados ao CICLU e ao CEFLURIS (Centro

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Entre os quais yagé, nixipae, shori, ondi, kahi ide, gahpi, capi, e he ohekoa são alguns deles. 16

Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra)14. Costuma-se explicar que o nome Daime tenha nascido dos rogativos (dai-me força, dai-me amor..) constantes nas situações de consumo do chá entre os caboclos, quando pediam o que desejavam conseguir com auxílio dos planos espirituais mas encontramos pelo menos uma outra hipótese para a proposição do nome Daime. Para Monteiro da Silva a palavra teria sido composta através de recursos cabalísticos esotéricos. Não nos esqueçamos que o Mestre Irineu era já naquela época filiado às ordens esotéricas Rosacruz e Comunhão do Pensamento. A primeira parte da palavra DA estaria em conexão com a última sílaba de JURAMIDÃ (ou DAM), estando ambas relacionadas a DÃ, a serpente mítica dos cultos Fon de DAHOME. A serpente é uma visão recorrente nas mirações descritas em distintos contextos de utilização da ayahuasca, aliás esse nome de origem Quíchua cipó das almas - evoca por semelhança a imagem da serpente. O animal é também símbolo do orixá Oxumaré, relacionado à transformação, aliás como a serpente de uma maneira bastante recorrrente é concebida nas mitologias de maneira geral, tal como na imagem do urobóros, a serpente que engole a própria cauda, enquanto símbolo do princípio e fim cíclicos do universo15. Juramidam é considerado o nome astral do Mestre Irineu, é também compreendido como uma entidade associada a Cristo, utiliza-se também a expressão “Povo de Juramidam” para referir-se aos daimistas conforme nos esclarece Vera Fróes:

“A expressão ‘Povo de Juramidam’ refere-se aos descendentes de Juramidam, nome que o iniciador da doutrina recebeu das entidades divinas do Santo Daime. Juramidam é o chefe da missão. Jura é o pai e midam é o filho – Juramidam representa a segunda volta de Jesus Cristo na Terra, sendo assim, o Povo de Juramidam é o povo de Jesus Cristo.”16

O CEFLURIS é a entidade que administra todas as igrejas do Santo Daime (no Brasil e no exterior) a ele vinculados, e foi criado pelo Padrinho Sebastião que ao lado do Mestre Irineu, segundo Groisman17 “(...) são as figuras centrais do panteão das lideranças espirituais dos daimistas ligados ao CEFLURIS.” Os outros grupos mais conhecidos que consideram a ayahuasca um sacramento, que serão apreciados mais detidamente adiante, são a União do 14

LABATE, B.C. e ARAÚJO, W. S (orgs.). Op. cit., p. 231-232. MONTEIRO DA SILVA, C. “O uso ritual da ayahuasca e o reencontro de duas tradições. A miração e a incorporação no culto do Santo Daime”. In: LABATE, B.C. e ARAUJO, W.S. (orgs.). Op. cit., p. 367. 16 FRÓES, V. Santo Daime cultura amazônica, História do Povo Juramidã. Manaus: Suframa, 1986, p. 26. 17 GROISMAN, A. Eu Venho da Floresta - um estudo sobre o contexto simbólico do uso do Santo Daime. Florianópolis: ed. da UFSC, 1999, p.17. 15

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Vegetal e a Barquinha, tendo este último ficado praticamente restrito à região amazônica, salvo as exceções de alguns núcleos criados em outras regiões, enquanto os outros dois, Santo Daime e União do Vegetal, expandiram-se pelo Brasil e também para outros países. O chá tomado pelos adeptos das religiões ayahuasqueiras é obtido através da decocção do cipó Jagube (Banisteriopsis Caapi) misturado com as folhas do arbusto Psychotria Viridis, conhecida como folha Rainha ou Chacrona. Entre os índios são reconhecidas dezenas de outras plantas que podem ser mescladas ao chá, a partir da identificação de necessidades nas quais as mesmas são utilizadas como remédios. Por produzir estados de consciência que transcendem os estados convencionais, transformando a maneira como a realidade é percebida, a substância é considerada psicoativa, expressão que resolvemos usar em detrimento de outras que evocam uma carga de sentido pejorativo, como drogas por exemplo. Concordamos com Perlongher e julgamos também que “a esta altura fica muito difícil continuar sem questionar a amplidão capciosa da noção médicopolicial de drogas”18. A expressão alucinógeno também nos parece amplamente imprópria; em psiquiatria define-se alucinação como erro perceptivo de caráter psicopatológico19, entendimentos que indicariam um descrédito para com o sujeito da experiência atribuindo-lhe juízos de valor negativizantes, além de negligenciar a recorrência de sensações e imagens descritas por vários daimistas, como por exemplo, a percepção de certas luzes e cores, sensação de ligação com o meio circundante com correlata percepção de dissolução da individualidade, ampliação de conhecimentos etc.20 Conforme a perspectiva de alguns autores21, também se costuma usar a expressão enteógeno. Derivada do grego entheos, significa o que leva alguém a experimentar o divino em si; esse termo parece se aproximar bem do que pensam os daimistas sobre a substância. O neologismo enteógeno foi apresentado por Gordon-Wasson22, como proposição de um comitê constituído para discutir as imprecisões dos vocábulos empregados para referir-se às substâncias vegetais sagradas, em especial àquelas usadas nos Mistérios de Eleusis, Mistérios Órficos entre outros. Recusavam-se, sobremaneira, à imprópria e equivocada expressão alucinógeno e explicavam o sentido da nova palavra proposta: “dios generado dentro”. 18

PERLONGHER, N. “Droga e êxtase” in: Religião e Sociedade. V. 16. n.3, Rio de Janeiro: ISER, 1994. Para ver uma interessante discussão sobre a leitura psicopatologizante que faz equivaler o delírio e, nessa mesma lógica, a alucinação a erros de juízo ou idéias patologicamente falsas, recorrer ao texto de SERPA JR.,Octávio. “Dando sentido ao mundo: classificar e delirar” in: COSTA, Jurandir F. Redescrições da psicanálise, RelumeDumará, em que o autor, a partir da noção wittgensteiniana de jogos de linguagem demonstra que conceber toda produção discursiva outra enquanto erro, significa que optamos por nos apoiar numa teoria referencial do significado, típica das ciências da natureza, o que pode ser uma opção limitante. 20 ARAÚJO, W.S. Navegando Sobre as Ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas, São Paulo: ed. da UNICAMP, 1999, p. 69-88. 21 Por exemplo: MACRAE, E. Guiado Pela Lua. São Paulo: Brasiliense, 1992. 22 GORDON-WASSON, R. La búsqueda de Perséfone. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p.32. 19

18

Segundo Groisman23, o uso de substâncias psicoativas em contexto religioso ganha visibilidade no Brasil, sobretudo a partir da década de oitenta. Nesse tempo foram criados núcleos daimistas fora da região Amazônica, assim como se publicam alguns trabalhos acadêmicos sobre o assunto. A partir do contato com os adeptos de dois núcleos daimistas, um situado numa área de reserva natural da Serra do Papagaio, no pequeno município de Aiuruoca, e outro localizado no bairro Floresta, na cidade de Juiz de Fora, investigamos como estes sujeitos percebiam mudanças em suas vidas como decorrência do contato com o Santo Daime. Uma importante categoria a ser considerada nesse estudo é a miração. De acordo com Monteiro da Silva24, o termo possui status sagrado, significando mais que ver “(...) o estado de miração não se confunde com as visões ‘alucinatórias’. Podem ocorrer fenômenos homólogos aos estados de êxtase, transe ou ‘possessão’.” Complementando a definição do fenômeno, acompanhemos Groisman que diz que a miração (...) é uma palavra especial usada para definir o estado de consciência no qual é possível ter contato com a espiritualidade. Ela se manifesta através de um conjunto de percepções que proporcionam uma sensação de transcendência. (...) pode ser uma visão, (...) sons ou cheiros que não fazem parte da situação em que se está; pode ser uma introdução num outro universo, onde transitam seres de natureza desconhecida; (...) pode ser uma experiência cognitiva.25

Ao apreciar tais experiências subjetivas não podemos ignorar que elas estão submetidas a certos fatores condicionantes. Para Winkelman, citado por Peláez26 seriam três os fatores relacionados à experiência psicodélica: neurofisiológicos, set e setting. O primeiro diz respeito às características do agente consumido na sua ação sobre o organismo; o set engloba as características psíquicas do sujeito bem como as suas atitudes relacionadas à experiência; já o setting inclui o entorno social e aspectos culturais que vão modelar e dar sentidos à experiência. Se esses dois últimos fatores, set e setting, têm um caráter particular - onde podemos situar as especificidades orientadas pela cultura daimista quanto ao setting - já os fatores neurofisiológicos são considerados pelo autor como universais, visto que sua atuação ocorre nos mesmos receptores cerebrais humanos. 23

GROISMAN, A. op.cit. MONTEIRO DA SILVA, C. Op. cit., p. 367. 25 GROISMAN, A. op.cit, p. 55-56. 26 PELÁEZ, M.C. No mundo se cura tudo, interpretações sobre a “cura espiritual” no Santo Daime. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFSC, Florianópolis, 1994, p.18. 24

19

O uso ritual de substâncias psicoestimulantes como o Santo Daime, atrai o interesse de diversos segmentos do saber, dada a multiplicidade de fatores constituintes do fenômeno. Assim, a química, a biologia, a farmacologia, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a etnobotânica e a psiquiatria são alguns exemplos de abordagens que convergem seus interesses para o estudo do tema. Diante da híbrida constituição do fenômeno, somos convidados a tentar uma articulação das contribuições oriundas de distintos campos do conhecimento, promovendo uma maior fluidez entre as fronteiras disciplinares, o que julgamos ser especialmente importante para as ciências humanas. Em se tratando de um estudo em ciências das religiões, concordamos com Camurça27 que a considera uma área “(...) constituída por um agregado de ciências (humanas) particulares, cada uma com seu método próprio, a tratar do tema comum da religião”. Área que tende, conforme o autor, a um crescente pluralismo metodológico que nos distancia da idéia de um paradigma único norteando os estudos do campo. Dessa forma, podem nos ajudar os estudos sobre a composição química do chá esclarecendo como atua no nosso sistema neuroendócrino. A psicologia e a farmacologia podem facilitar o entendimento sobre os efeitos psíquicos e fisiológicos da substância. A primeira disciplina possibilitaria ainda a discussão sobre o caráter terapêutico atribuído ao Daime relacionando-o com suas próprias perspectivas teóricas quanto a concepções de cura. A antropologia e a sociologia, por outro lado, além de auxiliarem a compreender a dimensão cultural e grupal formatadoras da experiência transcendente, servirão como inspiração para os modelos metodológicos de abordagem do tema. Essa tendência em considerar as contribuições de diversas disciplinas vem sendo preferida por alguns pesquisadores contemporâneos do fenômeno ayahuasca. Nós, apesar de podermos utilizar as contribuições de distintas áreas, fornecendo uma compreensão mais ampla do objeto pesquisado e buscando evitar reducionismos, teremos, porém, que reconhecer a necessidade de delimitar nosso foco de atenção e considerando as pretensões deste trabalho priorizamos as reflexões de caráter antropológico e psicológico. Mesmo concordando com Morin, que nos diz:

27

CAMURÇA, M. “Entre as ciências humanas e a teologia: gênese e contexto do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião de Juiz de Fora em cotejo com seus congêneres no Brasil”. In: O Estudo das Religiões. GUERREIRO, Silas (org.). São Paulo: Paulinas, 2003, p.142-3. 20

“Assim, todo o acontecimento cognitivo necessita da conjugação de processos

energéticos,

químicos,

fisiológicos,

psicológicos,

cerebrais,

existenciais, culturais, lingüísticos, lógicos, ideais, individuais, coletivos, pessoais, transpessoais e impessoais que se engrenam uns aos outros. O conhecimento é, portanto, um fenômeno multidimensional, no sentido em que é, de maneira inseparável, ao mesmo tempo físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural, social.”28

Precisaremos centralizar o foco das nossas lentes a fim de perseguir o objetivo central deste trabalho, a saber: dar visibilidade às narrativas bem como a alguns símbolos doutrinários que designam transformações ontológicas. A fim de melhor vislumbrar as características da cultura ayahuasqueira vamos agora verificar suas principais nuances, estudando os distintos contextos de consumo da ayahuasca com ênfase nos aspectos históricos e na diversificação dos modos de consumo surgidos com a expansão dos grupos ayahuasqueiros. Labate investiga na sua dissertação de mestrado o que denomina de novas formas de consumo da ayahuasca29 nos centros urbanos. Ela encontrou várias situações em que se reinventaram as características do consumo da substância: em grupos de teatro, trabalhos destinados à recuperação de moradores de ruas, entre praticantes de meditação do Osho, entre músicos, no atendimento em consultórios e na realização de terapias corporais, entre candomblecistas, associado à terapia de florais e no contexto de práticas neoxamânicas. A possibilidade de emergência dessas novas situações deve-se, sobretudo, à expansão das religiões ayahuasqueiras brasileiras30 para além das fronteiras da região amazônica, bem como devido às buscas que motivaram muitos moradores de áreas urbanizadas do país a conhecerem o uso da substância no seu contexto originário, seja no âmbito desses grupos religiosos, com curandeiros do meio amazônico, ou mesmo entre os índios, detentores originários dos conhecimentos sobre os potenciais de diversas plantas. Depois de retornarem para suas cidades de origem muitas dessas pessoas providenciaram formas de permanecer participando dos

28

MORIN, E. apud DIAS JR., W. Diário de viagem. In LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. (orgs.). Op. cit. LABATE, Beatriz Caiuby. A Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UNICAMP, 2000. 30 Conforme já mencionado, podem-se considerar atualmente três as principais religiões ayahuasqueiras: Santo Daime, UDV e Barquinha. Segundo LABATE (op. cit., 2002, p. 231-232), Santo Daime, além de referir-se à forma como a maior parte dos fiéis desses cultos designam a bebida ritual, é também o nome da religião do Alto Santo, centro criado por Raimundo Irineu Serra, e do CEFLURIS, Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, criado por Sebastião Mota de Melo, que funciona como uma entidade coordenadora dos demais centros espalhados pelo Brasil e exterior a ele vinculados, também referidos como Santo Daime. 29

21

trabalhos espirituais com ayahuasca aderindo a algum núcleo já existente ou mesmo fundando um ponto para realização de cerimônias rituais com as plantas amazônicas, seja tentando manter o padrão ritual conforme haviam aprendido ou ainda criando outros rituais a partir de múltiplos referenciais ou matrizes religiosas a que se vinculavam ou passaram a se vincular esses sujeitos após o contato com o Santo Daime. Os fundadores da religião do Santo Daime e da União do Vegetal, ou UDV, respectivamente Mestre Irineu e Mestre Gabriel, foram iniciados no uso da ayahuasca através de pessoas do meio caboclo, o primeiro com um curandeiro peruano, e o segundo entre os seringueiros. Estes últimos, por sua vez, são representantes da classe dos que aprenderam historicamente a usar Plantas Sagradas com a população indígena. Visando historicizar o processo de expansão dos usos da ayahuasca, pretendemos caracterizar brevemente os distintos contextos em que o fenômeno ocorre. Buscando seguir o mesmo sentido em que o processo de expansão do uso ritual da ayahuasca se orienta31, apresentaremos seqüencialmente as principais características do consumo do chá entre os índios, a população rural amazônica e entre os adeptos dos três grupos religiosos mais destacados, dos quais traçaremos em linhas gerais os aspectos históricos mais relevantes. De modo a estabelecer uma perspectiva panorâmica sobre o estado contemporâneo do consumo da ayahuasca, iremos agora acompanhar suas especificidades de acordo com o meio onde ele ocorre.

1.1. Ayahuasca entre os índios. Labate32 afirma que na Amazônia Ocidental foram contabilizados 72 grupos indígenas que usam ayahuasca. Influenciados pela percepção de várias similaridades de crenças e hábitos, bem como pelo traço comum de conhecer yagé. Os antropólogos, conforme assinala Zuluaga33 designam os diversos grupos do Piemonte Amazônico de “cultura do yagé”e a ayahuasca é entre esses povos a planta mais valorizada.

31

Usando a mesma lógica de organização de O uso ritual da ayahuasca. LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. orgs., op. cit., 2002. 32 LABATE, B. C. “A literatura sobre as religiões ayahuasqueiras”, in: LABATE B. C. e ARAÚJO, W. S. (orgs.), op. cit., p. 231. 33 ZULUAGA, G. “A cultura do yagé, um caminho de índios”, in: LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. (orgs.), op. cit., p. 131. 22

Para Reichel-Dolmatoff34, as experiências com plantas psicotrópicas possuem, entre muitos índios americanos, uma importância capital na constituição de seus conceitos mágicoreligiosos, influenciando e até determinando a mitologia, a simbologia e o manejo de vários estados de consciência fundamentais para seu povo. Pedro Luz, estudando os significados elaborados entre os consumidores indígenas de língua Pano, Aruák e Tukano35, estabelece as características comuns aos diversos grupos. Assinala que as diferenças restringem-se à nomeação e a certas particularidades interpretativas decorrentes das vivências próprias de cada grupo. Também caracterizados pelo autor supra citado como pertencentes a uma área cultural comum, esses diversos grupos indígenas compartilham as crenças na existência de um outro mundo (espiritual ou sobrenatural) que se pode contatar através da bebida sagrada, o que possibilita aprendizados e conhecimentos existenciais valiosos e mesmo indispensáveis; a concepção de que as visões acessadas pelas plantas têm um caráter absolutamente verdadeiro pois permitem um contato com a real essência do mundo, a atribuição de um poder pedagógico à ayahuasca, influenciando a moral e a conduta dos sujeitos que passam a reorganizar suas relações sociais com a ancestralidade e com os seres sobrenaturais, as convicções nas conseqüências terapêuticas da planta “(...) sendo seu uso no diagnóstico e na cura xamãnica presente em todos os grupos vistos neste trabalho.”36 Conclui-se que, enquanto mediadora das formas de apreensão do real, a Banisteriopsis é um veículo fundamental para a constituição e manutenção da identidade tribal entre os grupos pesquisados. Luz diz ainda, no que corrobora com a visão nativa, que certos fatos só podem ser conhecidos através da experiência direta com a substância pois estariam para além da possibilidade de apreensão através da palavra. Zuluaga destaca cinco contextos do consumo não indígena do yagé. Esses usos novos são considerados pelo autor como levianos, questão que merece uma discussão e confronto com outras perspectivas37, especialmente acerca das controversas noções de pureza e sincretismo, o que faremos em momento mais oportuno, quando estivermos discutindo o caráter híbrido da doutrina. O julgamento do autor é bastante apressado e orientado por uma visão meio romântica, 34

REICHEIL - DOLMATOFF, G. “O contexto cultural de um alucinógeno aborígine: Banisteriopsis Caapi”, in: COELHO, V. P. Os alucinógenos e o mundo simbólico. São Paulo: EPU, Ed. USP, 1976, pp. 59-60. 35 Entre os povos de língua Pano foram pesquisados pelo autor os Kaxinawá, os Yaminawa, os Sharanawa e os Marubo; Os Ashaninka e Machigunga do grupo Aruák e os Tukano foram representados através dos Airo-pai, Makunas, Desanas, Barasanas, Sionas e Tatuyos. LUZ, Pedro. “O uso ameríndio do Caapi” in: LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. (orgs.) op. cit. 36 LUZ, P. op. cit., p. 61 37 Tal como a de MaCRAE, E. op. cit., por exemplo. 23

interessada num modelo puro dificilmente existente. Essas novas formas de consumo da ayahuasca por ele apresentadas são: A. Entre a população mestiça nas práticas de curandeirismo, principalmente nas cidades de Iquito e Pucallpa, no Peru, e Mocoa na Colômbia; B. Entre os religiosos brasileiros dos grupos do Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha; C. Como objeto de pesquisas científicas, para elucidação de sua eficácia terapêutica, sobretudo entre médicos ocidentais. Como exemplo temos o Centro de Recuperação de Toxicomanias localizado na cidade peruana de Tarapoto, dirigido pelo médico francês e naturoterapeuta Jacques Mabit, os trabalhos de Josep Fericgla, antropólogo catalão, ou ainda as pesquisas farmacológicas do neuropsiquiatra chileno Claudio Naranjo; D. Entre os chamados neoxamãs e entre pessoas identificadas com o estilo new age, práticas recém-surgidas e nomeadas pelo autor como “um novo humanismo filosófico”38 e, finalmente; E. Aqueles que apenas buscam as sensações provocadas pelas plantas. Uns à procura de experiências mais autênticas e outros mais oportunistas. O autor afirma que se pode conseguir pela Internet uma garrafa de yagé, comenta também da existência de agências norte-americanas que organizam viagens para o Brasil, Equador e Peru, basicamente objetivando o consumo da substância através de “algum pretenso xamã”.

1.2. População mestiça amazônica.

Antes do advento dos grupos religiosos que sistematizaram uma doutrina do uso da ayahuasca, e ainda atualmente, muitas pessoas das comunidades ribeirinhas e outras povoações do meio amazônico também conhecem a tradição de consumo do yagé, principalmente através de xamãs locais. O xamanismo amazônico foi muito estudado por Luna39. Os grupos praticantes dessa tradição, também chamados de vegetalistas, historicamente se constituíram a partir do contato

38

Op. cit., p. 134.

39

LUNA, L. E. “Xamanismo amazônico, ayahuasca, antropomorfismo e mundo natural”, in: LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. (orgs.) op. cit. Nesse artigo encontramos na bibliografia referência a diversos outros trabalhos do autor publicados nos seguintes anos: 1982, 1984, 1986a, 1986b, 1989, 1990, 1991, 1996 e junto com AMARINDO, P. em 1991. 24

entre população indígena e ribeirinha (já missionizados) com os caucheiros 40 (muitos dos quais peruanos). O uso da ayahuasca nesse contexto está fortemente ligado às práticas de curandeirismo. Conforme já mencionamos, esse fenômeno pode ser amplamente encontrado sobretudo em cidades peruanas e colombianas e se trata da aplicação dos conhecimentos sobre as plantas medicinais aprendidos com os índios. MacRae41 distingue o xamanismo mestiço do indígena, do qual o primeiro se originou. Para o autor, o termo mestiço equivale ao caboclo brasileiro. Todo meio amazônico, apesar de abranger territórios de distintos países, possui uma considerável homogeneidade, produtora de um estilo de vida geral com muitos traços comuns. A região sofreu radicais transformações em decorrência da colonização ibérica, posteriormente com a economia da borracha e, com o seu declínio, se registra um grande êxodo dos moradores da floresta em direção aos crescentes centros urbanos regionais. Apesar disso, resistem as práticas xamanicas e um imaginário povoado de espíritos da floresta, da água e do ar. Os curandeiros vegetalistas se reconhecem como católicos e são caracterizados como portadores de lucidez, memória e saúde notáveis, a despeito de ainda circular na literatura uma forma de concebê-los como portadores de patologias e desequilíbrios psíquicos. De acordo com Labate: “Embora em vários países da América do Sul, tais como Colômbia, Bolívia, Peru, Venezuela e Equador, haja uma tradição de consumo da ayahuasca por xamãs e vegetalistas, curiosamente é somente no Brasil que se desenvolvem religiões de população não-indígenas que fazem uso desta bebida.”42 A seguir, examinaremos informações básicas sobre as religiões que se formularam a partir da incorporação do uso tradicional da ayahuasca e buscaremos dar relevo especial aos seus aspectos históricos constitutivos. Note-se que nos detivemos especialmente à religião do Santo Daime, naturalmente por se tratar do grupo religioso que mais nos aproximamos (experiencial e teoricamente) durante a realização dessa pesquisa.

1.3. As principais religiões ayahuasqueiras.

O Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal, apesar de pertencerem à mesma matriz de consumo não-indígena da ayahuasca no Brasil realizam, cada uma a seu modo,

40

Segundo FRANCO e CONÇEIÇÃO ( in LABATE e ARAÚJO (orgs.)op. cit., p.202), os caucheiros são extratores de látex que usam uma técnica diferenciada dos outros seringueiros, pois no seu modo a árvore precisa ser derrubada. 41 MACRAE, E. op. cit., p. 30. 42 Op. cit., 2002, p. 231. 25

rearranjos singulares aglutinando elementos cristãos, esotéricos, kardecistas e afro-brasileiros43. Quanto ao processo de crescimento desses grupos, enquanto o Santo Daime e a União do Vegetal ramificaram-se em direção aos centros urbanos e, posteriormente, para outros países como Espanha, Holanda, Estados Unidos e Japão, lugares que sediam núcleos do Santo Daime, a Barquinha praticamente conservou-se no Acre, onde surgiu. A maior parte das pesquisas já realizadas referem-se ao Santo Daime, talvez por se tratar do grupo que, ao lado da UDV, mais se expandiu através do CEFLURIS. Vamos iniciar abordando-o também por tratar-se historicamente do grupo que primeiro se constituiu.

1.3.1. O Santo Daime.

Pretendemos abordar os principais aspectos presentes na época da elaboração dos primeiros cultos do Santo Daime, o contexto sócio-econômico, as principais matrizes religiosas que ajudaram a formatar a religiosidade daimista, alguns acontecimentos e narrativas sobre as revelações originais, as principais lideranças e as vertentes por eles criadas. Numa perspectiva sócio-histórica, o surgimento dos primeiros cultos daimistas está no momento situado entre os dois grandes ciclos da borracha, o primeiro ocorrera no início do século passado e o segundo nas décadas de 1930 e 1940. É grande nessa época a presença de imigrantes nordestinos, entre os quais está Raimundo Irineu Serra. Para MacRae, tal como mencionamos, há nos costumes e crenças dos caboclos amazônicos do início do século passado uma certa homogeneidade que originou-se a partir dos trabalhos dos missionários que desde o século XVII “... impuseram o catolicismo através do desmembramento das sociedades indígenas e sua incorporação às aldeias missionárias”44. Para o historiador francês Serge Gruzinski45 é a partir desse momento que começam a se difundir as festas católicas que, como veremos adiante, possuem importância capital na formação do Santo Daime. A cultura popular amazônica caracteriza-se fortemente pela pajelança - outro modo de falar das atividades xamanicas - e a crença nos santos populares. Porém, a partir do ciclo da borracha esse quadro vai se complexificar com a chegada de nordestinos, principalmente do estado do Maranhão. Monteiro da Silva constatou que “... a população da região amazônica passa de 330 mil pessoas em 1872 para 1 milhão e 400 mil em 1929”46. Com a nova

43

LABATE, B. C. op. cit., p. 232. Op. cit., p. 59. 45 GRUZINSKI, S. O pensamento mestiço, São Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 33. 46 Op. cit., p. 371. 44

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configuração social podemos agora também encontrar na região a presença da religiosidade afrobrasileira, começam a se estabelecer encontros que transformarão profundamente a religiosidade local. Na década de 1930, período de crescente urbanização brasileira, a cidade de Rio Branco, no Acre, recebe grande migração de ex-seringueiros em decorrência da desativação de vários seringais, ocasionada pela queda da exportação da borracha. A migração para os centros urbanos, sem infra-estrutura adequada, impõe uma readaptação à nova ordem socioeconômica então nascente. Surgem novas relações de trabalho e interpessoais, outros modelos de conduta, etc. De maneira geral, há um maior afastamento entre as pessoas, fomentado pelas novas dinâmicas cada vez mais determinadas pela lógica capitalística de produção de subjetividades. Inevitavelmente vão se enfraquecendo antigas práticas como o multirão, o compadrio e as festas dos santos cristãos, nitidamente importantes estratégias de coesão grupal, segundo Goulart “quando o culto de Raimundo Irineu Serra começa a ser organizado em Rio Branco, essas práticas já não têm a força e o significado que tinham no passado”47. É justamente através do resgate e ressignificação dessas práticas que Irineu e seus vizinhos conseguirão reorganizar-se materialmente. Nesse momento o Mestre Irineu já se destacava na realização de trabalhos espirituais, inclusive com a ayahuasca. A seguir, um pouco do seu percurso. Raimundo Irineu Serra, nascido a 15 de dezembro de 1892 em São Luís do Ferret, Maranhão, de família vinculada às tradições afro-brasileiras, chega ao sul do Acre no início do século XX. Por meio de um curandeiro peruano, chamado Crescêncio Pizango ele e Antonio Costa foram iniciados no uso da ayahuasca. Eles criaram o Centro de Regeneração e Fé (CRF) que inaugura o uso regular da ayahuasca entre a população urbana, o centro situava-se na cidade de Brasiléia, Acre, e teria funcionado entre 1913 e 1929. Voltando ao tempo da iniciação do Mestre Irineu, descobrimos que há poucos detalhes e informações sobre esse período que acabam adquirindo, segundo MacRae, “... um certo tom de mito fundador”48. Sabe-se que numa de suas primeiras experiências o Mestre Irineu viu Clara, uma entidade feminina identificada como Nossa Senhora da Conceição ou a Rainha da Floresta. Ela lhe trouxe algumas instruções que se fossem seguidas lhe preparariam para uma missão especial, quando se tornaria um grande curador.

47

GOULART, S. L. “O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual”, in: LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. (orgs.) op.cit., p. 319. 48 Sua designação de mestre, para MacRae, atesta sua vinculação à tradição vegetalista do meio curandeiril amazônico, onde a alta hierarquia é assim reconhecida. Op. cit. p. 62-64. 27

Embrenhado na mata, isolado por oito dias, Mestre Irineu tomava daime, seguindo rigorosamente as dietas alimentares (comia apenas macaxeira sem sal) e sexuais (não podia ter nenhum contato com mulheres) ia “recebendo” os ensinamentos através das mirações proporcionadas pela própria Rainha da Floresta, conforme acredita-se. Como perceberemos, de acordo com as crenças daimistas, muitos ensinamentos bem como os hinos rituais não são compostos, pois compreende-se entre os adeptos da doutrina que estes são recebidos dos planos espirituais da existência. Voltaremos a falar sobre esse momento constitutivo da doutrina na segunda parte do trabalho. Ao afastar-se do CRF, no início da década de 1930 o Mestre Irineu cria o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo (CICLU), na cidade de Rio Branco e passa a “receber” os hinos que irão compor “O Cruzeiro”, conjunto de hinos considerado como uma “ressistematização dos ensinamentos de Cristo”.49 Das práticas tradicionais absorvidas pelo Santo Daime foi, sem dúvida, a devoção aos santos cristãos que marcou mais profundamente a nova doutrina. Os tradicionais festejos aos santos sempre reuniam o povo, que nas celebrações conjuntas firmavam uma identidade que valorizava a solidariedade e estreitava relações. Esses festejos foram determinantes na criação e estabelecimento do calendário ritual daimista que, ainda hoje possui os mais importantes acontecimentos litúrgicos nos dias de santos católicos. Cantar e dançar, agora reinventados nos hinos e no bailado, era próprio do caráter festivo do povo católico que assim celebrava seus santos. Goulart nos faz ver que, naquele momento, no entanto, esses hábitos vinham sendo cada vez mais intensamente desestimulados e condenados pela ortodoxia crescente das autoridades eclesiais. Porém, ao invés de submeter-se completamente à nova moral católica, formas de resistência se instauraram. A autora insere aqui as práticas religiosas emergentes em torno do Mestre Irineu pois, segundo diz: “o culto do Santo Daime recupera o significado da festa, da dança e do canto. A ausência da dança, da música, da festa, é vista, aliás, como um empecilho para a comunicação com a realidade sagrada.”50. Verifica-se a marca de práticas indígenas no Santo Daime, entendido enquanto sistema simbólico que experimenta um ethos composto por elementos presentes no xamanismo que lhe são comuns, por exemplo: a noção de múltiplos planos constitutivos do universo, ligados por um princípio energético que pode ser mediado pelo xamã, que tem acesso a experiências extáticas51. Outras assimilações também realizadas nesse momento constitutivo da doutrina daimista 49

GROISMAN, op. cit.

50

Op. cit., p. 327 MONTEIRO DA SILVA, C., op. cit.

51

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referem-se às práticas de curandeirismo, sobremaneira as dos vegetalistas ayahuasqueiros. Se anteriormente essas práticas conviviam pacificamente com o catolicismo, cada qual resguardando seu valor, no âmbito desse novo cenário social passarão a sofrer um processo de deslegitimação e até mesmo de perseguições policiais, produzindo uma incompatibilidade entre as práticas católicas e curandeiras, que antes era inexistente. O culto do Mestre Irineu rearticulará ambas e obviamente sofrerá retaliações por isso. Não podemos nos esquecer que nesse tempo vigora no Código Penal artigos “... referentes à prática ilegal da medicina, da magia e que proibia o curandeirismo ..” Mestre Irineu, assim como lideranças de terreiros e de outras casas religiosas sofreram perseguições mas também souberam articular estratégias de defesa buscando a proteção das elites, sobretudo políticas, muitos dos quais visavam, entre outras coisas, beneficiar-se do carisma das lideranças espirituais junto aos fiéis/eleitores.52 Na década de 1970 ocorrem eventos que imprimirão marcas importantes ao movimento daimista. Em 1971, com a morte do Mestre Irineu, indica-se Leôncio Gomes como seu sucessor e em 1974, em decorrência de desacordos internos, ocorre a saída de mais de cem fiéis da comunidade que optaram por seguir Sebastião Mota Melo. Aproximando-nos um pouco mais da sua história, verificamos que o Padrinho Sebastião, como era tratado pelos seus, nasce a 07 de outubro de 1920 no estado do Amazonas. Participava de trabalhos em mesas de espiritismo Kardecista, onde incorporava guias conhecidos como o médico Bezerra de Menezes e o professor Antonio Jorge para realização de atendimentos e curas espirituais53. Em 1959 ele passa a morar na zona periférica de Rio Branco, na Colônia 5.000, onde viviam os familiares da sua esposa, Rita Gregório. No ano de 1965 procura o Mestre Irineu para curar-se de grave doença de fígado. Recuperado, continua freqüentando o Alto Santo logo se destacando na comunidade. Quanto ao estopim da cisão ouçamos MacRae: “em 1974, por ocasião de uma das esporádicas investidas policiais contra o culto, Padrinho Sebastião, para demonstrar seu apego à ordem, propõe fazer um trabalho para as autoridades que incluiria o hasteamento solene da bandeira brasileira.” Leôncio Gomes discorda acusando o Padrinho de querer introduzir mudanças no ritual, e se assim o desejasse que fosse fazê-lo em sua própria casa. Assim tiveram início as sessões autônomas na Colônia 5.000, que até então mantinha um funcionamento

52

A colônia Custódio de Freitas, onde veio a se instalar o Alto Santo ou CICLU, foi obtida por Mestre Irineu na década de 1940 por influência do governador do Acre, Guiomard dos Santos. MACRAE, op.cit. 53 MACRAE, E. op. cit., p. 71. 29

subordinado ao Alto Santo, para onde destinava, antes do rompimento, metade do chá que produzia conforme acordo firmado com o Mestre Irineu. O Padrinho e seus seguidores mudar-se-ão ainda mais duas vezes até firmar a comunidade, hoje conhecida como Céu do Mapiá, sede mundial do movimento, considerada a Nova Jerusalém dos daimistas. A Colônia 5.000 tornava-se pequena no fim da década de 70 para abrigar os simpatizantes que, a essa altura, não se restringiam a pessoas da redondeza, muitos vinham de outras regiões brasileiras, sobremaneira do Sudeste, e também do exterior. Em 1980 o INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) autoriza o assentamento da comunidade no município amazonense de Boca do Acre. Dois anos depois a comunidade havia implantado um seringal com produção anual entre 10 e 15 toneladas de borracha. Nesse tempo, porém, essas terras foram solicitadas por uma empresa do sul do país que se identificava como proprietária. Alimentados pela idéia de que ainda não haviam chegado no lugar ideal para instalação da sua ‘Nova Jerusalém’, seguiram para Pauini, Amazonas. O novo local indicado pelo INCRA, situar-se-ia às margens do igarapé do Mapiá, um local isolado dentro da floresta aonde só se chega após dois dias de viagem de canoa. Para identificar como após sair da cidade do Rio Branco para o interior da floresta Amazônica, o culto do Santo Daime expande-se para zonas urbanas, só que dessa vez num contexto bem mais amplo, precisamos retomar algumas circunstâncias. É preciso recordar que nos encontramos no período ditatorial militar, contexto amplamente repressivo que começa a despertar ideologias e atitudes, principalmente entre os jovens, de resistência e recusa do status quo. Levantam-se críticas à sociedade bélica, aos valores fúteis do consumismo crescente, à exclusão social.. Valorizam-se idéias anti-burguesas, há uma busca pelas filosofias orientais, por práticas religiosas nativas e acredita-se que as revoluções sociais deveriam ser precedidas por mudanças internas. Em linhas gerais, cresce o número daqueles que anseiam por novos modelos de existência não pautados pela ascenção social, dentre estes, muitos abandonaram suas ocupações para sair em busca de novos estilos. Muitos jovens da classe média começam a fazer peregrinações, a maioria costumava ir ao Peru, às ruínas de Machu-Pichu, mas alguns também se dirigiram para o Acre. Muitos encontraram respostas a seus anseios na Colônia 5.000 pois, como disse MacRae:

“encontravam lá uma comunidade agrícola implantada, liderada pelo venerável e hospitaleiro Padrinho Sebastião, que lhes acenava com sua eclética doutrina de origem indígena e apontava para uma bem demarcada senda de conhecimento iniciático. Através do uso da ayahuasca, desde o início se poderia ter acesso a 30

experiências de êxtase e iluminação que os seguidores de outras escolas espiritualistas só pensam em alcançar no fim de suas vidas.”54

Com o retorno desses visitantes às suas cidades e com a divulgação dos seus novos ideais, começam-se a produzir condições que desembocarão na criação de vários núcleos daimistas, agora já num contexto sócio-econômico bem distinto, o das classes médias urbanas. Primeiro na cidade do Rio de janeiro criou-se em 1982 o Centro Eclético Fluente Luz Universal Sebastião Mota de Melo (CEFLUSME). Ainda no Estado do Rio, criam-se centros em Visconde de Mauá, Pedra de Guaratiba e Friburgo; em Minas Gerais nas cidades de Belo Horizonte, Santa Luzia, Caxambu e Aiuruoca, também em Brasília, Florianópolis e São Paulo. 1.3.2 - A Barquinha.55

Em 1945 na capital do Acre, Rio Branco, Daniel Pereira de Matos criou o Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, a Barquinha. O criador da Barquinha nasceu em São Luís do Maranhão. Filho de escravos, ainda na infância Daniel foi incorporado à Marinha. Sabe-se que na década de 20 ele já se encontrava no Acre. Trabalhava como barbeiro e é descrito como grande boêmio, isso até antes da criação da Casa de Cultos. Seu envolvimento com as farras e bebedeiras está, inclusive, intimamente ligado à história da sua conversão. Voltando embriagado de uma de suas celebrações com os amigos, adormeceu à beira do caminho. Aí mesmo recebeu uma revelação, a visão de um livro azul que lhe era entregue por dois anjos. Sem dar muita atenção ao significado da visão que tivera, Daniel não sabia que o evento voltaria a lhe ocorrer algum tempo depois, após já ter sido iniciado nos trabalhos com a ayahuasca. Abusando das bebidas alcóolicas, Daniel passou a sofrer de graves problemas de fígado. Mestre Irineu, que freqüentava a barbearia do seu conterrâneo, tomando conhecimento das dificuldades que o amigo enfrentava, convida-o a tratar-se espiritualmente com o Santo Daime, o que começa a acontecer a partir de 1936. Certa vez, de volta da colônia onde o Mestre Irineu realizava suas atividades religiosas, Daniel, ao adormecer pelo caminho, tem novamente a visão dos anjos com o livro azul a lhe falarem de uma missão que ele deveria cumprir. Daniel conseguiu a liberação informal de uma propriedade desabitada onde construiu uma pequena casa de taipa, que depois ficaria conhecida como capelinha. Aí começou a fazer o 54 55

Op. cit., p. 78 Todas as informações aqui recolhidas são frutos das pesquisas de ARAÚJO, 1999 e 2002, op. Cit. 31

que considerava como obras de caridade, atendendo crianças, adultos com problemas de saúde e familiares, casos de alcoolismo etc. Assim nasce a Barquinha. Falecido em 1958, desde o ano anterior, o Mestre Daniel começou a anunciar aos seus seguidores que faria uma viagem, ambiguamente entendida ora como possível retorno à sua terra natal, ora como seu falecimento. O Mestre Daniel foi substituído por Antonio Geraldo na direção da casa. Vários conflitos marcaram o tempo em que liderou as atividades da Barquinha. Inicialmente teve problemas devido à irregularidade das terras da missão, que passaram a ser reivindicadas por uma herdeira da propriedade. O conflito foi resolvido com intervenção estadual que indenizou os proprietários, uma vez que muitas construções já tinham sido feitas no local pela comunidade religiosa. Outro incômodo surgido na gestão de Antonio Geraldo diz respeito à solicitação de informações sobre o chá pela Segurança Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. O problema acalmou-se com a declaração do presidente da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes de que nenhum caso de intoxicação com o Daime havia sido constatado56. Antonio Geraldo foi substituído por Manuel Hipolito de Araújo. A Barquinha sofreu três desmembramentos ou “dissidências”. Os primeiros, ocorridos na década de 60, originaram o Centro Espírita Daniel Pereira de Matos (presidido por Antonio Geraldo) e o Centro Espírita Luz, Amor e Caridade (conhecido como terreiro de Maria Baiana). Já na década de 90, veio a ser fundado o Centro Espírita Príncipe Espadarte (presidido por Chica Gabriel). Fora do estado do Acre a Barquinha passou a ter núcleos considerados como extensões dos seus trabalhos, que surgiram entre 1989 e 1990. Um se localiza em Ji-Paraná (RO) e o outro no bairro das Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, núcleo dirigido por um casal de psicólogos.

1.3.3. A União do Vegetal (UDV).

Fundada em 1961 por José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel, o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal surge na Amazônia brasileira perto da divisa com a Bolívia. Nascido em Feira de Santana, Bahia, Gabriel era considerado uma criança especial no que diz respeito à sua religiosidade. Vai para Salvador trabalhar ainda aos 13 anos de idade. Serve à polícia militar nesta cidade e passa a conhecer vários terreiros de candomblé e umbanda, além de 56

ARAÚJO, W. S. op. cit., p. 53-54 32

outras religiões. Gabriel foi repentista e também ficou conhecido como destacado capoeirista no Nordeste, mas sua empreitada de repercussões mais duradouras ainda estava por acontecer57. Na Segunda Guerra Mundial o governo Vargas, visando suprir a necessidade de borracha que os exércitos aliados possuíam, assina acordos com os Estados Unidos dando início a um grande recrutamento de trabalhadores, sobretudo nordestinos, para os seringais amazonenses. Brissac58 destaca que 13 mil pessoas foram encaminhadas para lá apenas no ano de 1943, conforme dados do próprio SEMTA – Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia. Formou-se o “exército da borracha” e nessa batalha vamos encontrar o Mestre Gabriel, já nesse ano de 1943. Após um tempo de trabalho no seringal, Gabriel vai morar em Porto Velho, empregandose no serviço público como enfermeiro. Em 1946 conheceu Raimunda Ferreira, a Pequenina, com quem se casou no ano seguinte. Nesse tempo, Gabriel jogava búzios na sua casa em atendimento às pessoas. Posteriormente se torna ogã no terreiro de São Benedito. Foi em 1959 que José Gabriel tomou o chá pela primeira vez, através do seringueiro Chico Lourenço. Em 1961 anuncia às pessoas que não mais incorporará o Sultão das Matas, entidade com que fazia suas intervenções espirituais; reorienta-se para a burracheira, a forma como o transe da ayahuasca é designado na UDV, significando a Força e a Luz do Vegetal presentes. A reencarnação é uma das crenças presentes na doutrina transmitida na UDV que, como as outras religiões ayahuasqueiras, faz uma assimilação eclética de elementos culturais indígenas, africanos, cristãos e espíritas. Um outro aspecto característico da UDV é sua organização marcadamente hierarquizada nos segmentos: Quadro de Mestres, encarregado da transmissão da doutrina; Corpo do Conselho, que, além de auxiliar os Mestres, é responsável pelo aconselhamento da irmandade; Corpo Instrutivo e o Quadro de sócios59. O grupo constituiu uma entidade civil chamada Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Em 1982 a sede, que se localizava em Porto Velho, passa para a cidade de Brasília. Mestre Gabriel faleceu em 1971. Segundo Brissac:

“Ainda em vida de Mestre Gabriel, foi fundado o núcleo de Manaus e em 1972, um ano após seu falecimento, já se inaugurou o núcleo de São Paulo. Em

57

BRISSAC, S. in: LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. op. cit. BRISSAC, S. op. cit., p. 531. 59 GENTIL E GENTIL in: LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S., op.cit., p.517. 58

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1998, havia em torno de 70 núcleos espalhados por todo o Brasil, totalizando aproximadamente 7 mil sócios.”60.

A UDV é considerada como a mais difundida religião ayahuasqueira no Brasil e com o maior número de adeptos de acordo com o que informa MacRae em 1992. Andrade analisa o que considera limitações teológicas presentes na religiosidade udevista, classificando-as como autoritarismo e dogmatismo. As reações autoritárias, comenta o autor, dizem respeito a uma certa atitude arrogante perante os grupos congêneres negando seus valores que são menosprezados e caricaturados, atitude também assumida em relação às outras religiões. Como dogmática considera-se sua postura de auto-compreensão, identificada com o discurso da verdade, assumindo comportamento pouco tolerante com a diferença que passa a ser interpretada como erro ou heresia. Também os outros grupos são criticados por algum motivo, o Santo Daime, por exemplo, é referido como excessivamente moralista quanto a alguns aspectos como valores ou condutas rigidamente prescritas.61 Para concluir este ponto, queremos descrever alguns acontecimentos importantes para todos os grupos ayahuasqueiros e, especialmente, no que tange às suas relações com a sociedade em que estão inseridos. Trata-se do debate sobre o uso de substâncias psicoativas e as decorrentes atitudes das autoridades competentes. Curiosamente a discussão foi aquecida por uma proscrição da Banisteriopsis Caapi em território nacional feita em 1985 pela DIMED, Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde, a quem não competia a deliberação do assunto sem um posicionamento do Conselho Federal de Entorpecentes, o Confen, ligado à Polícia Federal. A medida, produto de preocupações com a expansão das religiões ayahuasqueiras pelas cidades brasileiras, foi noticiada à UDV, que solicitou ao Confen uma anulação da mesma. Para posicionar-se sobre o assunto, o Conselho formou um grupo de trabalho, composto pelos médicos e professores Isaac Karnial e Sergio Seibel que concluíram em 1986 com um parecer irrestritamente aprovado. MacRae apresenta-nos as conclusões do documento, que a seguir transcrevemos:

“a) a ayahuasca tem sido usada há várias décadas por seitas sem que tenha sido observado nenhum prejuízo social;

60 61

Op. cit., p. 526 ANDRADE, A. P. in: LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S., op. cit. 34

b) entre os usuários da bebida predominam padrões morais e éticos de comportamento “em tudo semelhantes aos existentes e recomendados em nossa sociedade, por vezes até de modo bastante rígido”; c) é necessário examinar de forma global o uso ritual da bebida feito por comunidades religiosas ou indígenas, levando em conta aspectos sociológicos, antropológicos, químicos, médicos, psicológicos e de saúde em geral; d) a portaria 02/85 da Dimed havia incluído a Banisteriopsis caapi entre as drogas proibidas sem observância do parágrafo 1º, artigo 3º do Decreto 85.110, de 2 de setembro de 1980, que determina a prévia audiência do Confen, a quem cabe a orientação normativa e a quem compete a supervisão técnica das atividades disciplinadas pelo Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão de Entorpecentes”62.

Como conseqüência do item C do documento formou-se um novo grupo assessorado por uma equipe multidisciplinar composta por profissionais de importantes instituições e universidades. Formaram a equipe: Francisco Cartaxo Roline, professor de Sociologia da UFF; João Manuel de Albuquerque, professor de Filosofia da PUC-RJ; João Ronildo Bueno, professor de psiquiatria da UFRJ; Gilberto Alves Velho, professor e antropólogo do Museu Nacional e também conselheiro da SBPC; Regina Maria do Rego M. de Abreu, professora e antropóloga e Clara Lúcia de Oliveira Inem, psicóloga, psicanalista e assessora técnica da FUNABEM. Enquanto a pesquisa era realizada, a proscrição da ayahuasca foi suspensa em decorrência do parecer da equipe anterior. Os trabalhos de entrevistas, visitas e acompanhamentos duraram dois anos e, segundo MacRae: “O grupo de trabalho não apurou um único registro objetivamente comprovando que levasse à demonstração inequívoca de prejuízos sociais causados pelo uso que vem sendo feito da ayahuasca. Ao contrário, os padrões morais mantidos foram julgados severos, os seguidores da seita pareciam tranqüilos e felizes, sendo orientados pelo uso ritual do chá a procurar felicidade social dentro de um contexto ordeiro e trabalhador” 63. A partir das indicações do relatório final a ayahuasca foi liberada para uso ritual em todo território nacional. A data do relatório é de 26/08/1987. Entretanto, em 1988 em inquérito policial foi aberto no Rio de Janeiro em decorrência de uma denúncia anônima cheia de idéias espúrias, com a afirmação de que os adeptos urbanos, que já eram mais de 10 milhões de fanáticos, eram obrigados ao trabalho escravo, que ao chá era acrescido LSD secretamente etc. Como conseqüência o Confen designou novas verificações em que se realizou um levantamento 62 63

Op. cit., p. 80. Op. cit., p. 82. 35

fotográfico das diversas comunidades. Além disso, novos pareceres técnicos de outros profissionais de várias disciplinas (psicofarmacologia, psiquiatria, antropologia) foram preparados. As novas investigações julgaram correta a posição do Confen de suspensão da interdição da ayahuasca e corroboraram os estudos anteriores. Iniciou-se também a possibilidade de reavaliações diante de novas circunstâncias surgirem. Por fim, todas as decisões sugeridas nos pareceres técnicos foram, por unanimidade, aprovados no mês de janeiro de 1992 pelo plenário do Confen. Recentemente, em novembro de 2004, foi divulgada num telejornal de audiência nacional uma informação de caráter extremamente importante para as religiões ayahuasqueiras: a regulamentação quanto à liberação do uso da ayahuasca para fins religiosos. Ver no anexo 1 a resolução do CONAD (Conselho Nacional Anti-Drogas), órgão que substitui o Confen. Com a expansão do Santo Daime e da UDV em direção à região Sudeste, inicialmente, mas depois também para outras regiões brasileiras bem como outros países, assiste-se a uma complexificação das modalidades de compreensão e consumo da ayahuasca. Grosso modo, pode-se encontrar nas cidades grupos que se mantêm fiéis às cosmologias tradicionais, ou seja, às matrizes daimistas e udevistas, como também vão nascendo grupos que ressignificam o consumo operando o que Labate denominou de uma “reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos”, esta reinvenção é obra dos neo-ayahuasqueiros urbanos que criam, na expressão da autora, “novas modalidades de consumo da ayahuasca”. Há uma variedade dessas modalidades que em geral associam-se a técnicas de meditação, atendimentos em clínicas psicológicas, terapias corporais, trabalhos com teatro, música e artes plásticas, recuperação de moradores de rua, etc. Tais inovações constituem uma rede que, somada às religiões ayahuasqueiras tradicionais, compõem o campo ayahuasqueiro brasileiro, a idéia remete à noção de campo religioso formulada por Bourdieu, citado por Labate. A ênfase no auto-conhecimento e na dimensão terapêutica são bem centrais nesses novos usos e podem ampliar as polêmicas em torno do consumo da ayahuasca, pois o retirando do campo estritamente religioso, alteram as condições primeiras sob as quais o consumo foi liberado. Recoloca-se, então, a questão da legalidade podendo problematizá-la ainda mais. Situados numa instável zona de fronteira entre o tradicional e o moderno, os neo-ayahuasqueiros são incitados a demarcar outros limites entre o que deve ser permitido ou vetado conforme sua perspectiva. Apesar da produção de uma nova ritualística e ênfase num discurso de suportes existenciais, terapêuticos e filosóficos “de cunho espiritualizante” mais marcantes as ambigüidades e divergências experimentadas por estes grupos urbanos (entre si e também com o

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polo constituído pelas religiões ayahuasqueiras amazônicas) são interpretadas como fazendo parte da dinâmica interna do campo ayahuasqueiro brasileiro e não como diferenças substanciais maiores. Há aqui a questão da relação dialética entre as noções de campo e de rede ayahuasqueira; se esta última apresenta-se, sobretudo, a partir de uma lógica de trânsitos e fluxos, já o campo ayahuasqueiro remete à questão das hierarquias e mecanismos de legitimação inerentes ao seu universo64.

2. Êxtase, Luz e Transformação Segundo La Rocque Couto65, o uso da ayahuasca no Santo Daime tem função estruturante por tratar-se de um rito da ordem, uma vez que instaura rigorosos padrões cerimoniais além de apontar para normas de conteúdo moral e ético, parece-nos residir aí a dimensão apolínea da religião. Se a ingestão de um psicoativo numa cerimônia religiosa evoca a lembrança de Dionísio, especialmente se mencionarmos os fluxos desterritorializantes66 que afetam a subjetividade sob o Santo Daime, por outro lado os aspectos culturais refletidos na ritualística e na própria doutrina daimista, como a música, a dança bem demarcados, os valores e virtudes cultivados compõem o que estamos chamando de dimensão apolínea da religião, já que apontam para efeitos reterritorializantes, ou seja, conspiram por uma estruturação bem delimitada por tais regulações. Bolsanello diz que no Daime, o apolíneo liga-se ao formato cerimonial “... a marcação de espaço e de tempo, a fala, a mensagem dos hinos, o bailado, a influência da ética católica/kardecista, ou seja, todas as noções de limite e ritmo”67. Faz também uma ponderação quanto à música que julga combinar uma natureza tanto apolínea quanto dionisíaca da experiência. Para ela as propriedades do chá transcendem suas características bioquímicas, pois colocam em circulação uma rede de significados e um sistema de crenças próprios da tradição cultural daimista. Não podemos esquecer da importância contextual no uso

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LABATE, B. C. op. cit., p. 353. LA ROCQUE COUTO, F. “Santo Daime: rito da ordem”. In LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S. (orgs.). Op. cit. 66 Desterritorialização, segundo Guattari e Rolnik “os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma”. Mas pode haver uma desterritorialização, ocorre quando o território abre-se ou envereda por linhas de fuga ou simplesmente muda seu curso, podendo até destruir-se. O esquema ainda fala na reterritorialização, enquanto tentativa de recomposição de um território que esteja num processo desterritorializante. GUATTARI, F. e ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 323. 67 BOLSANELLO, Débora P. Busca do Graal Brasileiro: a doutrina do Santo Daime. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 159. 65

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de certas substâncias pois, como concluiu Perlongher68, as drogas podem induzir estados modificados mas não determinam nem o caráter nem a qualidade da experiência. A recorrência de imagens e vivências descritas nas experiências psicodélicas indicam, segundo Grof, que os efeitos desencadeados não dizem respeito a estados específicos próprios da substância em si, conforme o autor:

“A maioria dos pesquisadores que estudam os efeitos dos psicodélicos chegou à conclusão de que essas drogas poderiam muito bem ser encaradas como amplificadores ou catalisadores do processo mental. Parece que elas ativam matrizes pré-existentes ou potenciais da mente humana, em vez de induzirem estados específicos relacionados a elas próprias. O indivíduo que as ingere não experimenta uma psicose tóxica essencialmente sem correspondência com o funcionamento da psique em circunstâncias normais; ele, ao contrário, lança-se a uma fantástica jornada interior na mente inconsciente e superconsciente. Essas drogas, então, revelam e tornam disponível para a observação direta um vasto campo de fenômenos, de outra maneira invisíveis, que representam capacidades intrínsecas da mente humana e têm um papel importante na dinâmica mental normal.”69

Ainda falando das similitudes entre as experiências extáticas vividas sob efeito da ayahuasca encontramos correspondências, não apenas comparando-as entre si, mas também quando as relacionamos com experiências de outras tradições religiosas. É o caso da vivência da Luz. Eliade70 buscando dar inteligibilidade a comportamentos religiosos não europeus, estudou várias epifanias luminosas identificando o fenômeno da luz em diversas culturas que as apresentam como eventos místico religiosos. Entre os xamãs esquimós a experiência mística é chamada de relâmpago ou iluminação (qaumanek); na Índia, onde se identifica a luz ao próprio ser e à imortalidade, o átman ou si-mesmo é abordado como uma luz no coração; no budismo há uma irradiação quando em estado de samadhi; na China quem deixa a condição profana irradia uma luz celeste, alcançando assim o ser real, além de vários outros exemplos. Também a respeito da ayahuasca existem vários relatos de experiências luminosas. Vejamos o que nos diz um conhecido líder da religião, sob efeito da substância: “(..) vejo uma luz dourada crescer ao lado do Cruzeiro, numa intensidade tal que tenho a impressão que ficarei cego se olhá-la totalmente de frente (...). Pela primeira vez, deus tornou-se uma idéia aceitável para mim. Na forma de uma 68

PERLONGHER, N. Op. cit. GROF, S. apud PELÁEZ, M. C. Op. cit. 70 ELIADE, M. Mefistófeles e o andrógino. São paulo: Martins Fontes, 1999. 69

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luz”.71 Numa entrevista feita por Araújo72, um adepto do grupo afirma: “O Daime é considerado uma luz. A luz associa-se à revelação, a uma ampliação de conhecimentos, e aqueles que navegam sobre as ondas do mar sagrado gradativamente vão adquirindo conhecimentos para si e uma sensibilidade maior de enxergar o outro.” O fenômeno da luz parece-nos bastante interessante para pensar. Ele está relacionado a mudanças perceptivas, sobretudo visuais, imagéticas, o que no caso das tradições religiosas ayahuasqueiras é muito significativo já que as experiências dessa natureza, não esqueçamos, são denominadas pelos fiéis de mirações. De acordo com Eliade a experiência da luz, que sempre resulta em experiência religiosa, transforma de maneira radical o status ontológico do indivíduo, ou ainda: “(...) o encontro com a Luz produz uma ruptura na existência do indivíduo e revela-lhe ou desvenda mais claramente que antes o mundo do Espírito, do sagrado, da liberdade, em suma: a existência enquanto obra divina ou o mundo santificado pela presença de Deus.”73 Monteiro da Silva propõe que os cultos ayahuasqueiros, as religiões afro-brasileiras e o xamanismo indígena atualizam a seu modo, “experiências psicofisiológicas universais” que são experienciadas como estados modificados de consciência numa das suas três variantes: o transe ou êxtase místico, caracterizado por estar fora de si próprio; a possessão, ou incorporação, onde o sujeito transforma-se num outro; e a projeção em outros mundos, típicas do xamã, também chamados de vôos astrais. No caso das mirações é o iniciado ou xamã que vai aos outros planos existenciais encontrar as entidades; assim possui sentido distinto do que ocorre nas incorporações, algumas vezes chamada possessões, dos cultos afro-descendentes74. A posição assumida por esses três autores (Grof, Eliade e Monteiro da Silva) nas passagens acima parecem corroborar com um argumento dos mais importantes na teoria junguiana, e também suscitar um dos debates mais complexos. Trata-se da noção de inconsciente coletivo e a controversa discussão a respeito dos universais. Apesar de não ser possível nem aconselhável mergulharmos nos meandros dessa questão nos limites desta dissertação, não podemos deixar de notar que sua evocação sugere haver lógicas de plausibilidade entre seus desdobramentos e os estudos teóricos e práticos da nossa pesquisa. Mas isso deve ser discutido em momento mais oportuno.

71

POLARI, A . O livro das mirações. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 55. ARAÚJO,W. S. op.cit., p. 81. 73 ELIADE, M. op. cit., p. 76. 74 Op. cit., p. 368. 72

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3. A cura na pesquisa sobre a ayahuasca Presumir um caráter transformacional aos psicoativos não constitui nenhuma novidade. A idéia se encontra presente na base, por exemplo, dos experimentos clínicos recentes de Timothy Leary com o LSD na década de 6075. Está presente ainda nos estudos com a mesma substância realizados por Stanislav Grof, psiquiatra que criou a psicoterapia psicodélica e propôs um esquema para compreensão do inconsciente humano que poderia ser apreendido sob quatro domínios básicos, que seriam: barreira sensorial, inconsciente individual, domínio perinatal e domínio transpessoal. Os domínios foram estabelecidos para efeitos didáticos já que na realidade não se apresentam tão discriminadamente, através do agrupamento de semelhanças encontradas entre os relatos sistematizados a partir das mais de três mil sessões psicodélicas a que Grof teve acesso. Vale ressaltar que a concepção que se tem dessas substâncias muda drasticamente conforme se apresente num meio científico ou religioso. Peláez, que na sua dissertação debruçou-se sobre as potencialidades terapêuticas do Santo Daime a partir das representações de daimistas sobre cura e doença, articulou o modelo proposto por Grof às experiências relatadas pelos sujeitos de sua pesquisa e identificou elementos dos quatro domínios apresentados pelo pesquisador. Além das várias convergências encontradas por Peláez entre o modelo teórico e suas investigações, ela acrescenta também algumas diferenças; como o fato de que para Grof somente as experiências situadas no terceiro e quarto domínios perinatal e transpessoal - possuiriam valor terapêutico, enquanto que para os daimistas as vivências em qualquer um dos domínios pode apresentar conteúdos transformadores. Outra diferença importante se refere ao fato de que para Grof a emergência espiritual, decorrente do acesso aos níveis mais profundos do inconsciente, já seria em si mesma terapêutica, uma vez que instalaria profundas transformações em valores e estratégias de vida. Os daimistas, salienta Peláez: “(...) colocariam a ênfase da cura nas radicais transformações que corresponderiam à internalização do ethos e visão de mundo desta doutrina.”76. Ou seja, para esses religiosos o reconhecimento da dimensão espiritual propiciado pelo daime seria apenas o ponto inicial no caminho da “cura espiritual”. Em linhas gerais a cura nessa perspectiva está relacionada a um restabelecimento do equilíbrio, reinserindo o sujeito numa ordem social e cósmica. Os desequilíbrios são frutos da ignorância quanto à verdade transcendente, o que origina transgressões às leis regentes da vida

75

PELAEZ, M. C., op. cit. O LSD contém Dietil Amida, psicoativo similar à N,N Dimetil-Triptamina, presente na folha usada no preparo da ayahuasca. 76 PELAEZ, M. C., op. cit., p. 102. 40

social e do mundo espiritual. As manifestações orgânicas e mentais de doenças são, nesse sentido, os reflexos desse desequilíbrio primeiro da esfera espiritual. Disso resulta a noção de “curar-se na doutrina”, que significa a aquisição de novas disposições e motivações que operam reformulações com conseqüentes efeitos psíquicos, na relação do sujeito com o corpo, com a sociedade, com a natureza afetando diversos planos constitutivos do sujeito. Nessa concepção saúde e salvação não estão dissociados. Recorde-se que ambas descendem da mesma raiz latina: salus. Dessa forma, no âmbito da doutrina a saúde seria obtida através da adoção do caminho de salvação por ela proposto. Praticamente todos os trabalhos acadêmicos sobre o universo ayahuasqueiro abordam o tema da cura, alguns de modo mais aprofundado e outros mais rapidamente. De qualquer forma isso nos parece testemunhar a respeito da centralidade da questão em tal universo. Privilegiaremos aqui os resultados de alguns trabalhos que colocaram o tema de maneira mais central em seus estudos. Assim como o estudo de Peláez, esse também é o caso da pesquisa de Labigalini Junior77. Instigado com o resultado de uma pesquisa feita em Manaus em um núcleo da UDV, que constatou que 11 dos 15 participantes da amostra possuíam, antes de ingressar na instituição, um histórico de abuso ou dependência de álcool, Labigalini fez um estudo qualitativo com 4 sujeitos que apresentavam um quadro de dependência severa ao álcool e que também se livraram do problema meses após começarem a participar dos rituais do núcleo de Araçariguama da UDV. Dois desses sujeitos pesquisados também possuíam, antes de ingressar no grupo religioso, dificuldades relacionadas ao consumo de cocaína. O trabalho do autor, que lhe valeu o título de mestre em Saúde Mental pela Escola Paulista de Medicina da UFSP, averiguou que o novo interesse religioso dos entrevistados relacionava-se intimamente com uma ampliação de consciência caracterizada por “mudanças profundas de atitudes e comportamento”. As vivências com a ayahuasca trouxeram-lhes a sensação de estarem passando por importantes mudanças psicológicas. Segundo o autor: “uma possibilidade muito intensa de transformação de atitudes e de personalidade eram frequentemente ressaltadas, como conseqüência da adesão ao ritual e aos insights vivenciados durante a experiência com o chá.”. 78 Apesar de não reivindicar ampla generalização para seu estudo, acuradamente reconhecendo o tamanho reduzido da amostragem pesquisada, o autor concluiu frisando não ter

77

LABIGALINI JUNIOR, Eliseu. O uso da ayahuasca em um contexto religioso por ex-dependentes de álcool – Um estudo qualitativo. Dissertação de Mestrado em Saúde Mental, Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, São Paulo, 1998. 78 Op. cit., pp. 28 e 34 respectivamente. 41

existido nos casos estudados uma troca de dependências pois segundo afirma, não havia no uso ritual que passaram a fazer da ayahuasca, nem na relação com o grupo religioso, um caráter compulsivo de contornos psicopatológicos. Já comentamos anteriormente que no xamanismo amazônico a ayahuasca figura como uma importante planta de poder (“planta-mestra”, “planta-professora” ou “planta de saber”), o que sinaliza para o fato de que as modificações subjetivas experimentadas pelos que a consomem ritualmente são consideradas conseqüências de aprendizagens e conhecimentos adquiridos por intermédio da planta ou como afirmam os fiéis, por intermédio do ser divino que nela habita. Apesar de se tratar de uma pedagogia espiritual, existe também além da dimensão inefável de como se processam as modificações ontológicas, aspectos bem mais palpáveis referentes a hábitos ou compreensões cognitivas que são reconcebidos ou vistos a partir de novos ângulos. A cosmovisão xamânica, e a religiosa de maneira geral, costumam conceber o universo como múltiplo e grosso modo podemos dividi-lo em dois planos existenciais: o material e o espiritual79. Talvez o ensinamento primordial da medicina ayahuasqueira, que desencadeará suas demais conseqüências, seja exatamente a compreensão ou convicção quanto à realidade dos planos mais sutis, não físicos da vida. A essa percepção faculta-se o poder de facilitar uma maior harmonia com as leis da natureza e do mundo espiritual, reestruturando a compreensão do universo e podendo encetar a necessidade de reformulações que devem ser feitas pelos indivíduos a fim de sintonizar-se com tal ordem de coisas. Groisman explica que a doença e a cura são como as faces de uma mesma moeda: “a relação do ser humano com o cosmos” e as desordens físicas individuais estão inseridas nessa relação de referências mais amplas. Desse modo a conduta de cada um é responsável tanto pelos conflitos quanto pelas harmonias experimentadas, a lógica equivale à da lei de simpatia, comum ao kardecismo, segundo a qual o bem atrai o bem, tal como o mal atrai o mal; aqui entra também a influência da noção de carma, delineando os destinos a partir das escolhas feitas, cada um imprime marcas e sentidos a sua vida80. Quando uma doença se manifesta fisicamente já está refletindo uma desarmonia anterior de contornos mais subjetivos (psíquicos ou espirituais). A cura é então um aprendizado a respeito das leis que regem o universo, sobre as relações que o homem estabelece consigo, com os outros e com a natureza. Essas amplas reconfigurações parecem análogas às referidas nos relatos de muitos místicos, como conseqüência do que se costuma chamar de consciência cósmica, um senso de unidade com toda manifestação de vida que traz, numa súbita aprendizagem, novos 79 80

LUNA, L. E., in: LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S., op. cit. Op. cit., p. 113 e seguintes. 42

significados na relação com tudo o mais. Como no relato de iluminação espontânea vivida pelo psiquiatra R. M. Bucke (1837-1902) onde ele diz que :

“ (...) Viu, soube que o Cosmos não é matéria morta, mas Presença viva; que a alma humana é imortal (...), que o princípio fundamental do mundo é aquilo que chamamos de amor e que a felicidade de cada um está, a longo prazo, absolutamente assegurada. Aprendeu, disse-nos ele, nos poucos segundos de iluminação, mais do que havia aprendido nos meses e até nos anos anteriores de estudo e aprendeu muitas coisas que nenhum estudo lhe poderia ensinar.”81.

No exemplo citado encontramos, além da modificação comportamental proporcionada pela percepção religiosa do cosmos, a ênfase no caráter aprendido da experiência. Achamos interessante tal ênfase. Um aprendizado é uma ocorrência que imprime mudanças cognitivas e tais mudanças ocorrem, por sua vez, em decorrência de experiências sensórias perceptuais desencadeantes. No caso das vivências com plantas de poder as ocorrências senso perceptivas ganham importância ainda mais saliente visto serem motivadas por estimulações neuro hormonais que influem diretamente no nosso sistema nervoso central. No próximo item analisaremos melhor esses aspectos. Inspirado nas abordagens das terapêuticas tradicionais amazônicas, o Centro de Rehabilitación de toxicómanos y de Investigación de las Medicinas Tradicionales realiza um trabalho com pacientes que enfrentam problemas de dependência de cocaína, álcool e maconha. Localizado na cidade de Tarapoto, no Peru, o centro considera essa capacidade pedagógica atribuída a algumas espécies vegetais, bem como a centralidade da ayahuasca nesse universo, como fica explícito na seguinte passagem extraída de uma publicação sua: “En la tradición curanderil las plantas pueden enseñar mediante sueños o visiones. Por eso se llamam ‘plantas maestras’, siendo la liana ayahuasca la ‘maestra de maestras’.

82

Nesse relatório referente à

experiência dos primeiros sete anos de atuação do centro são citados alguns aspectos a que os ensinamentos estão ligados: sobre si mesmo, quanto às dificuldades vividas e os desdobramentos relacionados à história pessoal, conteúdos de teor ético e/ou filosóficos considerados universais, indicações de ajuda a terceiros e orientações quanto à solução de problemas.

81

ELIADE, M., op. cit., p. 65. GIOVE, Rosa. La Liana de los Muertos al Rescate de la Vida – Medicina Tradicional Amazónica en el Tratamiento de las Toxicomanías. Publicação do Centro Takiwasi, Tarapoto, Peru, 2002, p. 24. 82

43

Mesmo nos meios acadêmicos podemos encontrar o reconhecimento dessa dimensão pedagógica atribuída às plantas de poder, ao final dos agradecimentos de Labate e Araújo, lê-se logo no início do livro: “A Ayahuasca, madrecita de todas las plantas, fonte de conhecimento, que inspirou tudo que segue.”83

4. Aspectos etnobotânicos, psicofarmacológicos e químicos da Ayahuasca

Da ordem das Malgipáceas e do gênero Banisteria, o cipó Jagube, como é mais conhecido, foi denominado Banisteria Caapi, sendo que atualmente a forma mais usada é Banisteriopsis Caapi. Já a folha, conhecida como Rainha ou Chacrona é cientificamente reconhecida por Psychotria Viridis. As primeiras amostras das espécies foram recolhidas pelo botânico inglês Richard Spruce em 1851, às margens do Rio Vaupés entre tribos de Tucanos. Três anos depois ele registrou o uso do caapi entre os índios Guahibos da região do Alto Orinoco e posteriormente entre os Záparos, no Equador. Apesar de ter sido notada por muitos pesquisadores e viajantes, como demonstram os relatos ao longo dos anos, apenas recentemente começa-se a prestar atenção à ayahuasca. Schultes e Hofmann contam que a análise das amostras recolhidas por Spruce em 1851 só foram completadas em 196984. A Tradição do uso de plantas entre grupos amazônicos reconhece uma extensa variedade de substâncias e formas de preparos de plantas, algumas delas consideradas mágicas, professoras ou plantas-mestre. A ayahuasca é uma entre elas e nota-se que entre muitas culturas assume um papel central enquanto agente considerado um ser divino capaz de realizar curas, possuir propriedades premonitórias, telepáticas, diagnósticas e capaz de transmitir ensinamentos. As plantas de poder ocupam posição especial no universo das medicinas naturais, mais especificamente relacionados à fitoterapia. Porém há que se considerar que em meios culturais com características marcadamente ocidentalizadas, o conjunto de saberes sobre as espécies vegetais, em geral preservados pela oralidade, foram negligenciados e muitos até esquecidos no processo de instauração dos valores que tornaram possível a substituição de valores e crenças a respeito da saúde na construção da lógica discursiva racional que ampara o modelo de tratamento médico acadêmico. Para melhor compreender a atuação psicofarmacológica do Santo Daime no humano, precisamos conhecer melhor os principais elementos químicos constitutivos do cipó Jagube e da 83

Op. cit. SCHULTES, R. E. e HOFMANN, A. Plantas de los deuses, origenes del uso de los alucinógenos. México: Fundo de Cultura Econômica, 1982, p. 132. 84

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folha Rainha. No cipó, trata-se das beta-carbolinas (harmina, harmalina, 6-metoxiltriptamina e a tetrahidroharmina); a folha contém triptaminas, principalmente a N, N-dimetiltriptamina (DMT), mas também apresentando traços de monometiltriptamina e 2-metil-1,2,3,4-tetrahidrocarbolina. 85

É útil recordar que não nos parece aconselhável restringir os efeitos da ingestão da ayahuasca

à sua composição química, apesar de serem imprescindíveis para o desencadeamento de estados psíquicos, perceptivos, humorais e emotivos, que na sua ausência podem ser inusitados. São fundamentais para a estruturação da experiência as características culturais do uso (compreensão social a respeito do chá, elementos rituais usados como os cantos, as danças, os símbolos...), bem como os aspectos biopsicológicos referentes a cada experimentador (aspectos históricos da sua vida, suas principais características, expectativa relacionada ao consumo...). A explicação de como ocorre o processo químico desencadeado pela interação entre as beta-carbolinas

(cipó)

e

a

DMT

(folha)

revela

um mecanismo

combinatório

de

complementaridade bastante preciso, que já fora descoberto há muito tempo pelas civilizações indígenas da Bacia Amazônica, tal fato que surpreendeu e instigou muitos cientistas ocidentais, dada a sutileza e profundidade da interação neuroquímica, denominada efeito-ayahuasca, responsável pelas vivências desencadeadas. Costuma-se indagar como os nativos podem ter descoberto tal lógica interativa há tanto tempo. No meio científico contemporâneo apenas recentemente começa-se a compreendê-la, mas passemos logo a acompanhar o que se dá nesse circuito quando se ingere o chá sagrado. A DMT (dimetil-triptamina), a que se atribui o potencial psicotrópico e os efeitos visionários da ayahuasca, ou o que os daimistas chamam da “Luz”, é inativa quando ingerida oralmente devido à presença natural da enzima MAO (monoaminaoxidase) no nosso aparelho digestivo e fígado. É aqui, porém, que atua a “Força” do cipó, ou seja, entram em ação as betacarbolinas inibidoras da enzima MAO. Inibida especialmente pela harmina, a MAO não consegue metabolizar toda DMT consumida, permitindo que ela seja absorvida e conduzida ao Sistema Nervoso Central. O efeito ayahuasca é explicado pela teoria Holmstedt-Lindgren, apresentada em 1967, explicitando o mecanismo de interação contido nas poções de ayahuasca86. De acordo com Couto, para Cláudio Naranjo: “são muito importantes as recentes descobertas de que as substâncias relacionadas com os alcalóides da harmala (harmina, harmalina e harmalol) existem nos animais de sangue quente. Essas substâncias, derivadas da

85 86

Cf. BOLSANELLO, 1995, op. Cit., p. 228. LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S., op. cit. 45

indolptriptamina, estão relacionadas com o fator neuro-humoral serotonina, que tem papel na bioquímica da regulação do Sistema Nervoso Central.”.87 A DMT e a serotonina possuem fórmulas muito semelhantes e são consideradas substâncias ligantes, ou seja, que reagem com receptores e esses receptores tanto podem ser enzimas (como a MAO) quanto neurotransmissores. A DMT atua no cérebro através dos mesmos receptores da serotonina88.

5. Sincrético, eclético... híbrido

A respeito da híbrida constituição da doutrina religiosa do Santo Daime queremos evitar leituras maniqueístas do tipo: pureza x mistura ou original x sincrético enquanto categorias que se opõem. Julgamos tal perspectiva como empobrecedora da discussão sobre cultura e religião, já que impõe moldes pré-fabricados vulneráveis a julgamentos valorativos de inspiração etnocêntrica. Compreendemos que as “linhas demarcatórias” entre o auto e o hetero nos diversos planos constitutivos do humano são muito mais fluidos do que se costuma imaginar e identificar onde termina um e começa o outro parece-nos uma tarefa tão inócua quanto desnecessária89. A postura eclética assumida pela doutrina pode ser vislumbrada já na nomeação da entidade criada pelo Padrinho Sebastião para organizar o movimento daimista: CEFLURIS (Centro Eclético de Fluente Luz Raimundo Irineu Serra), e deduzida da permissão, senão estimulação, para que os adeptos conheçam outras manifestações e credos religiosos, como é fácil perceber através da simpatia que alguns daimistas exibem pelas religiões afro-brasileiras ou pelas tradições orientais. Groismam já propusera a expressão “ecletismo evolutivo” para referirse ao caráter de abertura e flexibilidade do Santo Daime na sua relação com outras compreensões do sagrado, que a tornariam uma religião de contornos dinâmicos e em pleno processo constitutivo90. O autor supracitado propõe, em recente artigo, a categoria de multivocalidade, que toma emprestado de Turner para pensar o assunto. O multivocal nas suas palavras: “(...) se prestaria a definir um espaço ou um contexto de tal forma aberto e evocativo que poderíamos construí-lo 87

LABATE, B. C. e ARAÚJO, W. S., op. cit., p. 343. BOLSANELLO, D. op. cit., p. 227. 89 A propósito apresentamos como trabalho final da disciplina História da Religião na América Latina, ministrada pela Professora Doutora Beatriz Domingues, o trabalho intitulado: “Entre o um e o outro – Sobre zonas de contato e formas de relação”, onde discutimos a constituição polissêmica do real apesar do comodismo intelectual, típico do cartesianismo que esconjura a ambigüidade em busca de classificações identitárias de blocos sólidos que pouco caracterizam os fenômenos em sua multidimensionalidade. A tônica do texto foi inspirada em GRUZINSKY, S. op. cit. 90 Op. cit. 88

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socialmente, ou percebê-lo com tal versatilidade que não seria possível estabelecer com precisão o seu significado – uma tarefa interpretativista clássica - , mas apenas constatar as diversas formas com que se expressa nos diferentes contextos e, dentro deles, a partir das diversas interpretações.”91. Esse classicismo interpretativo, ansioso por categorizar ou achar rótulos estáveis e dicotômicos, não parece condizer nem ajudar a pensar a versatilidade do fenômeno em tela Pelo contrário, como já dissemos, parece empobrecer a discussão do assunto. Como contraponto a esse devir fluido apresentado pela doutrina menciona-se a rigidez na estrutura ritualística e nos estilos comportamentais preconizados pelo sistema Santo Daime. A abertura a influencias de outros sistemas religiosos apresenta diferentes gradações entre as distintas religiões ayahuasqueiras, Barquinha, UDV e Santo Daime, mas é uma constante na criação de todas elas. Internamente no Santo Daime pudemos perceber, através do contato com muitos daimistas que há uma variação desta abertura entre as várias igrejas espalhadas pelo país, ou seja, mesmo entre as que se reconhecem ligadas ao tronco comum iniciado pelo Mestre Irineu e ampliado pelo Padrinho Sebastião, existem formas diversas do contato inter-religioso. Dessa forma é possível conhecer núcleos mais rigorosamente ligados ao padrão ritualístico proposto pelo CEFLURIS como também ver, em certos casos, flexibilizações mais amplas seja, por exemplo, incluindo meditações e outras técnicas de inspiração oriental revalorizadas pelo movimento da nova era, como também as chamadas gírias de umbanda em que as divindades do seu panteão realizam trabalhos espirituais. De qualquer forma é preciso mencionar que o número de igrejas que conheci é bastante reduzido e geograficamente circunscrito aos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, além de que não conheci as comunidades na região Norte, e apenas posteriormente conheci uma igreja no Nordeste, e um núcleo da UDV. Mas a opinião parece ser corroborada pela diversidade sugerida nos estudos acadêmicos e a julgar por nossa própria percepção da experiência, inclusive verificando ocorrência análoga no plano dos indivíduos. A umbanda e o Santo Daime, além da híbrida composição, possuem também contornos bem dinâmicos e estão em pleno processo constitutivo. Costumam ter grande consideração e respeito pelos vários credos e outras religiões o que deve facilitar frequentemente as comunicações entre distintas cosmovisões muitas das quais são assumidas internamente por alguns grupos representativos destas tradições. Identifica-se a década de 30 e seu entorno como momento em que emergem os primeiros cultos dos dois sistemas religiosos e são encaradas como as religiões genuinamente brasileiras por valorizarem elementos oriundos das matrizes étnicas nativas, européias e afro-descendentes, formadoras da cultura brasileira. 91

GROISMAN, A. “Missão e projetos: motivos e contingências nas trajetórias dos agrupamentos do Santo Daime na Holanda”. REVER (Revista de Estudos da Religião), nº. 1, pp. 1-18, 2004. 47

Tanto na umbanda quanto no Santo Daime há grande preocupação com a questão da cura através de terapêuticas tradicionais como a fitoterapia. O livro de Paula Montero sobre a Magia na Umbanda92 é apresentado por Candido Procópio como trabalho fundamental para a compreensão e interpretação dos criativos e proliferantes modos de terapêuticas religiosas existentes no país, e que constituem fatores determinantes na dinâmica das conversões e da permanência dos adeptos. A autora levanta reflexões acerca do que as práticas mágico-religiosas possuem de potencial transformador e analisa como se dá o processo de enfraquecimento dos sistemas simbólicos de cura populares em favor da prevalência do discurso médico acadêmico. Essa menção aos estudos de Montero nos parece bastante pertinente, não apenas pela qualidade das reflexões a que nos conduz como também por ter facilitado a compreensão de íntimas conexões e paralelos entre a umbanda e o Santo Daime. Uma delas é exatamente o fato de que na umbanda, de maneira mais intensa sobretudo nas suas origens, também há o consumo ritual de psicoativos: a jurema e a maconha, depois a jurema transforma-se mais num símbolo religioso do que numa bebida ritual e é considerada uma entidade indígena a “Cabocla Jurema”. Já a maconha, que passa a ser socialmente condenada, é retirada dos cultos no processo de crescimento e expansão da Umbanda, talvez como recurso facilitador do seu processo de aceitação e legitimação social já que a partir desse período têm inicio as grandes investidas que farão a canabis ser considerada como uma droga ilegal. Podemos evocar as conexões entre o Santo Daime e a Umbanda por vários ângulos ou pontos de encontro. Queremos mencionar aqui duas experiências de contatos ainda mais íntimos entre os dois grupos religiosos: a primeira relaciona-se à Barquinha, uma das principais religiões ayahuasqueiras que lida em suas práticas rituais com uma outra modalidade de relação com a espiritualidade, além da miração, forma mais comum a todo campo ayahuasqueiro, lançam mão também da incorporação, maneira típica da Umbanda comunicar-se com os espíritos, na qual os fiéis recebem em si as entidades curadoras. A outra experiência diz respeito ao encontro dos dois grupos ocorridos num terreiro situado em Lumiar que além dos trabalhos de Umbanda, realiza ainda rituais daimistas, como os hinários. Eu mesmo tive oportunidade de conhecer a casa numa semana em que no sábado participamos de uma gira de Ogum propriamente Umbandista, exceto pelo diferencial de que o Daime poderia ser bebido, e no domingo houve um trabalho de hinário aparentemente em nada distinto de outros ritos exclusivamente daimistas vivenciados em outros lugares.

92

MONTERO, Paula. Da Doença a Desordem – A magia na Umbanda. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. 48

Quanto à segunda experiência do terreiro em Lumiar, às vezes referido como de “Umbandaime”, há o estudo da antropóloga M. B. L. Guimarães

93

, no qual ela tece algumas

comparações entre as ritualísticas da umbanda e do Santo Daime. Aponta-se como uma das principais diferenças, a questão do imanente e do transcendente. Se na umbanda trata-se de um sentido imanente já que são os espíritos que baixam nos corpos dos médiuns, o Daime busca uma relação transcendente com a espiritualidade através das viagens astrais. Veja-se a esse respeito a mudança no Pai Nosso: “...vamos nós ao Vosso Reino...”, tal como se reza no Santo Daime, que é indicativa da mudança de sentido com que se busca tangenciar o sagrado. Araújo em seu estudo sobre a Barquinha corrobora com a posição de Guimarães sobre a relação entre imanência e transcendência nas diferentes modalidades de contato com a espiritualidade praticadas na Umbanda e no Santo Daime. Ele aponta que nos trabalhos individuais da igreja da Barquinha podem ser delineadas duas partes: na primeira busca-se uma concentração mental enquanto está se trabalhando o Daime recebido e na segunda são mais freqüentes as incorporações das entidades consideradas pagãs como exus, caboclos, etc. Na primeira parte o autor cita ainda outra forma de contato com a espiritualidade que seria, além das instruções recebidas pela “Santa Luz”, o contato através das “irradiações mediúnicas” que não chega a configurar uma incorporação, tratando-se apenas da influência espiritual canalizada pelo médium94. Tentamos nessa primeira parte aproximar o leitor, de uma maneira geral, do heterogêneo universo ayahuasqueiro, enfatizando, no entanto, a idéia que o perpassa de um caráter terapêutico atribuído à ayahuasca, que pode ser deduzido pelas formas do uso, associadas ao diagnóstico e cura de doenças como exemplificado nos contextos xamânicos ou nos relatos das principais lideranças de alguns dos grupos ayahuasqueiros, bem como na noção mais pertinentemente designada por alguns como ‘cura espiritual’ de uma transformação existencial mais ampla relacionada a uma ressignificação de valores e crenças instaurados pela constatação ritualmente experimentada da realidade do mundo espiritual. Nessa segunda parte queremos entender melhor como se processam tais modificações observando mais de perto os mecanismos psicológicos e simbólicos mobilizados pela visão de mundo e ritualística do Santo Daime, tal como descrito nas experiências pessoais dos seguidores dos grupos por nós pesquisados ou encontrados nos relatos sobre as origens e características da doutrina e nos hinos onde são transmitidos os principais ensinamentos daimistas. Como 93

GUIMARÃES, M. B. L. A Lua Branca de Seu Tupinambá e Mestre Irineu: Estudo de caso de um terreiro de umbanda. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, UFRJ, RJ, 1992. 94 Op. cit., pp. 175-176. 49

contraponto a essa ilustração de experiências religiosas vividas como portando um caráter transformador, abordamos alguns aspectos teóricos da abordagem junguiana referente ao processo de modificações psíquicas, como a noção de individuação ou o tratamento da manipulação alquímica da matéria como metáfora das transformações vitais que se passam no próprio psiquismo do alquimista, a julgar pelo conteúdo simbólico usado em tal contexto. Antes, porém, queremos discutir os principais acontecimentos situados na origem da doutrina envolvendo o Mestre Irineu, aproveitando para apresentar a compreensão de mito que adotamos, baseados nos posicionamentos de Eliade.

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II – Segunda Parte – Experiências e símbolos de transformação

No momento do nascimento do Santo Daime já encontramos uma operação transformadora: a bebida indígena ayahuasca transmuta-se no sacramento Santo Daime. É muito comum nos relatos dos daimistas a referência a essa operação como a “cristianização da ayahuasca”, realizada pelo Mestre Irineu sob as ordens da Virgem da Conceição, a Rainha da Floresta. Esse evento central na doutrina não possui força apenas passada mas continua presente através da reatualização ritual da sua importância mítica. Aqui nos cabe, antes de prosseguir, esclarecer a compreensão que temos do mito: trata-se do mito, não enquanto ficção ou leitura ilusória do real, mas do mito vivo no sentido empregado por Eliade. Para Eliade o mito é compreendido como uma história sagrada que narra o tempo primordial e conta como, graças aos entes sobrenaturais, dada realidade passou a existir. Sendo considerado uma irrupção do sagrado no mundo, implica reconhecer como nasceu o que há hoje, seja uma instituição, um comportamento ou uma planta. Para o autor, é essencial perceber, portanto, que se trata de uma história que se refere a realidade, já que o mito busca dar conta de como nasceram as verdades que hoje condicionam a existência em determinada cultura95. O autor afirma que, do mesmo modo que o homem moderno se compreende constituído pela História, nas sociedades ditas arcaicas o homem se entende como resultante de certos acontecimentos míticos96. Segundo o pesquisador, a diferença entre ambos se encontra no fato de que enquanto o moderno não se vê na obrigação de conhecer toda a sua História, nas sociedades arcaicas a história mítica deve ser, não apenas rememorada, como também reatualizada através dos ritos. Disso decorre, para o moderno, uma irreversibilidade dos acontecimentos que não é vivida nessas outras sociedades. Essa perspectiva nos faz lembrar da apresentada por Levi-Strauss (apesar das diferenças que os teóricos guardam entre si), ao dizer que o valor do mito decorre justamente de sua estrutura permanente que relaciona de maneira concomitante passado, presente e futuro. Essa compreensão é, nota o autor, muito semelhante à ideologia política e às constatações dos historiadores que, evocando acontecimentos como a Revolução Francesa, por exemplo, não estão apenas relatando eventos passados, mas buscando entender a França contemporânea, como conseqüência de esquemas de eficácia permanente que possibilitam entrever, inclusive, desenvolvimentos futuros 97.

95

ELIADE, M. “A estrutura dos mitos”, in: Mito e Realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 7-23. Op. cit., p. 16. 97 LEVI-STAUSS, C. ”A estrutura dos Mitos”, in: Antropologia Estrutural. São Paulo: Tempo brasileiro,1991, p. 237-245. 96

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Nas narrativas míticas comumente existem vários relatos referindo um mesmo acontecimento primordial. Numa das variantes relativas ao tempo em que o Mestre Irineu conheceu a ayahuasca, conta-se sobre pessoas que se reuniam para tomar o chá e invocar o demônio, a quem pediam dinheiro e benefícios pessoais. Num depoimento colhido em edição comemorativa do centenário de vida do Mestre Irineu98 o Sr. Luís Mendes conta como se deu sua conversão para o Santo Daime quando deixou de fumar e beber. Ele também recorda desses tempos primordiais através dos relatos que circulavam e conta como foi a participação do Mestre numa reunião desse tipo:

“Tomou a bebida e quando os outros começaram a trabalhar botaram a boca no mundo, chamando o demônio. Ele também começou a chamar. Só que na proporção que ele chamava o demônio, eram cruzes que iam aparecendo. Ele se sentiu sufocado de tanta cruz que apareceu. O Mestre começou a analisar: ‘o diabo tem medo da cruz e na medida que eu chamo por ele, aparecem as cruzes. Tem coisa aí...’. Ele pediu pra ver uma série de coisas. Tudo que ele queria, ele pode ver.”

Em sua tese de doutoramento sobre o poder do Santo Daime Cemin trata, em determinado capítulo, do tema do pacto satânico99. Indaga-se como se passou a junção do xamanismo ayahuasqueiro com a magia européia e aponta que o substrato desta última aparece nas práticas do catolicismo popular, como curas ou adivinhações que eram frequentemente agregadas sob o rótulo de “feitiçaria”. Baseada em estudos 100 percebe que no contexto folclórico nordestino o tema fáustico constitui-se dos motivos míticos da “tentação”, “conversão”, “martírio”, mas propõe que a especificidade do pacto é a questão do preço cobrado para obtenção de saber e poder. Segundo a autora o confronto de saber/poder implicam no enfrentamento das forças diabólicas. O Diá-bolos tem função antitética ao Sim-bolos, pois enquanto este integra, o diabo é o desintegrador, o divisor, nas suas palavras: “Aquele que separa pode por esse processo criar a possibilidade para a instauração do novo. Dia-bolos, portanto, separa não só o aspecto de ambigüidade moral do antigo contexto sim-bólico do uso da ayahuasca, mas 98

Depoimento de Luís Mendes do Nascimento in: “Revista do centenário do Mestre Imperador Raimundo Irineu Serra”, Rio de Janeiro: Ed. Beija-flor, 1992, p. 11-15. 99 Trata-se do capítulo IV: “ Poder da Narrativa, Magia da Floresta e Magia Européia: o Diabo, a Cruz e o ‘tema fáustico’” in: CEMIN, A. B. Ordem , Xamanismo e Dádiva, o poder do Santo Daime. Doutorado em Antropologia Social, USP, 1998. 100 Entre os quais a pesquisadora cita: FERREIRA (1992,1995), GUINZBURG (1991), SOUZA (1986), TRINDADE (1993), op. cit., p. 323. 52

também, permite ampliar os limites estabelecidos pelo cristianismo, que considera práticas adivinhatórias e procedimentos mágicos de cura como artes demoníacas, colocando sob suspeita, métodos extáticos de contato com o divino e a cura. Essas artes, situam-se no campo da magia, onde, frequentemente, o confronto com Lúcifer – o portador da Luz – assume proporções necessárias, cotidianas, operatórias (...)”101

São mencionadas duas situações distintas relativas à iniciação do Mestre. Por vezes conta-se que seu ‘primeiro contato’ ocorreu com grupos de sujeitos não identificados em que se rogava ao diabo. Na outra situação, que já comentamos na primeira parte do trabalho, o Mestre recebera o chá através do caboclo peruano Don Crescêncio Pizango que era descendente dos Incas e considerado guardião da ‘Hoasca’. Goulart mostra que os dois contextos aparecem, seja para marcar o afastamento de uma forma de uso do chá considerada errada como na primeira situação, ou evocam uma aproximação como no caso da iniciação feita por Don Pizango, que além de sua nobreza, existe um detalhe de uma intimidade entre homem e natureza revelada no fato do próprio Pizango, durante a sessão, ter se transformado no chá. Narra-se que tal ocorrência só tinha sido notada pelo Mestre Irineu, os demais presentes nada perceberam. A autora relaciona Don Pizango à entidade feminina Clara, responsável pelas revelações principais que o Mestre recebeu. Assim como ela, Pizango também mencionava que apenas o Mestre teria visto determinadas coisas, o que o singularizava com relação às outras pessoas que conheciam a bebida e afirmavam ser ele o único portador da competência necessária para trabalhar com ela, enfrentando as tentações, corrigindo os equívocos, instaurando o verdadeiro e correto uso. No embate entre as forças diabólicas e divinas a proteção do Mestre é atribuída à entidade feminina nomeada Clara que posteriormente é também referida como a própria Virgem da Conceição ou Rainha da Floresta. Clara teria acompanhado o Mestre desde a sua partida no Maranhão e agora que ele tomara contato com a ayahuasca surge a Antonio Costa (aquele com quem o Mestre foi iniciado por Don Pizango e com quem funda o CRF – Centro de Regeneração e Fé) depois de uma sessão com o psicoativo e lhe manda avisar ao Mestre que este se prepare, pois que ela voltaria para conversar com ele. Vejamos como nos conta essa história o Sr. Luís Mendes no depoimento já acima citado: “Terminado o trabalho, ele ficou ansioso para tomar outra vez e encontrar-se com Ela. Na próxima vez, depois de tomar o Daime, ele armou a rede de modo que a vista dava acesso para a lua. Parece que estava cheia, ou 101

Op. cit., p. 324. 53

quase cheia. Era uma noite clara, muito bonita. E quando começou a mirar muito deu vontade de olhar para a lua. Quando olhou, ela veio se aproximando, até ficar bem perto dele, na altura do teto da casa. E ficou parada. Dentro da lua, uma Senhora sentada na poltrona, muito formosa e bela. Era tão visível, que definia tudo, até as sobrancelhas, nos mínimos detalhes, ela falou pra ele: - Tu tens coragem de me chamar de Satanás? - Ave Maria, minha senhora, de jeito nenhum. - Você acha que alguém já viu o que você está vendo agora? Aí ele vacilou pensando que estaria vendo o que os outros já tinham visto. - Você está enganado, o que você está vendo nunca ninguém viu. Só tu. Agora me diz: quem você acha que eu sou? Diante daquela luz, ele disse: - Vós sois a Deusa Universal! - Muito bem. Agora você vai se submeter a uma dieta. Para tu receber o que eu tenho para te dar.”

E é aqui que se dá o trabalho de purificação a que Irineu Serra se submete no seu isolamento na floresta, alimentando-se de macaxeira e proibido de contato sexual. É aí que terá as primeiras visões reveladoras iniciais sobre a doutrina, sobre os seres espirituais, especialmente entidades das matas, mas também as provações e dificuldades inerentes à empreitada. É nessa parte da vida do Mestre que aparecem mais marcadamente os traços comuns aos esquemas de iniciações xamânicos: isolamento, sofrimento, morte e renascimento. Instaura-se uma situação de liminaridade que demarca dois momentos bem distintos do ser. É nesse sentido que se fala na morte simbólica de uma existência anterior enquanto pré-condição para o renascimento do novo sujeito. Van Gennep, citado por Turner, demonstra que há três fases nos ritos de passagem: separação, liminaridade e agregação. Na fase de separação o sujeito afasta-se de um grupo ou de certa estrutura social a que pertencia, entrando na situação intermediária, de liminaridade, durante a qual vive um período de ambigüidade, sem formas ou atributos definidos. Por fim a passagem conclui-se com a reagregação do sujeito à estrutura social.102 Também Campbell, que possui uma abordagem bastante alinhada com a perspectiva junguiana, apresenta tal idéia, nos seguintes termos:

102

TURNER,V. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974,p. 116-117. 54

“O percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula representada nos rituais de passagem: separaçãoiniciação-retorno – que podem ser considerados a unidade do monomito. Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes.”103

Conforme Eliade sofrimento, morte e ressurreição estão presentes nas experiências extáticas que estabelecem o dom do futuro xamã104. Ele diz também que os sofrimentos correspondentes às torturas iniciáticas, típicos de vários ritos dessa natureza, podem aparecer na forma de “doença-vocação” ou “doença-iniciação”, apresentando sempre um ou vários temas como o despedaçamento do corpo seguido de sua reconstituição, ascensão aos céus ou descida aos infernos e contatos com os espíritos de falecidos. Como se sabe, esses temas estão presentes, não só na história do Mestre, como também na de outras lideranças importantes do universo das religiões ayahuasqueiras, como é o caso do Padrinho Sebastião. Ele teria procurado o Mestre para tratar-se de uma enfermidade até então incurável, seus sintomas são aliviados após uma intervenção espiritual feita numa sessão com o Daime, durante a qual seu corpo foi dissecado e seus ossos separados da carne deixando à vista seu esqueleto e do seu ventre foram extraídas três larvas, daí tudo foi colocado no lugar sendo fechado seu corpo105. Cemin argumenta que o modelo do mito de origem daimista é, não enquanto fundamento último, uma variante do tema fáustico no qual apresenta-se centralmente a questão do ‘pacto satânico’, típica do que os folcloristas brasileiros, tal como Câmara Cascudo, designam por “ciclo do demônio logrado”106. O fracasso do diabo é atestado inicialmente por seu medo de cruz. Inicialmente tentado pela facilidade de poder obter dinheiro nas sessões de chá com os caboclos, talvez para voltar para sua terra natal como é referido em alguns relatos, Irineu espanta-se com a aparição das cruzes suspeitando que há aí alguma incoerência. A aparição da Virgem vem pôr fim definitivo à ambigüidade inicial do contexto em que o chá era usado. Além disso, para atender ao pedido do Mestre de se tornar um grande curador, Ela lhe impõe mais uma outra restrição que também subverte a principal motivação presente nas sessões de pacto demoníaco: ele terá que abdicar de ganhar dinheiro com seu trabalho de curador através do 103

CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix / Pensamento, 1949, p.36. ELIADE, M. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 49. 105 FRÓES, V. Op. cit., p. 55. 106 Op. cit., p. 342-356. 104

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Daime. Para obtenção de seus poderes de trabalhador com o chá sagrado o Mestre tem que aceitar a renúncia dos favorecimentos materiais, além de se submeter à dieta das restrições alimentares e abstinência sexual. Como podemos ver a Cruz e a Virgem são as imagens principais que auxiliam o Mestre à renunciar às tentações e facilidades do pacto, recusando sua associação com as forças do mal. Eis porque esse processo de transformação da beberagem indígena em Santo Daime é designado “cristianização da ayahuasca”. Não só o Santo Cruzeiro, como é constantemente chamada a Cruz de Caravaca, e a Virgem da Conceição tornaram-se símbolos centrais da doutrina presentes em todas as igrejas damistas, como também pode-se verificar a centralidade das referências a Cristo ou valores cristãos pela recorrência com que aparecem nos diversos hinários da doutrina. A Cruz é o principal símbolo de referência à Paixão e Morte de Cristo. No Santo Daime utiliza-se a imagem da Cruz de Caravaca, distinta da convencional por um segundo braço menor situado acima do primeiro. Alguns entrevistados explicaram-nos seu significado como se tratando de referência ao retorno de Cristo à vida, a sua ressurreição histórica e a que se passa no coração daqueles que seguem seus ensinamentos, ou mesmo do retorno histórico da consciência crística nessa nova era. Já não se trata mais da imagem de um deus morto, conforme afirmam. Sua glória estaria exatamente no seu renascimento e sua força é decorrente da sua vivacidade. A Cruz de Caravaca remete, portanto, de uma maneira intensa a uma simbologia transformacional ou, em linguagem mais simbólica, a uma imagem de morte e renascimento. Também a Virgem, intervindo decisivamente na relação do Mestre com a ayahuasca, pode ser associada com o tema da transformação. Ela é a Virgem da Conceição, como se pode notar o nome Conceição é uma corruptela de concepção. Trata-se aí do mistério cristão da concepção virginal. Conceber é gerar uma nova vida, atributo que relaciona a fecundidade ao feminino, à mãe. Jung, discorrendo sobre o arquétipo materno elenca os seus atributos:

“(...) a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal (...). O paralelo histórico que nos é mais familiar é, com certeza, Maria, que na alegoria medieval é

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simultaneamente a cruz de Cristo. Na Índia, seria a Kali contraditória. A filosofia samkhya elaborou o arquétipo materno no conceito de Prakrti (...)”107.

Infelizmente ele não desenvolve nesse texto as particularidades dessa associação medieval de Maria com a cruz de Cristo, porém a relação parece-nos estar ligada ao tema da “árvore da vida” que tanto está ligada à cruz e ao Cristo quanto ao feminino enquanto símbolos de transformação. A dedução soa-nos plausível pois no seu Símbolos de transformação108, no capítulo intitulado “Símbolos da mãe e do renascimento”, após discorrer longamente a respeito da cidade como símbolo materno, enquanto mulher que abriga como filhos seus habitantes, ele diz que além da água, um outro símbolo materno tão freqüente quanto este é o do madeiro da vida ou árvore da vida109, que é antes de tudo a árvore genealógica que dá frutos, ou seja, uma espécie de mãe genealógica. Comenta também que em diversos mitos a origem humana é atribuída a árvores e que existem muitas divindades femininas veneradas como árvores. Não queremos prolongar as referências à simbologia da árvore contidas nesse volume das obras de Jung, uma vez que pretendemos voltar a esse simbolismo mais adiante, só que a partir das idéias apresentadas nos Estudos Alquímicos, pois parecem mais pertinentes às nossas reflexões. Mas já que estamos falando do Mestre Irineu, cabe mencionar que ele próprio designavase como uma “árvore sombreira”. Na Revista do Centenário Couto comenta que conforme os depoimentos, Irineu Serra era muito calmo e paciente, agregava em torno de si muitas pessoas por sua fama de curador e por seus bons conselhos, mantendo até hoje a recordação de seu carisma. “Luís Mendes afirma que o Mestre Irineu referia a si mesmo como uma ‘árvore sombreira’”110. O Alto Santo é o local em que Mestre Irineu firmou moradia e construiu a sede da igreja do CICLU, Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, após a experiência inicial de trabalhos com o Daime ainda no antigo CRF, Centro de Regeneração e Fé, que ficava em Brasiléia. Nesse novo centro, já na zona rural de Rio Branco também no estado do Acre, agregaram-se mais de quarenta famílias que trabalhavam cooperativamente através dos mutirões, sob a organização do Mestre; no seu tempo chegava a reunir até 600 pessoas nos dias de trabalhos espirituais. Há ainda, no que se refere ao feminino, a imagem da lua e seus ciclos apontando para o constante dinamismo das forças da natureza. Lembremos que Clara numa de suas aparições ao Mestre, chega-lhe dentro de uma lua. A lua pode também ser vista no centro dos distintivos 107

JUNG, C. G.Os arquétipos e o inconsciente coletivo, op. cit., p. 92. JUNG, C. G. Símbolos de transformação. Petrópolis: Vozes, 1999. 109 Op. cit., p. 207. 110 Op. cit., p. 47. 108

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usados pelos fardados, que tem a forma da estrela de Davi, de seis pontas. De acordo com o psicólogo Paulo Roberto Silva e Souza, padrinho da igreja Céu do Mar, no Rio de Janeiro: “A doutrina praticada pelos incas era animista. Cultuavam o Sol, a Lua e as estrelas. O Mestre fez a união do Sol com Cristo, da Lua com a Virgem Maria e a Rainha da Floresta.”111 O Sr. ‘Noberto’, ancião da comunidade do Matutu, falando a respeito dos princípios masculino e feminino das plantas que compõem o chá explica-nos que o cipó sobe na árvore e vai lá em cima buscar a força do Sol, “... ele puxa essa Força, mas para abrir o campo de visão, de Luz é a chacrona”112. A chacrona é também chamada folha Rainha e essa compreensão de que dela vem a Luz e do cipó a Força não é restrita do nosso entrevistado, mas típica da cultura daimista. Afirmar que o saber ou que a Luz vem da Rainha opera uma espécie de deslizamento significante que pode remeter tanto à folha Rainha, o vegetal, quanto à Rainha da Floresta, Nossa Senhora mas de qualquer forma a expressão Rainha da Floresta também pode evocar a imagem da planta. A exaltação dos elementos da natureza tem presença forte entre os daimistas como se percebe nesse trecho de um hino do Mestre:

“Sol, Lua, Estrela A Terra, o Vento e o Mar É a Luz do Firmamento É só quem eu devo amar (...)” (Hino 29 – Sol, Lua, Estrela – hino completo no anexo 2)

A importância de tais elementos testemunha a crença de que são capazes de fazer a intermediação, a conexão entre o plano matéria e o plano espiritual. A imponência dos astros indica a grandeza dos planos superiores da criação, que através da prática ritual daimista podem ser acessados por meio do poder do Santo Daime. Cemin, especulando sobre o que seria o poder mágico do Santo Daime afirma que na composição das sagas dos “heróis redentores ou civilizadores” é básica a presença de procedimentos mágicos para obtenção dos seus poderes. Ela ilustra:

“Fausto e Cipriano derivam sua força de ‘pactos satânicos’, que podem desdobrar-se em ‘conversão’ ou ‘danação’. Jurupari é ‘Filho do Sol’ e foi gerado 111 112

Revista do Centenário, op. cit., p. 43. Entrevista do ‘Sr. Noberto’, 08/12/2003, Matutu, Aiuruóca, MG. 58

a partir do ‘sumo da fruta’. Cristo obra do ‘Espírito Santo’. Juramidã é também o Sol, Filho da Virgem, Rainha da Floresta, identificada com a Lua, surgindo na Lua Branca outorgando a ele, o ‘Reino do Astral’. A partir de então ele é o 113

‘Chefe Império Rei Juramidã’, Dono da Força Maior.”

O Santo Daime é a chave para o trânsito entre os planos, é o acesso ao Reino Astral que os herdeiros de Juramidã receberam daquele que abriu essa missão através da conversão do antigo chá indígena em um “santo remédio”, como o Mestre referia o sacramento Daime. De acordo com Eliade, existe uma diferença essencial entre o tempo sagrado e o tempo profano. Ele diz:

“Toda festa religiosa, todo ato litúrgico, representa a reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, ‘nos primórdios’. Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal ‘ordinária’ e a reintegração no tempo mítico reatualizado pela própria festa. Por conseqüência, o tempo sagrado é indefinidamente recuperável, indefinidamente repetível.”114

Para o pesquisador é através do rito que esse tempo mítico e circular é atualizado, produzindo uma rotura na temporalidade profana, tal como a igreja opera uma rotura de nível no espaço. Essa reatualização do tempo original pode ser percebida nas práticas dos daimistas às vésperas de uma cerimônia por realizar-se. O dia do trabalho é separado da rotina habitual por algumas recomendações e interditos: três dias antes e três depois é recomendado a não ingestão de bebidas alcoólicas ou carne vermelha, bem como ficam vetadas as relações sexuais. Apesar de não corresponder exatamente às exigências que o Mestre Irineu teve que submeter-se no processo de sua iniciação na origem da doutrina, as restrições postas aos daimistas contemporâneos comportam o mesmo teor da dieta do Mestre: disciplina alimentar e sexual. Anualmente a cosmogonia é reatualizada através do calendário litúrgico, diz Eliade: “a festa não é a comemoração de um acontecimento mítico (e portanto religioso), mas sim sua reatualização.”115 O historiador analisa o caráter regenerador desse regresso feito até o tempo das origens: a terapêutica aí contida consiste na chance de recomeçar a existência ou nascer simbolicamente outra vez. Tal como entre uma população tibetano-birmanesa, os Na-Khi do 113

Op. cit., p. 369. ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 63-64. 115 Op. cit., p. 73. 114

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sudeste chinês, que têm uma terapia arcaica em que o rito de cura “(...) consiste na recitação solene do mito da Criação do Mundo (...)” posteriormente trata dos mitos que explicam a origem das doenças e por fim como surgiu o primeiro xamã-curandeiro com os medicamentos de que necessitavam116.

1. Daime: compreensão do chá e dos seus efeitos / Do Auto-conhecimento

O chá ayahuasca, inicialmente um instrumento da medicina dos povos que habitam a Floresta amazônica, responsável por aspectos das cosmogonias e mitos locais como já demonstramos, ganha outros contornos ao direcionar-se para as cidades através de novos movimentos religiosos, bem como das pesquisas científicas e demais usos que recebe. Se inicialmente há uma maior homogeneidade na forma de apreendê-lo, agora a substância encontra-se numa intercessão, basicamente dividida na nossa sociedade entre os discursos religioso, científico, e o que poderia chamar-se de profano. Trata-se da fecunda discussão dos regimes de verdade e poder relacionados aos distintos discursos, assunto que tanto alimentou as reflexões de Foucault, para quem:

“Há um combate ‘pela verdade’ ou, ao menos, ‘em torno da verdade’ – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer ‘o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar’, mas o ‘conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui aos verdadeiros efeitos específicos de poder’ (...) Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados.”117

Alguns fiéis manifestam hesitação em afirmar o caráter terapêutico da substância, provavelmente buscando evitar uma banalização ou desvirtuação do uso sacramental que praticam em seus cultos. Se no Santo Daime, porém, existem cultos designados como trabalhos de cura, no caso da UDV parece haver uma institucionalização dessa hesitação e a tendência para evitar expressões como cura ou afirmações referentes à dimensão terapêutica do Vegetal são manifestadas claramente, como por exemplo no caso de um udevista do Quadro de Mestres que nos afirmou que ao invés de mencionarem que se trata de uma cura desencadeada pelo Vegetal, 116 117

Op. cit., p. 75. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 13 e 14. 60

entendem que o chá purifica, através de um processo de limpeza. O informante evidenciou estar bem consciente dos desdobramentos político-discursivos da sua posição. Pela ótica dos embates discursivos pode-se antever aí uma preocupação com problemas potenciais: caso houvesse uma tácita aceitação do caráter meramente terapêutico do Santo Daime pelos fiéis, estaria aí concomitante e implicitamente, o germe de uma autorização, senão permissão, da captação da substância pelo discurso médico racionalizado, portanto dessacralizado. Se pela perspectiva científica pode haver nisso algum interesse, do ponto de vista interno, da doutrina, isso parece ser justamente o que se desejaria evitar. Um uso científico dos princípios constitutivos da ayahuasca comportaria uma lógica discursiva bastante distinta da religiosa. De saída não haveria aí, por exemplo, a admissão da existência da dimensão espiritual como uma questão a ser considerada, o que resultaria numa apreensão com resultados totalmente diversos da sentida na cosmovisão daimista. Reduzir o chá as suas dimensões bioquímicas abre as possibilidades, não apenas para o seu estudo científico, mas também facilita a sua comercialização como uma mercadoria qualquer; fato que já vem se passando, por exemplo, na internet, bem como em algumas jornadas e workshops de turismo psicodélico. Tal ocorrência em nada se assemelha com o tratamento religioso da substancia. Aqui sua consideração enquanto ser divino incompatibiliza-se com esse uso meramente comercial, pelo menos no nível do discurso religioso. A revelação da realidade dos planos espirituais da existência, enquanto decorrente da atuação do sacramento tal como é concebido entre os daimistas, é entendida como responsável por trazer os principais desdobramentos decorrentes da experiência ritual enteogênica, já que ela, (revelação) enquanto convicção adquirida através de uma experiência senso-perceptiva bastante contundente, desperta a necessidade de ressignificar as formas do ser no mundo. Resulta que a experiência da ingestão do chá-sacramento, aí incluída toda performance corporal, musical e simbólica envolvidos, pode, além dos estados de consciência modificados experimentados durante a cerimônia, desencadear transformações ontológicas mais significativas e duradouras, em geral bastantes valorizadas por aqueles que por elas passam. Queremos agora privilegiar algumas imagens de como a substancia é considerada no âmbito do discurso religioso a partir de considerações apresentadas pelos adeptos que colaboraram com nossa pesquisa. Apesar dessas ilustrações remeterem muitas vezes a metáforas que evocam uma dimensão técnica do chá (lente de aumento, espelho, veículo,...) a forma como o entrevistado a aborda ressalta a sacralidade central que subjaz a qualquer das analogias que lançam mão para descrever como funciona o chá no ser humano.

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Assim‘Thiane’, por exemplo, considera que o Daime é uma poderosa chave para o conhecimento, tal como a meditação e tantas outras chaves existentes118. ‘Dogival’ no seu depoimento afirma que: “(...) o Santo Daime age assim como um espelho aonde ele dá um panorama muito claro para as pessoas sobre si mesmo, sobre a sua essência interior, então acho que esse é o primeiro impacto forte assim de todas as pessoas que tomam essa bebida: de terem esse contato forte consigo mesmo.” 119

Fica claro que ambos os entrevistados preocupam-se em evidenciar as conseqüências provocadas por tal recurso: a produção do auto-conhecimento. O mesmo ‘Dogival’ afirma ainda numa outra entrevista:

“(...) essa bebida, ela é entendida assim como um ser divino, entende? Não é só um liquido que está ali não, a maneira como se lida com isso é muito cuidadosa, é uma maneira assim de lidar com algo vivo, você não está lidando assim com uma coisa (...) tem reação à tua ação, reage, então, existe uma interação, nesse sentido é a história do sagrado, e o ato de tomar o Santo Daime é o ato de uma consagração. (...) O Santo Daime não é apenas, como muita gente às vezes se refere, isso eu digo no entendimento de como o povo ali da raiz lida, não é apenas um veículo não, é um ser divino, um sacramento. Existe ali uma comunhão, então tem esse entendimento mais sagrado do que científico, como muitas linhas hoje em dia, a gente vê no mundo urbano, a maneira como tudo vai se colocando chega num momento em que para muitas situações ele se torna apenas um veículo, perde-se aquela consagração, aquele cuidado, aquele entorno.”

Portanto entre os fiéis, ainda que tenham recorrido a analogias que comparam a substancia a meios técnicos, os nossos entrevistados sempre se preocuparam em marcar na sua fala o caráter sacro da bebida, concebendo-a enquanto uma tecnologia sagrada que traz efeitos subjetivos precisos. Nos exemplos citados fica clara a compreensão de conseqüências psicológicas e cognitivas, mencionaram conhecimento e auto-conhecimento como efeitos propiciados pelo Santo Daime. Tais efeitos são importantes no processo transformacional que pode ser desenvolvido na doutrina. Na verdade o cerne dos processos psicoterápicos, de uma 118 119

Entrevista de ‘Thiane’ em 23/08/2003, Matutu, Aiuruoca, Minas Gerais. Entrevista de ‘Dogival’ em 15/04/2004, Floresta, Juiz de Fora, Minas Gerais. 62

maneira geral, parte da instauração ou da ampliação do auto-conhecimento. Por exemplo, nas correntes de influencia psicanalítica trata-se, grosso modo, da assimilação de aspectos inconscientes à consciência o que gera retificações subjetivas e isso pode ser entendido como um aumento do conhecimento de si. Quanto a esta compreensão do processo analítico enquanto uma ampliação dos conhecimentos que se tornam conscientes, vale destacar uma passagem do próprio Freud citado no verbete ‘Psicanálise’ do clássico dicionário de Laplanche e Pontalis.120 A ampliação de conhecimento é frequentemente mencionada não apenas nas letras dos hinos daimistas como na literatura que discorre sobre essa manifestação religiosa. Já mencionamos que a ayahuasca é considerada uma planta mestra ou planta professora. Aqui queremos ilustrar esses efeitos de aprendizagem e que remetem a uma relação educacional do sacramento com os religiosos, através de letras dos hinos, bem como de trechos de entrevistas onde a doutrina é considerada “uma escola de conhecimentos espirituais”. Dezenas de hinos do Mestre Irineu mencionam os ensinamentos e aspectos da vida espiritual. Recolhemos aqui trechos de alguns:

“(...) A minha mãe me ensinou Mandou eu ensinar A todos os meus irmãos Aqueles que acreditar (...)” trecho do hino Pedi Força a Meu Pai (Hino completo no anexo 3)

Já no hino Salomão, também do hinário O Cruzeiro encontramos:

“(...) A professora que te ensina Tu soubeste aprender Trabalhaste muitos anos 120

LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.“ Chamamos psicanálise ao trabalho pelo qual levamos à consciência do doente o psíquico recalcado nele. Por que ‘análise’, que significa fracionamento, decomposição, e sugere uma analogia com o trabalho efetuado pelo químico com as substâncias que encontra na natureza e que leva para o laboratório? Porque, num ponto importante, essa analogia é, efetivamente bem fundada. Os sintomas e as manifestações patológicas do paciente são, como todas as suas atividades psíquicas, de natureza altamente compósita; os elementos dessa composição são em última análise motivos, moções pulsionais. Mas o doente nada sabe, ou sabe muito pouco, desses motivos elementares.”p.385 63

Para hoje receber (...)” (Hino completo no anexo 4)

E no Flor de Jagube :

“(...) A minha mãe que me mandou Trazer Santas Doutrinas Meus irmãos todos que vêm Todos trazem este ensino

Todos trazem este ensino Para aqueles que merecer Não estando nesta linha Nunca é de conhecer (...)” (Hino completo no anexo 5)

Esta menção ao merecimento também é tema recorrente na cultura daimista, pois acreditase que a cada um é dado ou não determinado conhecimento, a partir do seu merecimento. É comum entre os daimistas se referirem ao Daime como o Professor, quando, por exemplo, alguém comenta alguma dificuldade que vem passando ou de qualquer dúvida que tenha costuma-se recomendar: - Pergunte ao Professor! Compartilham a noção de que se trata da autoridade máxima, ou como se canta em um hino do Padrinho Alfredo: “O Daime é o Daime, o Professor dos professores, é o divino Pai Eterno e seu Filho Redentor (...)”. Vejamos também alguns trechos de hinos do Padrinho Sebastião transcritos de seu hinário O Justiceiro:

“(...) Eu sou o Ser Divino Eu venho aqui para te ensinar Quanto mais puxar por mim Mais eu tenho pra te dar (...)” Hino 6 – Eu vivo na Floresta (Hino completo no anexo 6)

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Já no Vamos meus irmãos, canta-se:

“(...) E agradeço a meu Mestre Porque tem o que me ensinar Me mostra tanta beleza Que neste mundo não há (...)” (Hino completo no anexo 7)

E para não nos estendermos muito em tais passagens, apenas mais uma parte do hino intitulado Quatro linhas e Quatro letras:

“Quatro linhas e quatro letras Eu aqui venho citar Para todos conhecer E saber aonde está ÉAéBéC Eu aqui vou multiplicar O Mestre ensinou E não souberam aproveitar(...)” (Hino completo no anexo 8)

A relação com a doutrina enquanto forma de ampliação de conhecimentos, especialmente de teor espiritual, é enfatizada na forma como ‘Forbes’ a compreende, tendo tomado Daime pela primeira vez há 05 anos atrás121. ‘Forbes’ menciona que nesse percurso ele percebe uma evolução na qual desdobram-se várias fases de sua transformação, porque conforme afirma, a vida é entendida como uma oportunidade que se tem para fazer um aprendizado, e entrar para uma escola significa estar “mais assessorado, mais balizado”. Cabe entretanto frisar que na argumentação de ‘Forbes’ essa compreensão do Santo Daime enquanto escola de conhecimento espiritual não é restrita à doutrina, ele percebe-a exatamente como uma entre todas as outras escolas, ou seja, sua menção a escolas visa referir-se às diversas tradições religiosas e suas 121

Entrevista realizada em 29/03/2004, Floresta, Juiz de Fora, Minas Gerais. Atualmente ‘Forbes’ é um dos responsáveis pela condução dos trabalhos no Céu das Estrelas. 65

formas peculiares de abordar a relação com o universo sagrado. O fato dele ter se identificado com o Santo Daime reflete a especificidade do seu próprio percurso pessoal. Junto a essas escolas, escolas de aprendizagem espiritual, o que irá marcar o caráter das transformações de cada um deverá ser a forma como o processo é encarado como se deduz desse trecho da sua fala:

“O Santo Daime, como qualquer outra escola de conhecimento espiritual, quando a pessoa entra assim, com determinado engajamento, com uma consciência, com vontade, ela certamente vai levar a pessoa a uma mudança de comportamento, porque ninguém já nasce sabendo as coisas”.

A dimensão do auto-conhecimento também é referida pelo entrevistado, que diz: “Toda escola de conhecimento espiritual é, em ultima análise, uma escola de auto-conhecimento”; mais adiante diz também: “(...) é um mergulho que você tem que dar para dentro de si mesmo para conhecer essa divindade, a gente fica procurando ela muito longe, mas vai descobrir que ela se encontra é dentro da gente mesmo!” Quanto a essa associação entre o auto-conhecimento e conhecimento da natureza divina, vale apontar para a noção de ser e a visão de mundo manifestos na cultura daimista. De acordo com Groisman nesse meio cultural o ser humano é considerado como sendo composto basicamente por dois elementos: o aparelho (que se refere ao substrato físico, ou corpo material) e o espírito (dimensão sutil que persiste para além da existência corporal)122. Podemos compreender essa situação também com as expressões plano material e plano astral sendo o primeiro frequentemente considerado pela maioria das pessoas como única realidade de fato existente. Ele é referido pelos fiéis como “mundo de ilusão”, já que distorce ou dificulta a percepção da realidade verdadeira, a do mundo espiritual ou astral. Tem-se aqui a percepção da realidade descrita em linhas gerais como identificando um mundo visível e um mundo invisível. Mas essa compreensão pode ser complexificada e podemos encontrar subdivisões a exemplo do que se entende como partes constituintes da dimensão espiritual de cada ser: o Eu inferior e o Eu superior. Outra vez o texto de Groisman pode nos auxiliar a compreender melhor essas instâncias:

“Todo espírito encarnado faz escolhas durante sua passagem pelo plano material. Neste sentido, tanto o eu inferior quanto o eu superior fazem parte da natureza do ser humano. Porém, a vida cotidiana e ilusão do mundo material 122

Op. cit., p. 47-48 66

fazem com que o ser humano privilegie as escolhas ligadas ao seu eu inferior. O eu superior, por isso, fica encoberto, inacessível. Com o trabalho espiritual, é possível conhecer o eu superior. Esta descoberta tem força de revelação, a revelação da divindade interior. A revelação desta dimensão espiritual da existência modifica a visão de mundo do sujeito e o faz reinterpretar sua vida à luz dos novos significados. O eu superior é de onde emerge a nossa interpretação dos caminhos até então percorridos, dando sentido a eventos e ensinamentos recebidos no passado, mas não compreendidos.”123

Esse modelo de estrutura psíquica manifesto na cosmovisão daimista nos auxilia a melhor entender como são vividos ou descritos os processos de transformação ontológica de acordo com sua lógica. Facilita também perceber em que sentido associam a questão do auto-conhecimento com o tema da revelação divina. Não é exatamente isso a que ‘Forbes’ se refere quando fala que é preciso mergulhar dentro de si para acessar a divindade que está em cada um? Trata-se do descortinar de uma dimensão ocultada, considerada como constitutiva do ser humano, pelo menos em estado potencial. De acordo com a ótica daimista, parece-nos, trata-se de uma aproximação maior em direção a esse Eu superior, ou melhor, da busca de um florescimento disso que se encontra apenas em potencia ou ainda de um harmonização crescente entre as forças do Eu inferior e do Eu superior. Em alguns ritos da doutrina, como em alguns trabalhos de concentração, por exemplo, reza-se na abertura do trabalho a oração intitulada Consagração do Aposento que suspeitamos, tenha sido herança do Círculo Esotérico Comunhão do Pensamento, já que enfatiza noções centrais para esse grupo como Harmonia, Amor, Verdade e Justiça. Em um trecho da oração recita-se:

“(...) Na mais perfeita comunhão entre meu Eu inferior e o meu Eu superior que é Deus em mim, consagro este recinto à perfeita expressão de todas as qualidades divinas que há mim e em todos os seres. (...)”.

(oração completa ver no anexo 14)

Essas noções de um Eu inferior e um Eu superior têm aspectos que nos evocam associações com os conceitos junguianos de eu e si-mesmo, respectivamente, que merecem ser melhor examinadas. Jung afirma que: “(...) o eu é o único dentre os conteúdos do si-mesmo que

123

Op. cit., p. 54-55. 67

conhecemos”124. Então já se encontra aí uma relação básica entre o Eu e o Eu inferior já que este último é aquele com quem nos manifestamos cotidianamente, segundo a compreensão daimista, estando o Eu superior numa condição mais inconsciente. O Eu inferior é aquele com quem estamos familiarizados e pode gerar o equívoco da identificação completa e exclusiva com ele. Podemos equipará-lo à idéia de eu ou ego que na compreensão junguiana é a dimensão consciente do nosso psiquismo. Já o si-mesmo enquanto algo indefinível e desconhecido, Jung afirma que não passa de um conceito psicológico construído para expressar o incognoscível, que está para além da nossa capacidade compreensiva. Diz em seguida que “o si-mesmo também pode ser chamado o ‘Deus em nós’”125, afirmação que mais corrobora com nossa articulação entre o Eu Superior daimista e o si-mesmo junguiano. Explica porém que, ao usar o conceito de Deus está apenas formulando “(...) certo fato psicológico, ou seja, a independência e supremacia de certos conteúdos psíquicos que se caracterizam por sua capacidade de opor-se à nossa vontade, de obcecar a consciência e influenciar nossos estados de espírito e nossas ações.”126 Há um hino da Madrinha Julia intitulado Para amar, que ajuda a perceber essa crença na dimensão divina como constitutiva do humano, nele se canta:

“Para amar e ter amor É preciso conhecer Deus em sua mente Deus é seu saber (...)” (Hino completo no anexo 9).

Essas referências a uma dimensão divina no ser humano assumem um importante papel em manifestações religiosas como a que estudamos. As religiões enteogênicas se caracterizam especialmente por pressuporem essa capacidade de despertar as qualidades divinas em cada ser. Através do sacramento uma nova sensibilidade se instaura produzindo o que se costuma conceber como uma experiência sem intermediação; a ponte entre o fiel e a instancia superior não passa pela figura do sacerdote mas se manifesta em cada um através do enteógeno. Se se trata da vivência de um outro Eu que se atinge é de um fenômeno de descentramento do ego (Eu inferior) que falamos. O psiquismo não pode ser mais identificado pura e simplesmente com o conteúdo da consciência com o intelecto, a mente racional. Há algo que ultrapassa o universo 124

JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente, p. 114. Op. cit., p. 112. 126 Op. cit., p. 113. 125

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conhecido e é nesse sentido que lançamos mão das idéias de Jung para nos aproximar dessas instancias inconscientes que, aliás, não são exclusivas da sua abordagem. Jung diz que negar a existência do inconsciente é pressupor que conhecemos totalmente a psique, o que é tão equivocado quanto achar que o universo físico é totalmente conhecido.127 Quanto à dialética das relações entre o eu e o si-mesmo Jung afirma que “(...) quanto maior for o número de conteúdos assimilados ao eu e quanto mais significativos forem, tanto mais o eu se aproximará do si-mesmo, mesmo que essa aproximação possa nunca chegar ao fim.”128 Esses apontamentos sugerem que na relação entre o eu (consciente) e o si - mesmo (inconsciente) o primeiro é englobado pelo segundo, possuindo central importância apenas no âmbito da personalidade conhecida. Jung diz que:

“Se o inconsciente for reconhecido como fator co-determinante juntamente com a consciência, e se pudermos viver de tal modo que as exigências conscientes e inconscientes sejam levadas em conta tanto quanto possível, então o centro de gravidade da personalidade total desloca sua posição. Não se encontra mais no ego, que é meramente o centro da consciência, mas no ponto hipotético entre o consciente e o inconsciente. Este novo centro pode ser chamado de simesmo.”129

É importante salientar que o si - mesmo é essencialmente um conceito psicológico que facilita a descrição da experiência subjetiva do “Deus dentro de nós”. Não pretendemos, sob nenhuma hipótese, equivaler o modelo junguiano à compreensão daimista, muito menos endossar ou refutar um ou outro. Interessa-nos a comparação tão somente com o intuito de evidenciar os traços análogos que sugerem uma plausibilidade lógica interna a cada quadro. A sugestão de Jung de tratar o si - mesmo como um ‘conceito operacional’ para designar acontecimentos psíquicos, é para nós valiosa pois auxilia a abordar experiências de outro modo dificilmente descritíveis, bem como adequa-se mais facilmente a um tratamento mais distanciado desses eventos. Por outro lado, e por isso mesmo, não podemos ansiar por equivalências, a compreensão daimista a respeito da existência de uma dimensão divina em cada ser humano não pretende ser uma descrição conceitual, mas realmente apontar para a forma como acreditam que se compõe a realidade, o que os distancia bastante das aspirações teóricas do estudioso. 127

JUNG, C. G. O Homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1964. Op. cit., p. 21. 129 Apud NAGY, Marilyn. Questões filosóficas na psicologia de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 233. 128

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2. Sobre a Individuação

Para compreendermos melhor alguns aspectos das idéias junguianas acerca das transformações psíquicas precisamos saber em que consiste o processo de individuação e para tal faz-se necessário reconhecer quais são as principais figuras psíquicas, pois é da dinâmica entre elas que decorre tal processo. Essas figuras são os arquétipos do eu ou ego, a sombra, animaanimus (sizígia) e o si-mesmo. O eu é o fator que está relacionado com todos os conteúdos conscientes, atuando como o seu centro. Ele demarca na compreensão junguiana os limites do sujeito pois engloba apenas o âmbito do conhecido, deixando de fora todo o campo do desconhecido. O desconhecido pode referir-se ao que não se sabe a respeito do ambiente e do exterior ou estar ligado ao mundo interior e é a este segundo tipo que Jung denomina inconsciente130. Duas bases constituem o eu, uma somática e outra psíquica. O eu não engloba todo o sujeito já que é englobado por fatores que ignora. Isso remete à relação entre consciente inconsciente logo, também à relação entre o eu e o si-mesmo. Vejamos o que diz o próprio Jung:

“Por isso propus que a personalidade global que existe realmente, mas que não pode ser captada em sua totalidade fosse denominada de si-mesmo. Por definição, o eu está subordinado ao si-mesmo e está para ele, assim como qualquer parte está para o todo.”131

Com o descentramento do ego (também chamado persona – máscara) da posição de centro total do psiquismo pode-se acessar a sombra, dimensão constituída por tudo aquilo que deixamos de ser e que passou a fazer parte do nosso inconsciente pessoal. Jung localiza a sombra enquanto questão de ordem moral pois tomar consciência dela implica na admissão dos “aspectos obscuros da personalidade”. Reside aí o motivo da freqüente resistência em encará-la, bem como a dureza de todo o processo de autoconhecimento pois como ele afirma: “Enquanto, por um lado, o autoconhecimento é um expediente terapêutico, por outro lado implica, muitas vezes, em trabalho árduo que pode se estender por um longo espaço de tempo”132. Um daimista

130

JUNG, C. G. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 1. Op. cit., p. 4. 132 Op. cit., p. 6. 131

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do Céu das Estrelas refere algo semelhante com relação à resistência que se pode apresentar em admitir as imperfeições que o Daime revela. ‘Forbes’ manifesta a idéia de que as mirações transformam porque desmascaram, tornam insustentáveis as defesas como as racionalizações da mente, que usamos como estratégia para não perceber o que nos cabe mudar. Ele explicou que nas mirações se ascende à “casa da verdade”, onde toda mentira vai caindo, uma a uma, pois, afirma ele, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente o Daime vai lhe mostrar a verdade. Você pode até não querer ver, nesse caso não voltaria mais na igreja, por não querer consertar o que é claramente mostrado como necessitando mudar. Mas onde há desejo real de transformação, prossegue-se até porque, continua ‘Forbes’, o Daime vai limpando o corpo, lugar sagrado incompatível com o que destrói e corrompe. Dessa forma, frisa, a transformação está no encontro de cada um consigo, porque é nesse embate de auto-conhecimento que se vai enfrentar “(...) os medos, limitações e coisas pequenas que tentamos omitir através das explicações racionais e outras formas de se esconder”. É nesse embate que, segundo o entrevistado, veremos “cara a cara os nossos dragões, e aí não tem pra onde fugir”, porque cada um terá um encontro vivo com seus monstros, pontos de nós cegos e entraves ao nosso auto-aperfeiçoamento, que a partir de então tornam-se evidentes mesmo que antes não fossem visíveis.133 ‘Forbes’ recebeu em certa sessão com o Daime ensinamentos de uma voz tratada como de procedência imaterial que lhe falou da importância de ter o corpo forte e limpo. A partir daí deixou de fumar e de beber, pois sabe que o corpo é o instrumento de que dispomos para a concretização do projeto divino. A sombra é constituída pelos aspectos inferiores dos indivíduos, é de natureza emocional e afetiva estando facilmente sujeita ao descontrole, daí ser importante no processo de desenvolvimento psicológico do sujeito seu reconhecimento, facilitando uma conexão com a alteridade que existe em nós mesmos. É esse encontro com a alteridade que encaminha para a fase da união dos opostos, a coniunctio (ou conjunção alquímica), que depende do contato com a anima (aspecto feminino inconsciente no homem) ou o animus (aspecto masculino inconsciente na mulher). Esse encontro com o oposto inconsciente é também denominado sizígia. Esse ponto é da maior importância para nossa exposição bem como na teorização de Jung. Desde o contato com a sombra há uma aproximação contínua à imagética do inconsciente coletivo, se o ego, ou persona constituem a zona pessoal do inconsciente, já aparecem aí, especialmente na dimensão da sombra elementos arquetípicos do inconsciente coletivo. Essa aproximação vai deflagrando um aspecto bastante característico dos processos psíquicos que é a sua ambigüidade. A bipolaridade das figuras psíquicas cria uma dinâmica oscilante entre os 133

Entrevista de ‘Forbes’, em 05/08/2003, Juiz de Fora, Minas Gerais. 71

pólos e esse dinamismo é referente a toda manifestação vital e especialmente típica das zonas menos conhecidas da existência: o inconsciente, os mistérios. Sobre o caráter antitético do psiquismo Jung diz:

“(...) Pois declarações unívocas somente podem ser feitas sobre objetos imanentes, ao passo que sobre transcendentais somente se pode declarar algo sob a forma de antinomias (...) Até a física se vê obrigada pela experiência a fazer declarações opostas, quando pretende dar uma idéia plástica sobre os estados de fatos transcendentais, como por exemplo, sobre a natureza da luz, ou da mínimas partículas materiais, que são representados como corpúsculos e como ondas.”134

Eis o campo de referências onde os símbolos operam na relação entre os opostos interagem consciência e inconsciência. Como diz Masquelier a respeito de Jung, outra vez o médico cede lugar ao historiador das religiões lembrando o antigo sentido da palavra grega:

“(...) Symbolon: prova de reconhecimento entre duas pessoas, formada por um objeto (caco de argila, moeda) cortado em dois, cada uma detendo uma metade, e que servirá de sinal de ligação por ocasião do reencontro ou da identificação por um meio indireto. O símbolo psíquico reúne, portanto, dois ‘fragmentos de alma’ que já constituíam parte do mesmo todo, mas de modo inconsciente”135

A união dos opostos (masculino e feminino, positivo e negativo, luz e escuridão, consciente e inconsciente, espírito e corpo, etc.) é, portanto, incontornável para o prosseguimento do processo de individuação pois reúne simbolicamente os opostos complementares, as diferenças, trazendo-as à consciência. Daí que na alquimia (tomada enquanto protótipo histórico da realização, mesmo que inconsciente, de processos de individuação através da projeção na matéria química de dimensões subjetivas do próprio alquimista), assume central importância a figura de Mercúrio enquanto representante do inconsciente e portador das mais distintas antinomias, auxiliando a tanger o desconhecido, sobre quem teceremos alguns comentários adiante. Há uma proliferação de sinônimos simbólicos atrelados a Mercúrio, o que também nos recorda os muitos nomes já referidos no início deste trabalho que servem para designar o chá 134 135

JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis, p. 257. MASQUELIER, Y. T. op. cit., p. 83. 72

ayahuasca nos meios amazônicos. Também nos faz pensar nas reações antagônicas que é capaz de despertar nas mais distintas pessoas. Louvado e celebrado por alguns que o têm como sacramento, condenado e discriminado por outros que lhe vêm como droga, a uns lucidez a outros alucinação. Assim o Daime consegue atrair à sua órbita significantes tão complexos quantos díspares, pode tanto ser perseguido quanto agregar seguidores. Daí também a dificuldade de se chegar a postulados definitivos a seu respeito, por isso também acreditamos que quanto menos unívocos ou circunscritos por uma única disciplina, mais chances existem de que se produzam trabalhos fecundos acerca dos fenômenos relacionados ao Santo Daime. Nosso recorte, por exemplo, de acessar as experiências de transformação tal como descritas por seguidores da doutrina, acaba por deixar de fora, por necessidade de delimitação e pelo que foi enfatizado por nossos entrevistados, uma série de outras possibilidades passíveis de serem desencadeadas pela experiência com o chá. É o caso, por exemplo, dos relatos de crises psicopatológicas atribuídas à participação em ritos daimistas contra os quais as lideranças das comunidades tentam precaver-se através de uma prévia entrevista com os que pretendem tomar o chá. Na entrevista buscam identificar pessoas que tenham histórico de internamento ou que façam uso de medicamento psiquiátrico, condição em que é desaconselhável participar do trabalho. A partir da unificação dos opostos é que se pode acessar o si-mesmo que está para além dos limites pessoais, configurando-se como um símbolo da totalidade. Por isso Jung diz que: “(...) quando se manifesta, se é que isto ocorre, é somente sob a forma de um mitologema religioso; os seus símbolos oscilam entre o máximo e o mínimo”136. Aparentemente abstrata, para Jung, a idéia da “totalidade” é uma noção empírica que emerge espontaneamente na psique através de símbolos como o da ‘quaternidade’ e o das ‘mandalas’. Curioso notar que tais símbolos também surgem na doutrina do Santo Daime de uma forma bem marcante: no desenho espacial padronizado que as igrejas da doutrina seguem. O salão onde se passam as cerimônias daimistas assume, tal como a igreja como um todo, um formato hexagonal. Às seis linhas que delimitam seu contorno externo alinham-se outras em direção ao centro da mandala, formando-se, assim, as fileiras onde bailam os daimistas: mulheres à esquerda e homens à direita da entrada do salão eles entornam o centro do hexágono onde fica a mesa, geralmente em forma de estrela e atravessada no meio pela coluna central de todo o edifício. Sobre a mesa outro símbolo central da doutrina, o Santo Cruzeiro, na forma da Cruz de Caravaca, como também velas, fotos do Mestre Irineu, do Padrinho Sebastião, ou mesmo de 136

JUNG, C. G. Aion – op. cit.,p. 28. 73

alguma outra liderança importante, água e também algum recipiente com o Daime. O desenho geométrico do hexágono é a base para a imagem da estrela de seis pontas, a Estrela de Davi, tão presente no cotidiano daimista. A Estrela de Davi, que para os Reis Magos é signo do nascimento do Salvador, tem sua representação composta por dois triângulos apontados em sentidos inversos podendo denotar a ligação do inferior com o superior e vice-versa, a ponte entre o humano e o divino a qual é feita pelo “verbo encarnado”, o filho do Pai Eterno que é a um só tempo homem e Deus. O formato do salão como mandala hexagonal foi instituído pelo atual responsável pela doutrina do Santo Daime: o Padrinho Alfredo, filho do Padrinho Sebastião. No tempo do Mestre era o aspecto quaternário que se apresentava, pois o salão tinha um formato retangular. De acordo com ‘Dogival’ essa foi uma mudança legítima na estrutura deixada pelo Mestre, já que foi feita pelo Padrinho Alfredo, que nas suas palavras é alguém que tem “autoridade espiritual” para operar a mudança, como nos disse:

“Foi uma inovação espiritual, eu acredito nisso, é algo que novamente veio de cima porque ele é um canal desse conhecimento, então existe uma tradição real que está acontecendo, é muito diferente de alguém que não tenha essa mesma raiz, essa autoridade espiritual. Não uma autoridade formal, mas autoridade amorosa, real; não é querer inventar alguma moda, querer mudar o ritual, isso aí já é outra coisa, existe esse perigo.”137

A questão da totalidade enquanto ligação ao arquétipo do si-mesmo, assim como a questão da unidade são para Jung dimensões que extrapolam os valores objetivos, já que seus símbolos não se distinguem da Imago Dei (imagem de Deus). Outra vez surge o tema da impropriedade do aparato intelectual para compreender questões fincadas no âmbito da experimentação, como afirma o autor: “psicologicamente não se possui o que não se experimentou na realidade”138. A experiência desencadeada pelo contato com a sizigia animaanimus parece preparar o terreno para a vivência da presença do todo. A respeito da conjunção anima-animus, ele diz:

137 138

Entrevista de ‘Dogival’, gravada em 15/04/2004. Juiz de Fora, MG. JUNG, C. G. Aion, op. cit., p. 31. 74

“Parece que esta última constitui pelo menos uma parte essencial, a modo das duas metades da totalidade, isto é, o par régio irmão-irmã, ou seja, aquela tensão dos opostos que procede a Criança Divina como símbolo da unidade”139.

À medida que o processo de individuação avança nesse desvelamento do si-mesmo, mais Jung lança mão de imagens religiosas para dar conta da sua compreensão e descrição. Assim Cristo é abordado como um símbolo do si-mesmo. Para Jung: “Ele é o mito ainda vivo de nossa civilização. É o herói de nossa cultura, o qual, sem detrimento de sua existência histórica, encarna o mito do homem primordial [Urmensch], do Adão mítico”140. Desse modo vão se alinhando e sendo colocados cada vez mais próximos os temas do auto-conhecimento e do conhecimento de Deus ou da salvação, tal como evocados em algumas passagens bíblicas citadas em rodapé por Jung (como, por exemplo, esse trecho retirado de Lucas: “O Reino de Deus está dentro de nós ou ‘no meio de nós’. Ele não vem com sinais exteriores e visíveis, de modo que se possa dizer: ele está ali ou está aqui, pois está, ao mesmo tempo, tanto no interior de cada como em toda parte”, ou ainda de um papiro de Oxirinco: ‘O Reino dos Céus está dentro de nós, e todos aqueles que se conhecem a si mesmos, o encontrarão, conhecei-vos a vós mesmos.”)141. A integração do inconsciente coletivo operada no processo de individuação é o equivalente psicológico da “descensus ad inferos”, ou seja, da descida do Cristo às regiões infernais, segundo Jung142. Ele como herói e modelo tendo percorrido essa jornada de mergulho enquanto preâmbulo para ascensão e metaforizando subjetivamente uma imersão em zonas recônditas que contactam com a alteridade em si para realizar uma integração dos diversos aspectos constituintes do humano, um requisito para assunção de uma existência mais plena, uma vez que menos inconsciente dos aspectos e dinâmica entre as partes que lhe compõem. Para os daimistas ter Cristo como guia traz segurança e facilita suportar a dor de sua própria jornada pois como nos disse uma moradora da comunidade do Matutu: “com o Mestre na frente fica mais fácil seguir”. É como se a trilha aberta pelo que vai na frente demonstrasse a cada um a possibilidade de percorrê-la também, o triunfo do modelo reforça a força de vontade e a persistência de cada um para suportar seu sofrimento. Vale também notar que ao referir-se ao ‘Mestre’ como comumente fazem os seguidores da doutrina, evoca-se subliminarmente, senão de modo concomitante, pelo menos um dos seres aos quais eles se referem com essa expressão: Jesus Cristo, Mestre Irineu ou o “Professor dos Professores”, o próprio Santo Daime. A 139

JUNG, C. G. op. cit., p. 39. Op. cit., p. 34. 141 Op. cit., p. 35. 142 Op. cit., p. 37. 140

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percepção dessa múltipla significação foi mencionada por um fardado do Céu das Estrelas que demonstrava a força que para eles possuía invocar o Mestre num momento de dificuldade.

3. Da Purificação

Uma das características mais frequentemente atribuídas ao Santo Daime é sua atuação purificante, de limpeza. Na Alta Amazônia peruana onde muitas plantas de poder, e especialmente a ayahuasca são usadas como recursos para trabalhos terapêuticos e divinatórios, bem como no diagnóstico e prognóstico de enfermidades, o vinho das almas é também designado pela expressão “purga”, referindo-se a suas propriedades purgativas143. Os efeitos catárticos também estão presentes nos relatos dos deuses Dioniso e Apolo. Apolo, também recebe a denominação Akésios, “o que cura”, forma com que precede seu filho Asclépio, como médico em Epidauro é responsável por cuidar muito mais do que apenas a integridade física, já que é um Kathársios pois libera a alma das suas nódoas, purificando-a.144 ‘Diogo’ de 28 anos145, há três anos freqüenta as cerimônias realizadas no Céu das Estrelas tendo logo se fardado. Ele comenta que, após algum tempo participando dos cultos do Daime, estranhou por nunca ter feito uma limpeza. Costuma-se usar a expressão “fazer uma limpeza” especialmente para designar os momentos em que o participante precisa sair do salão onde se passa o bailado por necessidade de vomitar ou defecar. Esse também costuma ser o momento onde se vivencia a chamada “peia”, ou a lição do Daime através do sofrimento. É freqüente que aos espasmos corporais e reações orgânicas referentes à limpeza, associem-se vivências psicológicas, pensamentos e lembranças constantemente referentes a hábitos e posicionamentos que se apresentam como ética ou moralmente questionáveis, ou seja, é como se a experiência fisiológica e psíquica do sofrimento apontasse, tanto para os motivos ou causas do mesmo, em geral decorrente das escolhas do sujeito, como para os caminhos e correções ligados à sua superação. Como dizia, ‘Diogo’ não havia feito ainda nenhuma limpeza até o dia de um trabalho de São Miguel que participou na igreja do Céu do Mar, no Rio de Janeiro. Conforme explicou, de acordo com uma leitura que fizera tempos depois, os trabalhos de São Miguel foram implantados na doutrina com o intuito de promover uma limpeza na corrente, o elo produzido pelo trabalho

143

MABIT, Jacques. “Produção visionária da ayahuasca no contexto curanderil da Alta Amazônia peruana.” In: LABATE e ARAÚJO, op. cit., p. 146-147. 144 BRANDÃO, J. S., op. cit., p. 86 145 Entrevista realizada em 29/03/2004. Juiz de Fora, Minas Gerais. 76

espiritual. Ele o metaforiza com uma corrente de bicicleta, na qual mesmo que você ponha um pouco de óleo lubrificante, à medida que você vai andando, toda aquela sujeira de terra, do mato, vai juntando, até que:

“(...) chega uma hora que tem que parar, dar uma esfregada, limpar, pra daí você colocar óleo de novo, pra isso é que serve o trabalho de São Miguel, pra hora em que a corrente está muito suja, porque ali o centro é livre, o centro está aberto, então ia chegando várias situações, vários problemas (...) uns com problemas de drogas, uns com problema de alcoolismo, uns com problema de família, outros com problema de doença, e aquilo ia se agregando, se somando à corrente (...) e esse trabalho de São Miguel é pra isso, e eu não sabia, pra mim era como qualquer outro”.

Foi aí que ‘Diogo’ fez sua primeira limpeza e que realmente “entrou na história” deliberando: “é aqui que eu quero ficar”. Curioso notar como foi justo esse tipo de experiência, frequentemente considerado como de difícil travessia (a peia é, às vezes, chamada de ‘a surra do Daime’) que definiu para ‘Diogo’ que o trabalho espiritual da doutrina do Santo Daime era o seu caminho. A imagem do sofrimento evoca o tema do renascimento, sempre precedido por uma morte, um limiar em que a extinção do velho é condição para o surgimento do novo. Acompanhemos mais um pouco do seu relato: “(...) Tudo aquilo que estava me afligindo, todas aquelas coisas que estavam me fazendo mal, quando eu fiz a limpeza, parece que deu uma purificada. Sabe quando você pega uma água bem barrenta, deixa ela decantar e depois de decantada você ainda joga um filtro pra poder acabar de dar uma purificada, você ainda ferve para poder ter a certeza que o negócio está limpo, foi mais ou menos o processo que eu senti.” Bastante oportuna essa comparação feita por ‘Diogo’ entre seus processos subjetivos e procedimentos químicos de purificação da água. Ela nos faz pensar na comparação junguiana de que as manipulações realizadas pelos alquimistas recebiam, via projeção, a influência dos eventos que ocorriam no seu psiquismo. Nesse caso, o daimista usa a analogia em sentido inverso: é o que experimentou psicologicamente (sua limpeza) que gera a comparação com procedimentos químicos (decantação, filtragem e fervura). No tópico anterior resumimos as principais características envolvidas na teoria junguiana da transformação trazendo, sempre que adequado, elementos da cultura daimista que guardem com ela alguma possível associação, como a constatação de uma ambivalência inerente a figuras 77

que se prestam para abordar o transcendental, ou mesmo dos símbolos doutrinários que remetem à vivência da ‘totalidade’ como resultante da ‘união dos opostos’ – os pólos masculino e feminino separados no salão hexagonal da igreja, ou presentes na constituição do chá / Ser Divino: um cipó e uma folha. Queremos agora apresentar outras reflexões em que o autor aborda a questão das transformações em alguns escritos sobre alquimia, bem como a respeito do renascimento simbólico. Permanece a estratégia de tracejar os paralelos encontrados com o campo por nós pesquisado.

4. Outros apontamentos sobre a transformação em Jung A leitura dos Estudos Alquímicos de Jung146 foi nos revelando mais símbolos de transformação que podem ser associados a nossa pesquisa do que inicialmente havíamos pressuposto. De saída relacionamos naturalmente a presença de estudos químicos ligados a fenômenos subjetivos (anímicos ou metafísicos) que tanto se apresentam nas investigações alquímicas quanto podem ser evocados em reflexões sobre a doutrina do Santo Daime. Mas logo fomos vislumbrando novos elementos que podiam facilitar que falássemos de processos transformacionais, fosse nas informações que levantamos na pesquisa ou mesmo nas leituras do médico suíço. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando notamos a curiosa correspondência entre o símbolo alquímico da “união dos opostos” (que já mencionamos ao descrever o processo de individuação), aqui personificada na conjunção entre o masculino e o feminino, próprio do espírito mercurial, como requisito necessário para as curas almejadas pelos alquimistas, e toda a simbólica daimista decorrente dos elementos que compõem o chá sagrado. Esse “Ser Divino” é resultado da união entre um cipó e uma folha, reconhecidamente abordados na cultura daimista como princípios masculino e feminino, forças complementares constitutivas do sacramento. Caberia também mencionar os paralelos que a seguir desenvolveremos entre o espírito mercurial e o Ser Divino Daime, como sua dupla natureza - material e espiritual, a presença da sabedoria da natureza, o caráter psicopompo, ou seja, capaz de fazer a comunicação entre os mundos e a correlação de ambos com Cristo (Mercurius é considerado uno e trino, já um nome do Ser Divino Daime é Juramidã, associado a Cristo, ver também o hino Cristo é o Daime, anexo nº. 10).

146

JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Petrópolis: Vozes, 2002. 78

Outras conexões interessantes presentes nos Estudos Alquímicos são a consideração da floresta enquanto metáfora para o inconsciente (o mistério, o insondável), e as reflexões sobre a árvore enquanto símbolo do homem, imagem arquetípica, etc. Queremos agora acompanhar mais de perto algumas dessas idéias presentes nesse texto junguiano fazendo sempre que possível as associações com o campo por nós pesquisado. Antes cabe esclarecer que buscando a temática das transformações enquanto ocorrências psicológicas numa perspectiva junguiana, não nos cabe inferir sobre potenciais fundamentos metafísicos tal como possam configurar-se para o discurso religioso. No entanto não reforçamos nenhum psicologismo e acreditamos que, ao lidar com a subjetividade tal como ela se manifesta fenomenicamente como diz Jung, para além do que ‘alma’ ou ‘espírito’ possam ser, podemos tratá-los fenomenologicamente como configurações psíquicas.147 Ou ainda, como afirma em outro lugar148, a ciência psicológica abstém-se de especular sobre as possibilidades metafísicas já que: “o psíquico é por si um mundo de fenômenos que não pode ser reduzido nem ao cérebro nem a metafísica”. Assunto que retoma para opor-se à opinião reincidente de que toda explicação psicológica tenha que ser ou um psicologismo ou, pelo contrário, uma afirmação metafísica. Primeiro queremos abordar os principais significados atribuídos a Mercurius, para isso nos utilizamos do VI capítulo de Mysterium Coniunctionis149 e do IV em Estudos Alquímicos150 basicamente, e também em algumas outras passagens desses livros eventualmente. Na seqüência passaremos a ver como tal figura está relacionada à coniunctio (conjunção). Para Jung esse processo alquímico da coniunctio corresponde na sua psicologia à individuação ou o “tornar-se um” interiormente. A individuação é a meta maior do seu sistema psicoterapeutico e implica na interação dos diversos elementos constitutivos da personalidade, produzindo uma boa dose de auto-conhecimento, ou o que se considera a finalidade do psiquismo: a auto-realização do simesmo, através do encontro com a alteridade que há em si, ou como diz Masquelier:

“Este avanço, para não terminar somente numa abertura momentânea ou até ilusória, deve consistir num confronto com o desconhecido, o “outro” em si, no interior de si mesmo, outro porque não-consciente, “fora dos limites do ego”, e que se anuncia ao ego por meio de figuras simbólicas saídas de constelações identificáveis, os arquétipos. O processo de individuação é penetração consentida,

147

JUNG, C. G. Op. cit., p. 211. JUNG, C. G., Mysterium Coniunctionis, op. cit. p. 222. 149 “A Conjunção” in: JUNG, C. G. Op. cit., p. 210-312. 150 “O Espírito Mercurius” in: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos, op.cit., p. 189-243. 148

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plenamente assumida, dessas portas que se chamam: queda da máscara da persona, luta com a sombra, confronto dialogal com a anima ou o animus.”151

Mercurius é apresentado como um ser de natureza espiritual e material, portanto de natureza dupla. Externamente corresponde ao elemento químico mercúrio e internamente é um deus terreno e alma do mundo (“deus terrenus” e “anima mundi”) dos gnósticos de Irineu que se perdeu na natureza. Dorneus, autor mencionado por Jung, atribui-lhe um caráter comum ao da alma: “bom com os bons e mau com os maus”. Psicologicamente Jung apresenta-o como representante do inconsciente pois é aí onde se encontram os arquétipos, ou “faíscas de luz (...) dos quais se pode extrair um sentido superior.”152 Há também uma passagem que indica sua múltipla significação:

“Nas obras alquímicas o significado da palavra “Mercurius” é dos mais variados; não designa apenas o elemento químico mercúrio (Hg), Mercurius (Hermes) o Deus, e Mercúrio o planeta, mas também – e antes de mais nada – a secreta “substância transformadora” que é ao mesmo tempo o espírito inerente a todas as criaturas vivas.”153

Mercurius é abordado como o meio de união entre o masculino e o feminino, em forma de água, líquido. Segundo Jung154, Dorneus na sua Physica Trismegisti explica isso filosoficamente mostrando que Deus no princípio criou um mundo que posteriormente foi dividido em dois: o céu e a terra. Aí oculta o terceiro que, participando dos dois extremos, representa a unidade original do mundo ou o “vinculum sacrati matrimonie”, o vínculo do sagrado matrimônio. Mais adiante diz que “... o mercurius dos alquimistas é uma personificação e ilustração plástica daquilo que hoje em dia designamos como o inconsciente coletivo”155. O Mercurius é tratado ainda como sinônimo da Panacea (remédio universal) e do “medicamentum spagiricum” (remédio alquímico). Dormeus identifica este último ao bálsamo ou elixir da vida, do qual um correspondente é o vinho por sua natureza duplex “philosoficum et vulgari”156. 151

MASQUELIER, Y. T., C.G. A sacralidade da experiência interior. São Paulo: Paulus, 1994, p. 79-80. Op. cit., Mysterium Coniunctionis, p. 245. 153 JUNG, C. G. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 37. 154 Op. cit., p. 215. 155 Op. cit., p. 216. 156 Op. cit., p. 218. 152

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“Na sua totalidade os alquimistas procuraram alcançar (simbolicamente) a ‘união total dos opostos’ e a consideram como indispensável para a cura de todos os males. Por isso, não só postularam, mas de fato procuravam encontrar os meios e o caminho para preparar aquele ser que une em si todos os opostos. Ele devia ser material e espiritual, vivo e não-vivo, masculino e feminino, velho e jovem, e (como se supõe) moralmente neutro. Ele devia ser criado pelo homem, mas simultaneamente como um “increatum” (não-criado) devia ser a própria divindade (Deus terrestris/ Deus terrestre)”157.

A unio mentalis (união mental) é a primeira etapa da conjunção e designa a união do espírito (animus) com a alma (anima). O espírito é chamado por Dormeus de “spiraculum vital aeternal” (respiradouro da vida eterna) e a alma entendida como órgão do espírito, já o corpo é tido como ferramenta da alma. Através da união a alma recebe vida do espírito e a fornece ao corpo. Se a primeira etapa se passa num plano completamente subjetivo (entre espírito e alma) o segundo momento da união (ou individuação) consiste na unificação da posição espiritual com o plano corporal. O “casamento alquímico” é um dos símbolos principais usados pela alquimia para mencionar essa etapa.158 Só posteriormente, a partir do século XIV a significação psicológica do opus (ou obra) começa a ser compreendida. A antiga alquimia estava, nesse respeito, inconsciente e o lápis ou pedra filosofal não era mais do que uma combinação química. Quando isso começa a mudar ocorre principalmente através da analogia com Cristo. Esse passo é decisivo para a conjunção completa pois como nos diz Jung: “O unir novamente a posição espiritual com o corpo quer dizer manifestamente que o conhecimento adquirido deve tornar-se real. Um conhecimento também pode permanecer suspenso, quando simplesmente não é aplicado.”159 Quero abrir outro parêntese para mencionar semelhanças claras deste ponto com algumas passagens retiradas das entrevistas. Essa suspensão a que o conhecimento está sujeito caso não seja aplicado, que representa um entrave na completude da coniunctionis é muito próxima do que alguns daimistas apontam como sendo um desenrolar possível na aprendizagem com o chá, a saber, mesmo que as lições tenham sido dadas pelo Daime ao sujeito da experiência, a sua assimilação ao cotidiano depende do esforço de cada um, ou seja, o que precisa mudar pode ser 157

Op. cit., p. 226. Op. cit., p. 226. 159 Op. cit., p. 226. 158

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mostrado, mas o que vai ser feito depende absolutamente da força de vontade da pessoa. Isso fica claro na fala de ‘Melchior’: “(...) o Daime mostra e te leva até lugares não imagináveis de ir, mas te traz e te deixa no mesmo lugar, o Daime te dá a visão, ele te dá a força para você ir buscar aquela visão, mas não te dá as coisas prontas, te mostra para você buscar no seu dia-a-dia, na sua vida (...)”160. Mais adiante, nessa mesma entrevista, ele ainda complementa: “(...) depende do aproveitamento de cada um porque o Daime não vai fazer tudo, então aquilo pode se perder, se ficar se distraindo ou contando caso para todo mundo que viu isso, viu aquilo e não ter mesmo a seriedade de colocar aquele aprendizado em prática, então de nada vai adiantar”. Esse mesmo colaborador já havia falado anteriormente161 sobre a diferença entre transformação e mudança. Disse-nos que ambas não se confundem “pois o que muda desmuda depois (...)” mas a transformação de fato ocorre quando se instaura uma nova realidade. Há um escrito no capítulo sobre o espírito mercurial que Jung preparou para um simpósio sobre Hermes162, que se inicia no tópico intitulado “O conto do espírito na garrafa”. Refere-se ao “O espírito na garrafa”, um conto de Grimm que segundo o médico suíço guarda a quintessência do mistério hermético. Tentaremos resumí-lo: um jovem camponês, impossibilitado de seguir seus estudos por ser pobre, continua ajudando seu pai trabalhando na floresta. Certa vez, perambulando, escuta uma voz sair do chão, próximo a um velho carvalho, pedindo que o rapaz o solte. Entre as raízes há uma garrafa com um ser dentro. Ao libertar o espírito do poderoso Mercurius, esse ameaça matar o garoto que então trapaceia desafiando-o a provar que saíra da garrafa e assim aprisiona-o de novo. Então fazem um trato e o espírito promete recompensar-lhe em troca da liberdade. Livre, ele forneceu ao rapaz um modo de enriquecer. Felizes seguiram pai e filho e este pode continuar seus estudos tornando-se um famoso médico. Tal como nos sonhos e nos mitos, Jung encontra nos contos de fada uma dinâmica similar: a capacidade de expressar temas espontâneos do inconsciente. A respeito da floresta, lugar de ação do conto, ele diz: “A floresta escura e impenetrável como a profundeza da água e do mar é o continente do desconhecido e do mistério. É uma metáfora apropriada para o incosciente.”163 Enquanto portadora de individualidade, na história em tela, a árvore é tratada como um protótipo do si-mesmo por abrigar um segredo. Tanto a imagem da árvore como das “plantas

160

Entrevista realizada em 13/04/2004, no Matutu, Aiuruóca,Minas Gerais. Comunicação Oral em 25/08/2003, Matutu, Minas Gerais. 162 “O espírito Mercurius” in: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Op.cit. 163 Op. cit., p. 192. 161

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maravilhosas em geral” normalmente surgem como formações arquetípicas do inconsciente164. Segundo Jung, o símbolo da árvore tomou historicamente vários aspectos o que demonstra a riqueza do seu significado.

“As associações mais freqüentes no que diz respeito à árvore são: o crescimento, a vida, o desdobramento da forma sob o ponto de vista físico e espiritual, o desenvolvimento, o crescimento de baixo para cima e vice-versa, o aspecto materno (proteção, sombra, fronde, frutos comestíveis, fonte de vida, riqueza, duração, enraizamento, e também impossibilidade de mudar de lugar), idade, personalidade e finalmente morte e renascimento.”165

Como não lembrar que o próprio Mestre Irineu costumava se considerar “uma árvore sombreira”? Essa imagem acolhedora bem como outros exemplos de sua hospitalidade para com os que dele se aproximavam são mencionadas na Revista comemorativa de seu centenário166. À associação de Juramidã, designação astral do Mestre Irineu, com Jesus Cristo, pode somar-se a relação de ambos com o símbolo da árvore, que também é, na compreensão junguiana, uma metamorfose do homem. Jung reúne várias ilustrações da relação entre o ser humano e a “arbor philosophica”. Como a idéia rabínica de correspondência entre a árvore do paraíso e o homem ou a antiga crença que os homens proviriam das árvores ou plantas e ainda a ilustração patrística do Cristo como árvore ou vinha. No contexto dessa discussão Jung também fala da ligação da árvore com a cruz de Cristo dizendo que: “Esta analogia era favorecida pelo fato de que se considerava a madeira da cruz proveniente da árvore do paraíso”167. Sem querer entrar nos meandros da complexa teorização cheia de exemplos retirados da história de movimentos e correntes de pensamento, feitos por Jung, o que nos levaria a outros caminhos que não temos necessidade de percorrer agora, estamos recortando parte da sua exposição que irá ajudando a evidenciar a idéia da árvore enquanto símbolo de transformação, e como conseqüência, as imagens dos processos transformacionais associados no reino vegetal, o que no caso do universo por nós pesquisado ganha presença não meramente simbólica uma vez que a idéia é de efeitos desencadeados no humano pelo contato com um ser divino que se acredita habitar nas plantas que compõem o Santo Daime.

164

Op. cit., p. 247. Op. cit., p. 266. 166 Op. cit. 167 JUNG, C. G. Estudos Alquímicos, op. cit., p. 325. 165

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De acordo com Jung, suas pesquisas demonstram que se pode conceber a árvore como anthropos, ou seja, como si-mesmo. Essa instância está relacionada a um saber inconsciente sobre o ser e sua totalidade, já que é por uma aproximação com o si-mesmo que se constitui o processo transformacional designado individuação, que sempre resulta numa ampliação do raio de consciência ou auto-conhecimento. Nesse sentido “(...) a árvore representada pela opus é um mistério de vida, morte e renascimento, esta interpretação cabe igualmente à ‘arbor philosophica’ e, além disso, à qualidade da sabedoria, que dá uma preciosa indicação à psicologia. Já há muito tempo a árvore era considerada como símbolo da gnose e da sabedoria.”168 Recorde-se da árvore do paraíso como árvore do conhecimento. Ainda a respeito da noção de transformação associada ao simbolismo vegetal, Jung refere-se aos estudos de Eliade sobre o xamanismo para lembrar que é através da árvore mágica que o xamã sobe em busca do mundo superior onde consegue sua autêntica personalidade, ou o si-mesmo, completa Jung. A experiência mística é constitutiva do ser do xamã, ao que Jung conclui que seu simbolismo é também uma representação do processo de individuação, tal como a opus dos alquimistas e sempre se apresenta a unificação dos opostos. De um inferior com um superior e também de um masculino com um feminino, de todo modo remetendo ao “(...) processo químico desencadeado pela confrontação com o inconsciente; por isso, a escolha de símbolos análogos, e mesmo idênticos nada tem de surpreendente.”169 Podemos notar no posicionamento manifesto por Jung a respeito dos xamãs um sentido inverso ao que costuma ser apresentado por certa literatura científica que postula uma compreensão dos xamãs como portadores de doenças mentais. Na visão do psicólogo, eles realizam a seu modo um equivalente subjetivo do processo de individuação, através da manipulação de símbolos análogos aos temas míticos de outros contextos culturais, porém com especificidades locais típicas de sua cosmovisão170. A vivência xamanica nesta perspectiva está mais para um estado que no seu sistema de tratamento psicoterapêutico corresponde a uma evolução, do que a uma psicopatia171. 168

Op. cit., p. 332. Op. cit., p. 335. 170 Jung define Cosmovisão: “ Trata-se aqui daqueles princípios dominantes ou idéias diretrizes que governam nossa atitude diante da vida e do mundo; portanto, de uma weltanschauung (cosmovisão) e de crenças que a experiência demonstra serem fenômenos psíquicos inelutáveis. Tão inelutáveis são que, quando velhos sistemas fracassam, outros se criam de novo.” Op. cit., p. 339. 171 Há uma interessante discussão e revisão literária sobre a vivência xamãnica e doenças nervosas em ELIADE, M. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase, op. cit., p. 37, num tópico intitulado “Xamanismo e Psicopatologia” onde o autor demonstra que a manifestação de doenças geralmente é reincidente na gênese das vocações xamãnicas, porém mais indicando o trajeto de um doente que, por ter conseguido curar a si mesmo, forja uma certa teoria do adoecer, por conhecer intimamente seus mecanismos. Outra experiência interessante, mas num outro contexto, falando não do xamã, mas do terapeuta, está no trabalho de NAFFAH-NETO, A. A Psicoterapia em busca de Dionísio: Nietzsche visita Freud. São Paulo: EDUC/Escuta, 1994, p. 21-22. Aí, analisando dentre outros, o sentido semântico de therapeutér, chega-se a médico, e ainda a serviçal-escravo, servidor ou adorador de um Deus. 169

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Ainda a respeito do simbolismo da árvore, Eliade fala da Árvore Cósmica como uma variante do simbolismo do centro, a árvore enquanto eixo do meio do universo, sustentando os três mundos; suas raízes prolongando-se até os infernos e seus galhos tangendo o céu172. Demonstra que o cristianismo usou o símbolo da Árvore do Mundo interpretando-o e ampliandoo. Assim a cruz feita da madeira da Árvore do Bem e do Mal substitui a Árvore Cósmica e Cristo mesmo é descrito como uma árvore. Nas suas palavras a imagem Cruz = Árvore do Mundo prolonga um antigo mito universal173. A comparação da Cruz com uma escada, coluna ou montanha surge em vários textos litúrgicos e patrísticos. Através da idéia da Cruz enquanto Centro do Mundo acredita-se que se dá a comunicação com o Céu e que o universo é salvo. A Cruz, elemento central de um acontecimento histórico que é a Paixão de Cristo vem, segundo Eliade, coroar e valorizar a antiga imagem arquetípica da Árvore do Mundo enquanto “símbolo por excelência da renovatio integral”, ambas relacionadas à salvação: “A noção de ‘salvação’ apenas retoma e completa as noções de renovação perpétua e de regeneração cósmica, da fecundidade universal e da sacralidade, da realidade absoluta e, finalmente, de imortalidade, todas noções que coexistem no simbolismo da Árvore do Mundo.”174

5. Sobre o Renascimento No capítulo quinto de um importante trabalho seu175, Jung discorre sobre o renascimento a partir dos conteúdos que apresentara em duas conferências. De saída ele alerta sobre a falta de univocidade do conceito. Na tentativa de estudar seus principais significados ele eleva alguns aspectos ou formas do renascimento que chama de metempsicose, reencarnação, ressurreição, renascimento e o renascimento indireto. Depois passa a analisar as distintas características psíquicas do processo, que, dada a centralidade do tema do renascimento para a nossa argumentação, e também por ter sido abordada num capítulo exclusivamente dedicado a ele, tentaremos reunir as principais idéias apresentando-as a seguir.

Indagando-se como poderia que um escravo servisse como guia para a liberdade, Naffah diz que “O terapeuta designa o escravo-livre, aquele que, por conhecer na própria pele as cadeias do servilismo, da doença, e da transmutação libertadora, pode, melhor do que ninguém, servir como guia nessa viagem pelo devir. Ele será, em algum nível, um ser(vo)-transmutante”. 172 ELIADE, M. Imagens e Símbolos. op. cit., p. 40. 173 Op. cit., p. 162. 174 Op. cit., p. 163. 175 JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. 85

Como faz frequentemente, Jung ilustra sua teorização com exemplos retirados de distintas tradições, culturas ou mesmo de fontes literárias. Os próprios nomes que deu às formas do renascer na primeira parte do trabalho parecem privilegiar a auto-compreensão dos que postulam tais crenças, como nos casos de reencarnação e ressurreição. Em outros casos parece ter mantido uma nomenclatura mais psiquiátrica, como em metempsicose. Esse conceito, o primeiro a ser estudado, Jung usa para descrever a transmigração da alma, ou seja, a noção da extensão da vida no tempo através de vários corpos ou reencarnações. Cita o exemplo do budismo sem definir se há ou não, no entanto, uma permanência da mesma personalidade, ou se apenas continua o karma. Já na segunda forma de renascimento abordado, a reencarnação, trata-se exatamente da continuidade pessoal. Aqui a personalidade pode lembrar-se das antigas vidas já que se trata de uma continuidade. A seguir trata da ressurreição entendida como a ressurgência da vida após a morte. A transformação pode ser essencial, quando se altera o estado do ser ou não, caso mudem apenas as condições gerais. Comporta também a diferença entre a ressurreição do corpo carnal tal como em algumas formas cristãs, e mais refinadamente enquanto o ressurgir num estado de incorruptibilidade num corpo sutil, corpus glorificationis. Aborda depois a renovatio ou o renascimento propriamente falando, ocorrido durante a vida individual e que pode ser um aperfeiçoamento ou ainda uma renovação sem alteração na essência do ser mas apenas funcionalmente ou em “(...) partes da personalidade que podem ser curadas, fortalecidas ou melhoradas. Estados de doença corporal também podem ser curadas através de cerimônias de renascimento176”. Ainda nesse tópico Jung menciona a crença na possibilidade do renascimento total quando está implicada uma mudança da essência do ser que pode ser chamada de transmutação e que pode ser a mudança de ser mortal em imortal, do ser corporal no espiritual e do humano em ser divino. Exemplifica com o fenômeno da transfiguração de Cristo e com a ascensão ao céu de Maria ou ainda com as mutações sofridas por Fausto em Goethe. Por fim trata da participação no processo de transformação ou o renascimento indireto, no qual o sujeito não passa diretamente pela experiência da morte e renascimento mas recebe sua influência pelo fato de participar de um rito em que se processa a transformação. Pode acontecer durante a transubstanciação numa missa, por exemplo, ou pela participação numa cerimônia dos Mistérios de Elêusis.

176

Op. cit., p. 120. 86

Algumas dessas formas do renascer apresentadas por Jung também são manifestas em crenças daimistas, tais como: a reencarnação, o renascimento e o renascimento indireto. Como sabemos, a idéia da evolução espiritual ocorre através de várias encarnações, uma idéia forte do espiritismo kardecista que é recorrente entre adeptos do Santo Daime também. Quanto ao renascimento passível de ocorrência durante a existência individual, pode-se dizer que ele é inclusive um dos objetivos do rito daimista. Sua intensidade ou poder transformacional dependerá obviamente da influência de vários fatores, mas especialmente decorrerá da capacidade de aprendizagem do sujeito, sua atenção e motivação para mudar e, sobretudo, do seu grau de merecimento espiritual; pressupõe-se que quanto mais digno for alguém por sua retidão de caráter e existência exemplar quanto a hábitos, relações estabelecidas com seus semelhantes, seus familiares, etc., tanto mais será merecedor das dádivas do astral recebidas através dos ensinamentos do Professor e da Rainha. Quanto à idéia do renascimento ocorrido apenas por participar de processos de transformação, parece-nos claro que tal crença também perpassa o universo dos adeptos da doutrina, a julgar, por exemplo, pela idéia manifesta por alguns colaboradores da nossa pesquisa de que muitas vezes a pessoa, mesmo que tenha sido favorecida pelo rito, não fica consciente de todos os benefícios que recebe durante a cerimônia. Isso acontece porque muitos eventos se passam de maneira imperceptível aos olhos da razão, uma vez que estão relacionados a dimensões inconscientes, frequentemente inefáveis. Aliás, a menção do indescritível inerente aos eventos psíquicos vivenciados durante o trabalho é um comentário extremamente recorrente entre os entrevistados. Muitas vezes ouvi que apenas experimentando pessoalmente era possível compreender aqueles eventos já que as palavras são insuficientes, pois não dão conta da profundidade e extensão do vivido. Seria como pretender que nossa natureza ínfima e limitada quisesse abarcar o infinito incognoscível. Voltando a segunda parte do texto junguiano encontramos também aí uma passagem que corrobora com a idéia de inefabilidade de certos processos, ele diz:

“O renascimento não é um processo de algum modo observável. Não podemos medi-lo, pesar ou fotografá-lo; ele escapa totalmente aos nossos sentidos. Lidamos aqui com uma realidade puramente psíquica, que só nos é 177

transmitida através de relatos.”

177

Op. cit., p. 121 87

Segundo Jung, é o arquétipo que determina tudo o que se refere ao transcendente e metafísico, daí não espantar-se com a concordância entre vários postulados sobre o renascimento encontrada em diversos povos e como ele afirma, “um acontecimento psíquico deve subjazer a tais proposições.”178 Complementa também dizendo que é papel da psicologia apenas discutir o significado de tais eventos e não conjecturar metafísica ou filosoficamente a seu respeito. Visando delimitar mais detalhadamente as vivências de transformação, Jung distingui entre dois tipos principais: a) experiência da transcendência da vida, e b) experiência de transformação subjetiva. Subdivide o item ‘a’ em dois sub-itens: o primeiro relacionado a experiências mediadas por ritos sagrados e o segundo referente a experiências diretas. A respeito das ocorrências desencadeadas pelos ritos são interessantes as palavras do próprio autor:

“Pelo conceito de ‘transcendência da vida’ entendo as experiências acima mencionadas feitas pelo neófito através de sua participação em um rito sagrado que lhe revela a perpetuidade da vida através de transformações e renovações. Nos dramas de mistérios a transcendência da vida é representada, em face de suas formas concretas e constantes de manifestação, geralmente através do destino de morte e renascimento de um deus ou herói divino. O neófito é pois simples testemunha do processo, ou um participante ativo do mesmo, ou um possuído pelo drama divino, ou ainda se identifica com o deus através do ritual.”179

Nesse primeiro caso demonstra-se que os ritos em que se atualizam as experiências de morte e renascimento podem desencadear no seu participante uma convicção quanto a continuidade da vida, da sua eternidade, seja por senti-la em si ou por perceber tal experiência do morrer e renascer em algum ser divino. Além de encontrarmos menções a esse tipo de experiência em muitos autores que estudaram o Santo Daime180 elas também foram relatadas por alguns de nossos colaboradores. Jesus Cristo representa para os daimistas essa divindade que vive, morre e renasce para testemunhar o poder do Pai eterno. A maior parte dos hinos celebram-no, bem como à Virgem, destacadamente a Virgem da Conceição. Durante os trabalhos é comum que alguns enfrentem momentos difíceis, as chamadas peias, quando ocorrem sofrimentos que podem ser orgânicos e/ou mais subjetivos. Eventualmente destacam-se passagens de morte e renascimento nas quais 178

Op. cit., p. 122 Op. cit., p. 122 180 Por exemplo PELÁEZ, op. cit., GROISMAN, op. cit. 179

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pode-se experimentar a situação, tal como a mencionada por Jung, de uma identificação com a vivência de morte e renascimento vivida por um deus, no caso a Paixão de Cristo. A recordação do sofrimento e morte de Jesus pode desencadear uma associação com a própria dificuldade por que se está passando mas a grandeza da dor do Redentor, bem como o conhecimento do seu triunfo final, ajudam a aliviar o momento. Desse modo, no rito daimista o fiel pode ser, e frequentemente o é, tanto um participante ativo do processo, quanto alguém que se identifica experimentalmente (no sentido do tipo ou conteúdo simbólico do vivido) com seu deus. Quanto ao segundo sub-item, o das experiências diretas de transcendência Jung exemplifica com a visão do meio-dia de Nietzsche como representando esse tipo de vivencia, típica dos mistérios, porém despontada de maneira espontânea. No Zaratustra o filósofo substituiu o mito cristão pelo do Dioniso-Zagreu que é despedaçado e depois retorna à vida. Já na parte em que se trata das experiências de transformação subjetiva Jung analisa fenômenos típicos dos estudos psicológicos181. O primeiro caso estudado, o da “diminuição da personalidade”, Jung classifica como uma alteração da mesma e encontra correspondências sintomáticas entre o fenômeno da “perda da alma” (da ‘psicologia primitiva’) e o abaissement du niveau mental (do ‘homem civilizado’) ambas consideradas exemplos da diminuição. Apesar de identificar equivalências entre as manifestações culturais, prevalece no autor uma tônica etnocêntrica, se considerada sob a nossa perspectiva, já que em seu tempo alinhava-se bem com o espírito da época. Além do modo como designa a diferença entre o ‘primitivo’ e o ‘civilizado’ ele observa na outra cultura uma carência de coerência na sua consciência, bem como a falta de poder voluntário nesses casos em que se acredita que a alma se foi. Já para o caso análogo, em se tratando do ‘civilizado’, a queda no tônus é descrita como causando a sensação de morosidade, peso e depressão caracterizados pela perda de energia. O segundo caso de transformação subjetiva trata dos casos em que há uma “ampliação da personalidade”, seja ela devido à influência de conteúdos ou à emergência de fatores endógenos. Tanto em um quanto no outro caso, um aspecto determinante para o crescimento é a capacidade de assimilação da vivência por parte de quem a experimenta, já que: “só nos apropriamos verdadeiramente de tudo o que vem de fora para dentro, se formos capazes de uma amplitude interna correspondente à grandeza do conteúdo que vem de fora ou de dentro.”182 O que se considera riqueza é isso que é chamado de ‘disponibilidade anímica’ e não o acúmulo de conquistas.

181 182

Op. cit., p. 124 Op. cit., p. 126 89

Isso nos faz lembrar da opinião já mencionada de ‘Melchior’ quanto à assimilação da experiência extática: “(...) depende do aproveitamento de cada um, porque o Daime não vai fazer tudo, então aquilo pode se perder, se ficar se distraindo, ou contado caso para todo mundo que viu isso, viu aquilo e não ter mesmo a seriedade de colocar aquele aprendizado em prática, então de nada vai adiantar.”183 Julgando desnecessário continuar apresentando separadamente cada um dos tópicos restantes do texto que estamos trabalhando, vamos apenas mencionar mais rapidamente alguns detalhes que mais importam a nossa pesquisa, já que restam apenas mais alguns sub-itens da transformação subjetiva e uma finalização do capítulo com uma parte que apresenta uma série de símbolos que ilustram o processo transformacional. Um tópico interessante aborda a transformação obtida através da identificação com um grupo. Diz respeito à influência exercida pela vivência coletiva de transformação sobre um indivíduo e demonstra-se a recorrência com que o humano cria grupos que possibilitem vivências dessa natureza: “(...) frequentemente sob a forma de estados extáticos.”184 É clara a relação que pode-se estabelecer com o Santo Daime enquanto um grupo religioso que facilita tal identificação, uma vez que possui um corpo doutrinário estável traduzido em vivências rituais instituídas que podem exercer influências modeladoras aos novatos que desejam submeter-se aos processos subjetivos eliciados por tais experiências coletivas, e de caráter extático. Em outro ponto refere-se a uma identificação com o herói do culto, aspecto já mencionado anteriormente e facilmente relacionável às experiências daimistas no que tange à centralidade no papel aí desempenhado por Cristo. Para Jung isso pode ser exemplificado na Metamorfose de Apuleio, onde o neófito é chamado a representar o deus Hélio, bem como nos cultos a Osíris e, posteriormente, no Cristianismo ao reconhecer que todos possuem uma alma imortal participando da divindade diretamente. Por fim Jung aborda a transformação que é vivenciada através de meios técnicos. São considerados dessa natureza os exercícios orientais de Ioga e no ocidente os exercitia spiritualia de Inácio de Loyola. Também os recursos enteogênicos podemos considerar uma intervenção técnica produzindo transformações.

183 184

Entrevista de ‘Melchior’, 13/04/2004. Matutu, Aiuruóca, MG. Op. cit., p. 131. 90

6. Sofrimento, Morte e Renascimento No Dicionário das Religiões, Eliade185, no tópico sobre xamanismo fala da vivência de uma enfermidade psíquica como deserto de morte e renascimento que deve ser atravessado pelo futuro xamã durante um processo que desembocará na obtenção de seus poderes curativos. A solidão e o sofrimento são os fenômenos mais comuns que se apresentam como etapas para se conseguir tais habilidades. A respeito da função iniciática do sofrimento, é bastante interessante entender o processo alquímico de transmutação da matéria, conforme esclarecido por Brandão186. Conforme diz “a Grande Operação” ou o “Opus Magnum”, essas dramáticas experiências por que passará a matéria é análoga “... às paixões de determinados deuses dos Mistérios GrecoOrientais: sofrimento, morte e ressurreição”. Lembremos que a catarse promovida pelas emoções desencadeadas nas tragédias corresponde, por um viés psicológico, segundo Campbell187, à purificação do espírito provocada pelo rito. Conforme diz: “Como o rito, por alterar o foco da mente, a tragédia transmuta o sofrimento em êxtase. A arte trágica é um correlato da disciplina denominada em linguagem religiosa, “purificação espiritual” ou “desnudamento do eu””. Mercúrio é o nome latino de Hermes Trismegisto, deus alquímico considerado protetor dos viajantes e Guardião dos caminhos, o que o tornou um deus psicopompo, ou seja, condutor de almas, já que conhece os caminhos e encruzilhadas, podendo circular tranqüilamente por entre os planos da existência. Os xamãs também se caracterizam como especialistas no trânsito entre os mundos paralelos, já que são dominadores de técnicas do êxtase. Aliás, é especificamente sua capacidade de realizar o “vôo mágico”, bem como seu poder sobre o fogo que inspiram em Eliade a necessidade de demarcar limites conceituais, distinguindo o xamã do mago ou do medicine-man. Isso porque, apesar da magia poder ser um atributo dos xamãs, nem todo mago ou medicine-man pode ser considerado um xamã. Este último é também um curador e um mago, mas é seu domínio sobre os recursos extáticos que o distingue de maneira especial188. Hermes, como também Perseu, usava sandálias aladas, segundo Brandão189, símbolo de elevação mística. Para Eliade o papel do simbolismo da ascensão é central na cosmovisão xamânica, encontrada entre xamãs siberianos, esquimós e norte-americanos. O simbolismo do vôo pode também ser visto entre alquimistas, iogues e faquires190. O vôo associado ao

185

ELIADE, M e COULIANO, I. P. Dicionário da Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BRANDÃO, J.S. Mitologia Grega, vol. II. Rio de Janeiro: Vozes, 1995, pp. 201 e 202. 187 CAMPBELL, J. As Máscaras de Deus, v.1 Mitologia Primitiva. São Paulo: Palas Athenas, 1992, p. 53. 188 ELIADE, M. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase.Op.cit., 2002, pp. 16 e 17. 189 Op. cit., p. 206. 190 Op. cit., p. 548. 186

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entendimento das verdades metafísicas pode ser encontrado no Rig Veda, onde se lê que o entendimento é considerado o mais rápido dos pássaros, e também que “Quem entende tem asas”. O simbolismo da corda do faquir é mais uma variante do tema da ascensão xamanica, bem como a ascensão através da árvore, estaca, cipós, pontes etc.191 No caso do xamanismo ayahuasqueiro a subida através do cipó, o cipó das almas (ayahuasca) porta uma impressionante literalidade já que é um deslocamento ascensional, o que se acredita ser provocado pelo chá ayahuasca. A alma é imaginada miticamente na forma de pássaros e os xamãs freqüentemente podem se transformar num deles. Os pássaros também aparecem na Doutrina da Floresta, a águia é um símbolo do Santo Daime, deixado pelo Mestre Irineu. Ela aparece sobre uma lua no centro das estrelas de Davi usadas como distintivo pelos fardados. É valorizada, tanto pela potência de sua visão de alcance longínquo, quanto pela altura dos vôos que pode fazer. O símbolo esotérico das Asas Divinas é evocado na oração intitulada Consagração do Aposento (no anexo 14), recitada em alguns rituais daimistas. A simbologia da ascensão aos planos superiores da existência também aparece em vários hinos cantados, como por exemplo, no hinário O Justiceiro do Padrinho Sebastião, no hino A Barquinha canta: “Vou subindo, eu vou subindo / até onde eu posso ir / encontrar com Jesus Cristo / que é a flor deste jardim” (anexo 11). O título de outro hino também indica isso, chama-se Eu subi meu pensamento (anexo 12); já no Cruzeiro do Mestre Irineu o hino Eu tomo esta bebida (anexo 13), diz: “Subi, subi, subi / subi foi com alegria / quando eu cheguei nas alturas / encontrei com a Virgem Maria.” As viagens aos planos espirituais são menções constantes nos ritos daimistas que falam das batalhas no astral como desafios da luta contra as forças maléficas. Há sempre o chamado para que os aprendizados recebidos no Astral (ou seja, durante as cerimônias com o Santo Daime nas quais se sobe a esses outros planos) sejam trazidos e vivenciados, não apenas neles, mas também no dia-a-dia do plano material. Mas as viagens não comportam apenas o sentido ascensional. Antes de chegar ao astral o viajante geralmente desce aos planos abissais, como se para conquistar dimensões mais amplas fosse pré-requisito obter o conhecimento do profundo. Tal fato em linguagem junguiana é referido como a incorporação da sombra enquanto etapa no processo de individuação do ser. Os relatos daimistas são ricos dessas imagens de enfrentamento das zonas escuras, infernais, antecedendo a serenidade e a paz dos lugares celestes, e são frequentemente descritos como passagens de morte e renascimento. 191

Op. cit., p. 519. 92

A experiência de morte e renascimento no rito daimista não comporta uma dimensão meramente simbólica. Cabe notar que a maneira como muito adeptos a descrevem indica que a percepção é de uma iminência concreta de extinção material e que apenas depois de atravessada é relativizada como tendo funcionado como um marco de transição. Isso fica claro no relato de ‘Eyton’, residente da comunidade do Matutu há mais de 13 anos192. ‘Eyton’, filho de mãe-de-santo da linha de Umbanda, conheceu o Daime há 15 anos, o que o ajudou a curar-se de uma hepatite grave que enfrentava, além de reformular completamente sua vida. Ele conta que parou definitivamente de ingerir bebidas alcoólicas e de comer carne pois com o Daime se considera “acordando espiritualmente” afirma que: “O Daime traz a morte em vida, pra você renascer”. Mas quando enfrentou durante um trabalho a proximidade da morte achou mesmo que estava se despedindo ali da vida. Quando era pequeno ‘Eyton’ conta que lhe ocorria a idéia de que morreria aos 35 anos; mas isso foi esquecido até o dia em que, já com essa idade, conheceu o chá e assustou-se ao ouvir durante a sessão a mensagem “prepare-se para fazer a passagem”, lembrou-se da fantasia que tivera quando criança e chegou a pensar que chegara sua hora. Achou que ia morrer e morreu mas foi outra morte, a de uma personagem que ele tinha criado. ‘Eyton’ indica, com seu comentário, que o renascimento por que passou trazia à vida um ser mais autêntico pois mais sintonizado com a ascendência divina do homem e diferente da personagem que forjara. É tão comum e central na cultura daimista essa vivência ritual da morte e renascimento que ‘Forbes’ chega a falar que o Padrinho Sebastião costumava dizer que: “(...) se não nascer de novo nessa vida, é um aborto da natureza.”193 Um outro fardado do Céu das Estrelas, ‘Diogo’, recorda o Padrinho para evocar essa dialética entre morte e vida. Segundo conta há um trecho de um hino seu em que diz: “Eu comparo a morte é igualmente ao nascer(...)”. O entrevistado continua falando da interdependência dos processos:

“(...) quando você é gerado, o óvulo e o espermatozóide, você fica ali nove meses e aqueles nove meses depois você morre de um lado e nasce do outro, você começa a chorar, porque você estava ali no quentinho, no conforto da barriga da sua mãe, sendo alimentado, tendo calor, sendo hidratado, de repente você tem aquela saída brusca, você morre de um lado e nasce do outro, por isso você começa a chorar”.194

192

Entrevista de ‘Eyton’, em 12/04/2004. Matutu, Aiuruóca, MG. Entrevista de ‘Forbes’, de 29/03/2004, Floresta, Juiz de Fora, MG. 194 Entrevista de ‘Diogo’, de 29/03/2004, Juiz de Fora, MG. 193

93

A impressão da quase literalidade da experiência de morte também nos foi referida por ‘Elson’

195

.

‘Elson’ tem vinte anos e, como sua mãe já era daimista há bastante tempo, ele fardou-se com apenas seis anos de idade na igreja de Santa Luzia em Belo Horizonte. Tal como a maior parte dos adolescentes ele também enfrentou crises ligadas às suas referências e dos doze aos dezesseis anos, aproximadamente, ficou afastado da doutrina pois queria ser igual à maioria dos outros jovens da sua escola. Seu retorno ocorreu no natal do ano 2000 pois era costume da família que o natal fosse comemorado na igreja de Santa Luzia, onde fora iniciado. Ele conta que após o trabalho estava lá sentado e alguém da sua infância voltou-se para ele perguntando de onde ele era. Ao responder que era dali, que aquela era sua casa, aquilo desencadeou uma sensação muito forte e muita felicidade por retornar ao Mestre. A confirmação desse retorno ocorreria no Festival do meio do ano de 2001, durante um hinário do Padrinho que ele participou em Lumiar no qual, conforme diz, obteve entendimento do mistério da cruz do Senhor Jesus. Compreendeu o porque do seu sofrimento: “Foi a força do Daime me chamando para uma morte (...) o Daime estava querendo que eu aceitasse a morte, que eu entregasse mesmo minha vida, que eu entregasse meu coração.” Nesse trabalho ‘Elson’ teve passagens muito difíceis:

“(...) eu sentindo aquilo tudo muito intenso e parecia que eu tinha duas opções: ou eu morria e me entregava ali mesmo ou corria (...) eu vendo Jesus Cristo presente em tudo chamando: ‘- e então, vem ou não vem? Entrega aí, pega a sua cruz e vamos embora.’ Eu ia pedir alguma coisa, mas veio a decisão: não peço nada, estou entregue (...). Voltei para a igreja, vi um maracá em cima da mesa, catei o maracá e comecei a tocar bem forte, ‘falando’: - estou aqui, estou entregue. Nessa hora começou a vir mesmo muita coisa, eu vivi mesmo a minha morte, eu senti sangue ao redor do meu rosto, uma limpeza de sei lá quantas vidas, purgando. Eu chorava, chorava, chorava, mas também cantava, cantava, cantava (...)”.

No meio desse processo ‘Elson’ também não conseguiu discernir em alguns momentos entre a morte concreta e a simbólica:

195

Entrevista de ‘Elson’, em 31/03/2004, Juiz de Fora, MG. 94

“Eu achei que ia morrer mesmo, entendeu? Na hora eu não sabia qual era o limite da morte, dessa morte espiritual e da morte real, eu já estava achando que (...) entendeu? Eu já tinha despedido da minha mãe, da família e aí foi a segunda parte, o Padrinho me mostrando: agora que você se entregou (...) que no momento mais forte assim eu fui fazer meu juramento no pé do Santo Cruzeiro (...)”

Quando percebeu que a morte era espiritual deliberou que sua vida era de serviço para a humanidade, de dedicação ao trabalho pela caridade e pelo ser humano e daí começam os desdobramentos externos de sua transformação. Fala que começou a por ordem nas coisas a “limpar a casa”, cada cantinho sendo cuidado e o seu trabalho espiritual começa a se manifestar no seu trabalho material. Outra mudança forte foi na importância da boa convivência e da relação harmoniosa, especialmente com a família. Essa foi desencadeada num trabalho de São Miguel em que teve outro confronto forte com a luta para vencer a morte, “(...) porque toda hora vinha a morte querendo fazer acreditar nela, na doença (...)” e depois de uma outra vivência difícil que enfrentara do lado de fora da igreja, onde tinha ido fazer uma limpeza, quando voltou, estavam cantando um hino do Padrinho que falava da família. Ele compreendeu que não é possível você se propor a ter uma vida espiritual se não consegue primeiro harmonizar-se em casa e com sua família.

95

III – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Inicialmente buscamos fazer uma aproximação com o mundo da religiosidade ayahuasqueira, melhor dizendo mundos, já que os distintos contextos que fazem o uso ritual regular da ayahuasca - nações indígenas, comunidades ribeirinhas ou os adeptos de alguma religião ayahuasqueira - guardam cada um as especificidades do seu meio cultural. Compartilham, entretanto, da crença na força do poder dessa bebida cujo consumo remonta à ancestralidade dos povos amazônicos que conheciam suas propriedades, usos e formas de preparo. A centralidade que possui na constituição dos elementos mítico-religiosos de vários grupos indígenas resultou na designação de “cultura do yagé” para referir-se a esses povos para os quais, além de servir como chave de acesso ao mundo espiritual, é o principal recurso no diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças. Para os xamãs mestiços, também referidos como curandeiros a planta é fortemente conhecida por seu poder de cura. Atuando entre as populações ribeirinhas sua presença é mais frequente em localidades peruanas e colombianas. Podemos considerá-los como intermediários na tradição do uso do yagé, entre os índios e os novos moradores da Amazônia, muitos dos quais foram recrutados para os trabalhos nos seringais. Desde o início do século passado, no Brasil começam a se estreitar os encontros que irão desembocar no surgimento das instituições religiosas que colocam o remédio indígena como centro das suas práticas rituais, como é o caso do Santo Daime que nasce no estado do Acre por volta de 1930 onde começa a jornada de trabalhos espirituais e sociais do maranhense Raimundo Irineu Serra. Através da revitalização do trabalho comunitário com a formação de mutirões e estímulo à aproximação das famílias pelo compadrio, o carismático Mestre Irineu que já administrava o chá nos serviços de cunho religioso que praticava, começa a agregar em torno de si a comunidade (Alto Santo), a partir de onde o movimento daimista começa a desenvolver-se, contando hoje com milhares de seguidores em todo o mundo. Abordamos também, de maneira breve detalhes históricos de outros dois grupos que consagram a ayahuasca: Barquinha e UDV, e comentamos sobre alguns dos novos usos urbanos da ayahuasca, que enfatizam sua dimensão terapêutica e relacionada ao auto-conhecimento. Tais dimensões, tentamos mostrar, também são valorizadas tanto nesses meios quanto nos de caráter mais religioso. A experiência mística referida pela irmandade de Juramidam guarda a potencialidade de instaurar modificações na vida daqueles que, através dela, afirmam ter contatado o plano

96

espiritual da existência, tendo com isso ressignificado o sentido do seu viver e foi exatamente essa crença que investigamos nesse trabalho. Ainda na primeira parte, pesquisando alguns trabalhos sobre a cura no Santo Daime, percebemos que ela recebe um atributo: “cura espiritual” em estudos como o de Peláez, o que aponta para uma questão fundamental: que não é apropriado equivaler noções médicas e religiosas, pois possuem caráter bem distintos. A especificidade da noção de cura nos meios religiosos conduz a discussão a uma questão fundamental na investigação sobre as religiões – o fenômeno da conversão. Aí está também o que consideramos uma das principais lacunas do nosso trabalho: não poder desenvolver a discussão sobre o assunto. No estudo referido Peláez já demonstrava que as curas no âmbito da sua pesquisa implicavam na admissão do ethos da cultura daimista, seus valores, visão de mundo. Mas tivemos que lidar com algumas limitações, pois se tivéssemos que enveredar por cada link que essa pesquisa nos fez acessar, seria impossível objetivar algo. Muitos temas intimamente relacionados ao nosso trabalho tivemos que deixar de lado, como também a vontade de ter feito muitas investigações etimológicas, enfim, a urgência do tempo e a necessidade de focar a atenção restringe de uma certa forma, mas por outra ajuda a concretizar. Mas nos aliviamos observando que transformar sempre implica em converter, verter o rumo, mudar de direção, mesmo que essa mudança não implique na cooptação do sujeito por alguma instituição religiosa. Achamos que seria possível falar das transformações privilegiando os mecanismos psicológicos subjacentes ao processo, mesmo notando a importância dos códigos culturais, mas buscando não ceder a nenhum determinismo unilateral. Ademais, ao privilegiarmos em nossa análise elementos míticos e simbólicos envolvidos nas transformações subjetivas quisemos exatamente abordar o tema nesse âmbito de transvalorações. E se isso parece longe do que se considera biologicamente uma cura, psicologicamente parece estar bem perto, apesar de não considerarmos dissociadas tais esferas, muito pelo contrário. Aliás a esse respeito, os gregos tinham uma posição interessante: em Epidauro, Asclépio, filho de Apolo, desenvolveu uma escola de medicina, onde se praticava a nooterapia, ou seja, a cura pela mente. À porta do templo, no alto de duas colunas, havia uma mensagem que resumia o segredo das curas da medicina asclepíade: “Puro deve ser aquele que entra no templo perfumado e pureza significa ter pensamentos sadios”. Do que Brandão conclui: “certamente em épocas mais recuadas só havia cura total do corpo em Epidauro, quando primeiro se curava a mente. Em outros termos, só existia cura, quando havia metanóia, ou seja, transformação de sentimentos”196.

196

BRANDÃO, Mitologia Grega, Vol. II, op. cit., p. 91. 97

É mais com essa conversão enquanto metanóia que se parecem os processos transformacionais descritos por nossos colaboradores. Se as mirações dão a ver o mundo do espírito, bem como a si mesmo de maneira mais profunda e verdadeira, que conseqüências isso pode gerar? Se há algo de teor mais conclusivo que podemos dizer com o nosso estudo é que a vivência com o Santo Daime, a referência a seus efeitos catárticos, purificadores e de autoconhecimento tem potência para instaurar transformações significativas e duradouras, relacionadas à percepção do mundo, de si mesmo (valores, hábitos, costumes, etc.) e do outro (família, sociedade). Ao dizermos que ‘tem potência para’, queremos mencionar, conforme demonstraram nossos colaboradores, que não existem garantias de que as transformações se operem simplesmente porque alguém tomou o Daime. Tudo depende da significação, do trato que cada um vai dar à experiência porém, a julgar pelos depoimentos colhidos, bem como se pode ver na literatura especializada, não são raros os daimistas que referem ter encontrado um novo sentido para suas existências a partir do Santo Daime. Esses relatos constituem o cerne da segunda parte da dissertação, porque não dizê-lo de toda a dissertação. Foi analisando-os que chegamos a perceber que aspectos teóricos poderiam ser correlacionados. Desse modo é que as idéias de Jung e Eliade foram nos parecendo apropriadas para ajudar a significantizar a respeito de experiência tão pouco afeita à apreensão pela palavra e frequentemente descrita como inefável. A teorização desses autores nos estudos que realizaram privilegia, de maneira nem sempre usual na academia, a dimensão simbólica, tão singularmente importante na constituição do humano e fundamental na produção desse trabalho. O símbolo enquanto instrumento do conhecimento, tal como a metáfora, cria pontes de sentidos ajudando a atravessar obstáculos de outro modo dificilmente transponíveis. O estudo das dimensões simbólicas facilita a percepção do que nos identifica humanos para além do que marca a diversidade existente. Tal como concluiu Lévi-Strauss discutindo a idéia de eficácia simbólica, após aproximar a metodologia da cura xamanica com os recursos de terapêuticas como a psicanálise, ele diz:

“Veríamos assim dissipar-se a última diferença entre a teoria do xamanismo e a teoria da psicanálise. O inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais o depositário de uma história única, que faz de cada um de nós um ser insubstituível. Ele se reduz a um termo pelo qual nós designamos uma função: a função simbólica, especificamente humana, sem

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dúvida, mas que, em todos os homens, se exerce segundo as mesmas leis; que se reduz , de fato, ao conjunto dessas leis.”197

Naturalmente o paralelismo traçado não ignora as diferenças entre os sistemas terapêuticos: ambos manipulam a dimensão mítica porém, na psicanálise se trata de forjar um mito individual construído com a ajuda das lembranças da vida pregressa do doente, enquanto que no xamanismo é um mito coletivo que o sujeito recebe do grupo a que pertence, da sua tradição, conforme pontua o antropólogo. Tal imagem do inconsciente enquanto reduto da função simbólica auxilia a justificar os paralelos sugeridos neste trabalho entre as informações produzidas na pesquisa de campo e alguns conceitos da psicologia junguiana. A individuação enquanto processo de desenvolvimento psicológico, no seu lido com dimensões simbólicas inconscientes, trata de assumir a roupagem que lhe oferece o universo em que emerge, seja no cristianismo, no xamanismo, na alquimia ou no Santo Daime. Independente do que tais meios guardam de específico permanece a idéia de que a manipulação de certos símbolos, em determinados contextos e conforme alguns critérios, pode desvelar a existência de um processo transformacional em curso.

197

Op. cit., p.234 99

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_______ Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. IX/1. Petrópolis: Vozes, 2000.

_______ Símbolos de transformação. Vol. V, Petrópolis: Vozes, 1999.

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LABATE, B. C. A Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UNICAMP, 2000.

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LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

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MACRAE, E. Guiado Pela Lua. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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MONTERO, Paula. Da Doença a Desordem – A magia na Umbanda. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

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PERLONGHER, N. Religião e Sociedade. V. 16, n. 3, Rio de Janeiro: ISER, 1994.

POLARI, A. O livro das mirações. Rio de Janeiro: Record, 1995.

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V - ANEXOS:

Anexo 1:

Edição Número 216 de 10/11/2004 Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República Presidência da República Secretaria Nacional Antidrogas RESOLUÇÃO N o 5-CONAD, DE 4 DE NOVEMBRO DE 2004 (*) Dispõe sobre o uso religioso e sobre a pesquisa da ayahuasca O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL ANTIDROGAS - CONAD, no uso de suas atribuições legais, observando, especialmente, o que prevê o art. 6° do Regimento Interno do CONAD; e CONSIDERANDO que o plenário do CONAD aprovou, em reunião realizada no dia 17 de agosto de 2004, o parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico que, por seu turno, reconhece a legitimidade, juridicamente, do uso religioso da ayahuasca, e que o processo de legitimação iniciou-se, há mais de dezoito anos, com a suspensão provisória das espécies vegetais que a compõem, das listas da Divisão de Medicamentos DIMED, por Resolução do Conselho Federal de Entorpecentes - CONFEN, n° 06, de 04 de fevereiro de 1986, suspensão essa que tornou-se definitiva, com base em pareceres de 1987 e 1992, indicados em ata do CONFEN, publicada no D.O. de 24 de agosto de 1992, sendo os subseqüentes considerandos baseados na já referida decisão do CONAD; CONSIDERANDO que a decisão adequada, da Administração Pública, sobre o uso religioso da ayahuasca, foi proferida com base em análise multidisciplinar; CONSIDERANDO a importância de garantir o direito constitucional ao exercício do culto e à decisão individual, no uso religioso da ayahuasca, mas que tal decisão deve ser devidamente alicerçada na mais ampla gama de informações, prestadas por profissionais das diversas áreas do conhecimento humano, pelos órgãos públicos e pela experiência comum, recolhida nos diversos segmentos da sociedade civil; CONSIDERANDO que a participação no uso religioso da ayahuasca, de crianças e mulheres grávidas, deve permanecer como objeto de recomendação aos pais, no adequado exercício do poder familiar (art. 1.634 do Código Civil), e às grávidas, de que serão sempre responsáveis pela medida de tal participação, atendendo, permanentemente, à preservação do desenvolvimento e da estruturação da personalidade do menor e do nascituro; CONSIDERANDO que qualquer prática religiosa adotada pela família abrange os deveres e direitos dos pais "de orientar a criança com relação ao exercício de seus direitos de maneira acorde com a evolução de sua capacidade", aí incluída a liberdade de professar a própria religião e as próprias crenças, observadas as limitações legais ditadas pelos interesses públicos gerais (cf. Convenção Sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, promulgada pelo Decreto nº 99.710, de 21/11/1990, art. 14);

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CONSIDERANDO a conveniência da implementação de estudo e pesquisa sobre o uso terapêutico da ayahuasca, em caráter experimental; CONSIDERANDO que o controle administrativo e social do uso religioso da ayahuasca somente poderá se estruturar, adequadamente, com o concurso do saber detido pelos grupos de usuários; RESOLVE: Art. 1º Fica instituído GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO para levantamento e acompanhamento do uso religioso da ayahuasca, bem como para a pesquisa de sua utilização terapêutica, em caráter experimental. Art. 2º O GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO será composto por seis membros, indicados pelo CONAD, das áreas que atendam, entre outros, aos seguintes aspectos: antropológico, farmacológico/bioquímico, social, psicológico, psiquiátrico e jurídico. Além disso, o grupo será integrado por mais seis membros, convidados pelo CONAD, representantes dos grupos religiosos, usuários da ayahuasca. Art. 3º O GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO escolherá seu presidente e vicepresidente e deverá, como primeira tarefa, promover o cadastro nacional de todas as instituições que, em suas práticas religiosas, adotam o uso da ayahuasca, devendo essas instituições manter registro permanente de menores integrantes da comunidade religiosa, com a indicação de seus respectivos responsáveis legais, entre outros dados indicados pelo GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO. Art. 4º O GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO estruturará seu plano de ação e o submeterá ao CONAD, em até 180 dias, com vistas à implementação das metas referidas na presente resolução, tendo como objetivo final, a elaboração de documento que traduza a deontologia do uso da ayahuasca, como forma de prevenir o seu uso inadequado. Art. 5º O CONAD, por seus serviços administrativos, deverá consolidar, em separata, todas as decisões do CONFEN e do CONAD sobre o uso religioso da ayahuasca, para acesso e utilização dos interessados que poderão, às suas próprias expensas, extrair cópias, observadas as respectivas regras administrativas para tanto. Art. 6º Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação. JORGE ARMANDO FELIX Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional e Presidente do Conselho Nacional Antidrogas (*) Republicada por ter saído com incorreção no DOU do dia 08/11/2004, Seção 1, página 8.

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Anexo 2:

Hino nº. 29 Sol, Lua, Estrela do Hinário O Cruzeiro, Mestre Irineu:

Sol, Lua, Estrela A Terra, o Vento e o Mar É a Luz do Firmamento É só quem eu devo amar É só quem eu devo amar Trago sempre na lembrança É Deus que está no céu Aonde está minha esperança A Virgem Mãe mandou Para mim esta lição: Me lembrar de Jesus Cristo E esquecer da ilusão Trilhar este caminho Toda hora e todo dia O Divino está no céu Jesus Filho de Maria

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Anexo 3:

Hino nº. 54 Pedi força a meu Pai do Hinário O Cruzeiro, Mestre Irineu:

Pedi força a meu Pai Ele me deu com amor Para mim ensinar Neste mundo pecador A minha Mãe que me ensinou Mandou eu ensinar A todos meus irmãos Aqueles que acreditar Surubina minha flor Jardim da minha infância A base deste mundo É o verde, minha esperança

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Anexo 4:

Hino nº. 50 Salomão do Hinário O Cruzeiro, Mestre Irineu:

Salomão disse para mim Nesta eu vou me assinar Que esta é a verdade pura No mundo não tem igual A Professora que te ensina Tu soubeste aprender Trabalhaste muitos anos Para hoje receber Sois filho das Águas Brancas É preciso trabalhar Segue sempre o teu destino E deixa quem quiser falar

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Anexo 5:

Hino n.º 38 Flor de Jagube do Hinário O Cruzeiro, Mestre Irineu:

Eu venho da floresta Com o meu cantar de amor Eu canto é com alegria A minha Mãe que me mandou A minha Mãe que me mandou Trazer santas doutrinas Meus irmãos todos que vêm Todos trazem este ensino Todos trazem este ensino Para aqueles que merecer Não estando nesta linha Nunca é de esquecer Estando nesta linha Deve ter amor Amar a Deus no céu E a Virgem que nos mandou

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Anexo 6:

Hino n.º 6 Eu vivo na floresta do Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião:

Eu vivo na floresta Eu tenho os meus ensinos Eu não me chamo Daime Eu sou é um Ser Divino

Este tão grande amor É para todos os meus irmãos Os ensinos da Rainha E do Mestre Juramidam

Eu sou um Ser Divino Eu venho aqui para te ensinar Quanto mais puxar por mim Mais eu tenho que te dar

Meus amigos e meus irmãos Todos vão gostar de ver Que aqui neste salão Tem muito que se aprender

Muito eu tenho que te dar E também tenho para te dizer Quem tem dois olhos enxerga Mas os cegos também vêem

Aquele que não aprender É porque não presta atenção Muito terá que sofrer Aqui na reunião

Os ensinos da Rainha Todos eles são divinais Eles são das cortinas Lá do alto do astral

O Mestre e a Rainha Eles têm um grande amor Eles estão fazendo paz Como o Cristo Redentor

Eu te entrego estes ensinos Como que seja uma flor Gravai bem no teu peito Este tão grande amor

Jesus Cristo veio ao mundo E sofreu até morrer Mas deixou os seus ensinos Para quem quiser aprender

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Anexo 7:

Hino nº. 24 Vamos meus irmãos do Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião:

Vamos meus irmãos Vamos todos se humilhar Que o dia da minha Mãe É preciso festejar Eu agradeço a meu Mestre Porque tem o que me ensinar Me mostra tanta beleza Que neste mundo não há Eu agradeço a meu Mestre E ao meu Papai também De eu ver tanta riqueza Primor é só aonde tem A minha Mãe é tão formosa Entre todas as mulheres Ela pisa tão macio E leva a gente aonde quer O Mestre me disse Que faltava uma quantia Para me mostrar os primores Conforme eu merecia

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Anexo 8:

Hino nº. 61 Quatro linhas e quatro letras do Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião:

Quatro linhas e quatro letras Eu aqui venho citar Para todos conhecer E saber aonde está É A, é B, é C Eu aqui vou multiplicar O Mestre me ensinou E não souberam aproveitar Quatro linhas e quatro letras É aqui aonde está Muitos vão assoletrar E não sabem destrinchar Aqui é muito sério É preciso compreender Que o Mestre está no trono Para todo mundo ver E para todo mundo ver É preciso se humilhar E ter o coração bem limpo Para Deus lhe abraçar

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Anexo 9:

Hino nº. 24 Para Amar do Hinário O Convite, Madrinha Júlia Gregório da Silva:

Para amar e ter amor É preciso conhecer Deus em sua mente Deus é seu saber Para amar e ter amor É preciso compreender Amar a todos os seres Igualmente a você Quem ama e sabe amar É um foco de luz Quem ama a todos os seres Ama a meu Jesus Para amar e ter amor É preciso obediência Amar a Virgem Mãe E o nosso Pai Onipotente

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Anexo 10:

Hino Eu sou (Cristo é o Daime), de Alex Polari

Eu sou o princípio que fecunda Do Pai Celeste Eu Sou a criação São meus raios de amor por sobre a Terra Que comandam toda a manifestação Eu Sou o princípio da matéria Sou o mesmo desde o Sol até um grão Estes astros luminosos no espaço São meus pontos de luz na escuridão Eu Sou anterior a todo tempo Antes que o mundo fosse Eu já Sou Mandei há muitas eras meus profetas Mas o povo nunca que acreditou Esse dia do Universo mal começa Mas com a noite o que Eu criei terá seu fim O espírito de tudo que existiu Retorna ao Um e serão unos em mim Eu Sou Buda, Eu Sou Krishna, Eu Sou Cristo A minha glória completa ninguém viu Eu reino em esferas invisíveis Mas Sou o Daime que você bebeu

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Anexo 11:

Hino nº. 10, A Barquinha do Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião:

A barquinha vem seguindo Vem na minha direção O povo que eu vejo nela É da Virgem da Conceição A Rainha nos mandou Para todos nós formar E louvar o Filho Dela No dia que Ele chegar Vou seguindo, eu vou seguindo Vou na mesma embarcação Vou seguir com a Rainha E o Império Juramidam Vou subindo, eu vou subindo Até aonde eu posso ir Encontrar com Jesus Cristo Que é a flor deste jardim Sinto dor, eu sinto dor E tenho prazer no coração De me achar reunido Aqui com os meus irmãos O Mestre manda se bailar Aqui neste salão E trabalhar com firmeza Firmeza no coração O Mestre nos ensina Para todos aprender No dia da audiência É que vão gostar de ver Aquele que aqui vier E não prestar atenção Terá muito que sofrer Na sua separação

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Anexo 12:

Hino nº. 16, Eu subi meu pensamento do Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião:

Eu subi meu pensamento Dentro de um grande jardim Levantei a minha voz Oh! Minha Mãe, rogai por mim Eu limpei a mentalidade Vi uma roda girando Dentro desta grande luz Meu Pai está me olhando Oh! Meu Pai que está no céu Este poder Ele nos dá Ele nos deu este grande Mestre Aqui na terra para nos ensinar Vamos seguir meus irmãos Não devemos demorar Ouça o estrondo da terra E o gemido do mar Eu olhando para o céu Vi uma estrela correndo Ela veio me rodeando Eu senti meu corpo esmorecendo

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Anexo 13:

Hino nº. 124, Eu tomo esta Bebida do Hinário O Cruzeiro, Mestre Irineu:

Eu tomo esta bebida Que tem poder inacreditável Ela mostra todos nós Aqui dentro desta verdade Subi, subi, subi Subi foi com alegria Quando eu cheguei nas alturas Encontrei com a Virgem Maria Subi, subi, subi Subi foi com amor Encontrei com o Pai Eterno E Jesus Cristo Redentor Subi, subi, subi Conforme os meus ensinos Viva o Pai Eterno E viva todos os Seres Divinos

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Anexo 14:

CONSAGRAÇÃO DO APOSENTO

Dentro do Círculo Infinito que me envolve inteiramente, afirmo: Há uma só presença aqui. É a da Harmonia, que faz vibrar todos os corações de felicidade e alegria. Quem quer que aqui entre, sentirá as vibrações da Divina Harmonia. Há uma só presença aqui. É a do Amor. Deus é amor que envolve todos os seres num só sentimento de unidade. Este recinto está cheio da presença do Amor. No amor eu vivo, me movo, e existo. Quem quer que aqui entre, sentirá a pura e santa presença do Amor. Há uma só presença aqui. É a da Verdade. Tudo o que aqui existe, tudo o que aqui se fala, tudo o que aqui se pensa é a expressão da Verdade. Quem quer que aqui entre, sentirá a presença da Verdade. Há uma só presença aqui. É a da Justiça. A Justiça reina neste recinto. Todos os atos aqui praticados são regidos pela Justiça. Quem quer que aqui entre, sentirá a presença da Justiça. Há uma só presença aqui. É a presença de Deus, o Bem. Nenhum mal pode entrar aqui. Não há mal em Deus. Deus, o Bem, reside aqui. Quem quer que aqui entre, sentirá a Divina Presença do Bem. Há uma só presença aqui. É a presença de Deus, a Vida. Deus á vida Essencial de todos os seres. É a Saúde do corpo e da mente. Quem quer que aqui entre, sentirá a Divina Presença da Vida e da Saúde. Há uma só presença aqui, é a presença de Deus, a Prosperidade. Deus é prosperidade, pois Ele faz tudo crescer e prosperar. Deus se expressa na Prosperidade de tudo que aqui é empreendido em Seu Nome. Quem quer que aqui entre, sentirá a Divina Presença da Prosperidade e da Abundância. Pelo Símbolo Esotérico das Asas Divinas estou em vibração harmoniosa com as Correntes Universais da Sabedoria, do Poder e da Alegria. A Presença da Divina Sabedoria manifesta-se aqui. A Presença da Alegria Divina é profundamente sentida por todos os que aqui penetrem. Na mais perfeita comunhão entre meu Eu inferior e meu Eu superior, que é Deus em mim, consagro este recinto a perfeita expressão de todas as qualidades Divinas que há em mim e em todos os seres. As vibrações de meu pensamento são forças de Deus em mim, que aqui ficam armazenadas e daqui se irradiam para todos os seres, constituindo este lugar um centro de emissão e recepção de tudo o quanto é Bom, Alegre e Próspero.

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