Direito E Linguagem (matheus)

  • November 2019
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DIREITO E LINGUAGEM Lincoln Antônio de Castro Professor da Universidade Estácio de Sá e da Universidade Federal Fluminense. Mestre em Direito. Promotor de Justiça, aposentado. Advogado.

Em preciosa obra de Marilena Chauí(Convite à Filosofia7ª edição, Editora Ática, São Paulo, 1996), buscamos inspiração para abordar o tema direito e linguagem, com a preocupação de apenas destacar a visão de um operador do direito quanto à função da linguagem na área profissional. I - LINGUAGEM Focalizamos, em primeiro lugar, a importância da linguagem. Para Aristóteles, o homem é um animal político (social e cívico), pois somente ele é dotado de linguagem. Animais têm voz, exprimindo dor e prazer. Só homem possui palavra, exprimindo e possuindo, em comum com outros homens, valores que viabilizam vida social e política. Para Platão a linguagem é um pharmakon : remédio, veneno e cosmético. Na Bíblia Sagrada, a palavra tem força criadora, pois no princípio era o verbo; com a palavra tudo foi feito ("Faça-se a luz..... e a luz foi feita"). Sobre a Torre de Babel, ficamos sabendo que Deus lançou a confusão entre os homens, fazendo com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes, que impediam uma obra em comum, abrindo as portas para todos os desentendimentos e guerras. Linguagem é "instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana"(obra citada). Linguagem nasceu da necessidade de expressão e comunicação. "Linguagem é forma propriamente humana da comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da vida social e política, do pensamento e das artes"(obra citada). Mitos (em grego mythos) significa narrativa sobre origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas e da vida do grupo social ou da comunidade. Mythos também significa linguagem, no sentido de que os homens, mediante palavras, conseguem organizar a realidade e interpretá-la. Examinando o Direito Romano, sabemos que, na sua origem, o direito não era um código de normas legais. Direito era um ato solene no qual o juiz pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito solucionavam a lide. Direito era uma linguagem solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e

reconhecidas pelas partes conflitantes em juízo. Era um juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes. Modernamente, ainda encontramos presente a idéia de que, numa comunidade, dar sua palavra representa dar sua vida, sua consciência, sua honra, assumindo assim compromisso que só poderá ser desfeito com a morte ou com anuência da outra parte. Quanto à dimensão da Linguagem, os gregos conheciam duas palavras para se referirem à palavra e à linguagem: mythos e logos. Logos, para os gregos, é síntese de três conceitos: fala (palavra), pensamento (idéia) e realidade (ser). Logos é a palavra racional identificadora do conhecimento do real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração) e realidade (ou seja, os nexos e ligações universais e necessários entre os seres). (Vide obra citada). Conceituando linguagem, destacamos que "linguagem é um sistema de sinais com função indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa". "Linguagem é sistema de signos ou sinais usados para indicar as coisas, para a comunicação entre as pessoas e para a expressão de idéias, valores e sentimentos."(Vide obra citada). Quanto às características da linguagem, nos conceitos acima podemos extrair as seguintes afirmações: a)- linguagem é sistema - um todo estruturado com princípios próprios; b)- linguagem é sistema de signos ou sinais – signos são objetos que indicam outros objetos, designam outros objetos ou representam outros objetos; c)- linguagem indica coisas - palavras têm função de apontar coisas que elas significam – função indicativa ou denotativa; d)- linguagem tem uma função comunicativa – mediante palavras estabelecemos relações com os outros seres humanos; e)- linguagem exprime pensamentos, sentimentos e valores – função conotativa, ou de conhecimento e expressão. Revela-se importante distingüir linguagem simbólica e linguagem conceitual. A linguagem simbólica assim se caracteriza: opera por analogias e por metáforas; realiza-se como imaginação; é inerente aos mitos, à religião, à poesia, ao romance, ao teatro; fascina e seduz, por ser fortemente emotiva e afetiva; oferece imagens ou sínteses imediatas; oferece palavras polissêmicas, ou seja, carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e diferentes, tanto sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos opostos e contrários; faz

a criação de um outro mundo, análogo ao nosso, porém mais belo ou terrível do que o real; destaca a memória e imaginação, focalizando um futuro ou passado possíveis. A linguagem conceitual tem as seguintes características: é inerente à filosofia e às ciências; procura dar às palavras sentido direto e não figurado, evitando analogia (semelhança entre palavras e sons) e metáfora (uso de palavras para substituir outras, criando sentido poético para expressão do sentido); evita uso de palavras carregadas de múltiplos sentidos, procurando fazer com que cada palavra tenha sentido próprio e que seu sentido vincule-se ao contexto no qual a palavra é empregada; procura convencer e persuadir por meio de argumentos, raciocínios e provas; busca definir o mundo real, decifrando-o e superando as aparências; busca focalizar o presente, a atualidade. II – DISCURSO JUDICIAL Adota-se na esfera jurídica a linguagem conceitual. Na verdade, é a própria estrutura do discurso judicial que determina o uso da linguagem conceitual. No âmbito do processo de conhecimento, verificamos que o autor formula uma tese e o réu apresenta a antítese, cabendo ao órgão judicial formular a síntese. A tese consubstancia-se na demanda: ato jurídico processual, mediante o qual o autor manifesta sua vontade no sentido de obter uma tutela jurisdicional visando a um bem da vida que possa satisfazer suas necessidades. Pela demanda, dá-se início ao exercício do direito de ação. A petição inicial é o instrumento da demanda. A demanda ostenta, como elementos identificadores, as partes, o pedido e a causa de pedir. Uma demanda é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido (CPC - art. 301, § 2º). Conforme art. 282 do Código de Processo Civil: a)- partes são o autor e o réu, ou seja, os sujeitos do processo distintos do órgão judicial (inciso I) ; b)- causa de pedir consiste no fato e nos fundamentos jurídicos do pedido, isto é, traduz as alegações fáticas e jurídicas que embasam ou justificam o pedido do autor; c)- e o pedido tem, como objeto imediato, a invocação da tutela jurisdicional e, como objeto mediato, o bem da vida que se pretende obter. O autor indicará, no ato da demanda, as provas com que pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados. A antítese consubstancia-se na contestação: ato jurídico processual, mediante o qual o réu manifesta sua vontade no sentido de resistir à pretensão do autor veiculada mediante a demanda. Na contestação o réu deve alegar toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as

provas que pretende produzir (CPC - art. 300). Além disso, mediante contestação cabe ao réu manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados pelo autor, sob pena de se presumirem verdadeiros os fatos não impugnados (CPC - art. 302). Depreende-se assim que os elementos da contestação são as partes, a impugnação do pedido, e as razões de fato e de direito que fundamentam a impugnação. E o réu fará indicação das provas necessárias para demonstrar a veracidade dos fatos narrados como razões de impugnação. Na contestação, portanto, encontramos os seguintes elementos: a)- partes, que são o réu em face do autor; b)- razões da impugnação, que são as alegações precisas e completas, sob os prismas fáticos e jurídicos, que fundamentam a impugnação do réu quanto ao pedido do autor; c)impugnação, que se traduz na manifestação de vontade do réu no sentido de obter tutela jurisdicional quanto a considerar improcedente o pedido formulado pelo autor. Consideram-se provas todos os meios legais ou moralmente legítimos, que são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se fundam a demanda e a contestação (CPC - art.332). E todos têm o dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade (CPC - art. 339). Mostramos que logos é a palavra racional do conhecimento do real. Logos é discurso, isto é, argumentos e prova da sua veracidade. Constatamos assim que os atos processuais (demanda e contestação) são discursos que se contrapõem como tese e antítese, respectivamente. Os atos das partes consistem em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, visando à produção dos efeitos de constituir, modificar ou extinguir direitos processuais (CPC - art. 158). Consubstanciam postulações das partes, fundamentadas em alegações ou argumentos que exigem prova da sua veracidade. Quanto à síntese, cabe ao órgão judicial, mediante provimentos (despacho, decisão interlocutória ou sentença), promover o desenvolvimento regular e a conclusão do processo, visando à prestação da tutela jurisdicional. Decisão interlocutória é ato pelo qual o juiz resolve questão incidente, durante o curso do processo. Sentença é o ato pelo qual o órgão judicial extingue o processo, decidindo ou não o mérito da causa. Uma das formas de extinguir o processo, mediante julgamento do mérito, consiste em o juiz prolatar sentença para acolher ou rejeitar o pedido do autor. Sabe-se que a jurisdição visa à aplicação da norma jurídica ao caso concreto, solucionando uma lide, ou seja, um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. O exercício da função jurisdicional visa à formulação de norma jurídica concreta que deve reger determinado caso; ou ainda, visa à atuação prática dessa norma concreta.

A jurisdição tem como escopo a aplicação do Direito, agindo o órgão judicial em substituição das partes conflitantes. À luz da doutrina de Moacyr Amaral dos Santos, a sentença se apresenta como um silogismo: "Diz-se, assim, que a sentença, na sua formação, se apresenta como um silogismo, do qual a premissa maior é a regra de direito e a menor a situação de fato, permitindo extrair, como conclusão, a aplicação da regra legal à situação de fato" ( in Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. 3º, Editora Saraiva, 1995). A sentença tem os seguintes elementos essenciais: I- relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II- a motivação, ou seja, os fundamentos em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III- a conclusão ou dispositivo, em que o juiz resolve as questões que as partes lhe submeteram. Ressalte-se que a Constituição Federal prevê que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (art. 93, inciso IX). Consoante Código de Processo Civil, o juiz não pode se eximir de despachar ou sentenciar, alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide, cabe ao juiz aplicar as normas legais. Se não houver normas legais regendo a matéria, o juiz valer-se-á da analogia, ou dos costumes ou dos princípios gerais de direito. Considerando o princípio da correlação ou congruência, o juiz deverá preservar a correlação entre o pedido contido na demanda e o dispositivo da sentença; pois lhe cabe decidir a lide nos limites em que foi proposta (CPC -arts. 128, 459 e 460). O juiz apreciará livremente as provas, tendo em conta os fatos e as circunstâncias contidas nos autos processuais. Exige-se que o juiz indique, na motivação ou fundamentação da sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento (CPC - art. 131). Trata-se aqui do princípio da persuasão racional do juiz. Logos é pensamento, isto é, raciocínio e demonstração. Permite-se ao juiz formar livremente sua convicção. O juiz desenvolve raciocínio, formando sua convicção íntima. As provas têm o mesmo grau de eficácia. Nenhuma prova, por si só, é mais importante do que qualquer outra. Ocorre que não basta raciocínio do juiz, cabendo-lhe completar o pensamento mediante demonstração da exatidão da sua convicção. Realidade significa os nexos e ligações universais e necessários entre os seres. Cumpre ao juiz, ao proferir uma sentença, enfrentar a questão da

realidade. Isto significa então que a questão posta em juízo há de ser considerada em função dos nexos e ligações universais e necessários entre os seres. Tal aspecto ensejará a solução da lide com justiça. André Comte-Sponville diz que: "A justiça é aquilo sem o que os valores deixariam de ser valores (não seriam mais que interesses ou móbeis), ou não valeriam nada" (in Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Martins Fontes, São Paulo – 1998). A justiça se considera em dois prismas: como conformidade ao direito, e como igualdade ou proporção. Para se cogitar da justiça, há de se considerar a vida em sociedade. A justiça é humana; juridicamente, não há justiça sem leis. Moralmente, não há justiça sem cultura. Se para salvar a humanidade fosse preciso condenar um inocente, ou torturar uma criança, teríamos de resignar a fazê-lo? Não, responderiam os pensadores. "Se a justiça fosse apenas um contrato de utilidade, como queria por exemplo Epicuro, apenas uma otimização do bem-estar coletivo, como queriam Bentham ou Mill, poderia ser justo, para a felicidade de quase todos, sacrificar alguns, sem seu acordo e ainda que fossem perfeitamente inocentes e indefesos. Ora, é o que a justiça proíbe, ou deve proibir" (obra citada).

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