América: No Man's Land, No Land's Man* Composição em 15 movimentos e 1 ethos valter a. rodrigues* Resumo: Este texto propõe uma leitura do ethos norte-americano, hoje expandido para todas as regiões industrializadas do planeta (o universo global), a partir de algumas pontuações de sua produção cinematográfica em dois blocos de tempo: os musicais dos anos 50 e os filmes emergentes a partir, principalmente, dos anos 70, que têm na violência seu foco principal. Abertura O pensamento que aqui se move tem vários tempos. Sua marcação rítmica segue, às vezes, Rodgers-Hart, Gershwin ou Cole Porter, outras adere ao rock de aspirações libertárias dos anos 70, outras ainda ao rock industrial de Trent Reznor (da banda Nine Inch Nails) e ao death metal de Marilyn Manson, dos anos 90. As imagens que o afetam são as de uma América representada nas telas de cinema, dos grandes musicais dos anos 50 aos violentos road movies dos anos 70/90. De The Band Wagon (A roda da fortuna) a Natural Born Killers (Assassinos por natureza), a pergunta que nos percorre é sempre a mesma: o que é ser “americano”? Como são compostas suas representações do si-mesmo, como essas representações se transformam no fluxo do tempo e das mudanças sociais e culturais da segunda metade do século XX? O que justifica sua hegemonia, a ponto de a América deixar de ser um espaço geográfico para tornar-se um modo de vida e um estilo capaz de penetrar e redimensionar todos os outros modos de vida e de linguagem do planeta, como podemos reconhecer hoje no caráter hegemônico e irradiante do processo que identificamos como globalização? Longe de pretendermos ser conclusivos, mas tão-somente caminhar no fragmentário e no indicial, o que construímos aqui são alguns recortes que, pensamos, podem funcionar como sugestões de pesquisas mais aprofundadas e transversais sobre o papel dos media na produção da subjetividade contemporânea. Como optamos por um modo de apresentação que oscila entre o ensaístico e o narrativo-ficcional, assinalamos, só, alguns pontos de pertinência a outros pensamentos, que funcionam aqui como marcas, como signagens que fornecem alguns pontos de articulação discursiva. Assim, este texto inscreve-se como um exercício de cartografia que busca pensar, a partir dos modos de produção da indústria cinematográfica norte-americana, o papel da indústria cultural de massa na modelização dos modos de sentir, pensar, agir e representar-se daqueles que são por ela afetados. Cartografia, no sentido que Deleuze/Guattari dão a esse termo, e que é retomado por Suely Rolnik em seu Cartografia sentimental, como leitura dos processos de transformação das paisagens psicossociais.
1º movimento (Rodgers & Hart; Schwartz & Dietz; Cole Porter; Gershwin, Rhapsody in Blue; Bernstein & Sondheim, West Side Story; Ornette Coleman, Skies of America.) Eles surgem de histórias e lugares os mais diversos. Reúnem-se em torno a uma idéia, um projeto, um sonho. Não se fixam, montam suas barracas ou alojam-se em pequenos hotéis – há uma condição de provisoriedade necessária –, raramente têm quem os financie. Contam consigo mesmos, com seu talento, nada muito grande, no máximo pequenas habilidades. Um sapateia, aquele sorri de modo único, outro cantarola, ou reúne uma pequena coleção de canções. São atributos corporais, aprendidos aqui e ali nos esforços de presentificar-se e de se fazer aceitar. Há o que aprendeu certo gesto no campo, ou preservou uma expressão de infância, verdadeiro bloco que o ilumina sem que antes tivesse disso se dado conta, até que um olhar mais atento o descobre e o traz para um plano à frente, atualizando-o na cidade. Nas viagens, vão recolhendo pelo caminho desgarrados de toda sorte. A viagem é sua condição. Viaja-se muito, em velhos carros, ou em trens fretados. As distâncias a cobrir são necessariamente grandes, os pés são pouco para seu inesgotável nomadismo. Pode ser que tenham até mesmo um porto, um ponto de referência, um lugar qualquer onde começaram a se agrupar. Mas nem sempre retornam. Desterritorializam-se, com mais freqüência, dessas referências, sem ter como perspectiva o retorno. Mesmo porque nada teriam a fazer ali, de onde partiram. Nada teriam a mostrar, ou a quem. Mais. O retorno seria a infinita desterritorialização, pois sua condição é perder qualquer rosto ao sair. Nada têm a recuperar, só algo a conquistar. Nesse percurso amam, e muito. Um amor em que habilidades se amalgamam para compor um território novo, de uma forma tal que faz desse território a própria condição de seu amor: amam o que podem fazer juntos; nenhuma interioridade, nenhuma descoberta do que quer que estivesse ali antes. Pois eles não estavam ali antes, e seu amor surge como algo que se destaca da multiplicidade desses tantos projetos nômades que cada um põe em campo. Por emergir da multiplicidade, esse amor não raro sofre desvios, abre linhas de fuga, ameaça se desfazer. E, quando retorna, é sempre outro rosto, filho do acaso, que se desenhou e fez com que uma nova territorialidade tenha se formado. Ganham nome, mas só depois de terem se despersonalizado o suficiente, de terem abandonado as próprias fronteiras (durante algum tempo, bravamente defendidas, resistidas). O que impressiona é a infinita variedade de origem. Eles se agrupam vindos do anonimato, de um território privilegiado, de um outro plano – a cidadezinha perdida, a Quinta Avenida, ou, até, Moscou, o céu, o Olimpo. Às vezes, sua chegada tem a ver com uma missão qualquer, um projeto que pode ser tanto de salvação – de si ou de um terceiro, quando não da própria humanidade – quanto de um resgate, ou de, tão-somente, uma busca de sentido. Chegam quase
anônimos, ou, quando não, em um lugar onde não podem ser reconhecidos da mesma maneira como o eram quando partiram. Não raro ocultam um severo segredo, cuja descoberta pode pôr tudo a perder, mas que, exatamente por isso, os manterá suspensos na iminência da descoberta, sinais de uma fissura que o próprio portador fará tudo para, ao mesmo tempo, ocultar e expor. Descobrir-se-á, depois, que a exposição do segredo, antes que uma condenação, será a saída, o grand finale, a construção, afinal, do rosto que não se podia ver. Pois o segredo já perdera o sentido, já não era mais nada, já não continha o que ocultar. De qualquer forma, eles terão de construir algo, e por si mesmos, não importando o que tenham feito antes. Isso já foi, não forma plano de consistência nenhum, daí ser necessário o grande lance, a ousadia de serem – finalmente e quase sempre – si-mesmos. 2º movimento (Ornette Coleman, Skies of America & Dancing in Your Head; Gershwin, ‘S Wonderful, An American in Paris; Schwartz & Dietz, That’s Entertainment) Foi a leitura de Virilio (1993) que nos levou a buscar reconhecer, no grande musical americano dos anos 50, mais que o entertainment. Cantando na chuva (ficção sobre a revolução da passagem do filme mudo ao sonoro), Meias de seda (Ninotchka, desterritorializando do ethos moscovita e tornando-se americana), A roda da fortuna (a migração da bailarina clássica para o show bizz), Quando os deuses amam (a musa do Olimpo transformando-se em estrela da Broadway), e outros tantos: Cinderela em Paris, Sinfonia de Paris (no contraponto Europa/América do pós-guerra, por que tantos filmes em Paris?), High Society (o WASP atravessado pelo jazz de Armstrong), fazem do espetáculo o resultado necessário dos planos, táticas e tecnologias de guerra que os antecederam. Pois há mais que o entertainment na construção de um certo estilo deslizante/bailarino nos sapateados de Fred Astaire, no eterno acrobático/sorridente de Gene Kelly, nas longas pernas de Cyd Charisse ou na transformação dos sete irmãos de bárbaros do campo em magníficos bailarinos e suaves gentlemen citadinos (Sete noivas para sete irmãos), da intelectual existencialista em top model (Audrey Hepburn em Cinderela em Paris), da bailarina clássica em dançarina do show bizz (Cyd Charisse em A roda da fortuna), ou da musa Terpsícore (Rita Hayworth em Quando os deuses amam) em top star. Todos atendem a um princípio, todos estão envolvidos em um projeto maior, mais político, mais radicalmente significativo: tornarem-se americanos. Não se trata (não mais) de manter o moral dos soldados no front, mas de construir a América para e nos americanos, para e nos não-americanos. O bom motivo: a guerra acabou, os americanos são os grandes vencedores/beneficiados, trata-se agora de consolidar uma posição e avançar. Fala-se, e muito, de dominação cultural, da expansão imperialista norte-americana no Ocidente do pós-guerra. Um paralelismo, menos claro, menos explícito, à expansão econômica sobre a Europa desvastada e sobre o resto da América não-
industrializada. Tarefa não dos financistas de Wall Street, mas da difusa indústria cultural e da máquina publicitária, encarregadas de difundir coca-cola & way of life. Mas, afinal, quais os vetores dessa expansão? Basta a assimilação de uma língua, de um produto, de um estilo, para fazer do desejo uma peça de não-resistência? Quem são, como agem os personagens convocados a atrair multidões para o olho da tela cinematográfica? 3º movimento (Gershwin, Rhapsody in Blue; An American in Paris; I got Rhythm) Há o pólo de atração irresistível: a grande cidade, os painéis de néon, a concentração de modernidade em carros reluzentes que mapeiam a cidade sem cessar. Mudam-se ruas, direções de fluxos; casas cedem espaço para prédios que aspiram o ilimitado no número cada vez maior de andares. A cidade é o intenso formigueiro: sob o aparente caos, todos parecem saber para onde ir. A marca disso é a pressa, a velocidade. A ocupação do espaço urbano é investida sempre de um certo belicismo. Se a cidade é o espaço virtualmente aberto ao nomadismo, as sinalizações de fluxos oferecem continentes severos, dão às intensidades contornos e limites de uma dada realidade. Não importa em que direção se vá, é preciso ir, sempre, para algum lugar. Entre o "não importa" e o "é preciso" está o passo do anonimato – condição do homem urbano como trabalhador livre – para a fama – condição daquele que faz da no man's land seu território, sua circunscrição. A estratégia: abandonar o simesmo, despersonalizar-se, para inscrever o nome próprio nos vetores da cidade. Fama, sucesso, dinheiro confluem para o show bizz. O que demanda mais que o andar e a fala. 4º movimento (Schwartz & Dietz, Dancing in the Dark; That’s Entertainment) Acompanho Fred Astaire e Cyd Charisse em sua volta pelo parque (The Band Wagon [A roda da fortuna]). Acabam de discutir sua impossibilidade enquanto parceiros. Um não suporta o corpo do outro, um é a impossibilidade do outro. O que começa como um quase-conflito de gerações – um one-man-show em decadência e uma bailarina clássica em ascensão se confrontam na possibilidade de trabalharem juntos: "vi todos os seus filmes quando era pequena", "não se fazem mais bailarinas como antigamente" antecipam o abismo e encobrem "você que é famoso não irá me aceitar", "você é bela demais, você é jovem demais, você é alta demais para mim..." – transforma-se em um passeio silencioso pelo parque. Não se tocam, caminham até uma orquestra e alguns casais que – na “naturalidade” dos musicais – fazem do parque o espaço da música e da dança. Não conversam; andam, olham. É algo sutilmente que o passo ganha ritmo, integra-se à música. É algo sutilmente que os corpos, ao se afastarem, retornam já em movimento de dança, e se determinam.
"Dancing in the Dark" prepara a mudança, materializada em uma nova e sutil aliança. Agora, embora unidos, deverão enfrentar o "para que se juntam". Na mudança que para ambos se anuncia intromete-se o anacronismo da proposta em que estão engajados: um espetáculo suntuoso, grandiloqüente, que se propõe como um Fausto moderno; o autor do projeto, com sua carreira fundada na representação de clássicos gregos (à americana, naturalmente, o que vale dizer, o mais excessivo e explícito possível) procura migrar para o que atrai públicos (o espetáculo musical), mas resistindo a abandonar o formato que já conhece; daí, uma "tragédia musicada", com efeitos especiais proliferantes em bombas de fumaça, aparições de demônios, conflitos morais etc. Não só o agora-novo-casal, mas toda a companhia se ressente, embora sem opor resistência ao projeto, já que os financiadores o haviam aprovado. Com a estréia, vem o fracasso, a retirada dos financiadores, a ausência generalizada dos convidados na grande festa pósespetáculo. Aparentemente, o fim. Cada um se desgarra do outro, não se olham, não se procuram. Mas... É necessário que algo fracasse para que a vitalidade possa ser extensivamente afirmada. O grupo está reunido num dos quartos do hotel, todos comemoram – o quê? – o fato de terem se conhecido, de estarem juntos, mesmo que o espetáculo não continue. Ali, fora da situação de trabalho, podem ser si-mesmos. E o que são: mais alegres, menos formatados, mais dispostos à interação. Abandonam a hierarquia, convidam o astro (sir Astaire) para misturar-se. Este pode mostrar o que o espetáculo não permitia: sua verve. Sem o espetáculo – pois tudo indica que não haverá outra noite sobre o palco –, desterritorializados, todos podem expor suas performances. É o momento da eficácia dos grandes musicais: é feita uma proposta, todos aceitam, em seguida convidam o diretor – ensimesmado em sua falta de tino –, que adere prontamente e, sem financiamento, quase sem ensaio, desmancham o espetáculo anterior, preservando dele só o nome, e partem em tournée pelo país. O recurso é sempre o mesmo: o trem que avança sem cessar, os nomes dos estados que emergem na tela, do trem para o espectador, sugerindo um mapeamento intensivo, com flashs das atividades, do "curso do tempo" apresentado fragmentariamente. Algo semelhante a uma campanha de guerra na qual, um a um, os territórios são irremediavelmente conquistados (a imagem de sucesso & show bizz). A consagração fica reservada para o grand finale, com uma peça mais longa, que marca o espírito da época, intensiva e extensivamente trabalhada em outro registro por Hitchcock, e que – como observa Rolnik (1990) – é uma das principais marcas da subjetividade contemporânea: a suspeição. Só que, aqui, a suspeição é leit-motiv, é o campo de fundo onde se dá a resolução do quase-conflito em happy end. Seu personagem: o detetive solitário (o homem desencantado contemporâneo), cercado de ameaças, de pessoas que surgem de qualquer lugar, que caem em seus braços como a mocinha assustada, da qual ele nada sabe senão que-está-assustada-e-ébela, e que o implica numa rede onde o risco é sempre o da morte. A morte é uma
bela mulher (a femme fatale, a mesma que representa a mocinha assustada, fusão do grande enigma da inocência e da sedução), com quem o homem solitário (o no land's man) deverá se enfrentar, superando-a, para emergir do outro lado ("The Girl Hunt Ballet"), salvando a si e à inocência (mesmo quando esta for culpada, o que ele não irá, e nem deseja, jamais, saber). A salvação de si traduz-se na constituição de um território onde não importa a história, já que, para constituí-lo, é necessário perdê-la. É dessa forma que a suspeição (que remete sempre ao antes) torna-se ao mesmo tempo marca e princípio de constituição. O que importa é não a verdade (a suposta verdade), mas o plano de consistência que as linhas produzidas por gestos, multiplicidades de encontros e afetos desenham. Daí não haver conflito, ou o fato de que todo conflito encontre no happy end sua resolução. That's Entertainment. Planos de imanência, nenhum plano de transcendência. Afinal, seriam os planos de transcendência, com sua única entrada (aquela única) e nenhuma saída (por desnecessária), uma resposta? A questão talvez não esteja nesse ou... ou... em que se debatem os ideais e as ideologias, como restos de uma Europa romântica que a América jamais cessa de recuperar para desmanchar. 5º movimento (Gershwin, An American in Paris; ‘S Wonderful) O que é "ser americano"? Já se disse, e muito, que a cultura pertence à Europa, ficando para a América a indústria e técnica. Ou que a história não é o que os americanos privilegiam. A história, a cultura, o pensamento ocidental pertencem irremediavelmente à Europa, espaço geográfico onde se fomentaram as grandes transformações, as grandes revoluções, as grandes filosofias, a grande literatura, a grande arte. A América, perante o Velho Mundo, aparece como o território da banalidade, do não-conflito, mas, principalmente, da glorificação do homem comum. Daí ser necessário tão pouco para conquistar a fama, a consistência, o estatuto do self made man. São habilidades, antes que uma formação. Não um longo processo, mas uma atenção ao momento, à oportunidade, às novas intensidades. Tudo o que possa sugerir mais que isso, ou que possa exigir uma longa preparação, uma fidelidade a sistemas de referências, deve ser não só abandonado, mas capturado em novos agenciamentos. E é sempre algo que se descobre no traço, na insignificância, no atributo – que não cessam de escapar como pontas incômodas –, que será puxado como um fio de aderência, de performatização. Assim é no encontro entre a garota tímida, delicada e bela, livreira do Greenwich Village encantada com os existencialistas, e uma editora da moda e seu fotógrafo que procuram uma funny face (Cinderela em Paris). O fotógrafo se encarrega de capturá-la (para além de seus olhos que buscam livros) para o mundo da moda, lançando sua mais sedutora armadilha: ir para Paris, encontrar os filósofos existencialistas que a apaixonam. Mas de nada interessa a filosofia, trata-se de um artifício, no qual qualquer coisa vale para capturar o desejo (essa relação entre os fins e os meios...), até mesmo vestir-se de beatnik para seduzi-la e resgatá-la quando ela ameaça desgarrar-se. Ou a deusa grega, preocupada com a versão distorcida
que um diretor de um musical apresenta das musas, e que desce do Olimpo para a terra, conquista o principal papel na peça, interfere no projeto, com seu purismo, até criar um grande fracasso de público e finalmente cede ao espetáculo (e, down to heart, ao amor), considerando que, afinal, para que servem alguns princípios e a veracidade... Ou a bailarina clássica que abandona a carreira (e seu empresário), o diretor de teatro que abandona Édipo e a tragédia... A América inventou o público, o gosto da maioria, a irresistibilidade de um estilo e de uma língua que prometiam a possibilidade de ruptura com o "velho" e a entrada na mítica dos anos dourados para todos. E o fez afirmando que nada dura, que nada está tão rigidamente estabelecido que não possa mudar, que não possa ser agenciado de tal maneira que o que quer que a anteceda deixe de fazer sentido. E que nada não pode ser deslocado, que nada permanece eternamente o centro (e, já nos anos 50, Paris cedeu ao fascínio americano, pelo menos nos grandes musicais). Constituir-se sempre por desterritorializações e reterritorializações, esse o moto perpétuo. 6º movimento (Canned Heat, Goin’ up to the Country; Jimmy Hendrix, Little Wings; Crosby, Still, Nash and Young, Dejá Vu) Buscar a América é, extensiva e intensamente, a aventura da estrada, com operações de deslocamento contínuo, de mapeamento de campos, de entrada em platôs de intensidade. Uma aventura que faz da estrada o próprio sentido. Surpreende que tenha sido na direção Oeste (rumo à Califórnia) que as experimentações beat, as revisões contraculturais, a cultura do instante tenham se desenvolvido? “O intermediário entre o Ocidente e o Oriente não é a Índia, como acreditava Haudricourt, é a América que se faz de pivô e de mecanismo de inversão” (Deleuze/Guattari, Mille Plateaux.). 7º movimento (Bernstein; Leonard Cohen; “Woodstock”) O ponto de viragem entre a exaltação triunfalista do american way dos musicais dos anos 50 e a inquietação quanto aos efeitos dessa exaltação, já no início dos anos 60, talvez esteja em West Side Story (1961). Distantes do glamour dos belos cenários, os becos pobres da zona oeste de New York são atravessados pelo confronto entre jovens americanos e porto-riquenhos numa reconstituição do romance de Romeu e Julieta que deve muito ao jazz, mas também à provocação jovem do rock. West Side antecipa o fim do sonho dos anos dourados, que jamais cessara de se acabar, abrindo-se para os vitalizantes anos 60, que encontrarão sua dead line na enunciação “Dream is over” por uma das mais influentes vozes da geração paz-eamor, John Lennon, assassinado por um fã em 1980. O “pôr-se a caminho” dos anos 50 ganha uma outra tradução, povoada de reversões que aprofundam o nomadismo e abrem alguns buracos negros no corpo liso da “América in progress”.
É notável que, mesmo os grandes musicais, se lidos dessa perspectiva de "pôr-se a caminho", "deixar-se alterar", aproximam-se da expressiva vertente do cinema americano representada pelos road movies. Com seu marco em Easy Rider (Sem destino, 1969), os road movies expõem o que a América tem de mais singular: platôs de intensidade contínua, fluxos de desterritorialização que só são apreensíveis por recorte (da mesma maneira como hoje não cessamos de fazer mapas de um mundo que só faz alterar-se). Apreender a América é um exercício de cartografia que, desde o princípio, precisa desfazer-se da idéia de história como pensada na cultura ocidental européia. Um movimento que, na América, se faz para o Oeste (e nesse sentido, o western clássico é também "road movie"), como desbravamento, como possibilidade constitutiva, afeito a toda espécie de multiplicidade. Assim é com Thelma e Louise (1991), road movie (feminista?) que tanto inaugura como faz uma passagem perturbadora para os anos 90. A diferença está na leitura desses processos de desterritorialização: triunfalista nos western e nos musicais, onde o grande sonho americano se sobrepõe como imagem totalitária, molar, e aberto ao finito ilimitado como em Thelma e Louise e Easy Rider, onde o sonho torna-se o limite, mas embute seus devires como pura possibilidade. Devires que, na destruição das motos (Easy Rider), ou na imagem do carro suspenso no abismo (Thelma e Louise), fazem cristalizar, em um mesmo instante, liberdade e finitude. 8º movimento (Pat Metheny, Zero Tolerance for Silence) Há o grotesco. Há o riso. Há o olhar para si mesmo que se deseja entusiasta, límpido, sem feridas, para que se possa lutar ou dançar sem que um só fio de cabelo interfira na formatação do herói e suas prerrogativas. Mas há, também, um limite que exige mais que cabelos penteados. Que exige mais que heróis propostos para a modelização infinita. Emergindo do canto liso, do happy end, surge, após os 60, uma outra face, talvez mais cruel, talvez mais crítica, com certeza mais ansiosa de uma América que não cessa de se refazer e ao seu sonho. Dustin Hoffmann, no papel de um pacato professor, civilizado e inseguro, mostrase implacável defensor de seus direitos, em uma fúria que, ainda hoje, se faz incômoda. Sob o olho-câmera de Sam Peckinpah, inunda a tela de sangue e violência em Sob o domínio do medo (Straw Dogs, 1971). No cinema, foi Sam Peckinpah quem inaugurou o banho de sangue como marca de uma nova representação da América civilizadora. Talvez a virada tenha vindo no rastro do fracasso do Vietnã. Houve Woodstock, mas houve também Easy Rider anunciando a morte prematura do sonho, quando, mais claramente desencantados, mais assumidamente anti-heróis, motoqueiros atravessam a América com suas drogas na direção Oeste até o carnaval (carnival), em busca da redenção individual. Não chegam ao destino. São mortos por caçadores incomodados pela irregularidade que introduzem em seu campo. 9º movimento (Ornette Coleman, Skies of America)
A América tem por tradição lamber as próprias feridas. Para continuar caminhando, do triunfo à exposição da desordem, da indústria de sonho ao seu limiar de dissolução, desse limiar a uma nova exaltação do american way. Se assistíamos, na infância, John Wayne, Fred Astaire, Gene Kelly, todos bons americanos, são outros nomes que começamos a encontrar, já a partir dos 60: Stanley Kubrick, Francis Ford Coppola, Martin Scorcese, Oliver Stone, David Lynch, Quentin Tarantino... Um cinema que, salvo ilustres exceções (Ford, Hawks, Chaplin, Hitchcock, Huston...) sempre foi marcado pelo produtor e pelo ator, começa, com esses nomes, a se tornar mais e mais "de autor". E a marca do autor é sempre outra. (Por exemplo, quando John Ford dirigia John Wayne...). 10º movimento (Trent Reznor) Dois jovens anônimos, pobres, infelizes, à margem do sonho, desejam conquistar a América (e a si mesmos). Seus recursos são precários, suas habilidades não avançam além do mínimo. Pouco mais que um entregador de carne e uma garota tentando ser como as outras, apesar de assediada sexualmente pelo pai desempregado-perverso e relevada pela mãe somos-uma-família-feliz-a-qualquercusto. Seu encontro não pode ser romântico, salvo na versão barata e paródica da comédia de costumes. Mas há um glamour, que está em seu sonho, e todo seu sonho reduz-se a pôsteres pregados desajeitadamente na parede do quarto e em imagens cinematográficas que oferecem a aventura, ainda que na sala de estar, frente à tevê (o cinema, de há muito, já recuou para uma pálida imagem de fundo). Ou numa saída ao McDonald´s, essa forma única de estar na América, seja qual for a parte do mundo em que se esteja. Mas isso é pouco. Como tornar-se verdadeiramente americano? Isto é, como passar para o outro lado da telinha? Como abandonar o anonimato, que, se antes era das ruas com uma chance de diferenciação, reduziu-se a tornar-se "midiático"? Mais precisamente, à possibilidade de colocar o próprio nome – ganhar um nome – não mais em letras garrafais, no exuberante néon dos teatros da Broadway, mas nos horários de audiência da tevê? Queremos que nos olhem, queremos ser famosos, queremos ser, se possível, belos, eles dizem. Talvez nem isso. Sonhamos ser cinematográficos, mas sabemos que nossa carne só serve para alimentar pulp ficcion. E, ainda assim, só quando morremos de forma violenta. Natural born killers. Provavelmente essa expressão é a que melhor define o colapso de um sonho, dando o sentido de sua reversão. Destaquem-se, ouviram desde que nasceram. Sejam famosos, sejam livres, sejam, integralmente, self made. Entretanto, muito rapidamente descobrem ser ready made. Pré-formatados. Pré-dados (daí o passe para o predatório). Previstos. Previsíveis. O que lhes demanda uma ruptura, pois não se faz história se a perspectiva é o retorno ao mesmo.
11º movimento (Mozart, por Glenn Gould) Trata-se de perguntar: o que é fazer história, então, se de todos os lados o que constitui o cenário são imagens de ficção, sendo a perspectiva maior sobrepor ou adequar a elas a própria imagem? Fazer de si mesmo uma nova ficção, torná-la melhor que a anterior, conquistando índices de audiência? Ou fazer da realidade o espaço das próprias pulsações, das próprias intensidades e, a partir disso, despreocupar-se dos índices de audiência? 12º movimento (Leonard Cohen; Canned Heat; Joni Mitchell) I have a dream, eu tenho um sonho. Haverá expressão mais americana? Luther King utilizou-a para significar sua utopia de um lugar para suas "crianças". Esse lugar é, primeiramente, dar conhecimento de si. Esse conhecimento de si tem por princípio o individuar-se, o destacar-se de um fundo onde todos se assemelham, mesmo que ao preço do nenhum reconhecimento. O que reverbera, o que não deixa de se reconstituir sem cessar desde os pioneiros. Ela não abandona sequer o mundo dos homeless, proliferantes no coração do Primeiro Mundo, pondo em evidência que essas diferenciações que separam países na retórica política de há muito não são mais geográficas. A individuação desarticula a ordem, expõe um rosto pouco glamouroso, que nem mesmo Hollywood pode evitar. Esses sonhos, adiados em sua realização, assumem sua face mais violenta, menos idealizada, pouco possível de ser contida em fronteiras artificiais. Mesmo que explodam racismos das mais variadas espécies, mesmo que novas formas de fascismos e outros nacionalismos se manifestem, torna-se mais e mais difícil depositar precisamente no outro, diferenciado por cor ou origem, a fonte dos desconfortos. 13º movimento (Trent Heznor; Marilyn Manson) “Fazer a América” deixou de assumir formas construtivas para engajar-se numa forma descarnada, destrutiva, seca e explicitadora do móvel latente de muitos projetos individuais e libertários. Constituídos paranoicamente, ou no seu corolário, perversamente, lida-se de forma diversa, quanto às formas de legitimação social, com os pólos da conquista. Ou se investe a conquista do poder preservando a aura mítica de se estar professando uma verdade auto-sustentada (como em todo sonho paranóico), ou se conquista espaços sem qualquer verdade a sustentar, senão a de abrir caminho à revelia de qualquer suposta determinação transcendente. No primeiro pólo está a ação guerreira, à maneira já perversa e inconsistente do Vietnã. No outro, a avançada destruidora e marginal dos serial killers, que constroem, silenciosamente, um novo mapa da América, de desterritorializações e reterritorializações perversas e infinitas. Não deixam de fazer, à sua maneira, sua terrinha na sua ação nômade. Nada a sustentar, só o prazer de marcar sua passagem pelos efeitos de sua ação.
14º movimento (Bernard Hermmann; Trent Reznor) Perceptível diferença. A ação planejada e atravessada de uma crença salvadora do matador de Taxi Driver, de Scorcese, onde o no land’s man, ex-combatente do Vietnã, toma para si a investida contra o mal e a corrupção para salvar a inocência e é transformado em herói, embora não realizando seu sonho de conquistar a mulher que lhe dá o sentido de sua mobilização e permanecendo solitário, mas com um rosto (o que não tem ao iniciar sua empreitada), e a paixão que move o casal de Natural Born Killer, de Stone, realizando a satisfação da própria ação, da própria marca, de sua inscrição pela mídia nas falas e corações de todo e qualquer americano. Matam fria e poeticamente, no excesso, e cada ato os devolve para si mesmos, para sua própria carnalidade, seu próprio contorno. Amam-se nos atos que realizam juntos, amam-se na possibilidade de avançar. Enfim, um casal perfeito, um amor perfeito, com a mais absoluta consonância de princípios, capaz de comover a América (representada pela mídia e seu incontido sorriso) com a perseverança de seu desejo de reencontro, quando recolhidos em celas isoladas de segurança máxima. 15º movimento (Aerosmith) Se a escória não pode ser eliminada, nem sequer ignorada, resta reintegrá-la. Contra o risco da dissolução, resta o sonho. Se a ação faz mais que despentear os cabelos, se o herói-modelo pode envolver-se em escândalos que dissolvem os limites público-privado (Kennedy, Clinton), se, afinal, só podemos ser humanos, demasiado humanos (Nietzsche), que a escória salve a América (e o mundo). Independence Day, Armageddon – esses filmes patrióticos da globalização – são sinalizações de um retorno, um acionamento de novos mecanismos da reversão. Não temos mais só WASPs, mas índios, negros, bêbados, cocainômanos e suas difusas competências. Contemos com eles. Embalemos o romance de Liv Tyler na música de seu papá, façamos de seu papá-perfurador-de-buracos a última esperança. Oremos por ele. RIP. O que quer que nos convença de que A estrada perdida é mero acidente, não uma marca insistente inscrita em nossos corações. Finale (Bach, Variações Goldberg , por Glenn Gould) Serão eles diversos dos mais idealizados heróis dos grandes musicais? Não haverá, em vez de pura diferença, pura repetição, da qual a tarefa mais árdua está em extrair pequenas diferenças?
Referências Bibliográficas BRISSAC PEIXOTO, Nelson. Cenários em ruínas. São Paulo, Brasiliense, 1981. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. Mil mesetas; capitalismo y esquizofrenia II. Barcelona, Pre-Textos, 1988. GUATTARI, Felix & ROLNIK, Suely. Micropolítica; cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 1986. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental; transformações contemporâneas do desejo. São Paulo, Estação Liberdade, 1990. THOMAS, Tony. That’s Dancing! A Glorious Celebration of Dance in the Hollywood Musical. New York, Penguin Books, 1984. VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo, Scritta, 1993. Filmes An American in Paris / Sinfonia de Paris (Vincent Minelli, 1951) Down to Heart / Quando os deuses amam (Alexander Hall, 1947) Funny Face / Cinderela em Paris (Stanley Donen, 1957) High Society / Alta sociedade (Charles Walters, 1956) Seven Brides for Seven Brothers / Sete noivas para sete irmãos (Stanley Donen, 1954) Silk Stockings / Meias de seda (Rouben Mamoulian, 1957) Singin’ in the Rain / Cantando na chuva (Stanley Donen, 1952) The Band Wagon / A roda da fortuna (Vincent Minelli, 1953) West Side Story / Amor, sublime amor (Robert Wise, 1961) Armageddon (Michael Bay, 1998) Easy Rider / Sem destino (Dennis Hopper, 1969) Independence Day (Roland Emmerich, 1996) Lost Highway / A estrada perdida (David Lynch, 1996) Natural Born Killers / Assassinos por natureza (Oliver Stone, 1996) Straw Dogs / Sob o domínio do medo (Sam Peckinpah, 1971) Taxi Driver (Martin Scorcese, 1976) Thelma and Louise (Ridley Scott, 1991) Notas * Texto publicado nos Cadernos de Pós-Graduação / Instituto de Artes da Unicamp, Ano 4, Volume 4, no. 2, 2000, p. 73-82. ** Psicanalista e analista institucional; Professor de Psicologia na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero.