Já faz algum tempo... ...Para ser preciso, o início da minha existência até o atual momento corresponde ao intervalo que venho trabalhando incessantemente, conduzido por uma força maior, nos últimos atos desse roteiro. A verdade é que sou e sempre fui o senhor do meu destino, cada momento, cada singularidade que compõe minha vida fora repensada e calculada em pormenores, conduzindo-me a esse ponto. Estou na hora e local exatos, não poderia ser diferente. A grande questão é que me cansei de ter sempre o controle de tudo. A roda da fortuna girava conforme a minha vontade, mas tudo que sempre quis fora ser surpreendido por um caso fortuito. Estou farto e esta será à noite em que finalizarei meu roteiro, lançarei à mesa um dado de infinitas faces, mas não poderei estar lá quando surgir o resultado, tenho outro compromisso. Com um ar de impáfia justificável, sentei em uma cadeira de balanço encostada no canto da varanda e deleitei-me com um bom vinho retirado da adega até o ponto de me ver inebriado. Cortei o dedo nos cacos de vidro da garrafa recém derrubada que se encontrava ao pé da cadeira que me sentava. Mas tudo isso já era previsto. Passei a língua no dedo, rapidamente o sangue coagulou, fui então ao meu quarto coloquei a japona sobre a cama e sai de casa. Tinha chovido a noite passada, portanto as ruas estavam cobertas por um barro escuro e escorregadio, a iluminação estava precária, os funcionários que trabalhavam no serviço municipal de distribuição elétrica estavam em greve e a operacionalização e manutenção dos transformadores de energia estava comprometida. Liguei o farol do carro, a bateria como sempre fora checada com antecedência, o tanque estava cheio e o resto funcionava como recomendado, continuei a seguir a estrada rumo ao cais. Estacionei rente a uma árvore cujas folhas possuíam uma tonalidade levemente amarelada com pigmentos vermelhos, no tronco dessa estava talhado, ainda que de modo desgastado, o que parecia ser uma declaração de amor. Logo a frente havia uma cerca de arame ligeiramente arrebentada pela ação de grupos marginais e viciados em drogas que se utilizavam da passagem para chegar a um pátio que continha contêineres com mercadorias confiscadas pela policia federal. Atravessei o pátio e sentei-me ao lado de um cachorro. Ele parecia sequer notar minha presença, dada as condições do animal poder-se-ia jurar que seu passado fora marcado pela indiferença e abandono. Chamei-o por um daqueles típicos nomes de cachorro, assoviei, acenei, mas seu olhar permanecia encrusdecido, fixo, fitando uma carcaça de peixe apodrecida. Por certo tempo permaneci ainda ali entre o cão e o peixe. O cão poderia ser livre para fazer o que bem entender, mas havia algo naquele peixe que atraia a atenção do animal. A ausência de vitalidade, as moscas, atraídas pelo odor mórbido expelido pelas entranhas entreabertas, compunham
com seus zunidos uma sinfonia não inteligível pela maioria dos humanos. Aquela era uma composição única: o cão, o peixe, as moscas. Esse era o ciclo perpétuo da natureza, seres que se atraem e se repelem, obedecendo a um programa genético pré-estabelecido guiado pelas tendências instintivas inerentes a cada ser. Mas essa seria a noite que tudo isso iria acabar, o dado de infinitas possibilidades girava permissivamente, deslizando suas arestas por entre as fichas apostadas, mas eu não poderei ver o resultado, não poderei ver o resultado.