Azul

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Literatura Portuguesa II 2008-2009 _____________________________________________________________________________

AZUL, DE RUBEN A. A transfusão de sangue tinha operado o seu milagre — realmente o sangue azul corrialhe nas veias em caudal abundante, até mesmo suficiente para um bom aproveitamento sanguIneo-eléctrico. A operação fora difícil, mas os aperfeiçoamentos científicos da medicina moderna haviam atingido em cheio o objectivo do novo Visconde. A franca convalescença provara o bom resultado da transfusão. Estavam todos satisfeitos — o médico que to auspiciosamente fizera a melindrosa intervenção cirúrgica —, o fidalgo que, arruinado dos pés a cabeça, ainda se aproveitara do seu sangue para arranjar uns cobres com a transfusão —, as enfermeiras cheias de taluda gorjeta —, e, finalmente e o mais importante, o nosso banqueiro industrial no Portugal e Colónias, a partir deste momento promovido a Visconde da Beringela, com feudo de outrora sobre o Almirantado de Coxim e das ilhas Maldivas e Senhor das terras do Lindoso, na raia limiana. Enfim, nobre de sangue azul nas veias, no sentia mais aquelas inibições que lhe marcavam na alma um luto precoce. Podia agora comprar tudo: reis destronados, pretendentes em segunda edição, acólitos solícitos, bastava-lhe entrar nas lojas com meio-tom impor o seu sangue acompanhado das notas correntes. Andava mais do que satisfeito; permitia-se ser Visconde dos quatro costados — de jure sanguinis — usando o brasão dos Limas Barrentos e Lapelas e de uma vez eliminar, sem esforço, aqueles títulos anteriores e tão vulgarizados de Dr. e Eng.º que a força lhe impingiram nas Universidades. A ideia resultara em bera: encher-se de puro sangue azul para mais facilmente ser recebido em sociedade. Havia sempre uns velhos aristocratas que não iam a casa do degenerado Beringela por causa de certas familiaridades duvidosas — dizia-se ate, para ainda mais justificar a transacção do título, que o antigo Visconde da Beringela vivia com a cozinheira, o que de facto era inconveniente para a dignidade monocular das irmãs castas dos fidalgos de primeira linha. Assim, o grande banqueiro, certo de que podia comprar a pureza sanguínea com as suas notas em folha, afluentes em cascata ao banco de que era proprietário, sentia-se autorizado a adquirir definitivamente o sangue azul de um arruinado fidalgo que ao seu banco estava empenhado ate aos cabelos; mesmo o velho solar da Lapela deslizara já para as suas mãos, assim como as jóias da Marquesa da Religiosa, prima co-irmã e caceteira nas lutas liberais que, sem se saber porquê, hipotecara tudo na filial bancária do novo, querido e conceituado Visconde. Os tempos transitaram outros e as apreciações de casta muito diferentes. O negócio processara-se demorado e caro. O Fidalgo não deixava fugir assim o líquido por tuta-e-meia —, era a íntima hipótese de se reabilitar perante o alfaiate, merceeiro, padeiro, não falando na lavadeira e na mulher-a-dias, a quem devia dinheiro de meses. O seu sangue azul era a tábua de salvação. Empenhado, sim, mas digno como o dos antepassados, digno ate morrer. No entanto, as dívidas amontoavam-se, os caseiros roubavam-no, uma amante de rasca cabaré local exigia-lhe dinheiro para o irmão tuberculoso, e perante tanta desgraça a carteira esvaziava-se como uma bexiga picada por alfinete. Realmente passar o seu

Literatura Portuguesa II 2008-2009 _____________________________________________________________________________ sangue para aquele tipo, para aquele doutor de leis usurárias, para aquele gabiru que de vento em popa vencia o mundo e já recebia os novos ricos mais em yoga, era degradante. Judo, menos o sangue — dissera-lhe o pai, o nobre e notável Visconde da Beringela, décimo senhor do título, fidalgo de Entre-Douro e Minho, Capitäo-Geral hereditário das Armadas de Alto Bordo, estacionadas na costa do Malabar, Morgado do Varosa, conselheiro da coroa, cavaleiro das Ordens Militares do Médio Oriente e campeão local do jogo da malha. Judo, menos o teu sangue, meu filho. Azul como o que corre nas nossas veias só na criação de cada dinastia se encontra. 0 próprio D. João IV afirmou a um dos teus antepassados que era deste sangue que de queria ter no corpo. Lembra-te que D. João IV era descendente em linha bastarda. Os dias passavam-se e o velho fidalgo insistia em arruinar-se perdidamente no jogo da roleta, em pôr no prego os sobejos da mobília, não falando num par de botas de borracha que comprara para o irmão da sua amante evitar resfriamentos. Aos poucos o dinheiro ia desaparecendo do saco roto. Quase nada lhe restava —, do solar da Lapela ficara com a fotografia a cores, tirada pelo processo mais moderno, bem encaixilhada, lembrando os anos de tenra mocidade passados a malhar centeio na eira dos caseiros. Que saudades isso tudo fazia! E agora a dar o seu sangue, puro como o vinho que brotava da pipa, a ferver a boca da vindima — inocular o verdadeiro sangue azul, o mais Intimo da sua existência, dentro do corpo flauteado daquele fiduciário ambicioso! Não, não podia acreditar. Se acaso permitisse a transfusão, o ricaço pagaria caro — seria a primeira vez que em toda a sua vida de nobre tentava um negócio. Mas com todos os diabos! — precisava de se segurar naquilo que marcava a última recordação da família. O sangue azul era o seu capital — uma vez feita a transfusão, de teria de ingressar na plebe amorfa e neutra, seria caixeiro-viajante ou chauffeur de praça (a carta de condução era uma das primeiras do Reino, aprendera com o falecido D. Carlos) ou talvez comentador desportivo, ultimamente tanto na moda, ou ainda ajudante de marceneiro, pois quando jovem entretera-se a fazer habilidades de carpintaria. Era o pensar vivo do passado que o atormenta dia e noite. A primeira proposta fora tentadora — de facto uma boa talhada — O homem em questões de sangue não regateava de judeu —, mas por honra e dignidade fidalgas impedia-se de aceitar aquela primeira oferta. Não, isso nunca. Oferta, com mil demónios! — a amante reclamava agora um sobretudo para o irmão, que deitava sangue pela boca e estava com tanta tosse. — Oferta! Só a terceira é que consideraria. Era preciso que o grande industrial se chegasse ao preço para de poder responder mentalmente por esse preço ate vendia a alma. E verdade! Ainda tinha a alma para vender, mas não interessava ao outro, era uma alma em trânsito desinteressado para a missa. O outro queria-lhe o sangue azul a saltar nas veias, um sangue marinho, quase celestial, um sangue de caneta de tinta permanente. Queria um sangue Parker, com pergaminhos, descrito nos livros de linhagem de Aquém e de Além-mar e mencionado com fama da melhor cepa portuguesa na Historia Genealógica da Casa Real, do erudito António Caetano de Sousa. À segunda oferta mandou dizer que estava muito doente, transido de reumático. De momento, não podia pensar no caso. Nessa altura a farmácia — onde os bióticos arrancavam as Ultimas notas — facturava-lhe a crédito por trinta dias a mercadoria levantada. No mundo nada mais possua, na autêntica dependura, Uma calamidade fidalga! Não, ir de ir agora oferecer o seu sangue, era contra a regra. Havia que esperar nova petição. No entanto, o

Literatura Portuguesa II 2008-2009 _____________________________________________________________________________ cabedal fazia-lhe jeito — precisava — na leitaria da esquina já devia também um ror de dinheiro, empenhado por todos os lados. E a amante que todos os dias só lhe vinha pedir coisas! Séria, não chupava dinheiro. Para o irmão exigia de momento apenas um chapéu de feltro. Como a força do sangue pesava! Já nem lhe sabia bem — era azul, mas de um azul triste, quase manchado pela dor. Verdade, verdade, naquele corpo o sangue azul no luzia — era um corpo podre com pistas de sangue para corridas de glóbulos, mais nada. Ficava homs e horas na cama a olhar para as veias saIdas dos pulsos e a admirar-se da qualidade magnífica do seu sangue azul. Mesmo murcho, turvo e com ranço ainda era cobiçado pelos outros. Quanto valia a tradição! Que bem se exprimia o espectro dos avós! — ele era de facto um puro sangue. Por ali perto já ninguém lhe fiava. Tinha de mandar a amante a outro bairro comprar pastéis e uma cerveja para beberem juntos a hora da saudade. Matavam o bicho num dueto sentimental. Que se privasse do titulo de Visconde da Beringela no lhe causava grande mossa. Os condes, viscondes, barões, marqueses titulados, todos tão fora de linha; com o advento da República poucos ligavam a essas coisas, para mais de que, humilde e de fracas atitudes supratórias, nunca pensara com grande preocupação nessas ancestral idades. Mais, tinha ainda a alma, encomendada a Deus para todos os séculos pelo abade da Moutosa, reitor do solar da Lapela em questões do outro mundo e familiar dos Limas Barretos Abreus e Lapelas. Estava sinceramente decidido a vender o sangue azul — chupavam-lho de um lado e acto contínuo entrava o sangue normal, quem sabe se degenerado e sifilítico, pelo outro lado. Na terra nada mais lhe pertencia. Ao menos acabava os seus dias de uma forma caima, desconhecida e sem grandes preocupações. O pior era a amante! — queria logo o dinheiro e em pouco tempo tudo voltaria a primeira forma, era a tragédia do antes. Viria nova penhora — , a quê? — e teria que trabalhar, o que o aborreceria profundamente sendo fidalgo de tanta estirpe. O trabalho nunca distinguira os Barretos e Lapelas dos outros seres, nem mesmo os do ramo colateral — do Souto da Reigosa — eram afamados de mourejar o pão nosso de cada dia. Ah! mas nessa altura já no p05- suiria o sangue azul, verdade nua e crua. Só esperava ansioso a nova e última oferta. Vendia o sangue azul au a borbulhar na sua caldeira fidalga. O médico que o viera visitar desvendara os meandros da operação melindrosa e demorada, no entanto com poucos perigos de morrer devido aos progressos da turbo-vasculagem. Também, se de morresse não tinha muita importância, a vida já se lhe acabara há tempos. Morrer! Morrer, já de tinha morrido em vida, e tratava-se agora de uma questão de mais ou menos sangue — uma pura questão de cor. — Com o sangue ia-se-lhe o título de Visconde, o Morgadio, os quatro costados, os antepassados companheiros de D. João IV, e o almirantado da Índia! Até Dom Fuas Roupinho contava entre os seus parentes, não falando no Alcaide de Faria! Dúvidas!? Poucas restavam — despia-se daquilo que os pais lhe inocularam de mais Intimo. Contudo, pagar de uma vez as dívidas amontoadas e aceitar tão choruda oferta cram coisas tentadoras. Já se lhe tinha ido o Solar da Lapela, as jóias da Marquesa da Reigosa, as talhas e os anjos da capela do Souto da Bemposta e agora fugia-lhe das veias o sangue azul. Pronto. A terceira oferta veio o gerente do Banco, que trazia tudo devidamente documentado para se escriturar o compromisso de honra e marcar a data da transfusão; necessitava da assinatura

Literatura Portuguesa II 2008-2009 _____________________________________________________________________________ do recibo de promessa de compra e venda, feito em presença do notório e tendo como testemunhas os colegas administradores do Banco, a amante e o irmão tuberculoso. Há quantos anos?! Desde a hipoteca da Lapela não vira tanta nota junta; parecia-lhe uma miragem. Confundia-se. Delirava. Amava. Sangrava. E pensava que a única clausula de exigência no compromisso de honra era, por pane do banqueiro, de que o sangue I passagem para o seu corpo fosse devidamente filtrado. Sim, porque sangue azul filtrado ainda é mais puro, mais transparente, genuíno, sem aquelas sujidades speras dos últimos fidalgos da Lapela. Queria ficar com um sangue mediterrânico, um sangue batido de brisa puxada do norte, igual Iquele que num lavatório escorre de reservatório de uma caneta I mistura com a igual. Um sangue da gruta azul de Capri. A esta condição de compra o primo de Dom Fuas Roupinho não pôs objecção, o filtro seria o instrumento normal de peritagem — se até se usava para a gasolina nos automóveis, no recheio das veias seria ainda mais aceitável. Considerava mesmo honroso ver o seu sangue filtrado e apreciar na transacção o que ficava peneirado. Olhar para o filtro e minuciar os erros do antepassado — os cruzamentos com pretas e malaias, os bastardos, as doenças contraídas, os estropiados, a tale morganhtica, as mocadas levadas na feira quando os fidalgos da Lapela se julgavam superiores aos demais, o sangue pisado e as nódoas negras da came e do espírito. Enfim, coar tudo pelo filtro científico e num ápice penetrar claro e límpido na carcaça rotunda e charutacla do novo Cavaleiro da Ordem Soberana de Malta. Na sala de operações ia um movimento desusado. A operação era de grande valia devido importância dos trânsfugas — guardava-se sigilo absoluto quanto ao paradeiro dos contendores — a casa de saúde estava cercada por um cordão de motociclistas em traje de gala e a televisão comunicava aos outros doentes as diversas fases da arrojada e melindrosa intervenção. O filtro tinha sido guardado em lugar secreto ate uma hora antes da operação, quando foi transportado em carro blindado, acompanhado de escolta a cavalo, dos cofresfortes do Banco Nacional para a sala de desinfecção do hospital. O médico operador tinha tomado um pequeno-almoço ligeiro e fizera alguns exercícios de pernas e braços, o fidalgo da Lapela passara a manhã na cama com a amante em despedidas lacrimogéneas, na verdade partia para outro mundo. O futuro Visconde, cedo, as 9 horas da manhã, assinava, no banco, cheques, enquanto massagistas devidamente uniformizados tocavam com os dedos nas áreas apropriadas. Como precaução para prevenir qualquer infecção na espinha dorsal, tomara-se um clister colectivo para ser a mesma pressão de sangue a passagem pelo filtro — médicos, assistentes, anestesistas, enfermeiras, criados e outros doentes estavam todos a mesma pressão. Tudo puro, higiénico, alcoolizado e sublimado, com medidas especiais de segurança contra doenças infecto-contagiosas. No meio da transfusão teve de se lavar o filtro — estava muito entupido. Realmente a ideia segura de quem está habituado a bons negócios mais uma vez se mostrava lucrativa — era uma camada de esterco que vinha do século XV — havia mesmo a boiar pequenas partículas de cherume cor-de-rosa que já no pertencia aos nossos dias. Devia ser da época da Guerra das Rosas. Havia bocados de pastéis de massa folhada — o meio-fidalgo já não digeria bem, ia-lhe tudo para o sangue — ate umas cafeaspirinas sem tubo estavam depositadas no filtro. Um horror de coisas que intervalava a operação — viam-se uns cornos miniatura — quem teria

Literatura Portuguesa II 2008-2009 _____________________________________________________________________________ sido o infeliz antepassado? Injusto o banqueiro comprar um par de cominhos sem ter culpa, não estava bem. Ele l tinha as suas razões para querer um sangue azul bem limpinho e celeste. Cada um deitado na sua cama, meio fidalgo e meio plebeu, olhava-se desconfiado a espera da lavagem superdimensional do filtro. 0 filtro boiava a deriva, como dentadura postiça, dentro de uma mistura de éter, álcool canforado, azul de metileno e bicarbonato de potássio. Os médicos conversavam sobre as últimas comunicações sanguíneas e as enfermeiras espiavamnos meigamente, na esperança de uma promoção sentimental. Os dois na cama fulminavamse de ódio, não cram came nem peixe. O sangue azul, novamente bem filtrado, no teve dificuldades em se espalhar pelo corpo do novo Visconde da Beringela. O manómetro acusou mistura nos joanetes — al é que por força o sangue no quena entrar. No entanto, a quadrilha de médicos, bem atenta, procedeu imediatamente a uma intervenção de bisturi. Cortado o invólucro exterior do joanete, foi fácil a perfuração bilateral. Imediatamente se estabeleceu a circulação, já quase fiduciária, do sangue azul pelas ramificações calosas dos joanetes. Assim, comum sangue azul clarinho de príncipe filtrado, o novo Visconde da Beringela entrou em franca convalescença. Quando começou a sair, em pequenos passeios, notava uma inibição e uma indiferença por tudo, indiferença a que não sabia bem explicar a razão. Sentia-se bem-disposto, forte e ate mesmo sem a diarreia que tanto o preocupava ultimamente. Mas não se decidia. Havia nele uma inibição de se afirmar. Entrou um dia, na Baixa, numa loja de modas de senhora, e pediu uma saia de baixo em nylon — o empregado solícito e acolhedor forneceu-lhe duas a escolha. Perguntou-lhe se queria que as embrulhasse. O Visconde sentiu-se ofendido, quis experimentar se lhe serviam, foi ao quarto de provas e pôs a saia de baixo, deixando as ficar as cuecas e a camisa. Como era estranho tudo o que se estava a passar com o Visconde! Para comemorar o seu décimo aniversário de Presidente de Administração das Companhias e dos Bancos Fomentados e Usurpados, deu um grande baile no Hotel Ritz. Qual não foi o espanto quando, aos primeiros acordes da valsa La Pastiche, de avança com o Marquês de Soutêlo e puxa-o a força para dançarem juntos! Um descalabro! Poucos dias depois viu-se aflito. Não sabia mesmo, no casino, se havia de entrar para onde dizia Senhoras ou Cavalheiros — o sangue azul que Ihe corria nas veias era tão clarinho, tão filtradinho que lhe transmitia uma indiferença absurda. Era um sangue sem acidez. No banco, accionista principal, era louvado pela sua genealogia e pela cor brilhante do seu azul — vestia agora sempre de azul e não queria nada que não tivesse cores puras e transparentes. No entanto de ainda estava com quarenta e tantos anos, ainda não tinha cinquenta, queria ir à Prússia — seu único desejo de viagem pelo mundo. Azul da Prússia é que o interessava, o resto de desejos nem mencionava. Ia a todas as festas, era convidado para todas as recepções particulares e oficiais e os príncipes e reis — que conhecia muito bem e avulso pelas operações bancárias que lhes proporcionava — orgulhavam-se de ter a sua mesa a velha nobreza portuguesa — sangue azul dos quatro costados — almirantes da esquadra da Índia, etc., etc. O pior na verdade relatava-se nos percalços que diariamente se sucediam. Usava agora meias de senhora, calças de homem, saia de baixo, um broche por cima da gravata e brincos. A certa altura viu na Rua do Ouro um letreiro — Salão Azul — Cabeleireiro de Senhoras — e entrou. Foi lá acima e as meninas

Literatura Portuguesa II 2008-2009 _____________________________________________________________________________ disseram-lhe imediatamente — “para cavalheiros é la em baixo.” “Mas eu quero uma permanente.” — “O senhor está doido, aqui só se atendem senhoras.” — “Ah! Eu não sabia que era homem. Muito obrigado.” Esquecia-se de tudo, só não se esquecia de assinar cheques e de assistir as bodas de ouro dos Baröes do Manancial. Aí enchia-se todo ele, não lhe vinham aquelas fraquezas, a no ser quando tocava a música: no sabia se havia de dançar com homens ou com mulheres. Não dançava, ficava cá fora a fumar e a conversar com os ministros mais borgueiros. Assim, em urinóis, lojas de modas, cabeleireiros e danças não se intrometia. Dava mau resultado. Reduzia a sua vida. Circulava do banco ate ao Solar da Lapela, voltava no meio da semana e bocejava, nada mais. Os grandes negócios já passávamos de só em assinatura. Progredia a olhos vistos e conservava tudo o que se relacionasse de longe ou de perto com os seus antepassados. No entanto, a sua tragédia estava ali patente: queria casar, queria ter uma Viscondessa que recebesse os convidados de honra e presidisse aos banquetes em homenagem as pessoas reais e aos outros nobres de sangue azul. Mas, com a filtração to bemfeita da transfusão de sangue, dera-se um resultado invertido: de bemqueria casar, mas não sabia decidir-se, não sabia ter uma vontade firme para escolher entre um homem e uma mulher. Duvidara-se-lhe o sexo. Possuído de azul cambiado em várias tonalidades, o firmamento continuava impassível a estas indecisões terrenas.

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