Abandono I - By Samuel Finger

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  • Words: 716
  • Pages: 2
Abandono By Samuel Finger, [email protected] 11/09/2009

I Meus olhos fecharam-se. Apenas por um insignificante segundo. Mas, a essa altura, fora o bastante. Ao abri-los, assomei-me em outro lugar. Estremeci; meus pelos se arrepiaram e encolheram-se meus ombros, involuntariamente. Eu estava em pé, sobre um solo ressecado e escuro onde baixas árvores mortas contorciam-se em direção a um ominoso céu negro coberto por espessas nuvens, onde esparsos relâmpagos amarelados surgiam e morriam lentamente. Ao longe, como num cinturão quebrado, montanhas escuras formavam um semicírculo ao meu redor, todas como gigantes que há muitas eras sentaram-se lado a lado para vigiar mas agora estavam adormecidos. Naquele mórbido vale soprava uma brisa fétida que feria a pele ao seu toque, indicando que ali imperava outro tipo de poder, totalmente oposto ao daquele reino que há poucos segundos regurgitara-me impiedosamente ali. Eu sabia estar agora, no verdadeiro Mundo real, aonde tudo morria. Aqui eu crescera. Não havia sinal algum do anjo que, ao que pareciam anos para mim, descera suavemente dos céus, e com leves asas me conduzira ao inimaginável paraíso que flutuava acima de nós mortais, muito acima ainda do véu eterno de nuvens que sempre em nossa miserável existência contemplávamos. Era um lugar inenarrável, cheio de luz, cores e música constante, coisas que eu nunca experimentara, e em mim estarão gravadas até o fim de meus dias. O anjo fora o ser mais incrível que meus olhos puderam ver, a coisa mais doce que um dia me tocara, o anseio de paz e felicidade que todo morador daqui tinha desde o início de sua sobrevivência, pois vida, no sentido literal, tínhamos mas não podíamos viver. Não sei o que fiz para merecer tais dádivas, das quais a maior era a companhia e o afeto do belo ser angelical. Eu fora um dos poucos que penetrara naquele reino inalcançável, mas a minha dureza, o meu caráter, moldado pelo meu antigo habitar neste Mundo, expulsaram-me da Luz. Porque o anjo se fora eu sabia, mas a dor maior foi compreender que talvez nunca, nunca voltasse. Olhei ao derredor, começando a sentir. Sabia que Eles chegariam, e não podia lutar contra. Minhas atitudes os chamaram. Todos neste Mundo sempre carregaram seres assim, e agora eu também voltaria a carrega-los. Grossas lágrimas queimaram em meus olhos secos, turvando minha visão por algum

tempo, indo rolar em seguida pela minha face, agora suja e poeirenta, castigada pela brisa infernal. Chegaram silenciosamente ali, postando-se à minha esquerda, à minha direita, e atrás de mim. Três pequenas e horrendas criaturas a me contemplar. Eu apenas fitava o horizonte, imóvel, sem nada que pudesse impedir o que se sucederia. A criatura que chegara pelo lado esquerdo, eu já conhecia há muito. Seu nome era Dor. Comigo vagara, alojada em meu peito, sempre a ferir-me no coração. Senti a antiga cicatriz no peito formigar em crescente desespero. Pela minha perna direita, subiu avidamente a outra repugnante criatura, Tristeza. Pôs-se a caminhar incessantemente sobre meu corpo, querendo se estabelecer. A última, Agonia, de apenas um pulo sentou-se como espectro em meus ombros, afagando meus cabelos. Tristeza não soube como se alojar, foi quando então Dor, moveu-se. Subiu por minhas pernas e rasgou minhas vestes, no local exato da cicatriz pulsante, e indicou à parceira. Pus me a tremer angustiado, respirando avidamente. Sabia o que viria em seguida. Mordi fortemente meus lábios quando Dor, com suas garras de aço, arrancou o primeiro pedaço de carne expondo o antigo buraco sem ossos. Cavou com força nos tecidos que cresceram mal-formados sobre meu coração. Tristeza ajudou freneticamente, pondo suas mãos pusilânimes no ferimento e, centímetro a centímetro, chegou aonde queria. Senti o forte gosto de bílis em meus lábios quando ela impiedosa, despejou em meu interior suas excrescências viscosas de podridão. Meu coração pulsou aleijado, vomitando forte as abjetas liquescencias por todo o interior do meu corpo. Minha visão sumiu por um instante e meu único sentido intacto, a audição, captava apenas os gemidos obscenos de prazer doentio que aqueles vermes sobre mim emitiam. De súbito, voltei a mim mesmo. Agora estava concluído. Ao Mundo eu pertencia novamente. Dor sossegou-se em meu braço, olhando séria para o terrível esgar de minha face contorcida enquanto Agonia ainda afagava meus cabelos lentamente. Ouvi a voz de meu espírito ensangüentado dizendo: - Caminhe. Obedeci.

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