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Dr. Octávio Escolástico http://saude-mental.blogs.sapo.pt
UMA HISTÓRIA VERÍDICA
“Desabafo de uma doente do Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda˝
Esta é uma história verdadeira, narrada pela própria pessoa em questão. O texto é reproduzido na íntegra, da forma como foi escrito originalmente. A autora prefere o anonimato. Apenas deseja difundir a dramática experiência UM ALERTA -, para que todos meditem e possam evitar idêntica provação. “O amanhã poderá já ser tarde demais!”
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A narração na primeira pessoa: «Nunca estive presa, mas as prisões devem ser mais ou menos assim. Nunca morri, mas conheço bem a porta de entrada para o inferno! Para receber o meu castigo social não foi preciso roubar, matar ou desrespeitar qualquer Lei. Bastou-me ter estado sem dormir cerca de uma semana, ao cabo da qual comecei a “delirar”; ter ido parar a um hospital dos que curam os males físicos e não me terem dado um medicamento suficientemente forte para que eu pudesse recuperar o sono; bastou-me ter estado internada no Hospital Miguel Bombarda! Uma ambulância. Os vidros parecem ter um autocolante opaco que fazem lembrar grades. Estou sentada na parte de trás. A meu lado uma velhota, deitada, e mais uma ou duas pessoas que me parecem bastante estranhas. Não sei que horas são, mas lá fora as luzes estão ligadas. Está escuro. Uma paragem. A velhota é retirada. A ambulância anda às voltas, ruas íngremes, de calçada. Pára. Arranca. Apercebo-me que estamos em Lisboa. Chegada ao Hospital Miguel Bombarda (soube-o depois), levam-me para uma sala. Mandam-me sentar. Exames e mais exames. Não percebo o que se passa, apenas sei que tenho muito sono. Muitos bips e vozes, depois sinto-me adormecer. Estou exausta. Sete da manhã. Estou num quarto com três camas, uma delas vazia. De novo uma idosa que olha para mim com um ar estranho e um sorriso permanente que parece desenhado na sua cara patética. Sinto-me confusa e assustada. Apressam-me. É a hora do banho. Nos corredores vejo pessoas que mais me parecem moribundos. Uma gritaria desenfreada. Os auxiliares ralham com os doentes. A minha cabeça ainda está um pouco zonza, mas mesmo assim procuro perceber onde estou. Nunca vi nada igual, não reconheço este local. Porque é que estão a ralhar com aquelas pessoas adultas como se elas fossem crianças mal comportadas? O que vejo lembrame que existe uma linha para denunciar maus tratos a menores. Não me ocorre mais nada e duvido que alguém se atreva a fazer alguma queixa. Eu nem tenho comigo qualquer saco com os meus objectos pessoais para puder procurar o telemóvel. Quem me dera perceber o que observo. Alguém, por favor!!! Alguém que eu consiga reconhecer, alguém que me explique!!! Por Favor!!! Por Favor… por Favor… por favor… por fav… Entro nos balneários a cambalear, devem ter-me dado algo muito forte. Os balneários estão todos forrados de azulejos brancos, tem um ar sujo, público demais para o meu gosto. O problema aqui é que não tenho que gostar ou deixar de gostar. Ninguém veio ter comigo conversar ou tentar explicar-me qualquer coisa e eu, posso não saber ainda onde estou, mas já consegui perceber que aqui perdi o meu estatuto de pessoa; de ser humano com dignidade.
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Nos balneários está toda a gente nua. Corpos estranhos, corpos disformes. Há uma mulher que só tem três dedos num dos pés, o seu dedo grande é do tamanho do meu punho fechado. Tento abstrair-me deste cenário insuportável aos sentidos e à razão e fecho os olhos por um momento. De repente alguém me ordena com um tom de voz alto e de poucos amigos: “Vá, despe-te!!!” Obrigam-me a despir em frente a todos enquanto aguardo a minha vez para tomar banho. Existem três ou quatro cabinas de duche. Há um homem entre as auxiliares. Nem sequer é médico, mas parece examinar-me com muita atenção. Sinto-me mal, mas não tenho forças para reagir. Reclamar!? Nem pensar, percebi logo que não tinha esse direito e da forma como eles tratam os pacientes, ainda são capazes de bater-me ou fazer-me mal. Sinto tanto medo… Meu Deus, o que é isto?? Onde é que eu vim parar!? O duche (ou melhor, a passagem do corpo por baixo do chuveiro) tem que ser rápido: sai uma, entra outra, sempre no meio de uma grande algazarra. À saída do duche dão-me um lençol (um lençol, sim, daqueles das camas!!!) para eu me limpar. Não sei onde foi parar a minha roupa. Entregam-me uma camisola velha, enormíssima e umas calças de fato de treino também grandes e velhas que me ficam muito curtas. Apesar de tudo, acho que nunca me senti tão confortável. Finalmente sinto-me limpa e vestida e um pouco mais desperta. As outras “vítimas” caminham lentamente para uma pequena sala com luz artificial. Tem janelas grandes, mas estão fechadas. Há várias cadeiras à volta e do lado esquerdo da porta, uma televisão ligada num canal infantil. Estão a passar desenhos animados. Sento-me, à espera não sei de quê. As outras olham-me com um olhar que nem chega a ser de curiosidade, há uma que quase se senta ao meu colo. Afasto-me. Só sei que quero que o tempo passe e isto, seja lá o que for, acabe depressa. De repente, nova algazarra: chegam duas enfermeiras e medem-nos a tensão arterial. A seguir andamos mais uns passos e estamos no refeitório. O refeitório é uma sala grande e agradável com bastante luz. Aqui juntam-se mais mulheres, algumas parecem-me ter um ar mais “normal”. Dão-nos uma carcaça, manteiga, marmelada e um copo com leite. Beberico o leite e dou uma ou duas dentadas na carcaça. Não tenho fome. A hora da refeição é, até agora, “o momento”. O ritual de estar toda a gente junta e a comer à volta de mesas provocam-me uma leve tranquilidade. Mas dura pouco. Dão-me uma mão cheia de comprimidos, pelo menos uns cinco, que eu tenho que deglutir rapidamente, pois o tempo do pequeno almoço acabou.
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O que virá a seguir? Como ovelhas, somos enxotadas para o hall de entrada. À esquerda e à direita estão bancos corridos em madeira, portas, ou melhor, portões grandes e robustos abertos de par em par que dão para um espaço amplo em calçada. Todos se sentam e parecem ficar à vontade. Sento-me também a absorver o que se passa à minha volta. Uma mulher parece muito inquieta: “tens um cigarrinho?” - Dirige-se a mim, dentes podres, cabelo oxigenado, magríssima, feia. - ”Não fumo.” - respondo. É a primeira vez que estou a ouvir-me desde que aqui cheguei. A mulher insiste, zanga-se, parece agressiva. De novo aquela sensação de medo apodera-se de mim. Deixo-me ficar, imóvel e com os olhos fechados, à espera que ela se canse de me aborrecer. Assim acontece. Pouco depois, ela consegue que o homem forte, de sobretudo, lhe dê a ponta do seu cigarro. É Novembro. Está muito frio. Sentada nos degraus das escadas, uma outra mulher. Esta aparenta cerca de quarenta e cinco anos. Usa óculos e está a fumar. Não me parece perigosa. Com cautela, aproximo-me e sento-me a seu lado. - Olá! - Olá. - Chamo-me (…) - Eu sou a Paula. - Está cá há muito tempo? - Três semanas. - Porque é que veio aqui parar? - Depressão, parece-me. Já é a segunda vez que aqui estou. -… - Sou professora de matemática, mas há dois anos que estou de baixa. -… - Queres um cigarro? - Obrigada, não fumo. Os cigarros aqui são o único interesse das pessoas. Não há actividades nem qualquer espécie de ocupação. Há uma carrinha que pára em frente ao portão. Trazem daqueles móveis em inox, com rodas. As prateleiras repletas de embalagens com comida. Parece que chegou o almoço. Quase todos se levantam e não disfarçam a sua satisfação. O homem do refeitório vai abrindo alas. Uma das auxiliares vem à porta: “Calma, que ainda não são horas!” - berra, abanando a cabeça com desdém.
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Cerca de uns quinze minutos depois, pode-se começar a entrar. Lentamente, sigo os outros até ao refeitório. Sou a cauda da multidão. Fico parada à porta, à espera que me indiquem o meu lugar a uma das mesas. “Então? Vá, toca a andar!” - é a voz da mesma auxiliar de há pouco. E fala para uma colega sua: “Olha-me esta!!! Deve pensar que é alguma princesa!!” - As duas riemse. Riem-se de mim. E riem-se de uma forma que se o som daqueles risos fossem balas me teriam trespassado a alma. E trespassaram. Aprendi naquele instante o que é uma pessoa sentir-se subtraída e humilhada. Diminuída. Pequenina. Tão pequenina que não tem lugar nem à mesa, nem na sociedade. A comida não se pode dizer que tenha mau aspecto, mas não consigo sentir o mínimo apetite. De novo, mais uma mão cheia de comprimidos. Convém andar drogada porque senão… A seguir ao almoço saímos do refeitório. Anda-se por ali. Ninguém nos diz o que fazer, para onde ir. Os enfermeiros e os auxiliares fazem questão de marcar bem as suas posições de seres superiores. Este local pode ser qualquer coisa para qualquer um que aqui venha parar. Pode ser o céu ou uma montanha russa, mas estas pessoas que aqui trabalham não têm formação de anjos nem nunca foram à feira popular. É por esse motivo que ninguém se atreve a perguntar nada porque se sentem vulneráveis e fracos. Muitas das pessoas que aqui estão internadas estarão certamente muito mais confusas que eu, mais agonizadas do que eu, mais inconscientes do que eu ou mesmo até mais drogadas do que eu, mas de uma coisa tenho absoluta certeza: toda a gente sabe que aqui não tem direitos. Quanto a mim, tudo o que desejava neste momento era que alguém, no seu estado natural, se sentasse à minha frente e me perguntasse como me sinto; alguém que me explicasse porque estou aqui e quanto tempo terei que cá permanecer. A sensação que tenho é que pior do que isto só mesmo a morte. Pelo que, este local será o purgatório, o sítio onde se espera antes do fim. Sinto a cabeça atordoada e um grande peso sobre as pálpebras. A porta do quarto onde fiquei está aberta. Tudo o que preciso neste momento é de descansar. Lá dentro, a tal velhota que ri. Anda pelo quarto de um lado para o outro. Ao ver-me, aproxima-se, segura-me no braço e, por momentos, parece que o seu sorriso se desvanece. Tem um olhar distante mas intenso e aflito, quase a gritar-me por socorro. Sinto um misto de pena e impotência. Se as circunstâncias fossem outras e não me sentisse, também eu, tão perdida, haveria de pedir-lhe que me contasse uma história.
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Deito-me. Neste momento já nem me lembro que estou assustada porque o sono é superior a tudo. De repente, entra uma auxiliar e põe-nos a andar dali para fora. Abrem uma pequena sala de estar junto ao hall. Está quase na hora das visitas. É uma sala pequena com cadeiras à volta, encostadas à parede. Sento-me. Preciso dormir. Nessa mesma noite sou encaminhada para outro local dentro do próprio Hospital. Uma auxiliar ordena-me que a siga, sem mais explicações. Apresso o passo o mais possível para conseguir acompanhá-la. Percorremos corredores infindáveis, separados por grandes portas antigas em madeira que ela abre e fecha à nossa passagem. Finalmente, a última porta. Dá acesso a um corredor mais moderno. De um e doutro lado, quartos pequenos. Aqui há luz e os rostos são mais diversificados: muita gente nova, gente bonita, vestida da forma que me é familiar. Indicamme o meu quarto. Uma das minhas novas companheiras faz-me uma visita guiada pelo local. Há uma espécie de sala de estar com televisão, um sofá e uma mesa redonda com cadeiras à volta. Um senhor de meia idade, está sentado no sofá pequeno, de chinelos de quarto e embrulhado numa manta, enquanto duas outras pessoas jogam (ou fingem jogar) dominó. O refeitório é amplo mas tem menos luz que o outro. A hora da refeição continua, também aqui, a ser o momento mais aguardado do dia. Um corredor de cada lado do refeitório separa os quartos das mulheres dos homens. A casa de banho consegue ser ainda mais imunda que a anterior e o cheiro é insuportável. Só que isso agora é um mal menor. O ritual do cigarro continua. Toda a gente pode fumar, desde que arranje tabaco. Há uma sala também própria para o efeito. É também um hall de entrada com a diferença que aqui a porta está fechada e tem grades nos postigos. Não há ocupações para ninguém. Os que estão aparentemente mais despertos reúnem-se para fumar. Alguns podem sair para ir ao café que existe dentro do Hospital, como parece ser o meu caso. Quando abrem a porta, todos se precipitam para a saída, mas alguns são forçados a permanecer lá dentro. Saio sozinha. Aguardo que os outros se afastem e caminho devagar sob a luz do dia. Uma vez cá fora, olho o Sol e revivo o cheiro da liberdade. Será que algum dia vou puder sentir novamente que este ar também me pertence? Não sei. Só sei que agora, neste preciso momento, quiçá pela primeira vez em toda a minha existência, me sinto muito grata por estar viva e receber este ar. Talvez, talvez amanhã ou numa próxima oportunidade eu possa ousar experimentar uma nesga de esperança, mas por agora estou aqui e isso é tudo o que me basta. Neste mundo onde tudo é perigoso, sonhar é o perigo maior de todos. O café é um lugar estranho para gente estranha. Os clientes têm todos aspecto de drogados sem recuperação possível. Mal entro, aproximam-se de mim e pedem-me um cigarro. Saio. Não
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me sinto nada segura aqui. Tenho consciência que aquela gente não está bem e eu não sei como lidar com isto. E pior, muito pior que essa consciência de tudo o que me cerca é conseguir moldar-me a eles, conseguir aceitar-me como um deles… E no entanto, eu sou um deles. Quem está por cima é assim que me vê. E quem está por cima tem a grande vantagem de estar lúcido. Se eu não estivesse sob o efeito de drogas, certamente não suportaria esta constatação.»
Observação:
Relembro que o internamento desta mulher, no Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, se deveu à privação do sono. Mas, essa perturbação não é de natureza física, logo, a medicação nunca irá resolvê-la, porque não é propriamente uma enxaqueca em que a dor se resolve com um simples analgésico. Não obstante, ela foi internada para ser drogada à força e, consequentemente, ficar despersonalizada como os demais... A dor psíquica é deveras complexa, desde logo, porque os psiquiatras não a sabem tratar, nem entendem as suas causas, porque desconhecem em absoluto os mecanismos da mente humana. A dor psíquica resulta sempre de conflitos emocionais traumáticos alojados no inconsciente, e a única forma de a curar é pela via da Hipnose Clínica. É óbvio que falo da verdadeira hipnose, operada com todo o rigor científico.
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