A TERCEIRA MULHER PERMANÊNCIA E REVOLUÇÃO NO FEMININO Alexandre Duarte • Mestrado em Comunicação & Imagem_08/09 •
Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing
resumo Como tudo na sociedade e na vida em geral, também o papel da mulher foi evoluindo, mudando e ganhando diferentes importâncias ao longo dos tempos. O filósofo francês Gilles Lipovetsky, analisou e teorizou sobre este tema em várias das suas obras, nomeadamente no livro “A terceira mulher”, que aqui analisaremos, no qual distingue 3 fases que, segundo o próprio, se podem categorizar como momentos perfeitamente distintos da forma como o género feminino foi sendo encarado ao longo da história. Desde a “primeira mulher”, depreciada, mal-vista e até perigosa, passando depois pela fase da mulher enaltecida, da exaltação do feminino, “a segunda mulher”, Lipovetsky analisa neste texto, toda esta evolução até à mulher dos dias de hoje. A valorização das questões de liberdade e da igualdade, a diminuição das diferenças e a preponderância do social no feminino, para citar apenas algumas, são mudanças que têm vindo a ganhar um protagonismo e uma influência tal que culminou num “novo tipo de mulher”, a mulher actual, que o autor denomina de “terceira mulher”. No entanto, e apesar da evolução das atitudes, dos pensamentos e dos comportamentos, a verdade é que há ainda todo um conjunto de “funções” tradicionalmente femininas que continuam a alimentar e a contribuir para fazer perdurar esta visão falologocêntrica da sociedade onde o dualismo homemmulher e correspondentes conceitos opostos se mantêm (razão-emoção; actividade-passividade; público-privado; social-individual; etc.). Daí o sub-título do livro: permanência e revolução do feminino. Quer dizer, apesar de existir uma “nova mulher”, que rompeu com muitas barreiras e preconceitos do passado – daí a revolução, continuamos a ter, infelizmente, uma permanência de valores profundamente retrogados e enraízados que teimam em não desaparecer.
palavras-chave Mulher, Género, Papéis, Sociedade, Cultura, Evolução, Gender Studies, Gilles Lipovetsky
A TERCEIRA MULHER
Permanência e revolução no feminino ________________________________________________________________
2 “Nada é tão duradouro como a mudança.” Ludwig Borne
Introdução Antes de avançarmos para a análise das ideias-chave do texto e da opinião crítica ao mesmo, parece-nos pertinente começar por um pequeno enquadramento do autor, das suas obras e das suas principais ideias, contextualizando toda esta temática no seu âmbito por forma a ajudar-nos na sua interpretação. Gilles Lipovetsky nasceu em 1944 em Millau, no sul da França, é um dos mais influentes pensadores actuais, professor de filosofia da Universidade de Grenoble e detentor de uma vasta obra literária publicada: Do Luxo Sagrado ao Luxo Democrático; A Era do Vazio, Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo; A Felicidade Paradoxal; O Império do Efémero: a Moda e Seu Destino nas Sociedades Modernas; A Inquietude do Futuro: o tempo hiper-moderno; O Luxo Eterno: da Idade do Sagrado ao Tempo das Marcas; Metamorfoses da Cultura Liberal; A Sociedade da Decepção; A Sociedade Pós-Moralista; Os Tempos Hipermodernos; A Terceira Mulher. É também o autor do conceito de “Hipermodernidade”, que define e contextualiza a sociedade actual, a qual, segundo o autor, prima pela busca da qualidade de vida, pela paixão da personalidade, pela constante perseguição da realização pessoal e pelo culto da expressão e participação que legitimam a afirmação de uma identidade pessoal onde o que importa é que o indivíduo seja ele próprio. É a exacerbação do individualismo e do hedonismo.
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3 Lipovetsky usa a expressão Hipermodernidade para situar o momento actual da sociedade humana. O termo “hiper” é usado como referência a uma exacerbação dos valores criados na Modernidade, que, na actualidade, foram exponencialmente ampliados. A Hipermodernidade, que ganhou dimensão social e académica por volta de 2004, como resultado da confluência de vários estudos, inclusive do livro “Os tempos hipermodernos” do próprio Lipovetsky, é caracterizada por uma cultura do mais, do sempre mais, do excesso, onde a mudança se torna constante, onde tudo é efémero, descartável e nada sobrevive ao atropelo da intensidade, da urgência, da novidade. Hipermercado, hiperconsumo, hipercorpo, hipertexto, nada escapa a esta onda onde tudo é elevado à potência do maior, do super, do mega, do Hiper.
A primeira mulher Na obra e, mais concretamente no capítulo que nos propomos analisar, Gilles Lipovetsky fala-nos então, como anteriormente referimos, da evolução do estatuto e do papel da mulher. Desde logo e a abrir, o autor constata a existência de dois princípios invariantes, universais: o primeiro determina que as funções masculinas e femininas não se sobrepõem, i.e, o que um sexo faz, exclui automaticamente o outro e vice-versa. E segundo, as actividades do masculino têm sempre um prestígio maior ou um reconhecimento social superior às do feminino. A tal ponto que às mulheres cabiam apenas as tarefas depreciadas de que não se falava ou se falava mal. Nesta altura, o sexo feminino era encarado como algo depreciativo, sempre associado à maldadae, ao obscuro, ao maléfico. No entanto, um facto parece escapar a esta lógica de sub-valorização e depreciação: a maternidade. Afinal, é impossível descurar uma verdade objectiva: este ser tem a capacidade de gerar vida, inclusivamente do sexo masculino. Ainda assim, como o autor refere, na Grécia Antiga, mesmo durante a gestação, a mulher continua a ser vista como mera depositária de uma semente que o homem criou e deixou dentro dela.
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Outro ponto que merece destaque é o facto de apesar de desprezadas, as mulheres serem vistas como detentoras de poderes ocultos, selvagens, místicos, que, por escaparem à razão e à lógica masculina, eram temidos, no mesmo sentido que o medo do desconhecido. Esse mito alimentou pesadelos e anseios a que o poder e a força masculina rapidamente associaram ao mal. Assim é então a primeira mulher: má, perigosa, diabólica. Mais: mexiriqueira, dada às conversas fúteis e sem interesse, preocupada com a vida alheia e com os boatos, o diz-que-disse, o mal-dizer. Mas não se pense que às mulheres nunca se reconheceu valor ao longo de toda a história. Não é isso. Mesmo na Antiga Roma onde o poder destas, ainda que na sombra, foi imenso, a verdade é que coube-lhes sempre, em última análise uma posição inferior, actividades menores, sem brilho, sem valor, “não merecendo figurar nos grandes relatos
históricos” (Lipovetsky, 2000, p.230).
A segunda mulher A partir da Segunda metade da Idade Média, surge uma nova lógica: a sublimação da mulher por parte dos homens. O culto da Bela Amada, a quintessência da beleza. Os “elogios” à mulher, à sensibilidade, à beleza, ao feminino multiplicam-se e a mulher é colocada num trono. Rainha, mas ainda assim, sem poder. Esse, continuava nas mãos dos homens. As mulheres passam a ser reconhecidas como mães, amantes, louvadas e adoradas, Deusas do lar, mas só. Mantém-se na esfera do privado. Elogiada, mas controlada. Sem poder financeiro, ou intelectual, vontade própria ou liberdade. A mulher tornou-se enaltecida, reconhece-se o papel de elevar até o homem, mas provavelmente, de tão próxima que foi colocada da Divindades, o seu desejo de autonomia também por aí permaneceu: no céu, no imaginário, no campo dos sonhos.
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É certo que o reconhecimento da educação dos filhos, do controlo da esfera familiar e dos afazeres domésticos é assumido e até valorizado, mas novamente, por aí fica. Aliás, este ponto é muito criticado pelas feministas que revêm neste “modelo” o supremo domínio masculino. Resumindo: embora exaltada, a segunda mulher é “limitada” nas suas vontades e aspirações e portanto esta nova atitude em praticamente nada modifica as funções de ambos os sexos e, consequentemente, acabou por caducar.
A terceira mulher Nas anteriores mulheres, apesar de diferentemente tratadas (satanizada na primeira e adulada na segunda), as mulheres sempre se encontraram subordinadas ao poder dos homens:
“Ela não era mais do que aquilo que o homem pretendia que ela fosse.” (Lipovetsky, 2000, p.232). E é precisamente esta questão que marca, segundo o autor, o ponto de viragem para a terceira mulher: esta deixa de estar dependente do homem. A par disto, ou como consequência, ou devido a, dependendo da interpretação, o acesso total das mulheres a todas as esferas da vida (pública e privada, individual e social), a liberdade sexual, o controlo da maternidade, o direito de voto, a legitimidade dos estudos e da vontade própria, tudo isto conjugado, deu origem à mulher actual, a terceira, indeterminada, como Lipovetsky lhe chama. E porquê indeterminada, indefinida? Porque hoje, homens e mulheres sofrem dos mesmos anseios angústias: resultante do facto de serem responsáveis pelas suas próprias vidas. O que se passa, é que independentemente dessa revolução, desse salto quantitativo e qualitativo na percepção e autonomia do sexo feminino, este continua “agarrado” aos papéis tradicionais, sem conseguir, efectivamente descolar-se deles.
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Seja no cuidado dos filhos, no controlo da actividade familiar, no jogo da sedução, da conquista sexual, no acesso a cargos públicos, a posições de liderança, etc. há ainda uma necessidade, pior: uma exigência de marcar a diferença, que se traduz, na real importância ou poder de cada género. Ou seja, as diferenças, na verdade, não desapareceram. Estão menos evidentes, é certo, mas estão lá. As desigualdades, as posições sociais, o domínio. Tudo se mantém, no limite, na mesma. Queremos dizer, apesar da igual necessidade de lutar, de escolher, de fazer, de optar, tudo isso é sempre, quer queiramos quer não, quer aceitemos melhor ou pior, definido, limitado
“a partir de normas, de papéis sociais diferenciados, que nada indica estarem votados a um futuro desaparecimento,” (Lipovetsky, 2000, p.235). Daí a indeterminação, a angústia, a incerteza, a indefinição. É? Não é? Mudou? Não mudou? Posso? Devo?...
Conclusões finais Se é verdade que a história nos mostra e o dia-a-dia nos prova uma condição social diferenciadora, onde o exercício da vontade própria está tão disponível para o homem como para a mulher e esse equilíbrio esbateu as imposições sociais, particularmente, para com o feminino, não é menos verdade que o mundo se encontra, hoje, em franca indeterminação. Embora a sociedade já não aceite os antigos modelos sociais, para nenhum dos sexos , também os próprios papéis do masculino foram significativamente modificados. Apesar diso, e da mulher actual ter conseguido conciliar os papéis convencionais com a sua nova condição, a dicotomia masculino/ feminino permanece.
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Logo nas primeiras páginas do livro, Lipovetsky afirma:
“No próprio coração da hiper modernidade, reorganiza-se a diferença das posições de género. É apenas quando se esvaziam de sentido existencial e se chocam de frente com os princípios de soberania individual que os códigos ancestrais do feminino se eclipsam. Em outras situações, as funções e papéis antigos se perpetuam, combinando-se de maneira inédita com os papéis modernos. “(Lipovetsky, 2000, p.14). E esta questão da hipermodernidade interessa-nos aqui, particularmente, pois em jeito de conclusão final, é nossa opinião que a mulher, hoje, se enquadra verdadeiramente neste termo. A mulher, mãe, amiga, confidente, amante, trabalhadora, dona-de-casa, etc. etc. etc. , nesta multiplicidade de papéis que assume e pratica, é muito mais que uma simples mulher. Muito mais que uma excelente mulher. Mais que uma Super-Mulher. É uma Hiper-Mulher.
E na esteira deste pensamento, apetece-nos terminar esta recensão crítica com a frase que Douglas Kellner deixou escrita no documento que entregou numa conferência em Karlruhe, na Alemanha, em 2004 por altura da comemoração do septuagésimo quinto aniversário de Jean Baudrillard:
“Sempre provocador, Baudrillard deixa-me a pensar, à luz das vicissitudes da história contemporânea, que Theodor Adorno estava certo quando escreveu: “Apenas os exageros são verdadeiros.”
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8 Referências bibliográficas:
1/ LIPOVETSKY, Gilles, “A Terceira Mulher”, Colecção Epistemologia e Sociedade do Instituto Piaget, Lisboa, 2000 2/ HALL, Stuart, HOODWARD, Kathryn, “Identidade e Diferença – A prespectiva dos Estudos Culturais”, tradução de SILVA, Tomaz Tadeu, Editora Vozes, Petrópolis, Brasil, 2000 3/ BRETON, Philippe, “A utopia da Comunicação”, Colecção Epistemologia e Sociedade do Instituto Piaget, Lisboa, 1992 4/ SFEZ, Lucien, “Crítica da Comunicação”, Colecção Epistemologia e Sociedade do Instituto Piaget, Lisboa, 1990 5/ KELLNER, Douglas, "Media Culture”, Routledge, Londres, 1995 6/ McLUHAN, Marshall, “Os meios de Comunicação como extensões do Homem”, (1964) tradução de Décio Pignatari, Editora Cultrix, São Paulo, Brasil, 2007 7/ BITTI, Pio Ricci, ZANI, Bruna, “A Comunicação como Processo Social”– Colecção Temas de Sociologia, Editorial Estampa, Lisboa, 1983 8/ KELLNER, Douglas. "Some comments on recent adventures of the Image and Spectacle on the Occasion of Baudrillard’s 75th Birthday " Graduate School of Education & Information Studies, UCLA, disponível em: http://www.gseis.ucla.edu/faculty/kellner/essays/baudrillardglobalizationterror.pdf Consultado em 2009.03.17