Doutor Ulysses

  • October 2019
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  • Words: 2,150
  • Pages: 5
A a mesa, com o doutor Ulysses Dono do Piantella conta histórias do presidente da Constituinte Marcone Formiga Da Revista Brasília em dia O mineiro de Teófilo Otoni, Marco Aurélio Costa, não é historiador, mas testemunha de boa parte da história política contemporânea, como espectador privilegiado e depositário fiel das conversas e confidências de Ulysses Guimarães, a quem o país deve em grande parte a retomada da normalidade institucional. Destemido, condestável da República, Ulysses experimentou o ocaso, quando, depois da Constituinte, que presidiu, não ocupou cargos de referência política. Abandonado pelos companheiros de PMDB, chegou a almoçar acompanhado apenas pelo motorista, porque os comensais que o assediavam buscavam outras fontes de poder. Privando da confiança do velho cacique político, tragicamente morto em um acidente de helicóptero, o restauranteur Marco Aurélio Costa, do Piantella, conta nesta entrevista, feita na mesa que era a preferida de Ulysses, como foi sua participação em momentos importantes da história. Abaixo, alguns trechos desta saborosa conversa. Era aqui que Ulysses Guimarães buscava refúgio. Fazia desabafos? Como era? Marco Aurélio - Quando o doutor Ulysses começou aqui, junto com o Piantella, em 1976, nós vivíamos um regime autoritário. Muitas das coisas, como dizia o doutor Ulysses, naquela época eram sonhos, depois se tornaram realidade. Ele, inclusive, falava que, se essas paredes, mesas e cadeiras tivessem ouvidos, muitas coisas, talvez, não teriam se tornado realidade, justamente porque aqui se tramou a queda do regime autoritário, sem haver derramamento de sangue. Isso foi deflagrado nas "Diretas Já", que trouxe toda a sociedade para um movimento de redemocratização do país. O movimento começou pequeno, nas mesas do restaurante, nos encontros fechados, e foi se ampliando, seguindo para os sindicatos e depois para as ruas. Se soubessem de tudo o que estava sendo tramado, talvez tivesse acontecido, naquele momento, a redemocratização do país...

Quando o presidente Tancredo Neves foi hospitalizado, o vice José Sarney tomou posse. Ele e Ulysses divergiram muito nessa época? - O doutor Ulysses sempre soube respeitar a derrota. Ele, muitas vezes, aceitava determinadas coisas como derrota, mas procurava encontrar uma saída, sempre. Lembro-me que ele queria de verdade era as "Diretas Já". Se as "Diretas Já" tivessem passado, ele seria o primeiro presidente democraticamente eleito depois da ditadura. Como não passaram, quem foi o candidato, por ter um melhor trânsito no meio militar, foi o Tancredo. Automaticamente, em um processo de eleições indiretas, o Tancredo tinha mais condições de sucesso do que o doutor Ulysses, que acabou sendo um grande articulador. Ele que costurou com Marco Maciel, Jorge Bornhausen, Guilherme Palmeira...

Algum político surpreendeu-o? - Inclusive, reparando toda essa costura, perguntei a ele: "Presidente, como o senhor está vendo esses novos amigos?". Ele respondeu: "Uma das pessoas que me surpreendeu muito é o Marco Maciel. Um homem muito confiável". Então, ele que fez todo esse arranjo para que, realmente, se chegasse à eleição do Tancredo no Colégio Eleitoral. O Tancredo foi vitorioso, mas, infelizmente,

por problemas de saúde, não tomou posse, ficando o cargo para o vice, José Sarney. Houve momentos de dúvida em relação a quem tomaria posse, Ulysses ou Sarney. Mas surgiu o consenso entre Affonso Arinos e o Paulo Brossard, que eram duas pessoas que ele ouvia muito, que lhe disseram que quem assumiria seria o Sarney...

Mas o general Leônidas Pires Gonçalves (ex-ministro do Exército) também entrou nessa história... - Isso! Mas, nessa hora, foi para dizer que o presidente João Figueiredo dava posse para o doutor Ulysses e não dava para o Sarney. Chegou a haver essa conversa. Mas, no fim, o doutor Ulysses, por seu bom senso, tendo, inclusive, a informação que a cirurgia do doutor Tancredo era simples e que ele estaria recuperado em breve, deu espaço para a sucessão. Se ele não tivesse essa sabedoria e fosse um político afoito, um jovem, talvez entrasse nessa coisa de que o general Figueiredo queria dar posse para ele e não para o Sarney.

Ele cedeu fácil? - Como sempre foi um homem equilibrado, com larga experiência política, chegou à conclusão que o vice deveria tomar posse. Tanto que o Figueiredo saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto e não entregou a faixa presidencial ao Sarney...

Então, depois... - Depois, vieram as eleições de 1986, onde o PMDB fez a maior parte dos governadores, deputados e senadores, saindo muito fortalecido das urnas. Na época, foi criado o Plano Cruzado, que ofereceu uma melhoria para as camadas mais pobres, em termos de ganhos reais de salário. As coisas ficaram mais baratas, a taxa de juro caiu. Porém, depois da eleição, o plano foi por água abaixo...

Foi declarada a moratória, que o doutor Ulysses não era favorável. Como ele reagiu a essa moratória? - O doutor Ulysses nunca foi muito ligado na economia. Ele era muito bom na área política. No final da campanha de 1989, eu perguntei a ele quem seria seu ministro da Fazenda, caso fosse eleito. A pessoa que mais lhe inspirava confiança era o José Serra, o único que conseguia explicar economia para o doutor Ulysses...

Mas ele não concordava com o Dilson Funaro e tentou impor o Tasso Jereissati... Foi ou não foi? - Não, não! Ele impôs foi o Bresser Pereira. Impôs, não... Houve uma discussão e ele achava que o Bresser seria melhor que o Tasso. Acabou prevalecendo a tese dele e o Bresser assumiu. Não existe essa coisa que falam que o doutor Ulysses mandava no governo Sarney. Não existia isso! O doutor Ulysses era o presidente da Constituinte e o vice-presidente da República, porque o Tancredo havia morrido e ele era o próximo na linha de sucessão. Com isso, as coisas foram tomando uma

conotação que dava a impressão de que o doutor Ulysses mandava no Sarney. Na política, eu aprendi com o doutor Ulysses que nunca se pode dizer que "dessa água eu não beberei". Ele dizia que, em política, nunca se diz não.

Por que você está falando isso? - O Fernando Collor, no calor da campanha, falava mal do Sarney, assim como o Lula. Hoje, o Sarney convive com o Lula. Faz parte da política.

Dizem que o doutor Ulysses não tinha um conceito muito bom do Fernando Collor... - Quando começou a história do impeachment e o irmão do presidente Collor, o Pedro, foi dar aquela entrevista à "Veja", e se falou em abrir a CPI, o doutor Ulysses disse que ela não deveria ser aberta. Ele falou que o "menino", que era como se referia ao Collor, tinha feito um ministério de alto nível. Isso foi quando foram para o ministério o Jorge Bornhausen, Adib Jatene, Jarbas Passarinho, Eliezer Batista. O doutor Ulysses falou conversando com seus pares. Ele não era presidente do partido. Em nome do grupo do Orestes Quércia, Geddel, Michel Temer, Ibsen Pinheiro, procuraram o doutor Ulysses. Durante a conversa, ele falou: "Olha, vocês estão fazendo comigo igual piano em mudança. O lugar mais difícil de se achar em uma casa nova é o lugar do piano".

Por quê? - Eles queriam arranjar um cargo para o doutor Ulysses, porque haviam tirado-o da presidência do PMDB e da presidência da Câmara. Aí, ele foi convidado para assumir a Comissão de Relações Exteriores. Ele, educadamente, aceitou. Foi quando passou a empunhar a bandeira do parlamentarismo. O doutor Ulysses sempre foi de carregar bandeiras. Começou a viajar o Brasil todo pregando o parlamentarismo.

Sim, mas quanto ao Collor? - Certa vez, Collor chamou o doutor Ulysses para uma conversa, lá no Palácio da Alvorada. Para se ter uma noção do respeito que o Collor tinha com o doutor Ulysses, ele não chamou o presidente do partido, que era o Quércia, e, sim, o doutor Ulysses. Então, naquela reunião com os integrantes do partido, o doutor Ulysses falou: "Todos sabem como começa uma CPI, mas ninguém sabe como termina. Ele disse que seria muito mais tranqüilo não abrir CPI, deixar que a coisa transcorresse e fazer um monitoramento mais rígido do governo Collor. O PC Farias já não tinha mais nada a ver com a história. Ele queria conduzir a coisa assim. Mas o grupo insistia na abertura da CPI, porque pensavam que o próximo presidente seria o Quércia. Quando o processo começou, o doutor Ulysses só entrou e assumiu a bandeira do impeachment depois que a CPI estava funcionando. Tanto é que ele ficava isolado.

Ou seja, foi abandonado... - Naquela época, ele se sentava muitas vezes sozinho. Ele me ligava e perguntava se eu já tinha

almoçado, e vinha almoçar comigo. Ele não tinha mais nenhum cargo importante, era só um "piano". Ficávamos conversando sobre as coisas boas da vida... Um dia, quando eu estava em São Paulo, ele chegou aqui e almoçou com o motorista. Não sabia almoçar sozinho...

E ninguém o procurava... - Ninguém o procurava! Achavam que ele estava politicamente ultrapassado. Ele já não tinha a mesma capacidade de agregar de antes. Quando a coisa começou a caminhar para o impeachment verdadeiramente, com o depoimento do motorista Eriberto, que foi o único depoimento que o doutor Ulysses fez questão de ouvir, chegou aqui, nesta mesa, e falou: "Está para acontecer neste país um fato histórico protagonizado por um homem de poucas letras". A partir dali, começou a se inteirar mais sobre o processo. Tanto que, quando precisaram dele, fez um encontro aqui, reunindo todos os líderes, do Senado e da Câmara, para discutir o processo de impeachment.

Mas, depois do impeachment, como ele reagiu? - Depois do impeachment, o doutor Ulysses passou a ser o grande articulador do PMDB junto ao Itamar Franco. Assim, retomou o prestígio. A votação do impeachment foi em uma quarta-feira. Na quinta-feira, o Itamar disse que queria tomar posse na segunda. O doutor Ulysses procurou o Itamar para dizer que ele tomasse posse imediatamente, para não haver vacância de poder. Aí, o Itamar tomou posse na quinta.

Quais foram seus últimos contatos? - Um dia ele me ligou, pedindo que eu reservasse a mesa ao lado, não deixando ninguém sentar, porque ele teria uma conversa reservada. Quando a pessoa subia a escada, ele perguntou: "E aí, Zé! Você vai de bacalhau ou de caldo verde?". A conversa era com o José Aparecido, a pessoa mais ligada ao Itamar. O Quércia ligava para cá para saber se o doutor Ulysses ainda estava. Eu ia, então, avisar ao doutor Ulysses que o Quércia o tempo todo queria falar com ele. Ele respondia com um "mais tarde". O Quércia ligou umas três ou quatro vezes, e o doutor Ulysses não atendeu. Quando deu uma da manhã, os dois desceram para ir embora. Aí, eu disse para o doutor Ulysses que o Luis Eduardo, Toninho Drummond e esse pessoal todo estava no bar. Então, o doutor Ulysses resolveu passar por lá para falar com eles. Depois de conversar um pouco, foi para casa. No outro dia, uma sexta, foi para São Paulo e depois para Angra dos Reis de helicóptero. No domingo, aconteceu o desastre. E lá em Angra, a conversa era entre ele e o Severo Gomes, para que o Severo assumisse a presidência da Vale do Rio Doce. O Itamar fazia questão que o Severo assumisse a presidência da Vale, mas ele não queria.

Você, que é espiritualista, vê alguma explicação para a morte do doutor Ulysses. Parece que houve um sinal... - O doutor Ulysses sempre foi afoito com esse negócio de compromissos, de chegar, ir embora... Nunca se preocupou com a falta de tempo. A coisa tinha que acontecer, era o momento. Por incrível que pareça, esse homem, que nunca gostou de velórios, nunca teve seu corpo encontrado.

O doutor Ulysses saiu de cena. Nesta mesma mesa, quem ocupou o espaço foi Luis Eduardo Magalhães, não foi? - Não. O Luis Eduardo ocupava uma mesa lá no andar de baixo. Ele tinha a mesa dele. Era uma pessoa fantástica, no sentido de conviver com todos. Nunca deixou de conversar ou ouvir ninguém. Era uma pessoa, inclusive, que, em dia de votação, tinha a liberdade de chegar e gozar a oposição. Todos respeitavam o Luis Eduardo. Nunca vi alguém com quem ele tenha sido arrogante. Nunca o vi destratar ninguém. Considero-o um grande democrata e uma pessoa que tinha tudo para ter um futuro político brilhante pela frente. O Luis Eduardo, se fosse seu amigo, ia com você até o fim, não o deixava na metade do caminho. Foi assim com Collor, com o Fiúza. Ele nunca deixou companheiro na chuva.

Você, muitas vezes, fez o papel de terapeuta, ouvindo desabafos e confidências... - Na política, existe o momento em que a pessoa descontrai e fala determinadas coisas. O doutor Ulysses dizia que nunca se pode fechar as portas. Na vida, sempre nos cruzamos, precisamos de outras pessoas. Ninguém vive sozinho. ----------------------------------------------------------------------------------------"Se disser algo errado, poderá dizê-lo de novo. Se escrever algo errado, poderá reescrevê-lo. Se fizer algo errado, o erro ficará com você para sempre." (Choochat Watanaruangchai)

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