Regressámos de férias com vontades renovadas. Vimos coisas novas nos mesmos lugares e partimos de outros princípios. Procurámos além das verdades diárias e contiuamos a sonhar no limite. CAPA Bonde do Rolê Fotografia de Pavla Kopecna DIRECTOR DE ARTE E CONTEÚDOS Ricardo Galésio COLABORADORES Constança Carvalho Homem Eolo Perfido Fernando Montiel Klint Hugo Mortágua Lambros FisFis Pavla Kopecna Pedro Palrão Pedro Rio Sara Toscano
Tenho tudo guardado. Cuidadosamente claro…não quero que nada se estrague… A arca no canto do quarto está sempre bem arrumada e encerrada…está bem… nem sempre. Às vezes gosto de me sentar na cama e ver as fotografias que lá guardo no meio de tudo…ainda que não tenham muito que ver com tudo o resto que lá está. Especialmente estes dias assim…abro a janela e deixo que por entre as frestas dos estores tapando algum do calor, passe a brisa quente que o Sol sopra glorioso. São fotos antigas…não o parecem e se eu dissesse o tempo que realmente têm rir-se-iam possivelmente…mas para mim são… As pessoas enchem o peito de orgulho quando dizem que a idade é um estado de espírito, e eu não o nego… aliás, em tal acredito piamente, e por tanto acreditar interpreto o tempo que passa por mim consoante a minha disposição, consoante o peso das passadas com as quais vou passando pela vida… Por isso digo que são antigas, porque uma saudade intensa e imensa me dilacera o coração, como que algo perdido há tempo esquecido…Rodopio numa constante tentativa de esquecer o tempo que passa, tentar compensá-lo de alguma forma…roubar-lhe a importância que provoca as dores de alma, a gravidade da vida e do ritmo com a qual a percorremos. Claro que à partida não é algo que eu queira que regresse, mas relembro tudo com saudade…mesmo que por pouco tempo que tenha passado, para mim nunca é tanto assim, e eu quase me reconheço diferente. Mas gosto muito de olhar para os retratos, é como digo, reconheço-me diferente e tento não esquecer aquilo que me parece não ser mais parte de mim. Relembrome frequentemente, com os retratos na mão, de quando por vezes não me reconhecem as pessoas de mim mais próximas…consigo rever na memória as gargalhadas sentidas, os elogios forçados…o amargo de boca que engulo e junto ao peso no peito que me acompanha…Ninguém sabe o que me assola cá dentro, ninguém reconhece o tumulto dos meus desejos que vencem os medos, para estes deixarem ressurgir à superfície quando a sua vitória deixa de fazer sentido… É quando o arrependimento me assola que me sento a ver as fotos…É irónico, de facto, porque vê-las decerto me confirmará que os meus medos se concretizaram…
e durante algum tempo evitava abrir a arca por pensar exactamente tudo isso. Mas, um dia, perdi o medo e abri. Ao ver tudo o que já havia guardado e as fotos, cuspi duas gotas grossas e salgadas do canto dos olhos, mas senti-me aliviar, senti o peso no peito aligeirar-se. Emoldurado pelas duas gotas escorrendo rosto abaixo surgiu-me um sorriso fino nos lábios que me aqueceu por dentro. Agora gosto de me sentar na cama e ver as fotografias que lá guardo no meio de tudo… ainda que não tenham muito a ver com tudo o resto que lá está. Porque nunca se sabe…guardo a esperança de um dia poder desfazer tudo aquilo que fiz e que agora me parece errado. Nunca se sabe… Quando abro a arca para guardar as fotografias estou de tal forma a pairar numa realidade antiga que chego a enojar-me perante a visão que encontro. Mas fecho os olhos, levanto-me e contemplo-me no espelho para me ver no tempo que corre…só assim…só assim consigo ver beleza no que encerro para guardar. Só com o motivo pelo qual fiz o que fiz bem presente no pensamento consigo olhar o que resta e sorrir, e, mesmo que por pequenos instantes, sinto o orgulho a pulsar nos olhos. Mas, claro, alturas há nas quais me arrependo, nas quais desejava nada ter feito…Com uma tempestade de confusão a invadir-me contemplo-me, e cessa o arrependimento por se ver eclipsado por um profundo sentimento de insatisfação…um sentimento de frustração por ver a figura que retribui o olhar no reflexo do espelho. E é então…é então que começa a borbulhar no meu ânimo a vontade…não!, a necessidade última e essencial de mudança que me trará aquilo que eu procuro…a saciedade desta sede de procurar alcançar a perfeição que calculo nas alterações que imagino e projecto em mim. Olho-me, torno a olhar-me …chego por vezes a contemplar o meu corpo nu e recortá-lo no ar…remendá-lo, ajustá-lo…quem dera que fosse um pouco de barro para moldá-lo como bem me aprazasse…mas não sou… Recorro a quem mo pode tornar à imagem do que desejo como último reduto para a minha ânsia e raras vezes me desiludi…Mas rápido vejo imperfeições na perfeição que julgava ter alcançado…Rápido retorna o pesar cá dentro…Rápido o meu coração cede perante o peso da frustração…Rápido recorro ao que guardo
com dedicação na arca, junto das fotografias, ainda que estas não tenham muito a ver com tudo o resto que lá está. Os pedaços que de mim recortaram, o que em mim incorporaram para depois arrancar…tudo isso me dá novamente esperança…o espaço escasseia já para o que quero manter guardado…Não mostro a ninguém pois que qualquer um não perderia tempo em julgar certa a minha loucura…Não me importa! Guardo na arca as lembranças do que era, as forças que junto para ir em frente…Junto tudo porque…sei no fundo que um dia hei-de querer tudo de volta a mim…guardo com os pedaços que de mim arrancaram, a esperança de ultrapassar este desespero um qualquer dia no qual este não se desafogue em retratos…sei que esse dia vai chegar…Afinal, se me puderam recortar hão-de conseguir remendar o que de mim tiraram…voltarei a ser o que era…e aí então poderei começar tudo de novo…
Nasceu em França mas vive em Roma. Gostámos do nome e das fotos. Dizem coisas e têm muitos significados. Uma página A4 cheia deles. Não os pusémos aqui por ser falta de educação para quem vê. São muito óbvios. Serão?
PEDRO PALRÃO
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Everybody believes that Christ will come again but with this economic crisis who can afford a kid? Let’s say though, for the sake of argument, that Christ would come in this time and age on earth. A lot of things would be different in his path… Firstly, the stable would probably be a bed and breakfast on a national highway. Then when it comes to finding his students, which will be called his fan club, things would also be different. He would probably place and ad: ‘Great opportunity for volunteer experience offered on the field of community work. Send resume at
[email protected]. PS: Offered one piece of bread and a cup of wine per day.’ His students would be for sure a more ethnical group than before, a melting pot of cultures with Jamaicans, Indians, British, and other weird accents. All of them would have a blog called ‘Religion Rocks’.
LAMBROS FISFIS
Now as for the miracles they would happen in huge arenas with high tech equipment and David Copperfield would probably be the opening act. Tickets would be sold out from the first minute. When he would turn money into fish people would tell him ‘oh! I am sorry I am a vegetarian’, when he would turn water into wine people would ask him if it is from a good year and when he would walk on water people would say ‘what a show off! Cant he just use the boat?’ Christ would be often interviewed by Larry King. Attacked with questions like: ‘Tell me Christ All Mighty the Savior of All....Just call me Christ...So Christ, according to the pictures the paparazzis took it seems you are having a relationship with a prostitute...Well that is a misunderstanding Magdalena was just asking me directions.....A!... Directions to where? To my house.... Christ being the ultimate opinion leader he would be approached by several brands like Levis, Addidas and Coca-Cola. You would see big bill boards writing: ‘Christ is wearing Levis Jeans’ or ‘Before miracles I always have a Coca-Cola’. The last supper would probably happen in a fancy restaurant where they would open and try all kinds of expensive wines while Christ would explain through a PowerPoint slide show on his PC how one of them would betray him. Now, when it comes to the cross it would probably be made by IKEA and Christ would have to assemble before carrying it. And the publicity rights would be decided in a secret auction in the Vatican. As for his clothes and personal belongings they would probably be sold on EBay. Now the good news is that we would have another Christmas and Easter so that means double the vacations!!!!!
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Ela encena sorrisos teatrais para o espelho E imagina os filmes e imagens da sua vida Sobre cidades onde ela esteve só, constrangida E elegante, com a saia que lhe dava pelo joelho. Imagina-se a preto e branco numa neblina De qualquer ruela, tanto poderia ser em Roma, Como em Paris, mas no ar… só paira o seu aroma Enquanto esfrega o espelho com uma seda fina. E a neblina que nasce pelo chão cobre-lhe os sapatos De cor rubi escarlate e sublinha o elevar da perna, Que se encosta com pesar na parede da taberna Onde os homens cheiram a colónia e vinhos baratos. O seu cu que descansa solene das noites mal paridas, Ajuda a acentuar os contornos delicados do seu peito Apertado com terrível pujança pelo corpete suspeito. “Ah! Quem me dera ser uma daquelas putas sabidas!” O espelho reflecte-lhe o rosto e a vida que ela recusa. Prefere sonhar com os brincos baratos que ela usaria E com o seu peito enfeitado pelo colar da tributaria. Até preferia saber-se nua e de sangue esborratado na blusa. Ao menos assim os seus olhos claros estariam secos Pela força das pilas e dos seus encontrões cíclicos E a sua bolsa estaria cheia de dinheiro em vez de ecos. Em vez de sonhos diabólicos, trágicos, mágicos… Ela carrega misteriosos segredos a tiracolo, Na bolsa onde guarda o batom e o perfume. E só deseja nunca ser comida como a um legume Que se descasca e se mastiga sem um gosto rebolo. E quando sair de minha casa, Levará para ti o cheiro da alegria, Tingida pela vida da limpeza Que a emburreceu. Encostar-se-á a ti e entre dentes Dir-te-á num só fôlego, Num tom sibilado: “Podia ter sido putaria…”
HUGO MORTÁGUA
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Magnífico. Um AH! espantado estoira em uníssono na audiência quando um massivo elefante de brincar atravessa desengonçado o corredor da plateia. O sol de papelão tinha acabado de nascer ao abrir das pesadas cortinas e pássaros voavam por cima das nossas cabeças. Uma sala de teatro convertida na barca de noé parece um filme de ficção, uma imagem que só existe do outro lado do ecrán. Mas acontece tudo ali, fisicamente, os cenários rodam à antiga, o sol é içado por cordas e os leões estão lá, com caras de leão e o charme de actores de teatro. Predomina, no musical, um intenso sentimento africano pois é uma história sobre o calor: não o calor de áfrica mas o do coração dos homens, mesmo quando estes têm feições de leão. As cores são quentes e cheias, bem gulosas, tão inchadas que não cabem no próprio desenho. E as vozes são densas e ardentes. O ritmo das danças é acertivo como os traços de um marcador preto. As coreografias são espaçosas e transbordam o palco, deixam-nos a bater o pé e a baloiçar a cabeça. Há movimentos grandes, determinados. Os bailarinos, esses, têm o peso africano nos pés mas uma alegria que voa. A caracterização dá aos artistas as feições de leão ou girafa mas é a qualidade dos gestos que os converte em animais. Os dedos que curvarm como garras ou os passos elásticos e cautelosos antes e depois do salto recriam os bailarinos, convertem-nos em seres da selva. E o espectador participa nessa passagem para o outro lado de espelho: deixa-se levar, imagina. E esse imaginário vai muito para alem do infantil. É uma viagem ao universo da liderança e da maturidade, da descoberta e do crescimento. Assim, com o avançar da história assiste-se a uma subtil metamorfose na plateia. As crianças gritam como desafinadas gaivotas e riem, em estilhaços, com pedrinhas atiradas ao charco. As palmas soam e ressoam como mais uma manada na floresta e o sussurro entre amigos é o bichanar dos animais. Em cada suspiro, ouve-se o vento passa.
E esse comportamento instintivo, da gargalhada alta de mais, do grito agudo e emocionado, do cantarolar desafinado e do salto na cadeira, oferece-nos mais do que uma mera experiencia de espectador, mais do que a compreensão do mundo animal ou uma nova dimensão moral. Oferecem-nos um momento de humanidade! SARA TOSCANO
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PEDRO RIO (fotografia) e CONSTANÇA CARVALHO HOMEM (texto)
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Bateu com a porta, pousou as chaves e meteu-se pelo corredor a caminho do quarto, cambaleante. Acendeu as luzes. Avançou para a cadeira e descalçouse. Apesar do cansaço, era vê-lo, a precisão muscular, profissional com que se movia, a nitidez dos gestos conhecidos. Puxou as calças pela bainha e, enquanto voavam para longe, viu cair do bolso uma poalha branca. Aos seus pés, no soalho, um areal minúsculo. Ajoelhou-se para confirmar, para lhe tocar com as mãos, incrédulo que estava. Areia. Não sabendo o que fazer, coçou a cabeça como qualquer homem perante o enigma. Há anos que não via o mar, há anos que não via o pino do sol e nem sequer o vento lhe trazia o mais leve indício de sargaço. E, no entanto, trouxera para casa nas calças um punhado de areia clara. Deitou-se, cobriu bem a cabeça e adormeceu como um novelo. E enquanto dormia, sonhava, transpirava de satisfação. O quarto era agora um areal que nenhuns olhos abarcavam por inteiro. Nos seus ouvidos, uma rebentação ligeira, constante e arrastada. Os seus braços, as suas pernas, tingiam-se do cobre das mulheres deitadas, cobriam-se de uma penugem alourada que lembrava a dos pássaros tenros. Enterrava os pés com grandes passadas ao acaso. E depois apetecia-lhe correr atrás da miudagem, com a toalha presa ao pescoço a dardejar. Que feliz por usar tão pouca roupa! Os dentes e a gula com que se atirava aos gelados alheios! E a fúria com que se rebolava com os outros cães na orla do mar! Com que sofreguidão lambia os beiços! As mães, sempre tão pressurosas, untavam-no com cremes, com bálsamos, com leites. Gostavam dele. Os pais davam-lhe uma palmada nas costas, no lombo, que era um “vai-te a elas”.
Era uma praia de pequenos prodígios. Ali, os biquinis mingavam em contacto com a água e as raparigas voltavam para terra quase só vestidas de sal. E se essas raparigas murchassem, bastava colher umas quantas, em pleno viço, no pomar junto à falésia. O pomar era, aliás, abundante e variado. Havia uma secção dedicada a “bons pares para raquetes”, uma fieira de árvores de “maridos que tomam banho de mar”, renques e renques de “adeptos do culturismo” e de “entusiastas do mergulho de chapa”. Ele, parte desta tribo. E havia, claro, noções de justiça. À entrada, todas as sogras eram obrigadas a vender a língua às postas. Às cartas e ao prego, para garantir uma justa distribuição de triunfos, os patrões são sempre quem perde. A sono solto olhava em redor e não sabia senão sorrir. Acordou com os primeiros raios de sol que a persiana deixou entrar. Ainda da cama, olhou para o chão. Não havia sinais de areia. Não fora um grão no canto da boca, um caco de concha colado à têmpora e um resto de alga no tornozelo e dir-se-ia uma manhã como as outras.
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63 A CRU A número dez sai a 2 de Outubro.