"deixem deus ser deus": a predestina��o de acordo com martinho lutero por timothy george
o problema da predestina��o � levantado pela especificidade da tradi��o judeucrist�: o fato de que deus revelou-se exclusivamente num povo, israel, e supremamente num homem, jesus de nazar�. jesus, assim como paulo, falou dos �eleitos� e dos �poucos escolhidos�. a tens�o entre a livre elei��o de deus e a resposta humana genu�na est� presente j� nos documentos do novo testamento. entretanto, agostinho, em sua luta cl�ssica com pel�gio, foi quem primeiramente desenvolveu uma doutrina madura da predestina��o. para pel�gio, a salva��o era uma recompensa, o resultado das boas obras livremente realizadas pelos seres humanos. a gra�a n�o era algo diferente ou al�m da natureza, nem acima dela; a gra�a estava presente dentro da pr�pria natureza. em outras palavras, a gra�a era simplesmente a capacidade natural, que todos possuem, de fazer a coisa certa, de obedecer aos mandamentos e assim obter a salva��o. agostinho, por outro lado, via um grande abismo entre a natureza, em seu estado ca�do, e a gra�a. profundamente c�nscio da impot�ncia total de sua pr�pria vontade em escoher corretamente. agostinho entendia a salva��o como a livre e surpreendente dadivda de deus: �atribuo � tua gra�a e miseric�rdia, porque dissolveste meus pecados como se fossem gelo�. se, entretanto, a fonte de nossa convers�o a deus reside n�o em n�s mesmos, mas somente no bom prazer de deus, por que alguns reagem positivamente ao evangelho, enquanto outros o desprezam? essa pergunta levou agostinho � discuss�o paulina da elei��o, exposta em romanos 9-11. aqui ele encontra a base para sua pr�pria doutrina �cruel� da predestina��o: da massa da humanidade deca�da, deus escolhe alguns para a vida eterna e omite outros que est�o, assim, destinados � destrui��o, e tal decis�o � feita independentemente de obras ou m�ritos humanos. durante os mil anos transcorridos entre agostinho e lutero, a principal corrente da teologia medieval dedicou-se a dissolver o severo predestinacionismo daquele. � verdade que pel�gio fora condenado no conc�lio de �feso (431), e o semipelagianismo, a saber, a vis�o de que ao menos o inicio da f�, o primeiro voltar-se para deus, era resultado do livre-arb�trio, foi rejeitado pelo ii conc�lio de orange (529). contudo, a maioria dos te�logos, tentou modificar a doutrina de agostinho, enfraquecendo a base da predestina��o. alexandre de hales recorreu ao principio da eq�idade divina: �deus relaciona-se de igual para igual com todos�. outros afirmavam que a predestina��o era subordinada ao conhecimento pr�vio, ou seja, deus elege aqueles que sabe com anteced�ncia que receber�o m�ritos de seu pr�prio livre-arb�trio. nenhuma dessas teorias da salva��o era �puramente� pelagiana, porque todas requeriam a assist�ncia da gra�a divina. ainda assim, o fator crucial continuava sendo a decis�o humana de responder positivamente a deus, em lugar da livre e desacorrentada decis�o de deus de escolher quem desejasse. vimos como a doutrina da justifica��o sustentada por lutero rompeu decisivamente com o modelo agostiniano de distribui��o progressiva da gra�a. somos justificados n�o porque deus nos est� tornando gradualmente justos, mas porque fomos declarados justos com base no sacrif�cio expiat�rio de cristo. contudo, a partir do princ�pio anterior da sola gratia , lutero � e zu�nglio e calvino depois dele � permanece firme com agostinho contra os �pelagianos� posteriores que exaltam o livrearb�trio humano � custa da livre gra�a de deus. nesse aspecto, a linha principal
da reforma protestante pode ser vista como uma �aguda agostinianiza��o do cristianismo�. alguns historiadores consideram a doutrina da predestina��o de lutero uma aberra��o de seus temas principais ou, na melhor das hip�teses, �um pensamento meramente auxiliar�. mas lutero via o assunto de maneira diferente. respondendo ao ataque de erasmo a essa doutrina, lutero elogiou o humanista por n�o aborrec�-lo com quest�es insignificantes como o papado, o purgat�rio ou as indulg�ncias. �apenas voc�, ele disse, �atacou a quest�o verdadeira, isso �, a quest�o inicial [...] apenas voc� percebeu o eixo ao redor do qual tudo gira, e apontou para o alvo vital.� uma das queixas de lutero contra os �te�logos-porcos� era a tese deles de que a vontade humana, em sua pr�pria voli��o, poderia realmente amar a deus todas as coisas, ou que, ao fazer seu melhor, mesmo � parte da gra�a, algu�m poderia obter certa perman�ncia perante deus. a essa avalia��o otimista do potencial humano, lutero op�s um duro contraste entre natureza e gra�a. �a gra�a coloca a deus no lugar no lugar de tudo o mais que ela v�, e o prefere a si mesma, mas a natureza coloca a si mesma no lugar de tudo, e mesmo no lugar de deus, e busca apenas o que lhe � pr�prio e n�o o que � de deus�. como �natureza� lutero n�o queria dizer simplesmente o reino criado, mas sim o reino criado deca�do e particularmente, a vontade humana deca�da, que esta �curvada sobre si mesma� ( incurvatus in se ), �escravizada� e manchada com o mal em todas as suas a��es. na disputa de heidelberg, em 1518, lutero defendeu a tese: �depois da queda, o livre-arb�trio existe apenas nominalmente, e, enquanto, algu�m �faz o que est� em si�, est� cometendo um pecado mortal�. inclui-se essa formula��o na bula exsurge domine , pela qual o papa le�o x excomungou lutero, em 1520. ent�o, ser� que lutero era um determinista absoluto? erasmo e alguns estudiosos pensavam assim. lutero, de fato, aproximou-se perigosamente de linguagem necessitariana. todavia, ele nunca negou que o livre-arb�trio mant�m seu poder em assuntos que n�o se relacionam com a salva��o. assim, lutero disse a erasmo: �sem d�vida voc� est� certo em conferir ao homem algum tipo de livre-arb�trio, mas imputar-lhe um arb�trio que seja livre nas coisas de deus � demais�. lutero admitiu abertamente que mesmo uma vontade escravizada �n�o � um nada�, que, com respeito �quelas coisas �inferiores� a ela, a vontade mant�m seu poder total. � apenas com respeito �quilo que � �superior� a ela que a vontade � mantida presa em seus pecados e n�o pode escolher o bem de acordo com deus. aqui, encontramos um paralelo ao desprezo de lutero para com a raz�o. em sua esfera leg�tima, a raz�o � o mais elevado dom de deus, mas no momento em que excede para a teologia, torna-se a �prostituta do diabo�. o mesmo se d� com o livre-arb�trio. entendido como a capacidade vinda de deus para tomar decis�es ordin�rias, para cumprir as responsabilidades no mundo, o livre-arb�trio permanece intacto. o que ele n�o pode fazer � realizar a pr�pria salva��o. nesse sentido, o livre-arb�trio est� totalmente corrompido pelo pecado e cativo a satan�s. lutero descreveu a natureza dessa escravid�o sob o aspecto de uma luta entre deus e satan�s. assim, a vontade � como um animal entre dois cavaleiros. se deus o monta, ele quer ir e vai aonde deus quer. [...] se satan�s o monta, ele quer ir e vai aonde satan�s quer; ele n�o pode escolher correr para um deles ou seguir a um deles, mas os pr�prios cavaleiros brigam pela posse e controle dele. mesmo tendo alguns estudiosos encontrado tra�os de um dualismo manique�sta nessa met�fora, lutero estava meramente desenvolvendo uma imagem j� apresentada por jesus: �...todo o que comete pecado � escravo do pecado� e �v�s sois do diabo, que � vosso pai, e quereis satisfazer-lhe aos desejos...� (jo 8.34,44). h� outro ponto que lutero desenvolveu com respeito � vontade escravizada. embora nosso destino eterno, em certo sentido, seja determinado por deus, n�o somos com isso compelidos
a pecar. pecamos espont�nea e voluntariamente. continuamos querendo e desejando fazer o mal, a despeito do fato de que em nossas pr�prias forcas n�o podemos fazer nada para alterar essa condi��o. essa � trag�dia da exist�ncia humana se a gra�a: estamos t�o curvados sobre n�s mesmos que, pensando estar livres, entregamo-nos exatamente �quelas coisas que apenas aumentam nossa escravid�o. o prop�sito da gra�a � libertar-nos da ilus�o da liberdade, que � na verdade escravid�o, e guiar-nos para a �gloriosa liberdade dos filhos de deus�. s� quando a vontaade recebeu a graca, ou, para usar sua outra met�fora, s� quando satan�s � vencido por um cavaleiro mais forte, �� que o poder da decis�o torna-se realmente livre, em todos os aspectos concernentes � salva��o�. a verdadeira inten��o por tr�s do refor�o de lutero � vontade escravizada mostra-se �bvia agora. deus deseja que possamos ser verdadeiramente livres em nosso amor para com ele; contudo, isso n�o � poss�vel at� que sejamos libertos de nosso cativeiro a satan�s e ao ego. o eco de resposta � escravid�o da vontade � a liberdade do crist�o . visto que, fora da gra�a, o homem n�o possui nem uma raz�o s�, nem uma vontade boa, �a �nica preparacao infal�vel para a gra�a [...] � a elei��o eterna e a predestina��o de deus�. lutero n�o se esquivou de uma doutrina de predestina��o absoluta e dupla, ainda que admitisse que �isso � um vinho muito forte e comida substancial para os fortes�. ele at� restringiu o alcance da expia��o aos eleitos: �cristo n�o morreu por todos absolutamente�. contra a objecao de que tal vis�o transformava deus num ogro arbitr�rio, lutero respondeu � como paulo � �deus assim o quer, e porque ele o quer, isso n�o � perverso�. a �prudencia da carne� diz que �� cruel e miseravel deus buscar sua gl�ria em minha maldade. ou�a a voz da carne! �meu, minha�, diz ela! lance fora esse �meu� e diga, em lugar disso �gl�ria a ti, snhor�, e voc� ser� salvo�. a postura da raz�o � sempre de egocentrismo. deus � apenas t�o �injusto�, falando estritamente, ao justificar os �mpios � parte de seus m�ritos, quanto o � ao rejeitar outros � parte de seus dem�ritos. ainda assim, ningu�m reclama da primeira �injusti�a�, porque o interesse pessoal est� em jogo! em ambos os casos, deus � injusto pelos padr�es humanos, mas justo e verdadeiro pelos seus. lutero recusou-se a submeter deus ao tribunal da justi�a humana como se a �majestade, que � o criador de todas as coisas, tivesse de curvar-se a uma das esc�rias de sua cria��o�. �deixem deus ser bom�, clamava erasmo, o moralista. �deixem deus ser deus�, replicava lutero, o te�logo. embora lutero nunca tenha suavizado sua doutrina da predestina��o (como fizeram posteriormente os luteranos), ele de fato tentou estabelecer o mist�rio no contexto da eternidade. lutero nunca admitiu que os inescrut�veis julgamentos de deus eram realmente injustos, mas sim que somos incapazes de apreender o quanto s�o justos. h�, segundo ele, tr�s luzes � a luz da natureza, a luz da gra�a e a luz da gl�ria. pela luz da gra�a, tornamo-nos capazes de entender muitos problemas que pareciam insol�veis pela luz da natureza. mesmo assim, na luz da gl�ria, os retos julgamentos de deus � incompreens�veis para n�s agora, mesmo pela luz da gra�a � ser�o abertamente manifestos. lutero, ent�o, apelava para a reivindica��o escatol�gica da decis�o de deus na elei��o. a resposta ao enigma da predestina��o encontra-se no car�ter oculto de deus, por tr�s e alem de sua revela��o. no final, quando tivermos prosseguido atrav�s das �luzes� da natureza e da gra�a para a luz da gl�ria, o �deus escondido� se mostrar� um s� como o deus que est� revelado em jesus cristo e proclamado no evangelho. nesse �nterim, lutero admitiu, podemos apenas acreditar nisso. a predestina��o, como a justifica��o, � tamb�m sola fide. ningu�m conhecia melhor do que lutero a ang�stia que o duvidar da pr�pria elei��o podia provocar numa alma vacilante. como um pastor poderia responder a algu�m que estivesse atormentado por esse problema? lutero deu duas respostas a essa quest�o, uma para o crist�o forte, a outra para o mais fraco ou para o novo convertido. a mais alta posi��o entre os eleitos pertence �queles que �se conformam com o inferno se deus o deseja�. a resigna��o com o inferno era tema popular na tradi��o
m�stica e significava passividade absoluta, um total deixar-se perder ( gelassenheit ) ante o abismo do ser de deus. lutero dizia que deus dispensava esse dom aos eleitos de maneira breve e escassa, quase sempre na hora da morte. mais, comumente lutero era chamado a aconselhar crist�os comuns que estavam atormentados pela quest�o da elei��o. o conselho b�sico de lutero era: �agrade�a a deus por seus tormentos!�. � caracter�stico dos eleitos, n�o dos r�probos, tremer em face dos des�gnios ocultos de deus. al�m disso, ele instava por uma completa refuta��o do diabo e uma contempla��o de cristo. foi t�pica sua resposta a b�rbara lisskirchen, que estava aflita sentindo n�o se encontrar entre os eleitos: �quando tais pensamentos a assaltam, voc� deve aprender a perguntar a si mesma: �por favor, em que mandamento est� escrito que eu deva pensar sobre esse assunto e lidar com ele?�. quando parecer que n�o h� tal mandamento, aprenda a dizer: �saia daqui, maldito diabo! voc� est� tentando fazer com que eu me preocupe comigo mesma. meu deus declara em todos os lugares que eu devo deix�-lo tomar conta de mim [...]�. a mais sublime de todas as ordens de deus � esta, que mantenhamos diante de nossos olhos a imagem de seu filho querido, nosso senhor jesus cristo. todos os dias ele deve ser nosso excelente espelho, no qual contemplamos o quanto deus nos ama e qu�o bem, em sua infinita bondade, ele cuidou de n�s ao dar seu filho amado por n�s. desse modo, eu digo, e de nenhum outro, um homem aprende a lidar adequadamente com a quest�o da predestina��o. ser� evidente que voc� cr� em cristo. se voc� cr�, ent�o ser� chamada. e, se � chamada, ent�o muito certamente est� predestinada. n�o deix que esse espelho e trono de gra�a seja quebrado diante de seus olhos [...] contemple o cristo dado por n�s. ent�o, se deus desejar, voc� se sentir� melhor�. a doutrina da predestina��o defendida por lutero n�o era motivada por interesses especulativos ou metaf�sicos. era uma janela para a vontade graciosa de deus, que se ligou livremente � humanidade em jesus cristo. a predestina��o, como a natureza do pr�prio deus, s� pode ser atingida mediante a cruz, mediante as �feridas de jesus�, �s quais staupitz havia dirigido o jovem lutero em suas primeiras batalhas.
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