A fábula na sala de aula Luís Camargo1 Um burro e um cachorro iam andando por uma estrada, quando encontraram uma carta. Curioso, o burro abriu a carta e começou a lê-la em voz alta. Ela falava sobre comida boa pra burro, isto é, milho e capim. – Essa parte você pode pular, disse o cachorro. Veja se a carta fala sobre algo mais útil, como carne, ossos, costela, rabada, essas coisas... O burro deu uma olhada no resto da carta e respondeu que nela não havia nada sobre comida para cachorro. – Então jogue essa carta fora, disse o cachorro, aborrecido. – Ela não presta para nada! Dizem que essa história mostra que cada um vê as coisas segundo seus próprios interesses2. E nós podemos dizer que cada leitor procura em um texto algo que atenda a seus interesses. Ao contrapor personagens com interesses diferentes – um herbívoro e um carnívoro –, essa história mostra também que diferentes leitores podem saborear um texto de maneiras diferentes. Essa história é uma fábula. Pelo menos eu a encontrei em um site que reúne 600 fábulas de Esopo, ou melhor, atribuídas a Esopo. No século I da nossa era, o termo fábula esópica era utilizado não porque a fábula fosse realmente de autoria de Esopo, mas em sentido geral, como homenagem a Esopo, por sua dedicação ao gênero e sua maestria. É importante lembrar que Esopo deve ter vivido no século VI a.C. e que não conhecemos nenhum texto autógrafo dele, ou, como dizem os advogados, “escrito de próprio punho”. As cópias mais antigas das fábulas esópicas são do século X d.C. O que realmente Esopo contou e escreveu? Não sabemos. Mas isso não tem importância. O que importa é que “fábula de Esopo” ou “fábula esópica” é um tipo de texto de origem provavelmente oriental, que se desenvolveu na Grécia, passou ao mundo latino e depois às línguas neolatinas. Fedro (15 a.C.), La Fontaine (1621-1695), Monteiro Lobato (1882-1948) e Millôr Fernandes (1924) são herdeiros e recriadores dessa tradição 3. O que é uma fábula? Os antigos diziam que fábula é uma história mentirosa que mostra uma verdade 4. Se essa definição tem uma pitada de razão, essa história parece ser uma fábula. Pelo menos por duas razões. Em primeiro lugar, é uma história mentirosa, pois burro e Editor assistente de literatura infantil e juvenil da Editora FTD, escritor e ilustrador de livros infantis. Formado em artes plásticas, mestre em letras pela Unicamp, está concluindo o doutorado na mesma área, na mesma universidade, sob orientação de Marisa Lajolo, consultora desta série. Vem estudando o gênero fábula desde 1998. Lecionou cursos sobre o tema para professores e realizou (a distância) atividades com alunos do ensino fundamental, além traduzir e adaptar algumas fábulas. Site: http://caracol.imaginario.com/autografos/luiscamargo/index.html. 1
Essa é uma adaptação, de minha autoria, da fábula The Donkey, the Dog and the Letter, tirada de Aesop’s Fables, translated by Laura Gibbs. Disponível em: http://www.mythfolklore.net/aesopica/oxford/index.htm; acesso em 25 set. 2005. 2
3
Ver, por exemplo: DEZOTTI, Maria Celeste Consolin (Org.). A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. LOBATO, Monteiro. Fábulas. 50. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001. FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. 15. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999.
cachorro não falam nem sabem ler; em segundo lugar, a história mostra uma verdade, explicitada na penúltima frase do texto: “cada um vê as coisas segundo seus próprios interesses”. Aposto que você tem uma idéia sobre o que seja fábula. E arrisco a dizer que seu conceito de fábula é diferente desse que acabei de apresentar. Foi de propósito, justamente para sugerir que os conceitos variam ao longo do tempo. Imagine que estamos sentados em círculo e que um de nós proponha um “jogo rápido”: “diga uma característica da fábula”. Você poderia responder, por exemplo, “concisão”. De fato, fábulas são narrativas curtas. Por serem curtas, as fábulas podem ser facilmente memorizadas e se prestam a exercícios de reescrita. Desenhar ajuda a criança a lembrar a história. Em alguns casos, a criança desenha o trecho que mais chamou sua atenção, por exemplo, o clímax da história. Em outros casos, a criança pode transformar a história em uma história em quadrinhos. Especialmente no caso de crianças menores, desenhar depois de ler ou ouvir uma história parece favorecer a sua reescrita. Aliás, parece que – pelo menos nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental – a reescrita depois da audição de um texto funciona melhor do que a reescrita depois da leitura. Por quê? Porque, depois da leitura, muitas vezes a criança continua tendo acesso ao texto, o que pode levá-la a consultá-lo, a relê-lo. Assim, em lugar de reconstruir mentalmente o texto e reescrevê-lo “com suas palavras” – como se costuma dizer –, a criança pode se sentir atraída a copiar o texto ou, pelo menos, alguns de seus trechos. A reescrita permite avaliar a compreensão do texto e, ao mesmo tempo, serve para a criança exercitar e flexibilizar sua escrita, aprendendo que um mesmo conteúdo pode ser expresso de maneiras diferentes. (É verdade que mudanças na forma provocam mudanças no sentido, mas essa é uma sutileza de difícil compreensão para crianças em fases iniciais de leitura e escrita.) Há procedimentos que nós podemos perceber facilmente nas reescritas infantis (e não só infantis): 1) substituição de palavra por sinônimo ou de uma expressão por outra, equivalente; 2) adição de palavras ou de informações relevantes; 3) subtração de palavras; 4) mudança na ordem das palavras ou das frases. Depois da reescrita, os alunos podem trocar seus textos, de maneira que cada um conheça e aproveite o ponto de vista de pelo menos um outro colega. O colega, por sua vez, poderia fazer uma releitura prestando atenção, por exemplo, na ortografia, na acentuação ou na pontuação. Ou tudo junto. Cabe a você dosar a dificuldade da atividade. Dessa maneira, o colega pode funcionar como revisor. Vale a pena, em seguida, que o aluno releia o texto original, cotejando com sua reescrita e marcando as alterações que fez. Em grupos, os alunos poderiam procurar sintetizar essas diferenças. Como já vimos: substituição, adição, subtração e mudança de ordem. Antes Essa é a definição de Aelius Theon, retórico do primeiro século da nossa era. Ver: PROGYMNASMATA: Greek textbooks of prose composition and rhetoric. Translated with introductions and notes by George A. Kennedy. Atlanta, GA: Society of Biblical Literature, 2003. (Writings from the Greco-Roman World, 10). 4
de propor esse exercício aos alunos, você mesmo poderia escolher um ou mais trechos e mostrar os vários tipos de recursos de reescrita utilizados pelos seus alunos. Há vários outros recursos, que os alunos podem aprender gradativamente, como a mudança de tempo verbal, por exemplo, do passado para o presente; mudança do discurso direto (– Essa parte você pode pular, disse o cachorro.) para o discurso indireto (O cachorro disse que essa parte ele podia pular.) etc. As fábulas são narrativas – em prosa ou em verso – que geralmente apresentam animais como personagens. Animais que pensam, sentem, agem e falam como se fossem pessoas. Esse recurso de atribuir características humanas a outros seres – animais, plantas, objetos, conceitos como morte ou justiça etc. – é conhecido como personificação. O termo personificação pode parecer complicado, mas as crianças usam bastante esse recurso em seus desenhos. Por exemplo, Eduarda, 9 anos:
Figura 1: Desenho de Eduarda, 9 anos. Eduarda escreveu a seguinte legenda para seu desenho: “Eu imaginei um sol sorrindo, nuvens brancas, flores no jardim, uma árvore cheia de frutos e a grama verde verdinha”. Note a expressão sol sorrindo, personificação que aparece tanto no desenho como na legenda. Quando trabalhei com Educação Infantil, notei que as crianças gostavam de ouvir histórias de animais e, ao brincar com teatro de bonecos, preferiam animais para expressar seus sentimentos. É mais fácil para a criança expressar raiva brincando de ser um jacaré raivoso do que brincar de criança raivosa e, mais ainda, admitir que ela mesma tem sentimentos negativos. Por falar em jacaré, lembro de uma fórmula-de-escolha que gerou várias brincadeiras com um fantoche representando um jacaré: “Fui andando num caminho, encontrei um jacaré, eu pisei no rabo dele, me mandou tomar café”. Levei bonecos representando alguns animais brasileiros como jabuti, arara e tucano. Mas, na falta de histórias sobre esses animais, as crianças não relacionavam os animais com sentimentos ou comportamentos específicos (por exemplo, o lobo mau...) e esses bonecos eram pouco utilizados. Isso sugere que a criação infantil depende de modelos adultos. Ao contrário da idealização da criança como ser espontâneo e criativo, percebemos que a criança cria segundo modelos cognitivos herdados geneticamente (por exemplo, toda criança, antes de desenhar figuras, rabisca sem intenção figurativa) e recria a partir de modelos herdados culturalmente, isto é, apropriados graças à mediação do adulto ou de outras crianças. Talvez muito professor se frustre com as produções infantis (desenho, escrita etc.) por conta dessa idealização da criatividade infantil. É preciso fornecer modelos. Antes de ser capaz de inventar uma fábula, a criança precisará ter lido, ouvido e assistido (no teatro, no cinema, na TV) muitas fábulas... Uma prática muito comum é pedir para a criança escrever um texto logo depois do primeiro contato com um determinado tipo de texto, por exemplo, ler um poema e imediatamente ser solicitado a escrever um poema. Por falta de modelos suficientes a criança acaba repetindo o modelo com pouquíssimas alterações.
Algo semelhante ocorre com escritores iniciantes que repetem modelos desgastados, por falta de contato com modelos variados. É verdade que não se aprende a escrever só lendo, mas a leitura e a reflexão sobre a leitura são fundamentais para o desenvolvimento da escrita. A reescrita também é outro procedimento fundamental. As crianças muitas vezes conotam a reescrita como algo negativo, porque “ainda não sabem escrever”. Na verdade, a reescrita é procedimento comum de muito escritor reconhecido. Raramente o escritor escreve de uma vez, sem alterações. As fábulas não apresentam só animais como personagens. Há fábulas sobre objetos, sobre plantas, sobre estações do ano, sobre a morte, sobre pessoas, inclusive pessoas conhecidas, como Esopo ou poeta grego Simônides. Ao ilustrar a fábula A cigarra e a formiga, de La Fontaine, Marcelo Pacheco desenhou uma cigarra sentada em um banquinho, com um violão, com os olhos fechados, como se cantasse para si mesma. Essas referências podem ser interpretadas como alusões a João Gilberto e à bossa nova. De um lado, o texto é uma tradução do francês para o português; de outro, a ilustração parece ter traduzido a fábula para o universo cultural brasileiro 5.
Figura 2: A cigarra e a formiga Essa ilustração me sugeriu a idéia de adaptar fábulas tradicionais para o cenário brasileiro, ou melhor, para diferentes cenários brasileiros. Foi o que procurei fazer com a fábula abaixo. A onça e o cabrito Foi um dia, apareceu uma onça no sertão. Depois de urrar pela caatinga, sem nenhuma barraquinha de água-de-coco ou cachorro-quente, a onça estava com sede e com fome. E pensou: “quem não tem cachorro-quente, come cabrito”. Ilustração publicada no livro (hoje fora de catálogo): GOLDSTEIN, Norma; DIAS, Marinez. Linguagem e vida: 5a. série. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993. 5
Num lugar alto e pedrento, cheio de cactos – mandacarus, palmas e xiquexiques – pastava um cabrito. A onça resolveu almoçar o cabrito. – Seu cabrito, o senhor não devia se arriscar nesse monte pedregoso! Veja como o campo aqui embaixo é mais verde! – Dona onça, a senhora me desculpe, mas não vou cair nessa conversa mole para boi dormir: eu sei bem que a senhora está mais interessada no seu almoço do que no meu. E saiu cabriolando monte acima. Sem água-de-coco, sem cachorro-quente nem cabrito, a onça pegou umas palmas, tirou os espinhos, fez uma salada e comeu. As fábulas mais antigas foram inventadas na Grécia e na Índia. Por isso elas fazem referência a animais, plantas e costumes dessas regiões. A fábula acima é uma adaptação de uma fábula grega em que um bode (ou uma cabra) se defronta com um leão (ou um lobo, e no Brasil, adaptou-se para uma onça). Como as fábulas são muito antigas, há muitas e muitas versões, sendo difícil determinar qual é a versão original. Na adaptação, acima o cenário é brasileiro: a ação se passa no Nordeste brasileiro. No livro didático em que essa fábula foi publicada aparece a seguinte proposta: “Reescreva essa – ou outra fábula – incluindo plantas, animais e outros elementos da sua região” 6. Por falar em ilustração, na internet você pode encontrar muitas ilustrações de fábulas. Algumas das mais curiosas são a que ilustram o livro O labirinto de Versalhes. Esse labirinto era uma parte dos jardins do Palácio de Versalhes, com fontes inspiradas nas fábulas de Esopo.
Figura 3: Ilustração para o livro O labirinto de Versalhes, de Charles Perrault 7.
6
VIVA VIDA: livro integrado. Nova ed. São Paulo: FTD, 2004. v. 4, p. 191-192.
Livro online, no site Gallica, disponível em: http://gallica.bnf.fr/; para acessar o livro, clique em “Recherche” e digite, em “Mots du titre”, “labyrinthe de versailles”. Vá folheando o livro até aparecerem as ilustrações. 7
Figura 4: Ilustração de Gustave Doré para a fábula A cigarra e a formiga, de La Fontaine 8. Note que os animais personificados da fábula aparecem aqui como figuras humanas: a cigarra, como violonista; a formiga, como dona-de-casa.
Figura 5: Xilogravura que ilustra a fábula O leão e a cabra em um livro em latim, publicado na Alemanha em 1501 9.
Ilustração disponível em: http://gallica.bnf.fr/; para acessá-la, clique em “Recherche” e digite, em “Mots du titre”, “fables” e, em “Auteur”, “doré”. Clique em “Illustrations des Fables”. Esta é a imagem 7. Clique na imagem para ampliá-la. 8
Livro online, no site da Universidade de Mannheim, disponível em: http://www.unimannheim.de/mateo/desbillons/esop.html; para acessar as imagens, clique nos links em azul. Se você não sabe alemão nem latim (como eu), navegue por tentativas, erros e acertos. Esta imagem é a S. 208. 9
Figura 6: Gravura de A. Delierre para a fábula A tartaruga e os dois patos, de La Fontaine, inspirada na tradição hindu 10. As fábulas mostram pontos de vista sobre comportamentos humanos. Ou seja, recomendam certos comportamentos e censuram outros, que devem ser evitados. Esse ponto de vista – ou opinião – costuma ser explicitado(a) no início ou no fim das fábulas e é chamado lição ou moral. Na fábula que inicia este texto, a moral aparece ao final, destacada da história: “Dizem que essa história mostra que cada um vê as coisas segundo seus próprios interesses”. Já na segunda fábula, a moral aparece propositalmente disfarçada no interior do texto: “a senhora está mais interessada no seu almoço do que no meu”, forma indireta de recomendar cautela face aos conselhos de um inimigo, cuja hipocrisia é desmascarada como “conversa mole para boi dormir”. Essa adaptação não deixou a onça a ver navios, sugerindo a importância de saber improvisar, saber adaptar-se às situações. A moral “quem não tem cachorro-quente, come cabrito”, explicitada no início da fábula, transforma-se em “quem não tem cabrito, come palma”, tanto uma como a outra, brincadeiras com o provérbio popular “quem não tem cão caça com gato”. Nem toda fábula tem uma moral explícita e, em diferentes versões, a moral pode variar, mesmo quando os personagens e os acontecimentos são os mesmos. Isso mostra que diferentes leitores podem tirar diferentes lições de uma mesma fábula. O que, aliás, já dizia a fábula que escolhi para iniciar este texto... Não parece fazer muito sentido, assim, cobrar que todos os alunos dêem a mesma resposta sobre a lição de uma fábula. A não ser que nosso objetivo seja apenas que os alunos decorem as respostas que nos agradam mais. Escrevi propositalmente “respostas que nos agradam mais” pois uma mesma fábula pode permitir diferentes interpretações. Experimente, por exemplo, reunir seus colegas e dar a Ilustração disponível em: http://gallica.bnf.fr/; para acessá-la, clique em “Recherche” e digite, em “Auteur”, “delierre”. Clique em “Illustrations de Les Fables”. Esta é a imagem 59. 10
cada um três fábulas para ler, tomando o cuidado de antes eliminar a moral (se houver moral explícita). Em seguida, peça que cada um escreva “o que você acha que essa fábula mostra” ou “para você, qual a lição dessa fábula” ou ainda “na sua opinião, qual a moral dessa fábula”. Claro que haverá convergências e até mesmo semelhanças muito grandes, mas nunca uma uniformidade completa. Use essa experiência com seus alunos: se você quiser discutir a moral de uma fábula, incentive a diversidade de interpretações. Mais importante do que a resposta é a justificativa para a resposta. Justificar uma resposta significa aprender a argumentar; ouvir argumentações, aprender a contra-argumentar e a respeitar diferenças, pois nem sempre é possível (ou até mesmo desejável) a uniformidade de pensamento. Vale a pena falar um pouco sobre a tradição hindu, mencionada de passagem, pois só muito recentemente é que essa tradição começou a circular no Brasil, em português11. Na tradição hindu, as fábulas são entrelaçadas dentro de uma narrativa maior; os personagens geralmente têm nomes que se referem a alguma característica do personagem. Por exemplo, a tartaruga Kambugriva, cujo nome em sânscrito quer dizer pescoço enrugado como uma concha. Ao adaptar essa fábula, troquei o nome Kambugriva por Casca-Dura, que me pareceu uma característica que poderia ser mais facilmente reconhecida pelas crianças do que pescoço enrugado. A tartaruga Casca-Dura Em um lago, viviam três amigos: uma tartaruga chamada Casca-Dura e dois cisnes, Miúdo e Graúdo. Casca-Dura encontrava Miúdo e Graúdo nas margens do lago. Eles ficavam contando histórias o dia inteiro e os dois cisnes só voltavam ao ninho de tardezinha, quando o sol se punha. Houve um tempo sem chuvas e o lago foi secando. Miúdo e Graúdo começaram a se preocupar. Miúdo disse: – Casquinha (esse era o apelido carinhoso com que os cisnes chamavam sua amiga), o lago está secando. Graúdo completou: – Como é que você vai sobreviver? Casca-Dura respondeu: – Vocês têm razão! Logo, logo não vamos ter água para viver. Por isso, devemos pensar no que fazer, pois “quem quer água limpa, busca na fonte”. Como o povo diz, “a necessidade é a mãe das invenções.” Miúdo perguntou: – O que você sugere? Casca-Dura propôs: – Primeiro, procurem uma lagoa com bastante água. Nos dias seguintes, Miúdo e Graúdo procuraram uma lagoa. 11
Graças, por exemplo, a: PAÑCATANTRA: fábulas indianas – livro 1. Traduzido do sânscrito para o português por Maria da Graça Tesheiner, Marianne Erps Fleming, Maria Valíria Aderson de Mello Vargas. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2003.
Ao final de uma semana, Graúdo deu a notícia: – Casquinha, nós encontramos uma lagoa, mas é muito longe. Como você vai chegar lá? Casca-Dura então propôs: –Tragam um galho leve. Eu vou agarrar com os dentes no meio do galho e vocês, nas pontas. Depois de agarrarmos todos juntos, vocês me levarão até a lagoa. Miúdo disse: – O povo costuma dizer que “na necessidade se prova a amizade”. Graúdo completou: – Casquinha, vamos fazer direitinho como você propôs, mas você precisa ficar de bico calado. “Boca de siri”, como se diz por aí, senão você cairá do galho. E assim fizeram. Na viagem, os três sobrevoaram uma cidadezinha. Os habitantes, surpresos, disseram: – Nossa! Os cisnes estão levando uma tartaruga! Ouvindo o burburinho, Casca-Dura respondeu: – O que é que há? Nunca viu, cara de pavio? Na verdade, era o que Casca-Dura queria dizer, mas ela caiu na metade da frase. E – como você pode imaginar – a tartaruga foi feita em pedacinhos. Por isso, eu digo: “Quem não consegue ficar de bico calado quando é preciso morre como a tartaruga que caiu do galho.”12 Como você pode perceber, uma característica da fábula hindu é a quantidade de provérbios incluída no corpo da fábula, ao contrário da tradição esópica, em que a moral aparece no começo ou no fim da fábula. Aqui não é possível mostrar o entrelaçamento das fábulas, que é talvez a característica que mais distingue a tradição hindu da tradição esópica. Para finalizar esses apontamentos, vale a pena destacar que nós não precisamos “trabalhar” com todos os textos. Precisamos acreditar na força dos próprios textos, na força educativa da leitura. Sugestões de atividades Pode-se incentivar os alunos a mudar o gênero do texto, por exemplo, passar do texto narrativo para o texto dramático. Para isso, é necessário ir do mais simples ao mais complexo, como confeccionar bonecos com cartolina desenhada e recortada, presa em lápis ou canetas; improvisar diálogos e depois escrevê-los; escrever diálogos a partir de ilustrações mostrando dois ou mais personagens etc. Para a escrita de textos dramáticos é importante também ter contato com textos dramáticos curtos, por exemplo, para teatro de bonecos, tanto pela leitura silenciosa como pela leitura em voz alta. Adaptação minha a partir de: PAÑCATANTRA: fábulas indianas – livro 1. p. 171-174. Extraí alguns provérbios de: PINTO, Ciça Alves. Livro dos provérbios, ditados, ditos populares e anexins. 3. ed. São Paulo: Senac São Paulo, 2002. 12
As ilustrações de fábulas podem servir como matéria-prima para várias atividades em sala de aula: 1) imaginar e escrever um diálogo entre os animais que aparecem na ilustração; 2) em dupla, fazer uma leitura em voz alta do diálogo; 3) com bonecos de papel recortado, dramatizar o diálogo; 4) imaginar o que aconteceu antes e o que vai acontecer depois da cena representada; 5) desenhar a cena anterior e a cena posterior; 6) escrever o que aconteceu nessas cenas. Se você quiser, durante um mês, desenvolver uma unidade de leitura sobre fábula, você poderia selecionar vinte fábulas13. Quatro dessas fábulas poderiam ser objeto de alguma das várias atividades sugeridas neste texto. As outras dezesseis fábulas poderiam simplesmente ser lidas em voz alta. Nos outros dias da semana, você poderia ler uma fábula por dia para os alunos. Poderia fazer um comentário, incentivar os alunos a comentarem, mas sem “cobranças”: comenta quem quiser comentar. Ninguém deve ser penalizado por não falar. Por outro lado, é preciso colocar um pouco de limites em quem não permite que os outros falem, mesmo sem querer, até mesmo por excesso de extroversão... Depois de uma semana você poderia ir alternando uma fábula lida por você com uma fábula lida por um aluno. Conforme o desempenho de leitura dos alunos, na última semana só os alunos leriam. Eventualmente, um grupo de alunos poderia fazer a leitura em voz alta de uma fábula, distribuindo as falas entre o narrador e os personagens. Livros artesanais confeccionados pelos alunos, com reescritas de fábulas, ilustradas; exposição de desenhos; apresentações de teatro de bonecos – tudo isso podem ser formas de mostrar o trabalho dos alunos para a escola e para a comunidade escolar.
Unidade de leitura é um termo proposto por Ezequiel Theodoro da Silva para se referir a um tema gerador abordado por meio de textos variados. Ver: SILVA, Ezequiel Theodoro da. Unidades de leitura: trilogia pedagógica. Campinas: Autores Associados, 2003. (Coleção Linguagem e Sociedade). 13