Agatha Christie A Caixa De Bombom

  • October 2019
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Agatha Christie A Caixa De Bombom as PDF for free.

More details

  • Words: 5,116
  • Pages: 10
a caixa de bombons estava uma noite horr�vel. l� fora, o vento uivava furiosamente e a chuva batia em rajadas violentas contra as janelas. poirot e eu est�vamos sentados diante da lareira, com as pernas estendidas na dire��o do fogo revigorante. entre n�s estava colocada uma mesa pequena. do meu lado da mesa havia um grogue quente, cuidadosamente preparado. do lado de poirot, havia uma x�cara com uma mistura espessa e forte de chocolate, que eu n�o beberia nem que me dessem cem libras. poirot pegou a x�cara de porcelana rosa e tomou um gole da beberagem, suspirando, contente. - quelle belle vie! - murmurou ele. - tem toda a raz�o. � um mundo dos melhores. aqui estou eu, com um bom emprego, como n�o podia querer melhor. e a� est� voc�, famoso... - oh, mon ami! - protestou poirot. - mas voc� � realmente famoso, poirot. e com toda a justi�a, diga-se de passagem. quando penso em sua longa sucess�o de triunfos espetaculares, n�o posso deixar de ficar espantado. n�o acredito que tenha sofrido um fracasso! - s� um doido ou um palha�o poderia afirmar que jamais conheceu o fracasso. - falando s�rio, poirot: alguma vez j� fracassou? - in�meras vezes, meu amigo. o que voc� queria? la bonne chance' nem sempre pode estar do nosso lado. muitas vezes fui chamado quando j� era tarde demais. em outras ocasi�es, certos homens, que trabalhavam com o mesmo objetivo, conseguiram chegar na minha frente. por duas vezes, fui acometido por doen�a, quando estava pr�ximo do **1 "a boa sorte." em franc�s no original. (n. do e.) 227 sucesso. � preciso aceitar as derrotas assim como as vit�rias, meu amigo. - n�o era a isso que eu estava me referindo, poirot. queria saber se alguma vez j� fracassou inteiramente num caso, por sua pr�pria culpa. - ah, estou entendendo! quer saber se eu alguma vez j� banquei um idiota rematado, n�o � mesmo? uma vez, meu amigo ... - poirot fez uma pausa, enquanto um sorriso pensativo se insinuava em seu rosto, antes de acrescentar: - isso mesmo, houve uma ocasi�o em que fui um idiota rematado. empertiguei-me abruptamente na cadeira. - sei que est� mantendo um registro de meus pequenos sucessos, mon ami. deve acrescentar mais uma hist�ria � sua colet�nea... a hist�ria de um fracasso! poirot inclinou-se para a frente e colocou mais uma acha de lenha na lareira. depois de limpar meticulosamente as m�os no pano de p� pendurado num prego ao lado da lareira, tornou a recostar-se e come�ou a contar a hist�ria. a hist�ria (come�ou m. poirot) aconteceu na b�lgica, h� muitos anos. foi na ocasi�o em que havia uma terr�vel luta na fran�a entre a igreja e o estado. m. paul d�roulard era um famoso deputado franc�s. todos sabiam, um desses segredos de polichinelo, que havia uma pasta ministerial � sua espera. ele era um dos membros mais

encarni�ados do partido anticat�lico. n�o restava a menor d�vida de que, quando subisse ao poder, teria que enfrentar uma violenta oposi��o. sob muitos aspectos, era um homem peculiar. embora n�o bebesse nem fumasse, n�o era t�o escrupuloso em outras coisas. creio que compreende, hastings, c'�taient des femmes... toufours des femmes!' casara-se alguns anos antes com uma jovem de bruxelas, que levara um dote consider�vel. n�o resta a menor d�vida de que o dinheiro foi extremamente �til na carreira dele, j� que sua fam�lia n�o era rica. � verdade que, por outro lado, ele podia intitular-se " monsieur le baron", se assim o desejasse. n�o tiveram filhos, e a esposa morreu dois anos depois, em conseq��ncia de uma queda de escada. entre as propriedades que deixou para o marido, estava uma casa na avenue louise, em bruxelas. foi nessa casa que ocorreu a morte s�bita de d�rou"eram mulheres... sempre mulberes!" em /ranr�s no original. (n. do e.) lard, que coincidiu com a ren�ncia do ministro cuja pasta ele deveria herdar. todos os jornais publicaram longas reportagens sobre a carreira de d�roulard. sua morte, inteiramente inesperada, logo depois do jantar, foi atribu�da a uma parada card�aca. nessa ocasi�o, mon atui, como j� sabe, eu era membro da for�a policial belga. a morte de m. d�roulard n�o me interessou particularmente. como tamb�m sabe, sou um bon catholique, e a morte dele parecia-me das mais apropriadas. tr�s dias depois, quando eu acabara de entrar em f�rias, recebi uma visitante em meu apartamento. era uma dama, oculta por tr�s de um v�u impenetr�vel, mas obviamente muito jovem. percebi imediatamente que se tratava de uma jeune-filie tout � fait comme il faut'. - � m. hercule poirot? - perguntou ela, em voz baixa e suave. fiz uma rever�ncia. - o detetive? fiz outra rever�ncia, dizendo: - sente-se, por favor, mademoiselle. ela se sentou e puxou o v�u para o lado. seu rosto era encantador, mas estava visivelmente afetado pelas l�grimas, como se alguma ansiedade pungente a atormentasse. - m. poirot, soube que neste momento est� de f�rias. assim sendo, poder� aceitar um caso particular. espero que compreenda que n�o desejo chamar a pol�cia. sacudi a cabe�a firmemente. - receio que esteja me pedindo algo imposs�vel, mademoiselle. embora de f�rias, ainda sou da pol�cia. ela se inclinou para a frente, ansiosamente. - �coutex, monsieur! tudo o que lhe pe�o � que in- vestigue. e tem toda a liberdade de comunicar � pol�cia o resultado de suas investiga��es. se aquilo em que acredito for verdade, precisaremos de toda a engrenagem da lei para fazer justi�a. tal declara��o situava o caso sob uma luz inteiramente diferente, e coloquei-me a seu servi�o sem mais delongas. um ligeiro rubor surgiu no rosto dela. - eu lhe agrade�o, monsieur. vim pedir-lhe que investigue a morte de m. paul d�roulard. - comment? - exclamei, surpreso. **1 "uma mo�a absolutamente respeit�vel." em franc�s no original. ( n. do e.) 228 a 229

- monsieur, nada tenho em que me basear... al�m do meu instinto de mulher. mas estou convencida, absolutamente convencida, de que m. d�roulard n�o teve morte natural! - mas os m�dicos... - os m�dicos podem enganar-se. ele era um homem forte e saud�vel! ah, m. poirot, eu lhe suplico que me ajude... a pobre crian�a estava quase fora de si. queria at� se ajoelhar diante de mim. tratei de confort�-la da melhor forma que pude. - vou ajud�-la, mademoiselle. tenho quase certeza de que seus temores s�o infundados, mas mesmo assim investigarei o caso. antes de mais nada, gostaria que me ,l'issesse quem s�o as pessoas que vivem na casa. - h� as empregadas, jeannette e f�licie, e denise, a cozinheira. denise est� h� muitos anos no emprego, as outras duas s�o simples camponesas. h� ainda fran�ois, mas ele � um empregado muito antigo. eu e a m�e de m. d�roulard tamb�m moramos na casa. meu nome � virginie mesnard, e sou uma prima pobre da falecida mme d�roulard. vivo com a fam�lia h� mais de tr�s anos. s�o essas as pessoas que moram na casa. mas, na ocasi�o, havia tamb�m dois h�spedes. - e quem eram? - m. de saint-alard, um vizinho de m. d�rolard na fran�a, e o sr. john wilson, um amigo ingl�s. - ambos ainda est�o na casa? - o sr. wilson est�, mas m. de saint-alard foi embora ontem. - e qual � sua id�ia, mlle mesnard? - se for at� a casa daqui a pouco, j� terei providenciado alguma hist�ria para explicar sua presen�a. acho melhor apresent�-lo como algu�m ligado ao jornalismo, de alguma forma. direi que veio de paris, trazendo um cart�o de apresenta��o de m. de saint-alard. mme d�roulard tem uma sa�de prec�ria e n�o prestar� muita aten��o aos detalhes. sob o pretexto engenhoso de mademoiselle, fui admitido na casa. depois de uma r�pida entrevista com a m�e do deputado falecido, uma senhora maravilhosamente altiva e aristocr�tica, embora obviamente de sa�de prec�ria, fui autorizado a examinar a casa inteira. n�o sei, meu amigo (continuou poirot), se � capaz de 1 `i w imaginar as dificuldades da miss�o de que me haviam incumbido. m. d�roulard morrera tr�s dias antes. se sua morte fora de fato criminosa, s� havia uma possibilidade: poison! ` e eu n�o tinha a menor possibilidade de ver o corpo, n�o havia a menor possibilidade de examinar o meio pelo qual o veneno poderia ter sido administrado. n�o havia pistas, falsas ou verdadeiras. ser� que o homem fora realmente envenenado? teria sido simplesmente uma morte natural? eu, hercule poirot, sem nada em que me basear, tinha que tomar uma decis�o. primeiro, interroguei as empregadas. com a ajuda delas, reconstitu� todos os acontecimentos daquela noite. dispensei uma aten��o especial � comida servida no jantar e � ordem em que foi servida. a sopa fora tirada de uma terrina pelo pr�prio m. d�roulard. em seguida, houvera um prato de costeletas e depois um de galinha. e, finalmente, compotas. todos os pratos foram colocados na mesa e servidos pessoalmente por m. d�roulard. por esse lado, mon arai, n�o havia a menor possibilidade. era imposs�vel envenenar uma pessoa sem envenenar tamb�m todas as outras! depois do jantar, mme d�roulard se retirara para seus aposentos, acompanhada por mlle virginie. os tr�s homens tinham ido para o escrit�rio de m. d�roulard. haviam conversado amigavelmente por algum tempo. s�bita e inesperadamente, o deputado caiu no ch�o. m. de

saint-alard saiu correndo e mandou fran�ois buscar um m�dico. disse que era certamente apoplexia. quando o m�dico chegou, j� n�o foi mais poss�vel fazer coisa alguma por m. d�roulard. o sr. john wilson, a quem fui apresentado por mlle virginie, era o que se podia chamar de um ingl�s t�pico, corpulento e de meia-idade. seu relato, feito numa mistura de franc�s e ingl�s, foi substancialmente o mesmo. - d�roulard ficou subitamente com o rosto muito vermelho e caiu no ch�o. n�o havia mais nada a se descobrir por esse lado. fui para o local da trag�dia, o escrit�rio. a meu pr�prio pedido, deixaram-me sozinho. at� a�, eu ainda n�o encontrara coisa alguma que pudesse confirmar a teoria de mlle virginie. n�o podia deixar de pensar que n�o passava de ilus�o. evidentemente, ela acalentara uma paix�o rom�ntica pelo falecido, o que n�o lhe permitia encarar o caso por um prisma racional. n�o obstante, dei uma busca meticulosa no escrit�rio. **1 "veneno." em franc�s no original. (n. do e.) 230 a 231 era poss�vel que tivessem colocado uma seringa hipod�rmica na cadeira do falecido, de maneira a aplicar-lhe uma inje��o fatal. era mais do que prov�vel que a picada min�scula passasse despercebida. mas n�o descobri nenhum ind�cio que pudesse confirmar essa teoria. sentei-me na cadeira, com um gesto de desespero, dizendo em voz alta: - en/in, desisto! n�o h� a menor pista! tudo est� perfeitamente em ordem! no momento em que acabei de pronunciar essas palavras, meus olhos se fixaram numa grande caixa de bombons que estava numa mesa pr�xima. senti o cora��o disparar. podia n�o ser uma pista para a morte de m. d�roulard, mas era pelo menos algo que n�o se podia considerar normal. levantei a tampa. a caixa estava cheia, parecia intacta. n�o faltava um �nico bombom. mas isso s� contribuiu para que eu achasse a coisa ainda mais estranha. o detalhe que me atraiu a aten��o, hastings, foi o fato de que a caixa propriamente dita era rosa, enquanto a tampa era azul! encontrase freq�entemente uma fita azul numa caixa rosa e vice-versa. mas uma caixa de uma cor com tampa de outra ... n�o, decididamente, �a ne se voit jamais!' eu ainda n�o podia perceber que utilidade esse pequeno detalhe poderia ter no esclarecimento do caso, mas estava disposto a investig�-lo, j� que se tratava da �nica coisa fora do comum. toquei a campainha, chamando fran�ois. perguntei-lhe se o falecido patr�o gostava de bombons. um sorriso triste se estampou no rosto de fran�ois. - para dizer a verdade, monsieur, ele adorava bombons. tinha sempre uma caixa em casa. acho que era porque nunca tomava vinho. i - e, no entanto, esta caixa n�o foi tocada, n�o � mesmo? indaguei, levantando a tampa. - � uma caixa nova, comprada no dia da morte do patr�o, j� que a outra estava quase acabando. - quer dizer que a outra caixa acabou no dia em que ele morreu? - exatamente, monsieur. encontre�-a vazia pela manh�, e jogue�-a fora. - m. d�roulard costumava comer bombons a todas as horas do dia? - geralmente s� os comia depois do jantar, monsieur. comecei a enxergar as coisas com alguma clareza.

**1 "ls.ro n�o se vc nunca!" em franc�s no original. (n. do e.) - ser� que poderia ser discreto, fran�ois? - se for necess�rio, monsieur. - bon! neste caso, quero que saiba que sou da pol�cia. pode localizar-me a outra caixa? - sem a menor d�vida, monsieur. deve estar ainda na lata de lixo. fran�ois retirou-se. voltou minutos depois, com um objeto coberto de poeira. era exatamente igual � caixa que estava no gabinete, com uma �nica diferen�a: a caixa propriamente dita era azul, enquanto a tampa era rosa. agradeci a fran�ois, recomendei-lhe novamente que nada revelasse e deixei a casa da avenue louise. fui visitar o m�dico que atendera m. d�roulard. n�o foi uma entrevista f�cil. ele se entrincheirou por tr�s de uma muralha de fraseologia erudita. mas tive a impress�o de que n�o estava t�o seguro a respeito do caso quanto queria aparentar. quando consegui finalmente desarm�-lo um pouco, ele comentou: - tem havido muitas ocorr�ncias desse tipo. um s�bito acesso de raiva, uma emo��o violenta... depois de um copioso jantar, c'est entendu ... o sangue sobe � cabe�a e... pronto! temos mais uma v�tima! - mas m. d�roulard n�o teve nenhuma emo��o violenta. - n�o? pelo que eu soube, ele estava tendo uma violenta discuss�o com m. de saint-alard. - por que os dois iriam discutir? - c'est �vident! - o m�dico deu de ombros e acrescentou: - m. de saint-alard n�o era um cat�lico dos mais fan�ticos? a amizade entre os dois estava sendo destru�da pela quest�o entre a igreja e o estado. n�o se passava um s� dia sem que discutissem. para m. de saintalard, m. d�roulard era quase como se fosse o anticristo. era uma revela��o inesperada e deu-me o que pensar. - s� mais uma pergunta, doutor: seria poss�vel introduzir uma dose fatal de veneno num chocolate? - acho que sim. �cido pr�ssico puro poderia ser introduzido num bombom, se n�o houvesse possibilidade de evapora��o. poderia ser engolido sem que a pessoa percebesse. mas n�o parece ser uma suposi��o das mais prov�veis. um bombom cheio de morfina ou estricnina ... - o m�dico fez uma careta antes de continuar: - uma s� mordida seria suficiente, m. poirot. o incauto morreria quase instantaneamente. 232 a 233 - obrigado, monsieur le docteur. retirei-me. em seguida, fui interrogar os farmac�uticos, especialmente os estabelecidos nas proximidades da avenue louise. � muito bom ser da pol�cia. obtive a informa��o que desejav a sem maiores dificuldades. somente um dos farmac�uticos vendera veneno para a casa em quest�o. tinham sido algumas gotas de sulfato de atropina, que mme d�roulard usava nos olhos. a atropina � um veneno poderoso. no momento, fiquei exultante. mas os sintomas de envenenamento por atropina s�o muito parecidos com os da ptoma�na. n�o tinham a menor semelhan�a com o caso que eu estava investigando. al�m do mais, a receita era antiga. mme d�roulard sofria de catarata em ambos os olhos havia muitos anos. eu j� ia me afastando, desanimado, quando o farmac�utico me chamou: - un moment, m. poirot! estou lembrando agora que a mo�a que aqui

esteve comentou que precisava ir a outro farmac�utico a fim de comprar alguma coisa para o ingl�s. talvez isso lhe permita descobrir o que est� procurando. e realmente o descobri, gra�as a minha posi��o oficial. no dia anterior � morte de m. d�roulard, outro farmac�utico aviara uma receita para o sr. john wilson. n�o era nada de mais, simples tabletes de trinitrina. perguntei se podia ver algum desses tabletes. o farmac�utico mostrou-os, e senti o cora��o bater mais depressa ... pois os pequenos tabletes pareciam de chocolate! - isso � veneno? - n�o, monsieur. - pode descrever-me os efeitos? - serve para baixar a press�o sangu�nea. � receitado para algumas formas de dist�rbios do cora��o, como angina pectoris, por exemplo. alivia a tens�o arterial. na arterioesclerose ... interrompi-o bruscamente: - ma foi! isso n�o me diz nada. essa droga faz com que o rosto da pessoa fique vermelho? - claro. - e se eu comesse dez ou vinte desses tabletes ... o que aconteceria? - eu n�o o aconselharia a tentar - respondeu o farmac�utico, secamente. - mesmo assim, diz que n�o � veneno? - h� muitas coisas que n�o s�o consideradas veneno, mas podem matar uma pessoa. deixei a farm�cia, exultante. finalmente parecia estar no caminho certo! sabia agora que john wilson dispusera dos meios para cometer o crime. mas ser� que teria algum motivo? ele viera � B�lgica a neg�cios e fora hospedado por m. d�roulard, a quem conhecia apenas ligeiramente. em princ�pio, n�o havia nenhum meio de a morte de d�roulard benefici�lo. al�m disso, descobri tamb�m, atrav�s de investiga��es na inglaterra, que havia alguns anos ele sofria dessa forma de doen�a do cora��o bastante dolorosa conhecida como angina. portanto, n�o havia nada de anormal em estar de posse daqueles tabletes. n�o obstante, eu estava convencido de que algu�m fora mexer na caixa de bombons, abrindo primeiro, por engano, a que estava cheia. depois, pegara a outra caixa, removera toda a parte interior do �ltimo bombom e colocara ali o m�ximo poss�vel de tabletes de trinitrina. os bombons eram grandes, podiam conter perfeitamente de vinte a trinta tabletes. mas quem teria feito isso? havia dois h�spedes na casa. john wilson tinha os meios; saintalard, o motivo. n�o se esque�a de que ele era um fan�tico, e n�o h� fan�tico pior que o religioso. ser� que ele encontrara alguma maneira de se apoderar da trinitrina de john wilson? ocorreu-me outra pequena id�ia. ah, voc� sorri de minhas pequenas id�ias! por que wilson ficara sem trinitrina? certamente deveria ter trazido um suprimento adequado da inglaterra. fui novamente visitar a casa da avenue louise. wilson n�o estava, mas conversei com a mo�a que arrumava o quarto dele, f�licie. perguntei-lhe imediatamente se n�o era verdade que o sr. wilson perdera um vidro h� algum tempo. ela respondeu, com a maior ansiedade, que era verdade, que inclusive fora responsabilizada por isso. o cavalheiro ingl�s pensara que ela quebrara o vidro e ficara com medo de confessar. mas ela, f�licie, nem sequer tocara nele. certamente fora jeannette ... sempre bisbilhotando onde n�o devia ... tratei de estancar seu fluxo de palavras e me retirei.

j� sabia tudo o que precisava saber. restava-me agora obter as provas necess�rias. tinha certeza de que n�o seria f�cil. eu podia estar absolutamente convencido de que saintalard tirara o vidro de trinitrina de john wilson, mas teria 234 a 235 que obter provas para convencer os outros. e n�o tinha nenhuma para apresentar! mas n�o importava. eu sabia ... e isso era o mais importante. lembra-se de nossa dificuldade no caso de styles, hastings? eu tamb�m sabia de tudo, mas levei bastante tempo para descobrir o �ltimo elo que iria incriminar o assassino. solicitei uma entrevista com mlle virginie. ela foi procurar-me imediatamente. pedi-lhe o endere�o de m. saintalard. uma express�o ansiosa se estampou em seu rosto. - por que deseja saber, monsieur? - � absolutamente necess�rio, mademoiselle. ela parecia desconfiada, apreensiva. - ele nada poder� dizer-lhe. � um homem cujos pensamentos n�o est�o neste mundo. mal percebe o que est� acontecendo a seu redor. - � poss�vel, mademoiselle. n�o obstante, era um velho amigo de m. d�roulard. talvez possa nos dar informa��es �teis ... coisas do passado ... velhos ressentimentos ... antigos casos de amor ... a jovem corou e mordeu levemente o l�bio. - como quiser ... mas ... mas ... tenho certeza agora de que me enganei. foi muito generoso ao atender meu pedido, mas eu estava na ocasi�o bastante transtornada... profundamente abalada. compreendo agora que n�o h� mist�rio algum para ser esclarecido. abandone o caso, por favor, monsieur. fitei-a atentamente. - mademoiselle, �s vezes � dif�cil para um cachorro farejar um cheiro. mas a partir do momento em que consegue farej�-lo, nada no mundo poder� fazer com que se desvie da pista. isto �, se for um bom cachorro. e eu, mademoiselle, eu, hercule poirot, sou um excelente perdigueiro! sem dizer mais nada, ela se retirou. voltou alguns minutos depois, com o endere�o escrito num peda�o de papel. deixei a casa. fran�ois estava me esperando do lado de fora. parecia nervoso. - alguma novidade, monsieur? - ainda n�o, meu amigo. - ah, pauvre m. d�roulard! tamb�m penso como ele. n�o gosto dos padres. � verdade que jamais diria isso nesta casa. as mulheres s�o tidas devotas ... o que talvez seja uma boa coisa. madame est tr�s pieuse... et mlle virginie aussi 1. mlle virginie? ela tamb�m era "tr�s pieuse"? recordei-me, pensativo, do rosto apaixonado e abalado pelas l�grimas que vira naquele primeiro dia. tendo obtido o endere�o de m. saint-alard, n�o perdi tempo. fui at� as proximidades de seu ch�teau, nas ardentes, mas passaram-se alguns dias antes que conseguisse encontrar um pretexto para visit�-lo. acabei entrando na casa, imagine como?, como um encanador, mon ami! n�o foi dif�cil providenciar um pequeno vazamento de g�s no quarto dele. sa� para buscar minhas ferramentas e tomei a precau��o de s� voltar numa hora em que sabia que n�o seria incomodado. n�o vou dizer que soubesse exatamente o que estava procurando. mas tinha certeza de que n�o teria a menor possibilidade de encontrar o que era realmente importante. saint-alard jamais correria o risco de guard�-lo.

mesmo assim, quando encontrei um pequeno arm�rio trancado, acima do lavat�rio, n�o pude resistir � tenta��o de ver o que havia l� dentro. era uma fechadura simples, f�cil de abrir. n�o tive a menor dificuldade. o arm�rio estava repleto de vidros. examinei-os, um a um, com as m�os tr�mulas. e, de repente, soltei um grito. imagine s�, meu amigo, que eu tinha nas m�os um pequeno frasco com o r�tulo de um farmac�utico ingl�s. e nele estavam escritas as seguintes palavras: " tabletes de trinitrina. tomar um, quando necess�rio. sr. john wilson". controlei minha emo��o, fechei o pequeno arm�rio, meti o vidro no bolso e continuei a consertar o vazamento de g�s. afinal, n�o se pode deixar de ser met�dico. depois, deixei o ch�teau e peguei o primeiro trem para meu pa�s. cheguei a bruxelas tarde da noite. pela manh�, estava escrevendo um relat�rio para o pr�fet quando recebi um bilhete. era da velha mme d�roulard, e me convocava para um encontro imediato na casa da avenue louise. fran�ois abriu-me a porta. - madame la barone est� a sua espera. conduziu-me aos aposentos dela. mme d�roulard estava sentada, imponente, numa poltrona. mlle virginie n�o estava presente. **1 "a senhora � muito piedosa... e a srta. virginie tamb�m." em franc�s no original. (n. do e.) 236 a 237 - m. poirot, acabei de saber que n�o � o que declarou. � um oficial da pol�cia. - exatamente, madame. - veio a esta casa para investigar as circunst�ncias da morte de meu filho? - exatamente, madame. - ficaria agradecida se pudesse dizer-me o que j� descobriu. hesitei um momento. - primeiro, madame, eu gostaria de saber como descobriu minha verdadeira identidade. - por interm�dio de algu�m que n�o est� mais neste mundo. as palavras dela e a maneira solene como as pronunciou provocaram-me um calafrio. por um momento, n�o fui capaz de dizer nada. - portanto, monsieur, pe�o-lhe que me diga exatamente o que j� descobriu em suas investiga��es. - a investiga��o est� encerrada, madame. - e meu filho ... ? - foi morto deliberadamente. - sabe por quem? - sei, madame. - e quem foi? - m. de saint-alard. a velha senhora sacudiu a cabe�a. - est� enganado. m. alard � incapaz de um crime assim. - tenho todas as provas. - pe�o-lhe mais uma vez que me conte tudo. desta vez obedeci, relatando todas as etapas que me haviam levado � descoberta da verdade. ela ouviu atentamente. ao final, assentiu e disse: - foi tudo exatamente como disse, exceto uma coisa. n�o foi m. de saint-alard quem matou meu filho. fui eu, sua pr�pria

m�e. fiquei atordoado. ela continuou a menear a cabe�a, gentilmente. - foi �timo eu t�-lo chamado. e foi a provid�ncia do bom deus que levou virginie a me contar o que fizera, antes de partir para o convento. quero que preste toda a aten��o, m. poirot. meu filho era um homem diab�lico. perseguia a igreja. levou uma exist�ncia de pecado mortal. e arrastou outras almas para a lama. mas houve algo pior do que isso. certa manh�, quando eu sa�a do meu quarto, aqui nesta casa, avistei minha nora parada no alto da escada. estava lendo uma carta. vi meu filho se aproximar dela, por tr�s, silenciosamente. um r�pido empurr�o, e ela caiu, batendo a cabe�a nos degraus de m�rmore. j� estava morta quando a pegaram. meu filho era um assassino, e eu, sua m�e, era a �nica que sabia disso. fechou os olhos por um momento. - n�o pode imaginar, monsieur, a minha agonia, o meu desespero. o que deveria fazer? denunci�-lo � pol�cia? n�o podia fazer isso. era meu dever, mas minha carne era fraca. al�m do mais, ser� que acreditariam em mim? h� algum tempo que minha vis�o vinha enfraquecendo cada vez mais. diriam simplesmente que eu me enganara. mas a consci�ncia n�o me deu sossego. ao manter sil�ncio, tamb�m eu era uma assassina. meu filho herdara o dinheiro da esposa, e tudo lhe sa�a bem. agora, estava para ganhar uma pasta no minist�rio. e havia virginie. a pobre crian�a, linda, naturalmente devota, estava fascinada por meu filho. ele possu�a um estranho e terr�vel poder sobre as mulheres. vi o que estava para acontecer. nada podia fazer para evit�-lo. ele n�o tinha a menor inten��o de se casar com virginie. e chegara o momento em que ela estava preparada para cederlhe tudo. "foi ent�o que compreendi o que deveria fazer. ele era meu filho. eu lhe dera a vida. era respons�vel por ele. meu filho matara o corpo de uma mulher, agora ia matar a alma de outra! fui ao quarto do sr. wilson e peguei o vidro de tabletes. ele dissera certa ocasi�o, rindo, que os tabletes podiam matar um homem. fui em seguida para o gabinete e abri a grande caixa de bombons que sempre ficava em cima da mesa. por engano, abri uma caixa nova. a outra tamb�m estava em cima da mesa. s� restava um bombom. isso simplificava a coisa. ningu�m mais comia, a n�o ser meu filho e virginie. eu a manteria ocupada ao meu lado naquela noite. tudo transcorreu conforme eu planejara ... " fez uma pausa, fechando os olhos novamente. logo tornou a abri-los, e acrescentou: "estou em suas m�os, m. poirot. disseram que n�o me restam muitos dias de vida. estou disposta a responder por meu ato perante o bom deus. devo faz�-lo tamb�m aqui na terra?" hesitei um momento e depois disse, para ganhar tempo: 238 a 239 - mas o vidro vazio, madame! como foi parar nas "al�m disso, minha psicologia tamb�m foi falha. se m�os de m. de saint-alard? m. de saint-alard fosse o criminoso, jamais iria guardar o - quando ele foi se despedir de mim, monsieur, vidro incriminador. a descoberta do vidro em seu poder meti o vidro em seu bolso. n�o sabia como iria livrar-me era uma prova de inoc�ncia. eu j� sabia, informado por daquele vidro. estou t�o fraca que praticamente n�o posso mlle virginie, que ele era um homem extremamente disandar sem a ajuda de algu�m. se descobrissem o vidro vazio tra�do. no todo, foi um caso lament�vel. voc� � a �nica em meus aposentos,

certamente isso iria despertar suspeitas. pessoa a quem j� o contei. uma velha senhora comete um quero que compreenda, monsieur... - fez uma breve crime de maneira t�o simples e inteligente que at� eu, herpausa, empertigando-se, antes de arrematar: - que eu n�o cule poirot, sou completamente enganado. sapristi! � metinha a menor id�ia de lan�ar suspeitas sobre m. de saint - lhor at� nem pensar neste caso! esque�a-o! ou melhor, n�o alard. isso jamais me passou pela cabe�a. achei que o o esque�a. e se algum dia achar que estou me tornando por criado dele encontraria o vidro vazio e o jogaria fora, sem demais presun�oso ... o que n�o � prov�vel, mas pode aconpensar mais no caso. tecer..." baixei a cabe�a e murmurei: disfarcei um sorriso, e poirot acrescentou: - claro que compreendo, madame. - eb bien, meu amigo, basta dizer-me "caixa de - e qual p sua decis�o, monsieur? bombons". combinado? a voz dela era firme e forte, e sua cabe�a estava mais - neg�cio fechado! erguida do que nunca. - mas, no final das contas, foi uma boa experi�ncia levantei-me. pensativo. - eu, que indubitavel - murmurou poirot - madame, tenho a honra de desejar-lhe muito bom , mente possuo o melhor c�rebro da europa na atualidade, dia. fiz algumas investiga��es ... e fracassei! o caso est� posso dar-me o luxo de ser magn�nimo! encerrado! - caixa de bombons - disse eu, gentilmente. poirot ficou em sil�ncio algum tempo murmurando - pardon mon ami? em seguida: , olhei para o rosto inocente de poirot, inclinado em i - ela morreu apenas uma semana depois. mlle vir - com uma express�o inquisitiva. senti um minha dire��o g�nie passou pelo noviciado e fez os votos. � essa a hist�ria, , aperto no cora��o. sofrera muitas vezes nas m�os dele. mas meu amigo. n�o posso deixar de reconhecer que meu papel embora n�o possu�sse o melhor c�rebro da eu tamb�m n�o foi dos melhores. , podia dar-me o luxo de ser magn�nimo. europa - mas, a rigor, n�o se pode considerar isso um fra - , - nada - menti. e acendi novamente o cachimbo , casso, poirot. o que mais voc� poderia ter pensado, nas sorrindo para mim mesmo. circunst�ncias? - ab, sacr�, mon ami! - gritou poirot, animando-se subitamente. - ser� que n�o percebe? fui trinta e seis vezes idiota! minhas c�lulas cinzentas absolutamente n�o funcionaram! o tempo todo eu tive a verdadeira pista em minhas m�os! - que pista? - a caixa de bombons! n�o percebe? algu�m com a vis�o perfeita poderia cometer um erro daqueles? eu sabia que mme d�roulard sofria de catarata, por causa das gotas de atropina. somente uma pessoa naquela casa n�o podia perceber que estava pondo as tampas trocadas. foi a caixa de bombons o que me lan�ou na pista. e, no final, acabei n�o entendendo seu verdadeiro significado! 240 a 241

Related Documents