Adorno na pós-modernidade: considerações sobre a leitura de Fredric Jameson1
Leandro Chevitarese2
Atualmente, Fredric Jameson tem sido considerado um dos mais importantes críticos da cultura ainda em atividade. Doutorou-se em Yale em 1959, lecionou em Harvard, Yale e na Universidade da Califórnia, antes de se transferir, em 85, para Universidade de Duke, na Carolina do Norte, onde atualmente é diretor do programa de pós-graduação em literatura. Entre suas principais publicações pode-se citar Marxismo e Forma, de 71; O Inconsciente político, de 81; e Pós-modernismo: lógica cultural do capitalismo tardio, livro que assumiu grande destaque na mídia, publicado em 1991. Em seu livro sobre Adorno, intitulado O Marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética, de 1990, publicado no Brasil em 97, Fredric Jameson propõese a destacar as contribuições de Adorno para o marxismo contemporâneo, resgatando sua atualidade para a cultura contemporânea, que ele denomina de “pós-moderna”. Neste livro, Jameson considera Adorno “um dos maiores filósofos marxistas do séc. XX”.
Suas conclusões, no entanto, são resultados de uma longa trajetória, que Jameson
faz questão de reconhecer, pois suas concepções sobre Adorno modificaram-se ao longo de sua própria obra. A importância concedida ao filósofo da escola de Frankfurt variou de acordo com a década histórica. Nos anos de declínio da era Eisenhauer, Adorno foi para Jameson uma importante descoberta metodológica, num contexto social em que lhe parecia fundamental criar, ou resgatar, uma concepção dialética (período em que se utilizou 1
Conferência apresentada em 12 de junho de 2003, no Seminário Adorno e seus pares, Curso de Especialização em Filosofia Contemporânea PUC-Rio, de 10 a 13 de junho de 2003. 2 Doutorando em Filosofia PUC-Rio.
amplamente de suas análises musicais, como exemplos ilustrativos do pano de fundo ideológico implícito à prática da análise formal). No entanto, no início da década de 70, quando da publicação de seu livro Marxismo e Forma (que incluía um artigo dedicado a Adorno), já se pode observar um certo distanciamento em relação a Adorno. Segundo o próprio Jameson, tal afastamento foi decorrente, em grande parte, do que ele considerou ser uma certa hostilidade de Adorno em relação à União Soviética, uma certa indiferença em relação aos problemas do Terceiro Mundo, e uma falta de sensibilidade em relação à riqueza cultural do movimento negro dos EUA (principalmente em função de seus textos sobre o jazz). Nesta época, de grande efervescência cultural, experimentando o que seria um momento “pré-revolucionário”, onde tudo parecia possível, muitas das análises de Adorno lhe pareciam inadequadas, pois estariam fora de contexto. Pode-se observar, em O Inconsciente político, de 81, seu grande apreço por Lukács, que ele afirma ser o “maior filósofo marxista dos tempos modernos”. É curioso observar que neste livro, de cerca de trezentas páginas, há apenas duas rápidas menções a Adorno. Todavia, segundo Jameson, foi durante a década de 80 que foi possível reconhecer que algumas das “profecias” de Adorno em relação à ascensão de um “sistema total” assumiram uma atualidade surpreendente. Fato que provavelmente o levou a escrever um livro inteiro dedicado à obra de Adorno. Deste modo, seria possível resgatá-lo como um analista de nosso próprio tempo, o tempo do capitalismo tardio, do capitalismo de consumo, que surge articulado a uma “lógica cultural”, o “pósmodernismo”3. Jameson não abre mão de afirmar o marxismo de Adorno, compreendendo que “ser marxista” pressupõe, necessariamente, que o marxismo é um corpo de conhecimentos, uma axiomática, que se projeta em situações históricas concretas, que determinam suas prioridades e limites. Isto significa que cada marxismo (e há diferentes 3
Sobre o “pós-modernismo” enquanto “lógica cultural” ver: JAMESON, Frederic: Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. SP: Ática, 1996.
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“tipos” de marxismo) deve ser, sempre, específico da cada situação, a ponto de dar conta de cada contexto sócio-econômico, procurando abranger as determinações de classe e o horizonte cultural e nacional de seus proponentes. O marxismo, como outros fenômenos culturais, varia de acordo com seu contexto sócio-econômico. O marxismo de Adorno, portanto, deve ser compreendido em sua condição histórica, ou seja, em suas limitações históricas – o que para Jameson está plenamente de acordo com a perspectiva do materialismo histórico. É importante ressaltar que, reconhecer o marxismo de Adorno não significa, no entanto, endossar suas posições políticas, que por vezes mostraram-se extremamente polêmicas (vale lembrar, por exemplo, a questão da relação de Adorno com o movimento estudantil no final da década de 60, dentre outras coisas). Partindo da tese apresentada em O Inconsciente Político – que afirmava a “independência interdependente” ou relativa e a precária autonomia dos níveis político (eventos históricos imediatos), do social (classe e consciência de classe) e do econômico (modo de produção) – , Jameson afirma que a contribuição de Adorno para o marxismo contemporâneo pode ser encontrada, principalmente, no terceiro nível, referente ao modo de produção, ou seja, pode ser encontrada na análise do sistema econômico. Sua originalidade estaria na “antevisão” de que o capitalismo assumiria um “caráter totalitário” no âmbito da própria elaboração de nossos conceitos e na criação das obras de arte. Nenhum outro teórico marxista teria observado, de modo tão atencioso, a relação entre o universal e o particular, o sistema e o objeto, no que se refere a tal questão. Em sua obra sobre Adorno, Jameson procura analisar o que ele reconhece ser a sua originalidade, tratando especificamente de três de suas obras: A Dialética do Esclarecimento, publicada em 47, a Dialética Negativa, de 66 e a Teoria Estética, publicada postumamente. Dada a urgência do tempo, abordarei aqui, alguns aspectos de sua crítica à DE, particularmente, sua crítica ao famoso capítulo sobre a “Indústria
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Cultural”, procurando delinear alguns dos motivos que levam Jameson a reconhecer a importância de Adorno para pós-modernidade. Um dos aspectos da originalidade de Adorno neste texto seria a vinculação cultural entre os dois fenômenos fundamentais de seu tempo: a democracia de massas dos EUA e o nazi-facismo europeu. Sua afirmação, provocativa e incômoda, da indissociabilidade entre a Indústria Cultural e os sistemas políticos totalitários, para Jameson, deve ser reconhecida como uma forma de compromisso político. A “vitória” da Indústria Cultural americana não deveria ser tomada como uma libertação, mas, sim, como uma variação dentro de um único paradigma: o totalitarismo. Segundo Jameson, Adorno não apresenta neste texto, propriamente, uma concepção da cultura enquanto tal (como pretende por exemplo, na atualidade, Raymond Williams). O interesse de Adorno é analisar a questão do entretenimento como um negócio, e não, de fato, construir uma teoria da esfera cultural. Deste modo, pode-se afirmar que o que Adorno elabora é uma “Teoria da Indústria Cultural”, abordando a rede de monopólios do capitalismo tardio que lucram a partir do que se costumava chamar de cultura. De certo modo, o que é apresentado pode ser compreendido como uma “teoria da vida cotidiana” nos primórdios do capitalismo tardio, onde a técnica surge como forma de controle, o que não pode prescindir, é claro de uma ideologia que a sustente. Segundo Jameson, esta teoria da experiência da cultura de massas dificilmente poderia ser reduzida a uma mera rejeição elitista da “má arte”. É claro que há uma diferenciação de um, digamos, “tipo de arte” que não é “realmente” arte, identificada com o entretenimento, a diversão, ou simplesmente, o puro prazer. A experiência da cultura de massas seria a experiência da forma-mercadoria, ou do que poderíamos chamar hoje de signos-mercadorias. Na verdade, segundo Jameson, o mais importante a ser destacado é um tipo de distinção crítica que está sendo proposta neste contexto. Eu cito: os autores “separam definitivamente o prazer da felicidade, ao mesmo tempo em
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que negam a possibilidade de ambas, seja como plena experiência, seja como plenitude no sentido próprio da palavra”4. A “arte genuína” não é “felicidade”, na verdade esta seria a “promessa da arte”, e tal concepção de arte afirma sua incompletude constitutiva, compreende sua própria impossibilidade. Contudo, o que a Indústria Cultural faz é propagar a ideologia de que tanto a felicidade como prazer não somente existem, como se encontram à disposição, através do consumo. Mas o que se pode encontrar é apenas divertimento, e o prazer da diversão converte-se em uma forma de fuga, não propriamente de uma realidade desagradável, mas, acima de tudo, uma fuga da própria possibilidade de resistência que ainda nos seria oferecida. Adorno e Horkheimer lançaram, deste modo, os alicerces de uma crítica cultural ao capitalismo, que se tem tornado cada vez mais urgente. Há, é claro, a necessidade de atualizar esta crítica, construindo uma teoria da mercadorização mais propriamente adequada ao contexto pós-moderno. A perfeição tecnológica da cultura de massas, na atualidade, tem feito com que a própria tecnologia se inscreva também como conteúdo. O tecnologicamente novo tornou-se o próprio objeto de consumo cultural, assumindo, deste modo, simultaneamente, a forma de mercadoria e o papel de legitimação dos objetos de arte comerciais. Além disso, com o virtual desaparecimento do que Adorno chamava de “alta cultura”, o contraposto da cultura de massa, tem-se a impressão de uma crescente hegemonia cultural que aponta para redução da experiência estética ao mero entretenimento (E vale lembrar que Jameson considera que o apagamento das fronteiras entre a alta cultura e a cultura popular é uma das características da pósmodernidade). Adorno e Horkheimer apresentam, de maneira profética, uma série de tendências que vem se fortalecendo no âmbito de uma sociedade-imagem. Para Jameson, a estetização, a transformação da realidade em imagens, é uma tendência cultural 4
JAMESON, Fredric: O Marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética. RJ: Editora da UFRJ, 1997, p.193.
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dominante no universo pós-moderno. O que é claro, traz inúmeras conseqüências para a produção de subjetividade coletiva na atualidade, pois fragmenta o senso de identidade, o sentido de continuidade entre passado, presente e futuro, tornando o tempo uma série de presentes eternos e desestruturando a perspectiva de uma direção ou propósito para vida. Tudo isto seria extraordinariamente compatível com o capitalismo tardio ou de consumo, seria sua “lógica cultural”. Para ele, eu cito: “o pós-moderno significa a mais completa estetização da realidade que é também, ao mesmo tempo, uma visualização ou colocação em imagem mais completa dessa mesma realidade”5. Essa tendência a uma “completa estetização da realidade” contribui para o esvaziamento da dimensão política da realidade, des-historicizando a vida, enfraquecendo qualquer esforço crítico ou engajamento político. Aprecia-se a diversidade de “sentidos” como quem observa imagens que se deslocam em uma tela de vídeo. Tudo parece surgir “estetizado”, mergulhado num turbilhão de imagens, por meio do bombardeamento de signos sem profundidade ou, para usar um termo de Jameson, estamos constantemente submetidos a “intensidades multifrênicas”. Jameson afirma que, eu cito: “se toda realidade se tornou profundamente visual e tende para a imagem, então na mesma medida, torna-se cada vez mais difícil conceituar uma experiência específica da imagem que se distinguiria de outras formas de experiência.”6. Neste contexto de despolitização universal, permanece a tarefa de determinar qual conteúdo político pode ser identificado em obras comerciais, ou mercadorias estetizadas, em que apenas o seu significado inconsciente é político. Ao mesmo tempo em que tais textos podem ser compreendidos como sintomas de uma necessidade política mais profunda, podem representar um impulso nostálgico sem qualquer função politizadora. E vale lembrar que em O Inconsciente Político, um dos mais importantes 5
JAMESON, Fredric: Espaço e Imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. RJ: Editora da UFRJ, 1994, p. 120. 6 JAMESON, Fredric: Espaço e Imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. RJ: Editora da UFRJ, 1994, p.121.
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livros de Jameson, o autor defende a prioridade da interpretação política dos textos literários, compreendendo a dimensão política como o horizonte fundamental de toda a leitura e interpretação. Nunca abordamos um texto de modo imediato, mas o lemos a partir de um conjunto de camadas sedimentadas de interpretações prévias. Deste modo, a interpretação, muito mais do que os próprios textos, torna-se, aqui, objeto da análise. Nesta perspectiva, a análise ideológica é reafirmada por Jameson como o “método” crítico específico do marxismo. E parece que para o resgate desta dimensão histórica e politizadora da análise da cultura, Adorno teria algo a nos oferecer. Em seu esforço de tentar estabelecer a importância de Adorno para a atualidade, Jameson procura identificar o que seriam vestígios de um Adorno pós-moderno, ou de uma margem para o surgimento do pós-modernismo na obra de Adorno, que ele tenta buscar na noção de uma “música informal”, ou no texto “O ensaio como forma”, no qual apresenta o repúdio a noção de sistema, valorizando a escrita ocasional, fragmentada; enfatiza também que ele escreveu por meio de fragmentos, como em Mínima Moralia, etc. Todavia, estas são avaliações que ele próprio não considera muito convincentes (e que eu confesso: a mim não convencem nem um pouco). Neste sentido, o que há de mais interessante na análise de Jameson é, com certeza, a defesa da relevância de Adorno para a atualidade por meio de sua proposta crítica e de suas polêmicas filosóficas e sociológicas. A tese de Jameson sobre isso é particularmente curiosa, ele afirma o seguinte, eu cito: “o que Adorno chamava positivismo é precisamente o que hoje chamamos de pós-modernismo, apenas num estágio mais primitivo. A mudança terminológica é, com certeza, importante: uma tacanha filosofia da ciência pequeno-burguesa, republicana, do século XIX, surgindo do casulo de sua cápsula do tempo com o esplendor iridescente da vida consumista cotidiana no veranico do super-Estado e do capitalismo multinacional. Da verdade da mercadoria de última geração, da respeitabilidade e ‘distinção’ burguesa às superrodovias, e as praias; das famílias autoritárias antiquadas e professores barbados à
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permissividade e falta de respeito pela autoridade.”7 Mudança terminológica, contextos diferentes, mas politicamente muito pouca distinção. Se o positivismo oferecia respostas e certezas, hoje parece que já não temos mais nenhuma delas, o relativismo e o niilismo imperam, e parece que nada mais faz muito sentido, mas a despolitização e ausência crítica permanecem as mesmas de outrora. Para Jameson, aquela questão sobre a possibilidade da poesia depois de Auschwitz, transfigurou-se em outra pergunta: você suportaria, se sentiria bem, lendo Adorno e Horkheimer à beira da piscina? Esta seria uma contribuição de Adorno para a atualidade: resgatar aquela sensação de mal-estar, pela persistência da dialética e da crítica, diante do universo mágico, dos sonhos de encantamento estético oferecidos pelas imagens das mercadorias, enquanto passeamos pelo shopping. Afinal, onde está Auschwitz hoje? Mas se o reconhecermos na indústria cultural isto significa rejeitar por completo qualquer manifestação vinculada à contemporânea tecnologia de informação? E quem estaria disposto a fazê-lo? Talvez o que esteja em jogo não seja meramente uma recusa incondicional, mas a elaboração de uma crítica que não pode prescindir da compreensão do sistema no qual estamos inseridos. Como afirma Jameson, eu cito: “A única libertação efetiva desse controle começa com o reconhecimento de que nada existe que não seja social e histórico – na verdade, de que tudo é, ‘em última análise’, político”8. Em sua leitura de Adorno, Jameson propõe o resgate de um modelo dialético para a compreensão do mundo capitalista tardio, resgatando a necessidade de uma crítica implacável de sua lógica cultural, o pós-modernismo. Sua dialética negativa convém à urgência atual de se pensar a relação entre o indivíduo e o sistema no qual está inserido, tendo em vista a importância de considerar o contexto de desigualdades sociais que se fazem presentes na nova ordem mundial global. 7
JAMESON, Fredric: O Marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética. RJ: Editora da UFRJ, 1997, pp.319/320. 8 JAMESON, Fredric: O Inconsciente Político. SP: Editora Ática, 1992, p. 18.
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Finalizando, vale lembrar que Jameson escreveu este texto no início da década de 90, mas me parece que sua atualidade, de lá para cá, só tem crescido. Em uma situação de radicalização do que Jameson denomina “estetização da realidade”, a verdade é que: um pouco de Adorno não faz mal a ninguém! Muito pelo contrário, sua leitura nos permite resgatar a dialética negativa e a postura crítica, ao mesmo tempo em que nos faz pensar sobre a necessidade de sua atualização, e vale lembrar que todo bom marxismo é um marxismo sintonizado com. sua condição histórico-cultural. E, para finalizar, parece que devemos manter a pergunta: mas afinal, você suportaria, se sentiria bem, lendo Adorno e Horkheimer, tomando, quem sabe, um coquetel de frutas à beira da piscina?
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