Coisas da vida
Os objetos que estão em casa são quase parentes. Eles presenciam nossa história e também guardam nossa memória texto Mariana Sgarioni | fotos André Spinola e Castro Se o criado-mudo falasse, provavelmente seria o maior contador de histórias de que se tem notícia bom, nesse caso, para início de conversa, ele teria que trocar de nome. E o que dizer daquele sofá velho, meio afundadinho em uma das extremidades, que denuncia de imediato qual o seu canto preferido de se esparramar? Não dá nem para pensar em trocá-lo, até porque nenhum será tão confortável e aconchegante quanto ele. O que, afinal, faz com que as coisas tenham tanto valor para nós? Bem, esqueça o dinheiro. Um objeto de alto valor no mercado pode não dizer absolutamente nada para você. Esta afirmação foi provada pelo professor de psicologia e educação na Universidade de Chicago Mihaly Csikszentmihalyi (sim, o nome dele é esse mesmo, sua origem é croata). Ele visitou 80 famílias americanas e perguntou o que era mais importante para cada uma delas dentro de casa. A grande maioria não indicou nada de alto valor monetário. Era sempre algo de valor afetivo: a cadeira de balanço que foi do avô, a colherzinha da infância, a mesa de estudos da adolescência. Os artefatos têm participação ativa no cotidiano. Eles organizam práticas sociais, influenciam comportamentos, incorporam metas e se tornam inseparáveis daquilo que somos, afirma. Isso significa que as coisas têm vida social, são palco de nossas experiências e, sim, são impregnadas de emoções. As coisas e nós O estudo de Mihaly mostra que a tão propagada cultura do descartável não está tão presente assim no que diz respeito à vida privada das pessoas. Nós fazemos questão de guardar aquilo que realmente nos importa. Isso pode acontecer quando um objeto nos lembra alguém especial, como a cadeira de balanço do vovô, que remete à lembrança do próprio vovô ali, ainda presente dentro de casa. Ou quando ele nos remete a um lugar que merece ser lembrado, como aquela recordação de uma viagem feita com seu melhor amigo. E ainda se o objeto tem a ver com nossos valores, com o que pensamos. Tipo uma mesa feita de madeira proveniente de reflorestamento, que representaria nossa preocupação com o meio ambiente, nosso modo de encarar o mundo, os valores que queremos para o futuro. Por isso seria tão cara para nós. Você mede a maturidade de uma pessoa com base na história das suas coisas, diz Vera Damazio, coordenadora do LabMemo (Laboratório Design, Memória e Emoção), da PUCRJ. O que quer dizer que tudo dentro de casa tem uma história, uma memória. E, se você reparar bem, muitas vezes a gente guarda uma infinidade de objetos em casa que não tem nenhuma funcionalidade prática ou óbvia. E não estou falando só de quinquilharias velhas. Um espremedor de suco, por exemplo, que é lindo de morrer, supermoderno, novíssimo. Mas que vaza e não pode ser usado para fazer suco serve só como decoração e para puxar conversa com os amigos visitantes. Minha casa está repleta de coisas que não funcionam direito, diz Don Norman, psicólogo americano e autor do livro Emotional Design Why We Love (or Hate) Everyday Things (Design emocional Por que adoramos [ou odiamos] os objetos do dia-a-dia, sem tradução). Mas mesmo assim eu quero todas essas coisas lá, do jeitinho que estão.
Então por que nos apegamos tanto assim a objetos, até mesmo àqueles que nem funcionam? Bem, é que cada coisa interage conosco de maneira diferente, nos lembra pessoas diferentes e tem uma recordação específica boa ou má. Em sua tese de doutorado Artefatos de Memória da Vida Cotidiana Um Olhar sobre as Coisas que Faz Bem Lembrar, Vera pesquisou quais foram os objetos que melhor testemunharam a passagem da vida para as pessoas. As respostas foram surpreendentes: há desde papeizinhos de bala toffee até medalhinhas e flores secas guardadas dentro de livros. São lembranças de reconhecimento, de que somos amados. Objetos e afetos Para começar, as coisas são uma extensão de tudo aquilo que nosso corpo não consegue fazer. Nossos antepassados ficavam inventando tralhas para facilitar a vida e assim viver melhor, uma vez que o meio é hostil. Por exemplo: criamos camas que são uma ajuda para nos ajeitarmos e dormirmos gostoso sem nos machucarmos nas pedras. Os leques ajudam a vencer o calor. As mantas aquecem. E assim vai. Nos tempos atuais, ainda continuamos a buscar aquilo que nos ajuda e protege. Mas não é só isso. A grande função dos objetos de hoje deve ser a de aproximar as pessoas, diz Vera. Ela quer dizer que ninguém escolhe um sofá, por exemplo, pensando somente em si próprio. Pensamos nos amigos que vão sentar nele, nas reuniões que vão acontecer na sala, nas pessoas queridas. Sempre compramos objetos para interagir com os outros. Ninguém vive só. Queremos que os outros gostem, queremos ser aceitos. É por isso que esses objetos guardam história, eles são fruto de uma vivência social. Foi assim que apareceu em 1999 o que se chama hoje de design emocional. Na Holanda, esses novos designers trabalham com a agradabilidade dos objetos, tentam buscar respostas emocionais nos usuários. Ou seja: eles querem provocar (ou evocar) sentimentos. Tudo parte da premissa de que escolhemos as coisas com base na emoção e não na razão. O neurologista português Antonio Damásio, da Universidade de Iowa, autor do livro O Erro de Descartes Emoção, Razão e o Cérebro Humano, é um dos principais defensores dessa idéia, afirmando que, ao contrário do que dizia o filósofo que imortalizou a máxima penso, logo existo, a tomada de decisões do ser humano está diretamente ligada à capacidade de sentir. Damásio afirma que os objetos têm sim competência emocional e são capazes de despertar toda a sorte de emoções em seus usuários. É por isso que escolhemos sempre aquilo que nos parece mais bonito, e não coisas que são apenas uma utilidade pura e simples. Até porque as coisas bonitas, por causarem uma boa sensação, também nos dão a impressão de funcionarem melhor, diz Norman. Com isso em mente, os designers emocionais têm como objetivo promover sentimentos positivos e condutas socialmente responsáveis. De que jeito? Isso é meio complicado, uma vez que o significado dado a cada objeto na maioria das vezes independe de quem o projetou. Por exemplo: você guarda com todo cuidado aquela caixinha que ganhou de presente da sua mãe ao fazer 18 anos. Ou odeia a tal caixinha, pois naquele dia tomou um belo fora do seu namorado ou namorada. E o pobre designer que a desenhou nem imagina que isso aconteceu. Segundo Júlia Peixoto de Carvalho Lima, adepta do design emocional, o designer pode não ter todo o domínio do sentimento provocado mas ele pode muito bem dar uma forcinha. Por exemplo: ele pode inventar objetos próprios para dar de presente
ou coisas específicas para alguém expressar o amor. Isso certamente será memorável e guardado em casa por muito tempo. Não se trata de desenhar uma cadeira, e sim algo para as pessoas se sentarem. É preciso olhar para o tipo de relação que se tem com as coisas e estabelecer o objetivo que se quer com isso, diz. Ao observar o tipo de emoção que cada coisa provoca, você percebe que nenhum objeto é neutro. Ele tem vida própria. Provocando emoções Mas como seria possível despertar uma emoção a partir de um ser inanimado? De muitas formas. Primeiro, é preciso um objetivo claro do que se quer. Um exercício feito pelos alunos de design da PUC-RJ foi o de inventar algo para aliviar as tensões do dia-a-dia. Uma aluna criou um saco de papel. Ele serve para encaixar a boca e gritar todo tipo de xingamento possível ali dentro. Em vez de ofender alguém, você pode descarregar toda a raiva no saco. E depois sair bem soltinho, levinho. Uma outra criação foi um prato próprio para ser atirado na parede. Depois de estilhaçado, ele é facilmente recomposto e pode ser remontado para um próximo ataque de fúria. Um outro exercício divertido foi o de criar algo para driblar a ansiedade. Ao pensar que todo ansioso põe alguma coisa na boca, muitas vezes o lápis ou as unhas, um criativo inventor bolou pequenas borrachinhas comestíveis, de sabores variados, para serem encaixadas em canetas ou lápis. Outra idéia interessante é um item que já existe no mercado e que reforça o sentimento de despertar o acolhimento e a aproximação entre as pessoas: o guarda-chuva bem grande, para duas pessoas, um estímulo para dar carona nos dias de chuva. A idéia é que os objetos façam você se sentir melhor e que você se lembre sempre deles, afirma Júlia. Vera Damazio completa: A gente é aquilo que a gente lembra. LIVROS • Emotional Design Why We Love (or Hate) Everyday Things, Donald A. Norman, Basic Books • O Erro de Descartes Emoção, Razão e o Cérebro Humano, Antonio R. Damásio, Companhia das Letras
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Se o criado-mudo falasse, provavelmente seria o maior contador de histórias de que se tem notícia bom, nesse caso, para início de conversa, ele teria que trocar de nome. E o que dizer daquele sofá velho, meio afundadinho em uma das extremidades, que denuncia de imediato qual o seu canto preferido de se esparramar? Não dá nem para pensar em trocá-lo, até porque nenhum será tão confortável e aconchegante quanto ele. O que, afinal, faz com que as coisas tenham tanto valor para nós? Bem, esqueça o dinheiro. Um objeto de alto valor no mercado pode não dizer absolutamente nada para você. Esta afirmação foi provada pelo professor de psicologia e educação na Universidade de Chicago Mihaly Csikszentmihalyi (sim, o nome dele é esse mesmo, sua origem é croata). Ele visitou 80 famílias americanas e perguntou o que era mais importante para cada uma delas dentro de casa. A grande maioria não indicou nada de alto valor monetário. Era sempre algo de valor afetivo: a cadeira de balanço que foi do avô, a colherzinha da infância, a mesa de estudos da adolescência. Os artefatos têm participação ativa no cotidiano. Eles organizam práticas sociais, influenciam comportamentos, incorporam metas e se tornam inseparáveis daquilo que somos, afirma. Isso significa que as coisas têm vida social, são palco de nossas experiências e, sim, são impregnadas de emoções. As coisas e nós O estudo de Mihaly mostra que a tão propagada cultura do descartável não está tão presente assim no que diz respeito à vida privada das pessoas. Nós fazemos questão de guardar aquilo que realmente nos importa. Isso pode acontecer quando um objeto nos lembra alguém especial, como a cadeira de balanço do vovô, que remete à lembrança do próprio vovô ali, ainda presente dentro de casa. Ou quando ele nos remete a um lugar que merece ser lembrado, como aquela recordação de uma viagem feita com seu melhor amigo. E ainda se o objeto tem a ver com nossos valores, com o que pensamos. Tipo uma mesa feita de madeira proveniente de reflorestamento, que representaria nossa preocupação com o meio ambiente, nosso modo de encarar o mundo, os valores que queremos para o futuro. Por isso seria tão cara para nós. Você mede a maturidade de uma pessoa com base na história das suas coisas, diz Vera Damazio, coordenadora do LabMemo (Laboratório Design, Memória e Emoção), da PUCRJ. O que quer dizer que tudo dentro de casa tem uma história, uma memória. E, se você reparar bem, muitas vezes a gente guarda uma infinidade de objetos em casa que não tem nenhuma funcionalidade prática ou óbvia. E não estou falando só de quinquilharias velhas. Um espremedor de suco, por exemplo, que é lindo de morrer, supermoderno, novíssimo. Mas que vaza e não pode ser usado para fazer suco serve só como decoração e para puxar conversa com os amigos visitantes. Minha casa está repleta de coisas que não funcionam direito, diz Don Norman, psicólogo americano e autor do livro Emotional Design Why We Love (or Hate) Everyday Things (Design emocional Por que adoramos [ou odiamos] os objetos do dia-a-dia, sem tradução). Mas mesmo assim eu quero todas essas coisas lá, do jeitinho que estão. Então por que nos apegamos tanto assim a objetos, até mesmo àqueles que nem funcionam? Bem, é que cada coisa interage conosco de maneira diferente, nos lembra pessoas diferentes e tem uma recordação específica boa ou má. Em sua tese de doutorado Artefatos de Memória da Vida Cotidiana Um Olhar sobre as Coisas que Faz Bem Lembrar, Vera pesquisou quais foram os objetos que melhor testemunharam a passagem da vida para as pessoas. As respostas foram surpreendentes: há desde papeizinhos de bala toffee até medalhinhas e flores
secas guardadas dentro de livros. São lembranças de reconhecimento, de que somos amados. Objetos e afetos Para começar, as coisas são uma extensão de tudo aquilo que nosso corpo não consegue fazer. Nossos antepassados ficavam inventando tralhas para facilitar a vida e assim viver melhor, uma vez que o meio é hostil. Por exemplo: criamos camas que são uma ajuda para nos ajeitarmos e dormirmos gostoso sem nos machucarmos nas pedras. Os leques ajudam a vencer o calor. As mantas aquecem. E assim vai. Nos tempos atuais, ainda continuamos a buscar aquilo que nos ajuda e protege. Mas não é só isso. A grande função dos objetos de hoje deve ser a de aproximar as pessoas, diz Vera. Ela quer dizer que ninguém escolhe um sofá, por exemplo, pensando somente em si próprio. Pensamos nos amigos que vão sentar nele, nas reuniões que vão acontecer na sala, nas pessoas queridas. Sempre compramos objetos para interagir com os outros. Ninguém vive só. Queremos que os outros gostem, queremos ser aceitos. É por isso que esses objetos guardam história, eles são fruto de uma vivência social. Foi assim que apareceu em 1999 o que se chama hoje de design emocional. Na Holanda, esses novos designers trabalham com a agradabilidade dos objetos, tentam buscar respostas emocionais nos usuários. Ou seja: eles querem provocar (ou evocar) sentimentos. Tudo parte da premissa de que escolhemos as coisas com base na emoção e não na razão. O neurologista português Antonio Damásio, da Universidade de Iowa, autor do livro O Erro de Descartes Emoção, Razão e o Cérebro Humano, é um dos principais defensores dessa idéia, afirmando que, ao contrário do que dizia o filósofo que imortalizou a máxima penso, logo existo, a tomada de decisões do ser humano está diretamente ligada à capacidade de sentir. Damásio afirma que os objetos têm sim competência emocional e são capazes de despertar toda a sorte de emoções em seus usuários. É por isso que escolhemos sempre aquilo que nos parece mais bonito, e não coisas que são apenas uma utilidade pura e simples. Até porque as coisas bonitas, por causarem uma boa sensação, também nos dão a impressão de funcionarem melhor, diz Norman. Com isso em mente, os designers emocionais têm como objetivo promover sentimentos positivos e condutas socialmente responsáveis. De que jeito? Isso é meio complicado, uma vez que o significado dado a cada objeto na maioria das vezes independe de quem o projetou. Por exemplo: você guarda com todo cuidado aquela caixinha que ganhou de presente da sua mãe ao fazer 18 anos. Ou odeia a tal caixinha, pois naquele dia tomou um belo fora do seu namorado ou namorada. E o pobre designer que a desenhou nem imagina que isso aconteceu. Segundo Júlia Peixoto de Carvalho Lima, adepta do design emocional, o designer pode não ter todo o domínio do sentimento provocado mas ele pode muito bem dar uma forcinha. Por exemplo: ele pode inventar objetos próprios para dar de presente ou coisas específicas para alguém expressar o amor. Isso certamente será memorável e guardado em casa por muito tempo. Não se trata de desenhar uma cadeira, e sim algo para as pessoas se sentarem. É preciso olhar para o tipo de relação que se tem com as coisas e estabelecer o objetivo que se quer com isso, diz. Ao observar o tipo de emoção que cada coisa provoca, você percebe que nenhum objeto é neutro. Ele tem vida própria.
Provocando emoções Mas como seria possível despertar uma emoção a partir de um ser inanimado? De muitas formas. Primeiro, é preciso um objetivo claro do que se quer. Um exercício feito pelos alunos de design da PUC-RJ foi o de inventar algo para aliviar as tensões do dia-a-dia. Uma aluna criou um saco de papel. Ele serve para encaixar a boca e gritar todo tipo de xingamento possível ali dentro. Em vez de ofender alguém, você pode descarregar toda a raiva no saco. E depois sair bem soltinho, levinho. Uma outra criação foi um prato próprio para ser atirado na parede. Depois de estilhaçado, ele é facilmente recomposto e pode ser remontado para um próximo ataque de fúria. Um outro exercício divertido foi o de criar algo para driblar a ansiedade. Ao pensar que todo ansioso põe alguma coisa na boca, muitas vezes o lápis ou as unhas, um criativo inventor bolou pequenas borrachinhas comestíveis, de sabores variados, para serem encaixadas em canetas ou lápis. Outra idéia interessante é um item que já existe no mercado e que reforça o sentimento de despertar o acolhimento e a aproximação entre as pessoas: o guarda-chuva bem grande, para duas pessoas, um estímulo para dar carona nos dias de chuva. A idéia é que os objetos façam você se sentir melhor e que você se lembre sempre deles, afirma Júlia. Vera Damazio completa: A gente é aquilo que a gente lembra. LIVROS • Emotional Design Why We Love (or Hate) Everyday Things, Donald A. Norman, Basic Books • O Erro de Descartes Emoção, Razão e o Cérebro Humano, Antonio R. Damásio, Companhia das Letras