A Menina Do Mar

  • May 2020
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  • Words: 972
  • Pages: 23
A menina do mar!

Como peixe cansado de lutar contra as ondas do mar revolto, assim eu me sentia naquele fim de tarde, dando à costa, ferido por dentro e sem conseguir reagir àquela angústia letal que me consumia lentamente e me deixava derrotado naquele estado de prostração.

Só o mar era capaz de sorver a acidez da minha amargura; só a areia poderia filtrar o peso duma história amordaçada que me trespassava a alma.

No horizonte, nostálgico, até o sol parecia comungar da minha dor. Não sei quanto tempo consegui ficar ali imóvel, mas com a alma em sobressalto.

Não sabia o que fazer da vida, não sabia por onde ir, para onde caminhar... O universo era demasiado pequeno para eu me esconder, o mar demasiado salgado para acalentar a minha esperança.

Diante de mim, em turbilhão, a roleta da vida parecia não trazer soluções para sarar feridas tão profundas. Foi então que, de repente, diante de meus olhos toldados de vazio surge uma silhueta misteriosa que parecia dialogar comigo...

... era a Menina do Mar!

Surgiu da profundidade dos mares, como profunda era a lição que trazia para mim.

- Olá! – disse. - Olá! – respondi mecanicamente, sem me aperceber do mistério que se deparava diante de mim. - Sabes, eu sou “a menina do mar”! Vim aqui para te acordar e te trazer de novo à realidade...

- Mas eu estou acordado – respondi em autodefesa. Só depois compreendi que estar acordado é mais do que ter um corpo em sobressalto. - Sim, acordado, mas não vivo! Aí assim, mergulhado no vazio, enrolado em feridas dilacerantes, de cabeça entre os joelhos, não podes ver muito longe, nem voar muito alto. Precisas de olhar mais além, de respirar mais fundo, de desembaciar o coração.

- Mas, eu preciso de pensar na vida... - Pensar na vida, não significa deixar-se rastejar, não significa olhar para o chão prostrado em pensamentos de revolta, significa projectar mais alto, sonhar mais além, mergulhar mais fundo, sempre como um vencedor e nunca como um derrotado.

Sabes, a vida não se compadece de quem fica imóvel à espera que as feridas esgotem a última gota de sangue. É preciso estancar os golpes e fazê-los cicatrizar para que curem e ganhem uma crosta mais resistente.

Eu sei, no jardim que tanto amas há uns espinhos que te fizeram sangrar, mas estás a querer abandonar o jardim por causa de uns espinhos... Esqueceste as rosas e cravos e todas as outras flores que perfumam o teu jardim?!

Apagou-se a beleza das tuas flores, o aroma perfumado dos teus dias, o esplendor das pétalas floridas que encantam diariamente o teu olhar de jardineiro zeloso?! Deixa sangrar a ferida dos espinhos... Esse sangue derramado em teu jardim há-de fazer florir novas pétalas, mais viçosas e perfumadas, que continuarão a dar beleza ao jardim dos teu encantos.

Olha ao longe o mar e ao alto o céu... Projecta os teus sonhos à dimensão do infinito e não te amesquinhes com amarguras enterradas nas areias movediças da revolta que mata por dentro. Continua a sonhar, prende os teus sonhos à cauda duma estrela e ilumina a vida com a beleza do teu jardim, com o perfume das tuas rosas.

A menina desapareceu, esfumou-se do meu olhar tão depressa como tinha surgido... Procurei-a com olhar inquieto... Precisava da sua segurança, mas em vão... Tinha partido...

Fiquei ali imóvel e petrificado de olhar vago na vastidão do horizonte e, lentamente, meus pensamentos foram-se elevando mais longe, minha amargura começava a perder o sal e, diante de mim, pareciam bailar as flores do meu jardim...

Instintivamente sorri... Como eram lindas e aromáticas e pareciam dizer-me: “precisamos de ti, jardineiro”. Agora pensava na minha ingratidão – como pude pensar em abandonar o jardim por causa de um simples espinheiro, esquecendo toda a restante beleza?!

Não, não eram as flores que precisavam de mim, agora era eu que precisava delas... É o mistério duma cumplicidade feita de empatia e dedicação como diz Exupery: “foi o tempo que gastaste com a tua rosa que a tornou tão importante para ti...” como pude esquecer por momentos esse tempo de encantamento esse enamoramento vivido em silêncio, feito de pequenos nadas que significam tudo?!

Agora, sim, olhava para o alto... Compreendi que, quando olhamos para o chão, apenas vemos a biqueira dos sapatos... Quando olhamos ao longe e ao largo, a nossa mente liberta-se e contemplamos a vida com o olhar de Deus que nos reflecte a beleza das coisas estampadas em cada rosto, em cada gesto, em cada sorriso.

Naquele mesmo instante senti a atracção das águas... Desprendi-me da roupagem exterior e, na pacatez daquele fim de tarde, quando o sol parecia enterrar as memórias de um dia atribulado, mergulhei durante alguns instantes nas águas salgadas, mas serenas, que o mar trazia até mim oferecidas como um dom que me ajudaria a purificar, libertando-me por dentro...

Regressado à areia, parecia renovado interiormente... disposto a retemperar energias com um longo sono reparador... Amanhã, pensava, visitarei o meu jardim... preciso de contemplar a sua beleza, de sentir o seu perfume, de saborear a vida feita dom, que todos os dias, quase sem perceber, repassa diante do meu olhar.

Vós, flores do meu jardim, sois infinitamente mais importantes que os espinhos que, às vezes, fazem sangrar meu coração como golpe purificador que me ensina a dar sentido ao que realmente vale na vida... Vós valeis... A vós dedico o meu canto, por vós quero continuar a sonhar, convosco quero sentir a vida com a certeza de que só vale a pena “gastar a vida em favor daqueles por quem somos capazes de morrer!”

Convosco quero ir até ao limite de mim para convosco renascer e florir... A vós pétalas do meu jardim, pelo perfume que irradiais para mim!

Pe. José Augusto Marques

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