As sete pragas de Antonio Cisneros Paulinho Assunção Que não fiquem chocados os românticos, nem enrubescidas as musas ou as ninfas: há um poema do peruano Antonio Cisneros, “Arte poética 1”, no qual o poeta é comparado a um porco. Isto mesmo. A um porco ou a um chancho, de acordo com o seu original em espanhol. Assim escreve Cisneros na primeira seção deste poema, parte do livro “Como figueira num campo de golfe”, de 1972: “Un chancho hincha sus pulmones bajo un gran limonero/mete su trompa entre la Realidad/se come una bola de Caca/eructa/pluajj/un premio”. Trata-se de uma curta peça, com apenas três seções — a última com um único verso, “un chancho etc”, algo como um poema de uma corda só a repetir o bordão do poetaporco ou porco-poeta que enfia o focinho na lama-realidade e, arroto após arroto, recebe um prêmio. Que não fiquem chocados os românticos, nem revoltadas as musas ou as ninfas: com este poema, estamos diante de um exemplo muito característico da obra deste peruano nascido em Lima, em 1942, e uma das vozes mais vigorosas da poesia de seu país. Trata-se de um exemplo e, também, de uma das linhas de força da poética de Cisneros — atravessada pela ironia e pela mordacidade. Um Cisneros que chega agora ao Brasil com a coletânea “Sete pragas depois”, edição parceira da 7 Letras com a Cosac & Naify em mais um título da coleção Ás de Colete, traduzido pela dupla Carlito Azevedo e Aníbal Cristobo. Uma coletânea, vale dizer, que abrange quase toda a obra do peruano, obra cuja estréia se deu em 1961, com “Desterro”, livrinho feito em prensa manual, mesma prensa que, um ano antes, editara “O rio”, de Javier Heraud, jovem poeta membro do Exército Nacional de Libertação do Peru (ELN) e assassinado aos 21 anos. “Desterro”, que teve apenas 300 exemplares e uma única resenha na imprensa, feita por Julio Ortega, não consta da coletânea brasileira de Cisneros. Em “Sete pragas depois”, porém, podemos encontrar, na dose certa, peças representativas de livros como “Comentários reais”(1964), “Canto cerimonial contra um tamanduá” (1968), “O livro de Deus e dos húngaros”(1978) ou um mais recente, “As imensas perguntas celestes”( 1992). Digo na dose certa porque — eis um mérito que deve ser atribuído aos organizadorestradutores — a coletânea põe na corrente sangüínea do leitor brasileiro o melhor deste autor que, veementemente, se diz um poeta urbano. Urbano em sentido amplo, não apenas o cantor de um bairro ou de uma rua, mas das cidades, no sentido mais cosmopolita. Seja a sua Lima natal, sejam os tantos lugares onde Cisneros viveu, como Berlim, Budapeste, Londres, San Francisco ou Niza, na Itália. A morte nos fundos de um táxi — Se o poeta-porco acima referido é uma cáustica dessacralização feita por Cisneros, colocando o poeta ao nível do chão e bombardeando a sua torre de marfim, chamaria a atenção do leitor para um outro poema, este parte de “O livro de Deus e dos húngaros”, com o título “Por Robert Lowell”. O poema se abre com a seguinte epígrafe retirada de uma notícia da agência Ansa, de 13 de setembro de 1977: “Lowell retornava de táxi para Nova York, vindo do aeroporto Kennedy. Ao chegar ao destino, o chofer se deu conta de que o passageiro não se movia, constatando que estava morto”. A seguir, vem o texto, duro e seco, preciso e exato, um réquiem de homenagem ao grande poeta norte-americano: “Do avião ao táxi, do táxi ao suor frio, do suor ao/diafragma fechado./90.000 quilômetros de sangue à deriva no fundo de/um táxi(...)”.
Útil seria dizer que a presença desta comovente cena final da vida de Lowell na obra de Cisneros vem, na verdade, revelar uma das quatro matrizes mais visíveis da poética do peruano, como bem apontou o critico Alonso Rabí Do Carmo, em suas lúcidas “Anotaciones sobre la poesia de Antonio Cisneros”: a crítica anti-heróica e cotidiana, procedente do distanciamento brechtiano; a épica do ego, cuja origem estaria no melhor de Ezra Pound; a confessionalidade, a partir do já citado Lowell e, por fim, a dessacralização do poeta e da própria poesia, o que guardaria afinidades com a estética beat de Ginsberg ou Kerouac. A isto seria bom acrescentar alguns outros traços na poesia deste autor que é também jornalista profissional e professor universitário, que voltou a Lima e ao seu bairro de Miraflores depois de tantos anos passados no exterior, e se dedica, no momento, conforme diz no prefácio à edição brasileira, a “um vasto poemário”, cujo título, nos informa, será “Os novos cantos marianos”. Entre esses traços, vejamos alguns: não encontraremos na poesia de Cisneros uma adesão aos grandes temas e às grandes causas; não há nela transbordamentos líricos nem concessões ao provincialismo; trata-se de uma poesia do rigor, mas situada bem longe do cerebralismo, pois é uma poesia sempre em posição de diálogo, sempre a convocar um leitor e uma leitura; e se há nela fluxos narrativos, certa preferência pela narratividade, as várias camadas e os vários planos sobre os quais ela se organiza dão origem a uma obra especialíssima: mordaz, mas humana; crítica, porém terna; cotidiana e cosmopolita, doméstica e coletiva, sem abrir fossos entre o íntimo e o público, o rotineiro e o histórico. É o que penso, por exemplo, ao ler “Karl Marx died 1883 age 65”, incluído no “Canto cerimonial contra um tamanduá”, livro que valeu a Cisneros o prêmio Casa de las Americas de 1968. Um poema que, em pouco menos de 40 linhas, guarda nele, como se numa cápsula de átomo altamente concentrado, todo um turbilhão da História. Por essas e outras é que a obra do peruano cai bem na corrente sangüínea dos leitores brasileiros. Texto publicado no jornal O Tempo, de Belo Horizonte
“Inimigo rumor” faz um tributo a Ruy Belo Ao chegar ao seu décimo-quinto número e dedicar, nesta edição, um suculento dossiê à obra do poeta do português Ruy Belo (1933-1978), a revista “Inimigo rumor” estende uma vigorosa ponte entre Brasil e Portugal em favor do caráter inseminador e fecundante da poesia. Sem poupar os adjetivos, poderia afirmar que se trata de uma edição preciosa e primorosa, dialogante, quente, bem longe de uma mera e fria homenagemefeméride dos 25 anos da morte de Belo. O que de fato a revista propôs foi um desafio: convocou em torno de 40 poetas d’aquém e d’além-mar e, deles, recolheu um contraponto de vozes ou variações a partir de sete poemas do bestiário do autor português, este que muitos consideram o segundo maior poeta de Portugal no século 20, depois de Pessoa, embora todas as aproximações nesse nível sejam sempre redutoras tanto para um quanto para outro autor. O importante é que o resultado do dossiê, mesmo com os altos e baixos comuns a esse tipo de empreitada, é revigorante para a poética produzida tanto aqui quanto lá.
Revigorante porque é diversa e vária — traço distintivo que, para o bem de todos, a poesia deste começo de século 21 cada vez mais assume, sem demarcação de terras ou territórios, sem sectarismos e comissariados de escolas e tendências. A edição, na qual se envolveram, do Brasil, as editoras 7 Letras e Cosac & Naify, e, de Portugal, a Angelus Novus e a Cotovia, reúne, entre os portugueses, nomes como Nuno Júdice, Ana Hatherly, Manuel António Pina, Adília Lopes, Pedro Mexia, Vasco Graça Moura ou António Ramos Rosa; entre os brasileiros, Donizete Galvão, Eucanaã Ferraz, Zulmira Ribeiro Tavares ou Fabrício Carpinejar. Enriquece o dossiê, junto com estudos críticos de Victor J. Mendes, Manuel Gusmão ou Pedro Serra, um texto inédito (e incompleto) de Ruy Belo, fundamental para a compreensão de sua obra como um todo e, em especial, do livro que provavelmente seria o “Homem de palavra (s)”, editado em 1970 pela Dom Quixote. O texto é talvez endereçado a seu editor e se abre do seguinte modo, com a força e a radicalidade sempre abrupta dos encadeamentos tão peculiares do poeta: “Sempre pensei este livro como um livro póstumo. Cheguei a declarar publicamente que morrera aos trinta e dois trinta e três anos e a considerar-me como um sobrevivente”. Um bom aperitivo, portanto, para quem quiser se iniciar no banquete. Este número da “Inimigo rumor”, entre outros acepipes, traz um estudo sobre a poética de Haroldo de Campos, por Marcos Siscar, poemas inéditos de Hans Magnus Enzensberger ou Philip Larkin e uma entrevista com o poeta cubano Carlos A. Aguilera, um dos editores da revista “Diáspora (a)”. Para completar, e acompanhando o volume, mais uma miniedição da coleção Moby-Dick, desta vez com o título “Conversação”, do espanhol Leopoldo María Panero, na tradução de Pedro Serra. Muito poderia ser aqui dito sobre este poeta natural de Madri, onde nasceu em 1948, e cuja obra, soda cáustica pura, de uma irreverência ímpar na poesia espanhola, poderia ter, como divisa, o que disse o próprio Panero em uma entrevista: “Toda linguagem é um sistema de citações. Toda escrita é um palimpsesto. Mas a única esperança também”.(Paulinho Assunção, especial para O Tempo). Texto publicado no jornal O Tempo, de Belo Horizonte