Dentro de Ti… Dentro de mim, choro eu e tu Jorge de Cantenac, XVIIº Marquêz du Sado Copyright © Jorge de Cantenac, XVIIº Marquêz du Sado, Janeiro 1999 Copyright © Üdançã Editora, 1999-2004
Este texto é propriedade intelectual do autor, Jorge de Cantenac [heterónimo de Jorge Phyttas-Raposo]. Em qualquer menção deverá constar o título da obra, nome do autor e endereço electrónico de onde se transferiu o texto. Obrigado.
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Para Ti... in anima memoriam…
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«Terás sido ave? Ou ninho? Ou pássaro ferido?» Alguém
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PRÓLOGO «Qual a dor que te devora a alma? Como se dilui o fel no teu sangue e na tu'alma?»
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CAPÍTULO UM Antes, sempre, pedias-me um abraço, mas eras sempre tu quem o dava. Antes, imediatamente antes, executavas o ritual do Toque no Corpo. Antes, sussurrando, pedias-me para que te desnudasse. Depois, algum tempo depois, as tuas mãos demolhavam-se na água morna e, ágeis, enfiavam-se na farinha, mexendo-a com o sal e o fermento. Começavas então a amassar. O teu corpo — demasiado nu — ligeiramente flectido, dobrado sobre o alguidar de barro, sobre o poial. [Lembraste do fresco do poial, onde os nossos corpos se entrelaçaram?]
Dobrada de lado, deitada, as pernas flectidas, os braços entrelaçados, segurando os joelhos — a posição fetal: a que adquirias dentro da celha de porcelana, a do leite, e a do sangue. Dizias que nada te magoaria, que nessa posição nada te perturbaria, que ninguém te magoaria. Que toda a dor seria empurrada bem para o fundo, bem para dentro do poço que pouco a pouco reconheceste existir dentro de ti. Antes, pensavas que a dor se dissipava, que acabaria eventualmente por diminuir, fenecer. Nessa altura sabias que a dor magoava. Muito — dizias. Sabes agora que até a dor se esquece. Que, sobretudo, a dor se esquece. Como uma palavra bonita, sussurrada ao ouvido quando um sexo se afunda noutro, e se chora de felicidade, e se ri porque te divertes procurando-te, porque embriagada seguias o rasto do teu Cântico de Mulher. Como uma palavra bonita, repetida. Ou uma promessa. Ou o gosto do meu corpo na tua boca tão facilmente substituível, tão facilmente esquecido. Tão facilmente empurrada para longe, para o fundo — mas não agora para dentro do teu poço. Porque agora já não o possuis.
E porque há a ausência, porque no fim fica sempre a ausência, o frio, a saudade, a memória, dentro de ti choro; dentro de mim choro eu e tu.
Dizias que a luz te fertilizava, que o sol te possuía, como eu, dizias. Que te inundava de uma estranha forma de sémen dourado que te impelia para a vida, para nela deslizares, o mais incólume que te permitiam, dizias.
E uma vontade enorme de chorar... que nem é por dor nem por mágoa. Nem pela memória do teu sorriso, nem pela saudade do teu corpo. É, porventura, apenas e só uma enorme vontade de chorar...
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Nesse pôr-do-sol suplicaste, assustando-me com a intensidade encerrada nessas palavras úberes, para que te possuísse, sobre o altar do Templo de Poseidon, em Sounion. Disseste, lembro-me, faz brilhar o azul dos meus olhos.
Dizias, cantando, que eras metade grega, que sempre o pressentiste, mesmo antes de nadares e mergulhares nas águas fria do Egeu. Mas eu há muito que o sabia: no azul dos teus olhos, no azul da tua agilidade, no azul da tua inconstância, no azul da tua alma. Nisso sempre tiveste dificuldade em acreditar — pois se nem na força dos teus olhos acreditavas.
Dei-te uma pequena pedra, lembras-te? Tinha o sabor do sal grego, da côr do meu desejo. [Lembras-te?]
Só percebi na segunda vez que me pediste para te despir antes de começares a amassar. Respondeste-me que o pão merecia a tua nudez, que o fogo do forno merecia querer queimar-te a pele, que as cinzas mereciam perfumar-te o corpo. Que o primeiro pão deveria ser sepultado, como te ensinaram, e que o segundo me seria dado, como me ensinaste.
Lembras-te da entrada do meu sexo dentro do teu? Lembras-te da minha dor? Lembras-te porque choravas?
O papel que sepultaste debaixo da terceira coluna do Templo dizia... já não me lembro muito bem o que dizia, talvez porque agora já não to posso dizer. Talvez seja por isso. Ou talvez não. Talvez porque não me lembro realmente o que dizia.
A primeira vez que te pedi para te marcar a fogo o teu Nome de Alma no corpo, olhaste-me intrigada e logo surpreendida pela rapidez do teu sim. Depois disseste que não, que naquele momento não te sentias preparada. Depois disseste que sim, que se eu te pedia era porque sabia e sentia que estavas preparada. Depois disseste de novo que não, que não sabias muito bem o que pensar de tal pedido. Depois disseste que sim, sorridente, entusiasmada. Na segunda vez, sorriste, tiraste a roupa (o vestido negro com cheiro a alfazema e jasmim) e deitaste-te sobre a Terra de Sangue, fechaste os olhos e choraste. Profundamente, como se de dor se tratasse, como... talvez mesmo como se dor se tratasse.
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Agora há a dor, a recordação do teu Cântico de Mulher.
Uma poalha de sensações que me tolda o equilíbrio — a roupa de linho cru, que te ensinei a perfumar. O linho fiado pela Senhora da Voz que Chora, que íamos buscar duas vezes por ano à aldeia das Pedras Negras. Passaste a usar só roupas de linho quando te revelei o segredo que as tornava mágicas e vulgares. Na tua casa de Évora, nenhuma roupa ou tecido é senão de linho cru, imaculado, perfumado apenas pelo teu corpo; e as velas, ensanguentadas, com a fragrância dos Olhos da Madrugada e pelos Pés de Lobo; e a água, a da Fonte da Alma, da nascente do ribeiro Tar; e as Pedras Negras de Nô que espalhaste pela casa, colocando debaixo de cada uma delas um pequeno texto com um segredo, como te ensinei. E a confusão da tua vida, que agora te enrouquece o Cântico...
A primeira vez que te sepultei, só choraste depois; nunca enquanto os nossos corpos naufragaram um no outro dentro da Caixa de Pedra no buraco que ambos escavámos e que media a tua e a minha altura juntas. Nem quando te feri com a Adaga Branca, desferindo-te um pequeno golpe sobre o ventre. Nem quando coloquei a estela sobre a Caixa. Nem quando começaste a sentir a Terra de Sangue entranhandose e diminuindo-te o ar, cada vez mais denso. Nem — asseguraste-me depois — durante todo o tempo em que permaneceste no útero telúrico, na Madre de Todos Nós. Chamaste confiança ao que vedou o teu medo; eu chamei-lhe Dor Quase Branca. A segunda vez que te sepultei, foste tu quem me pediu e choraste sempre. Sempre — a tua respiração O menear do teu rosto aquando da implosão do teu desejo, estilhaçando-te o prazer. Tão bonito. Destruindo-te as defesas. Tão bonito. Rebentando-te a agilidade de guerreira. Tão bonito.
Costumavas pedir-me, frequentemente, para que te desenhasse o teu Nome de Alma no corpo, sempre com um novo pigmento, uma nova côr, acompanhado sempre de um novo segredo. Agora, frequentemente, o teu Nome de Alma golpeia-me cada vez mais fundo, sempre sobre a mesma ferida, com cada vez mais intensidade, desacompanhado de novos segredos. Para ti, tudo já é, neste momento, passado, memória. Algo que já não se possui. Algo sobre o qual já não temos responsabilidade. Algo que inevitavelmente será cinzas para que tu, a partir delas, possas renascer. (E eu sempre um pouco mais a remorrer...)
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Ó manto que me aconchegas! — O teu corpo suado, uma miríade de pequeníssimas gotas de suor, o teu corpo desafiadoramente feminino, as gotas de suor cobrindo-te a quase totalidade do rosto, frias. O esforço após teres feito amor. O desalinho dos teus cabelos, os ribeiros de suor sobre as tuas sobrancelhas, o desalinho da tua postura, do modo como respiras, como a boca fica entreaberta, o escorrer do suor sobre o rosto até cair, em precipício, do queixo para o corpo, para cima dos seios, para o conforto dos seios. Lembra-te: do rio de suor, da água cansada, escorrendo-te, irrigando-te o rosto, resvalando, irrigando-te a alma, a sensação de exaustão dos pós naufrágio, de mais uma remorte. Procurando-te humedecer a serenidade, a que só nesses momentos possuís. A que andas desde há muito no rasto, seguindo-a, certa de que estás sempre atrás, como se o teu objectivo não fosse mais do que estar atrás, sempre atrás.
O teu corpo ficava salpicado de farinha quando acabavas de amassar, compenetrada, séria, longe da velha cozinha. Lembro-me, enternecido, que quando acabavas abraçavas a massa contra o peito, inclinando a cabeça (os teus cabelos apanhados caindo numa espécie de leque), e num trejeito de quase prazer, de comoção, recolocava-a dentro do alguidar de barro negro. A enorme mesa de pedra (que era frequentemente uma jangada) polvilhada de farinha e restos de massa; o toque do corpo sobre o mármore branco; a estranha dança das sombras nas paredes da cozinha, oriunda do candelabro das velas vermelhas (da seiva dos Olhos da Madrugada e dos Pés de Lobo, lembras-te?) — tão forte a lembrança dessa fragrância, omnipresente em toda a casa. E a lembrança do teu corpo untado de farinha, deitado, de braços e pernas abertas, nu, sobre a mesa de pedra, nessa jangada onde a tua avó materna se suicidara com o chá do Sonho Eterno, cuja receita e ingredientes mandara gravar em todas as paredes da cozinha.
Choro — lembro-me de me ensinares a preparar o licor das Bagas da Manhã; lembro-me de me untares com esse líquido quente, sensual; lembro-me de te ver em pé sobre a mesa de pedra da cozinha, tentadoramente nua, a garrafa de estranhas formas segura pelas tuas mãos, inclinada para que pudesse deixar escorrer num espesso fio o licor para cima do meu corpo, e a sombra do teu corpo tremendo nas quatro paredes, as quatro velas em cada canto da mesa, as quatro palavras que me escrevias no corpo, as quatro dores que me revelaste... Choro porque me transtorna terrivelmente não sentir as tuas mãos untadas de licor passeando-se pelo meu corpo, navegando... navegando... — dizias emocionada. Quero ter-te aqui nas minhas mãos, dizias, e mostravas-mas. Quero ter-te aqui nas minhas mãos, dizias, e choravas. É por isso que agora lavo tantas vezes as mãos, penso. Deve ser por isso que agora passo tanto tempo dentro de água, chorando. Deve ser por isso. Ou talvez não.
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Quando te disse o que era o Nome-Raga choraste. Era parecido com a origem do teu Cântico, que era Bretão, ou Gaélico, ou Árabe, ou Indiano.
Balançavas o corpo, em movimentos lentos, quando cantavas — sempre me disseste que não era cantar; era algo mais sanguíneo, mais cárneo. Executavas ritualmente o teu Cântico — levei muito tempo a aperceber-me desse facto. Achei-o, a princípio, fácil. Só algum tempo depois me surpreendi com a complexidade desses movimentos arrastados, dessa sucessão arrastada de vogais fundas.
Às vezes penso que é da luz que te alimentas. Outras vezes parece-me serem os teus medos as tuas maiores gulodices.
Iong quer dizer eterno, eternidade, aquilo que não finda, ou que finda em todos os momentos e que renasce a todos os instantes; que se reproduz quando morre. A isso chama-se eternidade, mas também se podia chamar de outra forma. Honra, talvez. Ou serenidade.
«Viver-se em constante morte e renascimento ou nascimento e remorte, sentirmo-nos a alimentarmo-nos de nós próprios, a beber do nosso próprio sangue, a comer da nossa própria carne. Ao adicionar-mos ao sangue o leite, e também o fel. A adicionar-mos ao corpo a carne, e também os pedaços putrefactos que sabem mal na boca, que deixam um sabor a azedo, a carne putrefacta. Nunca saberemos lidar com o facto de sermos abutres e corvos da nossa própria carne e das nossas próprias águas. Compreensivelmente.» Lembras-te da noite em que te disse isto? Eu lembro-me.
Não é assim! repreendias-me. Tens de fechar os punhos, chorar enquanto esmurras a massa... ou abrir as mãos e sorrir enquanto acaricias a massa. Obrigado. Tens de te esforçar, dizias. Tens de o saber fazer bem, senão não valerá a pena. A massa não levedará. Tens de o fazer correctamente, e ensinavas-me compenetrada, incapaz de aceitar qualquer vacilo. Não podias, dizias, os outros não iriam compreender. [Hoje já nada me ensinas. Sou eu que aprendo; que te aprendo.]
O meu corpo é o teu corpo, dizias, enternecida. A minha alma completa-se com a tua, mentias, encantada.
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Custa-me aceitar a esterilização dos nossos desejos.
«Crescem cordas de violino», nas vozes dos homens... Esta frase faz-me terrivelmente sentido.
Fazias pequenos taleigos onde ias pondo as coisas especiais. Bordava-los em cores e formatos diferentes de acordo com o que querias guardar. Tinhas dentro de vários, adornados com as fases da lua, pequenas pedras de Nô: o Olho Branco da Noite, as duas Pedras dos Sonhos que achámos num campo perto de Monsanto, e as tuas 6 Pedrinhas dos Nomes. Lembro-me de te ver a bordar o taleigo onde colocarias mais tarde uma porção da Terra de Sangue. Estavas séria e, mais uma vez, não admitias qualquer tipo de falhas. Nunca quiseste admitir falhas. Quando as havia, mascarava-las de fraquezas, que eram tuas, que faziam parte de ti, que assim estavam desculpadas, relevadas, perante os outros, dizias, não perante mim, onde a tua nudez era fulgente de sombras, dizias, comovida, achando-te tão plena de convicção. Como as tuas hesitações: que eram sempre decisões certas, nunca momentos de hesitação. A tua desconcertante sequência: sim, não, sim, não, sim... como o «the wind that shakes the barley». Quanta ligeireza adornava a rapidez com que as tuas convicções eram ditas. Quanta ligeireza... Nunca percebi plenamente porque davas tanta importância às minhas palavras se acabavas por usar sempre as tuas... ou quase sempre, desculpa. Quase sempre... Achavas mágica a combinação das palavras que eu usava para nos chamar quando de noite visitávamos os Bosques das Serras que nos encantavam. Éramos as Sombras no Mar do Ar de Leite que inundava os nossos dias e os nossos sonhos e os nossos desejos... e tantas outras coisas mais.
«Habito longe, nas terras de Bruma»...
Sepultei ontem o Íque que usei para desenhar o círculo onde morremos pela última vez. Ontem, na nona lua. Os grânulos, feitos de terra e sangue, sujaram-me o rosto, as mãos e o sexo. Hoje ainda restam pedaços de terra e sangue debaixo das minhas unhas, sinto pequenos grãos dentro dos olhos, irritando-os, marcando-lhes rios de sangue, e o frio da terra e do sangue no sexo ainda latejante.
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Dizia-te: anda naufragar comigo, a morte será a nossa recompensa. Anda. E tu vinhas, encantada.
Lembras-te de Monsanto? — Lembras-te da voracidade dos nossos corpos sobre a pedra que nos serviu tantas vezes de cama? Lembras-te do vento cantando para nós? Lembras-te da estória que te cantei sobre a Guerreira que dormia nas noites de Lua Cheia dentro dos sarcófagos de pedra? Lembras-te do que a velha senhora que te vendeu o casaco de lã te disse quando te segurou as mãos? Lembras-te de termos sepultado dois desejos na terra do Castelo? Lembras-te da criança que te pediu que a levasses até ao miradouro? Lembras-te da pastorinha que cantava nas escarpas no sopé do Castelo? Lembras-te da minha dor na noite em que não te disse uma única palavra? Lembras-te da aura que envolvia a Lua nessa noite? Lembras-te do cheiro das flores em redor do sarcófago? Lembras-te do teu cantar desordenado? Lembraste do que me prometeste?
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CAPÍTULO DOIS Enches-me de silêncio. Enches-me do medo que paralisa a alma quando esta se sereniza.
Dentro de ti... como uma raiz morta, como uma memória... Dentro de mim há uma espécie de fel que por todo o lado se entranha, que tresloucado me percorre, ainda que diluído — e talvez por isso — nunca afastado. Nunca sangrei... nunca sangrei... Digo-te: anda morrer comigo, a minha vida será a tua recompensa.
(...) Yanassë, Jorge de Cantenac, XVIIº Marquêz du Sado Setúbal / Évora, Setembro de 1998 / Janeiro de 1999
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