A Fun O Social Do Contrato E O Princ Pio Da Boa

  • November 2019
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View A Fun O Social Do Contrato E O Princ Pio Da Boa as PDF for free.

More details

  • Words: 8,964
  • Pages: 31
A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NO NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO Adriana Mandim Theodoro de Mello (Publicada na Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil nº 16 - MAR-ABR/2002, pág. 142) Mestre em Direito Comercial pela UFMG, Procuradora do Estado de Minas Gerais, Advogada. SUMÁRIO: 1 As Críticas ao Projeto de Código Civil; 2 As Cláusulas Gerais

e

a

Flexibilidade

do

Direito

Codificado;

3

O

Conflito

Flexibilidade x Segurança Jurídica; 4 As Cláusulas Gerais sobre Contratos no Novo Código Civil; 5 Contrato, Economia e Política Social; 6 A função social do direito de contratar; 7 A Repressão ao Abuso do Direito e o Dever de Conduzir-se com Lealdade e Boa-fé; 8 O Princípio da Boa-fé; 9 A Função Hermenêutica-integrativa do Princípio da Boa-fé; 10 A Boa-fé como Fonte de Deveres de Conduta; 11 Limite ao Exercício de Direitos; 12 Temperamentos do Princípio da Boa-fé; 13 Conclusões. 1 AS CRÍTICAS AO PROJETO DE CÓDIGO CIVIL A aprovação do Projeto do novo Código Civil - PL 634/75, por acordo de lideranças, depois de 25 anos de tramitação no Congresso, reacendeu a velha polêmica em torno de sua conveniência e serventia. Acusado de falho, indefinido, anacrônico, ultrapassado, omisso e desnecessário, por alguns defensores da maior eficácia da edição de leis específicas e pontuais (tais como a Lei das S/A, de Falências, de Proteção às Relações de Consumo, da União Estável, etc.) ou da criação de legislações sobre os microssistemas do direito privado

1

(Direito de Família, Obrigações, Sucessões, por exemplo), o novo diploma legal tem virtudes que não podem ser recusadas. Dando continuidade à tradição de nosso sistema, consolida, ainda que não integralmente, a legislação esparsa e retrata uma época, que certamente está sujeita a evoluções e mudanças céleres, mas é, inegavelmente, mais consentâneo com nossa realidade. O CC/16, embora ainda eficiente, retrata a ideologia dominante no século XIX, já se tornara inadequado aos valores sociais, políticos, filosóficos e econômicos desenvolvidos desde os meados do século XX até o presente. Se o novo Código não é perfeito e completamente atual, é mais técnico e mais adequado ao nosso tempo. A busca pela perfeição de um Código de suas dimensões o levaria à eterna postergação de sua aprovação e a constantes e infindáveis debates sobre as mais variadas normas de regência da vida privada. A constatação da disparidade entre a realidade socioeconômica e a jurídica deve servir, antes, de empecilho, de incentivo à criação de um novo Direito que estreite essa distância e concilie o ordenamento às necessidades da sociedade que o mesmo regula. Conforme ministra o festejado professor ARNOLDO WALD, o direito flexível e adaptável à mudança passou a ser considerado fator de competitividade econômica. E quando consegue reunir em um sistema único, racional e coerente as regras tradicionais com outras inovadoras, passíveis de serem aplicadas

às novas

realidades

econômicas, "o direito privado se torna uma verdadeira força que assegura melhor performance da empresa, considerada como centro da economia contemporânea, a possibilidade de atrair capitais nacionais e estrangeiros e conseqüentemente a riqueza das nações e o aprimoramento das condições de vida na sociedade". 1 É preciso, pois, repensar o Direito Privado, adequá-lo à nova realidade para proporcionar à sociedade relações ao mesmo tempo

2

mais justas e suficientemente seguras, capazes de sustentar o progresso econômico e social. 2

AS

CLÁUSULAS

GERAIS

E

A

FLEXIBILIDADE

DO

DIREITO

CODIFICADO Penso que ainda hoje é possível imaginar-se e implantar-se um sistema de direito privado baseado na codificação que reúne, sistemática e ordenadamente, todo (ou quase todo) o conjunto normativo. É verdade que a celeridade das transformações sociais, à primeira vista, conduz a uma reflexão em sentido contrário tendente a incentivar as mudanças sucessivas e paulatinas de microssistemas legislativos em ordenamentos esparsos. Mas essa afirmação só é válida se pensarmos a codificação do direito nos moldes daqueles idealizados para os séculos passados. É essa a advertência que a Profª JUDITH MARTINS-COSTA faz àqueles que teimam em não admitir a evolução que o novo CC baseado em cláusulas gerais representa, in verbis: "No universo craquelé da pósmodernidade

não

tem

sentido,

nem

função,

o

Código

total,

totalizados e totalitário, aquele que, pela interligação sistemática de regras casuísticas, teve a pretensão de cobrir a plenitude dos atos possíveis e dos comportamentos devidos na esfera privada, prevendo soluções às variadas questões da vida civil em um mesmo e único corpus legislativo, harmônico e perfeito em sua abstrata arquitetura. Mas se falta sentido hoje a esse modelo de Código, isto não significa que nenhum modelo de Código possa regular as relações jurídicas da vida privada". 2 De fato, somente um sistema jurídico composto por cláusulas gerais, flexível e capaz de recepcionar a evolução do pensamento e do comportamento social seria capaz de conferir ao mesmo tempo a ordem e a segurança jurídica reclamadas pela sociedade frenética e multifacetada de nosso século.

3

Essa "flexibilidade" e, ao mesmo tempo "segurança" necessários a um sistema eternamente em construção só se alcança por meio de cláusulas gerais, que transcendem a casuística própria do direito oitocentista e constituem nas palavras da Profª JUDITH MARTINSCOSTA "as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis", 3 que os conduzem aos princípios e regras constitucionais e dão acesso aos princípios e valores sociais, políticos, econômicos, integrando-os ao ordenamento positivo. As cláusulas gerais importam em avançada técnica legislativa de enunciar, através de expressões semânticas relativamente vagas, princípios e máximas que compreendem e recepcionam a mais variada sorte de hipóteses concretas de condutas tipificáveis, já ocorrentes no presente ou ainda por se realizarem no futuro. Diz-se, pois, que as cláusulas gerais valem-se de linguagem aberta, fluida, vaga. 3 O CONFLITO FLEXIBILIDADE X SEGURANÇA JURÍDICA De outra face, esse modelo jurídico produz certo incômodo, já que traz alguma insegurança sobre os limites e contornos dos fatos e das condutas

que

neles

se

enquadrem,

até

que

se

consolide

a

jurisprudência e se pacifique a doutrina. "É por isto evidente que nenhum código pode ser formulado apenas e tão somente com base em cláusulas gerais, porque, assim, o grau de certeza seria mínimo". 4 É essa a árdua tarefa do legislador: flexibilizar o Código sem abrir mão da segurança jurídica. E nesse meio termo entra em campo a atividade dos estudiosos e aplicadores do direito e dos advogados, dotados,

então,

de

campo

fértil

para

a

argumentação

e

o

convencimento. Mas em sã consciência, nenhuma organização social humana quer ter em seu bojo a semente da discórdia, a imprevisão e incerteza das conseqüências de suas próprias condutas e da frustração de suas legítimas expectativas. Todos querem flexibilidade, modernidade, sem 4

se sujeitar a surpresas e impressões subjetivas dos juízes quando suas pretensões forem submetidas ao Poder Judiciário. Bem pondera o Professor ARNOLDO WALD: "Se o Direito tem a dupla finalidade de garantir tanto a justiça quanto a segurança, é preciso encontrar o justo equilíbrio entre as duas aspirações, sob pena de criar um mundo justo, mas inviável, ou uma sociedade eficiente, mas injusta, quando é preciso conciliar a justiça e a eficiência. Não devem prevalecer nem o excesso de conservadorismo, que impede o desenvolvimento da sociedade, nem o radicalismo destruidor, que não assegura a continuidade das instituições. O momento é de reflexão e construção para o jurista que, abandonando o absolutismo passado, deve relativizar as soluções, tendo em conta tanto os valores éticos quanto

as

realidades

econômicas

e

sociais.

Entre

princípios

antagônicos, em um mundo dominado pela teoria da relatividade, cabe adotar, também no campo do Direito, o que alguns juristas passaram a chamar os princípios de geometria variável, ou seja, o equilíbrio entre justiça e segurança, com a prevalência da ética mas sem desconhecer a economia e os seus imperativos". 5 O caminho da modernidade foi trilhado pelo novo CC em matéria de contratos. Há conceitos vagos, há contratos novos, que surgiram após a sua idealização. Resta-nos conformar com suas deficiências (que correspondem às nossas humanas e sociais limitações) promovendo ao longo de sua vigência as devidas atualizações, tal como se tem feito no bojo do CPC. Cabe, ainda, à jurisprudência, aos intérpretes e aos doutrinadores a sempre árdua, mas gratificante, tarefa de manter o texto legal sempre vivo e adequado aos valores nele inseridos, a despeito das mudanças ocorridas no mundo dos fatos e das relações sociais e individuais. Esse sempre foi o caminho de evitar-se o envelhecimento do ordenamento

jurídico,

e

que

possibilitou

também

a

vigência

prolongada do CC de 1916, tornando-o um instrumento eficiente de realização da justiça. 5

4 AS CLÁUSULAS GERAIS SOBRE CONTRATOS NO NOVO CÓDIGO CIVIL Especificamente no que tange à Teoria Geral dos Contratos, a técnica legislativa da estipulação da cláusula geral foi manejada seguindo a tendência das modernas legislações ocidentais, justamente para limitar a autonomia das partes na estipulação das obrigações contratuais, na produção do que se costumou conceituar como lei privada. A despeito das críticas que se fazem aos arts. 421 e seguintes do novo CC, os quais tratam de regras gerais aplicáveis a todos os contratos, eles trazem em seu bojo exatamente as questões mais polêmicas que ocuparam as mentes dos maiores pensadores do direito contratual do século XX, quais sejam: a) a limitação do dogma da autonomia da vontade como força originária do direito entre as partes contratantes; b) o interesse social e o princípio da boa-fé como parâmetros dessa limitação; c) a consideração da desigualdade das partes para aferição da liberdade e validade da declaração. Note-se que a socialização do contrato e a limitação da autonomia privada não foram implementadas por normas casuísticas, mas por cláusulas gerais. Daí a relevância do estudo desse fenômeno até a compreensão de seu mecanismo de forma a não confundir-se o seu caráter genérico e aberto com a liberdade e o subjetivismo do juízo daqueles que aplicarão o direito à concretitude das relações sociais e realizarão a justiça. A presente exposição não pretende, pois, enumerar e especificar uma a uma as alterações do texto do CC seja na Teoria Geral do Direito Contratual, seja nos diversos tipos contratuais nele regulados. Mas, de

forma

ampla,

visa

a

acender

o

debate

sobre

tema

de

relevantíssima importância para compreensão de toda e qualquer relação contratual e que servirá de norte para as mais numerosas 6

lides e pendências contratuais, qual seja, o declínio da autonomia da vontade como fonte originária do direito contratual e os limites da ingerência do Estado no âmbito da lei privada. Essa tendência do Estado moderno teve reflexo no novo CC. Ao examinar-se o Título V (Dos Contratos em Geral) inserto no Livro I da Parte Especial (Do Direito das Obrigações), nota-se que a primeira e maior novidade desse novo compêndio foi a limitação da liberdade de contratar pela função social do contrato (art. 421). 6 A segunda norma deste mesmo capítulo de disposições gerais obriga os contratantes a agir com probidade e boa-fé (art. 422). 7 O princípio da boa-fé, como veremos a seguir, tem, dentre seus corolários, o poder de impor condutas ou restringir a liberdade de auto-imposição de direitos e obrigações. Trata-se, como se vê, outrossim, de norma restritiva da autonomia contratual. Segundo o mesmo movimento, encontra-se, ainda, a norma do art. 157, 8 que introduz a lesão no Direito Codificado brasileiro como exceção do princípio da obrigatoriedade do contratado. Nota-se a evidente intenção do sistema de abrandar a máxima pacta sunt servanda, permitindo que permeiem o direito privado noções e valores

tipicamente

públicos:

dirigismo

estatal,

função

social,

publicização das relações privadas, etc. E as mudanças se fizeram por cláusulas gerais, que a primeira vista podem gerar certa insegurança e perplexidade, mas que podem perfeitamente conviver no sistema jurídico se respeitados os pilares da organização política, jurídica e econômica da sociedade. O que se pode entender então por função social do contrato e por dever de conduzir-se por boa-fé? É o que, ora, se busca responder. 5 CONTRATO, ECONOMIA E POLÍTICA SOCIAL O contrato, na acepção clássica do direito, é a relação jurídica obrigacional resultante do acordo de vontades. Fonte de obrigações que resulta da própria vontade humana de se vincular, está ele

7

presente em toda sociedade civilizada assentada na propriedade privada. Como todo conceito jurídico, porém, o contrato não prescinde de um contexto ou de uma "realidade exterior" 9 que envolva interesses, relações, situações socioeconômicas. A sua função é, justamente, servir de instrumento de operações econômicas e veículo de realização da vontade humana na construção da sociedade. Em outras palavras, o contrato, enquanto conceito jurídico, não é um fim em si mesmo, ou mero vínculo de débito e crédito, mas um meio de dar forma às operações e interesses econômicos que se querem tutelar. A concepção do contrato como instrumento jurídico das operações econômicas levou à idéia crescente de que estas "podem e devem ser reguladas pelo direito". Destarte, "o direito dos contratos" é o "conjunto - historicamente mutável - das regras e dos princípios, de vez em quando escolhidos para conformar, duma certa maneira, aquele instituto jurídico, e, portanto, para dar um certo arranjo funcionalizado a determinados fins e a determinados interesses - ao complexo das operações econômicas efectivamente levadas a cabo". 10 A função da disciplina legal dos contratos deve corresponder exatamente à sua concepção, antes exposta, de conjunto de normas destinadas interesses

a e

regulamentar valores

operações

prevalecentes

em

econômicas,

segundo

determinado

momento

histórico. Portanto, a intervenção do legislador neste terreno, que se marca pela autodeterminação das partes, "longe de limitar-se a codificar regras impostas pela natureza ou ditadas pela razão (como afirmavam os seguidores do direito natural) - constitui, antes, uma intervenção positiva e deliberada do legislador (das forças políticas que

exprimem

o

poder

legislativo),

destinada

a

satisfazer

determinados interesses e a sacrificar outros, em conflito com estes, tentando dar às operações econômicas concretamente realizadas um 8

arranjo e um processamento, conformes aos interesses que, de quando em quando, se querem tutelar". 11 Enfim, o direito contratual não se rege por normas e princípios absolutos, isolados do contexto socioeconômico e da ideologia de sua época. Tende, ao contrário, e freqüentemente, a reunir em um sistema coerente e concatenado, mas flexível e mutável, as normas que vão determinar e orientar as operações econômicas e a distribuição de vantagens e ônus econômicos entre os diversos grupos sociais, segundo o pensamento dominante na época e os objetivos politicamente eleitos. Destarte, constata-se que o Estado legislador intervém na autonomia da vontade toda vez que vislumbra a ameaça de violação direta ou indireta dos valores sociais consagrados em princípios maiores do ordenamento jurídico, manifestada pela dominação econômica de um contratante sobre os demais; ou quando esse poder econômico é capaz de ameaçar a economia popular, a livre concorrência, as liberdades e garantias individuais e sociais, a autonomia e a soberania do Estado. Mas também atua o Estado de forma a incentivar determinadas espécies de contratos que favoreçam o desenvolvimento econômico e social

da

nação,

e

que

lhe

permita

competir

no

mercado

internacional, atraindo riquezas, investimentos e capital estrangeiro para o país. Por de trás das novas normas, cláusulas e teorias debatidas, jaz a moderna filosofia de vida da sociedade ocidental, democraticamente organizada, sempre ambígua e se debatendo entre os conflitantes, mas auto-reguladores, valores e ideais de liberdade e interesse público, propriedade privada e igualdade de todos, segurança social e flexibilidade, autonomia e responsabilidade. São duas as premissas que movem as alterações jurídicas no campo dos contratos, quais sejam:

9

a) não há declaração de vontade livre e vinculante se os desiguais, social e economicamente considerados, não foram tutelados com normas jurídicas distintas tendentes a conferir-lhes isonomia e a realizar a máxima constitucional: todos são iguais perante a lei. Igualdade

substancial

(e

não

meramente

formal)

pressupõe

tratamento isonômico para os semelhantes; A exposição da vontade não é livre quando à parte hipossuficiente ou economicamente mais vulnerável não é dada a liberdade de escolha de contratar ou não contratar, ou de estabelecer as condições mínimas que preservem seus interesses juridicamente tutelados. b) por outro lado, a regulamentação dos contratos é instrumento de regulação e planejamento econômico, de realização de políticas sociais, promoção do progresso e manutenção da estabilidade social. O Estado social moderno constatou a falsidade das premissas do Estado liberal. Não havia igualdade entre os homens. Passou, então, a buscar seus ideais de justiça, de paz e segurança social e de igualdade humana, apesar das desigualdades econômicas e sociais, através da intervenção nas relações privadas. E tais ideais não se alcançam nem com a irrestrita autonomia individual, tampouco com a improvável e ineficaz atuação absolutista e onipotente do Estado, seja o juiz, o legislador ou o administrador. É no equilíbrio entre direitos e liberdades individuais e interesses públicos e sociais que se obtém, com maior eficiência, o que se pode chamar de relação jurídica justa e economicamente equilibrada, preservando-se, ao mesmo tempo, os valores erigidos na CF, tais como a propriedade privada e a livre iniciativa. Somos um Estado capitalista por opção e devemos respeitar as bases e pilares que naturalmente sustentam o funcionamento da sociedade e da economia, sob pena de levar-se a organização social ao colapso. A falha do Estado no comando da política econômica, assim como a equivocada ingerência do legislador ou do juiz nessa seara são

10

capazes de levar a Nação à bancarrota, tal como assistimos acontecer na vizinha Argentina. O contrato é a exteriorização jurídica das operações econômicas que promovem a circulação e acumulação de riquezas, é o veículo das ações humanas que geram transformação, evolução e progresso social. A atuação do Estado em grande escala e a longo prazo (juiz, legislador

ou

administrador)

necessária

e

inafastavelmente

redundarão em efeitos sobre a distribuição da riqueza, a evolução ou retrocesso da iniciativa privada, geração ou diminuição de empregos. Daí concluir-se que o Direito dos Contratos é instrumento de política econômica e social e o dirigismo do Estado aumenta e diminui nessa área conforme as necessidades sociais, sem nunca desvincular-se dos valores e garantias constitucionais, pilares da sociedade. Justifica-se, destarte, a limitação da liberdade de contratar em face das necessidades sociais. Se é certo que optamos por livre iniciativa e sistema capitalista, também elegemos a igualdade de todos e a sociedade justa e fraterna como modelo ideal. À medida que se valoriza, cada vez mais, a função social e econômica dos direitos e de outras posições jurídicas, normal é que se destaque o princípio da boa-fé "como reflexo do fenômeno geral de eticização jurídica". 12 6 A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO DE CONTRATAR A estrutura da cláusula geral, seja ela reguladora do contrato ou de outro ramo do direito, envia o aplicador a regras extrajurídicas 13 que estatuem valores ou padrões de comportamentos sociais, profissionais, econômicos ou morais, e permite que um número ilimitado de situações concretas sejam reguladas e enquadradas naquele valor maior ressaltado na norma "vaga". Assim ocorre, por exemplo, com a norma do art. 421 do novo CC que impõe a observância da função social do direito de contratar. 11

Como



afirmado

anteriormente,

a

regulação

das

relações

contratuais é relevante instrumento de política econômica, monetária e financeira, e se justifica em face dos interesses supremos do Estado na condução do governo, na distribuição de riquezas e na realização de justiça social e, mesmo, na preservação e defesa da soberania nacional. Portanto, regras pertinentes ao comércio, à economia de mercado, e, ainda ao meio ambiente, serão relevantes para a definição do que seja ou não atentatório aos fins sociais. Note-se que o contrato, enquanto direito subjetivo e individual, deve ser manejado de forma a não lesar os interesses superiores da sociedade. A máxima não é novidade. É, antes, "projeção, no específico domínio contratual, do valor constitucional expresso como garantia fundamental dos indivíduos e da coletividade que está no art. 5º, XXIII da CF" 14 ("a propriedade atenderá a sua função social"). Com efeito, explica ARNOLDO WALD - "a partir do momento em

que

o

direito

constitucional

brasileiro

considerou

que

a

propriedade tinha uma função social (art. 5º, XXIII), tendo a palavra propriedade uma conceituação ampla, o mesmo princípio haveria de ser aplicado aos direitos de créditos, ou seja, às obrigações e, conseqüentemente, aos contratos. Assim, à primeira vista, em termos gerais, pode-se considerar que o Projeto se limitou a explicitar uma norma constitucional e a ratificar tanto a legislação anterior quanto a construção jurisprudencial". 15 Como se vê, a norma, não deveria suscitar perplexidade. Tal como ocorre com a propriedade, a liberdade, inclusive a de contratar, é, entre nós, um direito fundamental do indivíduo inserido no direito natural. Daí a livre iniciativa e a autonomia privada estarem também erigidas a garantias constitucionais e só poderem ser limitadas nos termos da lei (princípio da legalidade). É sempre salutar lembrar-se da advertência do Prof. ARNOLDO WALD: "Deve-se, entretanto, ponderar que a função social do contrato não deve afastar a sua 12

função individual, cabendo conciliar os interesses das partes e da sociedade. Assim, os direitos contratuais, embora exercendo uma função social, constituem direitos adquiridos (art. 5º, XXXVI) e gozam, nos termos da CF, da proteção do devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV), em virtude do qual ninguém pode ser privado dos seus bens - e dos seus direitos que também se incluem entre os bens - sem o devido processo legal. Com essa interpretação, que é a única aceitável em nosso regime constitucional, a inovação do Projeto não põe em risco a sobrevivência do contrato, como manifestação

da

vontade

individual

e

acordo

entre

partes

interessadas para alcançar um determinado objetivo, por elas definido em todos os seus aspectos". 16 O princípio dirige-se, portanto, a inspirar a interpretação de todo o microssistema do direito dos contratos e integrar as suas normas, bem como para limitar a liberdade privada, impedindo que se ajustem obrigações atentatórias aos demais princípios, valores e garantias sociais. Deverá inspirar, ainda, a interpretação do próprio ajuste, porquanto não se admitirá sua execução de modo a contrariar os interesses e os fins que a sociedade vislumbrou em determinado tipo contratual. Mas não poderá o aplicador do direito arvorar-se de realizador de políticas sociais tendentes a realizar a redistribuição de riquezas e a política social que entender mais justa. A autonomia da vontade é garantia que só cede em face do interesse público e nos termos da lei. Só a deformidade, o absurdo, e o teratológico exercício do direito de contratar, que atente contra a regularidade das relações privadas e leve a aviltar os próprios fundamentos, as garantias e os valores sociais que sustentam e protegem a liberdade é que será passível de invalidação por intervenção do juiz. A importância da concentração do capital, do surgimento de grandes grupos econômicos e das iniciativas privadas que se instrumentalizam em contratos diversos, dotados de força jurídica e obrigatoriedade é 13

irrecusável: possibilita coordenar atividades e esforços, diversificar investimentos, dispensar riscos, constituir unidades produtoras e fornecedoras

de

dimensões

otimizadas,

expandir

a

produção,

equilibrar e racionalizar a utilização dos recursos e colocar em marcha uma atividade ou um sistema econômico de relevância social. Portanto, a intervenção estatal deve ser fundada, responsável e excepcional. 7 A REPRESSÃO AO ABUSO DO DIREITO E O DEVER DE CONDUZIRSE COM LEALDADE E BOA-FÉ Tradicionalmente, o princípio da autonomia da vontade era limitado pelas leis de ordem pública. Na aplicação da lei, o Estado-juiz socorria-se, além da noção da lei de ordem pública, dos bons costumes. Mas, em razão da abstração e flutuação de tais conceitos, ordem pública e bons costumes "não eram suficientes para impedir a prática de abusos. Pois consentiram o exercício da liberdade de contratar com uma desenvoltura que tornara excessivo o poder da vontade, como, afinal, se veio a reconhecer". 17 O Estado, como legislador e como juiz, passou a exercer a vigilância sobre

a

liberdade,

ora

estatuindo

normas

imperativas

e

programáticas de política econômica, tendentes a tornar mais igualitário o exercício da liberdade contratual entre as partes, ora retirando das avenças concretas a validade, escorado na idéia de exercício anormal ou abusivo da liberdade de contratar. 18 Onde a limitação da vontade se pode fazer, com benefícios sociais que suplantam as necessidades do desenvolvimento econômico e os proveitos trazidos pela iniciativa privada à comunidade, o legislador, fazendo opções políticas, edita leis imperativas, inderrogáveis pela autonomia das partes. Porém, a lei, como é cediço, não é hábil a alcançar, casuisticamente, todas as hipóteses de desequilíbrio e abuso no exercício das

14

liberdades individuais. Surgiu, então, como regra geral, a coibição do exercício abusivo do direito. O abuso de direito, inicialmente, foi definido como o uso desviado de sua finalidade: doloso, destinado a causar prejuízo ou a fazer o mal. Posteriormente, retirando-se a exigência de tal elemento subjetivo (dolo), passou-se a considerá-lo todo exercício de direito que não se destinasse ao seu fim normal, econômico e social. 19 Essa

destinação

econômica

e social

do exercício

dos

direitos

subjetivos influiu também na nova concepção do contrato e do exercício dos direitos a ele inerentes, em todas as suas etapas: formação, execução e extinção. A noção de abuso, com um enfoque objetivo, foi absorvida pelo princípio da boa-fé que impera na relação contratual, o qual passou, ao lado da vontade, a originar deveres laterais de condutas. O contrato, como exercício do direito de autolimitar-se, e também como fonte de direitos outros, é concebido não mais como "uma soma ou composição fechada de direitos e deveres, mas como uma totalidade concreta, que não se confunde com os deveres (e poderes, ações, pretensões e exceções) que o vínculo abstratamente encerra". 20 A nova visão do contrato não admite o vínculo dissociado do binômio causalidade-finalidade,

que

conduz

toda

interpretação

de

sua

extensão no sentido da investigação da ligação entre a "necessidade econômica correspondente à prestação que se efetiva e a utilidade que se visa colher da prestação a receber". 21 E a lei e o contrato não esgotam todas as regras capazes de garantir e justificar a totalidade das condutas que levam as partes a alcançarem o fim econômico-social perseguido pela "economia contratual". A vontade declarada e a lei nem sempre conseguem justificar diversos deveres acometidos às partes antes mesmo da formação do contrato, ou após a sua extinção, que se mostravam indispensáveis para a manutenção da justiça comutativa do vínculo.

15

Foi neste ambiente de valorização da função social do contrato, e de sua

concepção

como

instrumento

finalístico

de

realização

de

operações econômicas guiadas por um sinalagma, que se elevou o princípio da boa-fé e da função social do contrato à posição de limitador da autonomia da vontade. Portanto, encontra-se limitada a autonomia contratual por interesses tais como a livre concorrência, o equilíbrio das relações de consumo, a preservação do meio ambiente, do patrimônio histórico, artístico e cultural,

pelas

exigências

da

política

econômica,

monetária

e

financeira nacional, etc. 8 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ Deve-se destacar que o dever de guardar conduta proba e de boa-fé nas diversas fases de formação e execução do contrato não representa inovação no direito dos contratos. A novidade restringe-se à sua inclusão no texto legal, pois antes era tido como princípio implícito no ordenamento jurídico. Dele já tratavam os diversos doutrinadores em obras já clássicas. 22 Sem revolucionar a secular teoria dos contratos, nem derrogar seus pilares,

"a

aplicação

do

princípio

da

boa-fé

tem

função

harmonizadora, conciliando o rigorismo lógico dedutivo do século passado com a vida e as exigências éticas atuais, abrindo, por assim dizer, no hortus conclusus do sistema do positivismo jurídico, janelas para o ético". 23 A compreensão da relação obrigacional como um processo dinâmico, complexo, integrado por fatores que decorrem não só da lei e da declaração de vontade, mas também de fatores externos atinentes a princípios e standards de cunho social e constitucional, e que se destina

a

uma

finalidade,

foi

a

premissa

que

permitiu

o

desenvolvimento da noção da boa-fé objetiva, como limite ao exercício dos direitos subjetivos, tidos antes como absolutos e imutáveis.

16

A par da imposição de limites à liberdade contratual, a boa-fé surgiu também como fonte de direitos e deveres secundários, regedores da conduta das partes antes, durante e depois da vigência do contrato. Ora,

se

o

contrato

encerra,

substancialmente,

uma

operação

econômica que se desenvolve no tempo e com o objetivo de satisfazer os legítimos e razoáveis interesses dos contratantes, todas as condutas que, independentemente de não terem sido impostas pela lei ou pelo contrato, são indispensáveis ao alcance desse fim social e econômico justificam-se pelo princípio da boa-fé. Nesta ordem de idéias, tem-se a boa-fé objetiva como a regra de conduta que se funda no dever de comportar-se como um bom pai de família, como um homem probo, leal, que respeita os interesses dos demais membros da sociedade. No âmbito do contrato, o princípio da boa-fé sustenta o dever das partes agirem conforme a economia e a finalidade do contrato, de modo a conservar o equilíbrio substancial e funcional entre as obrigações correspectivas que formaram o sinalagma contratual. Por outro lado, é também a boa-fé que impede o exercício arbitrário do direito de estipular livremente as cláusulas e condições do contrato. Se na relação contratual as partes se movem por interesses opostos, não podem persegui-los com astúcia e deslealdade. "As partes são obrigadas a dirigir a manifestação de vontade dentro dos interesses que as levaram a se aproximarem, de forma clara e autêntica, sem o uso de subterfúgios ou intenções outras que não as expressas no instrumento formalizado. A segurança das relações jurídicas depende, em grande parte, da lealdade e da confiança recíproca". 24 Ou seja, o princípio geral da boa-fé, de forma ampla e genérica, impõe ao indivíduo o dever de conduta honesta, reta, leal, com "consideração para com os interesses do alter, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela 17

própria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da relação obrigacional". 25 Em razão da amplitude e imprecisão de seu conteúdo, o alcance concreto do princípio da boa-fé há de ser aferido caso a caso, segundo suas peculiaridades e circunstâncias, mas - adverte JUDITH MARTINS-COSTA - segundo critérios técnico-jurídicos, não apenas morais, remetendo "a solução do caso concreto à estrutura, às normas e aos modelos do sistema considerado este de modo aberto. Por estas características constitui a boa-fé objetiva uma norma proteifórmica, que convive com um sistema necessariamente aberto, isto é, o que enseja a sua própria permanente construção e controle". 26 São basicamente três as aplicações da boa-fé. Ora funciona o princípio como regra de interpretação do contrato ou das declarações de vontade; ora é fonte de deveres instrumentais ou secundários que compõem a relação contratual; e outras vezes é limite ao exercício dos direitos subjetivos. 27 9 A FUNÇÃO HERMENÊUTICA-INTEGRATIVA DO PRINCÍPIO DA BOAFÉ A função da boa-fé como recurso de interpretação do contrato é, de fato, a mais difundida. Na interpretação da extensão do conteúdo da relação, a boa-fé será instrumento destinado a suprir lacunas e flexibilizar a vontade declarada (limite à autonomia da vontade), servindo

de

"regra

objetiva

que

concorre

para

determinar

o

comportamento devido". 28 A interpretação integrativa, segundo a boa-fé, tem lugar quando o aplicador do direito não encontra nem no contrato, nem na lei, previsão da situação concreta que venha, eventualmente, a se verificar no decurso da relação obrigacional. Ou ainda quando se imponha restrição às prerrogativas de uma das partes que, analisada de forma isolada e desvinculada da economia do contrato, poderia

18

autorizar conduta contrária aos lícitos interesses econômico-sociais que se perseguem com o negócio. A busca do sentido do conjunto contratual não autoriza o juiz a criar obrigações. Ao contrário, apenas e tão-somente, haverá o intérprete de especificar o exato alcance das obrigações que surgem do contrato,

em

face

dos

princípios

da

autovinculação,

da

obrigatoriedade do contrato, do sinalagma, da sua função social e da boa-fé. A boa-fé impõe ao juiz o dever de "tornar concreto o mandamento de respeito à recíproca confiança incumbente às partes contratantes, por forma a não permitir que o contrato atinja finalidade oposta ou divergente daquela para o qual foi criado", 29 e que, à vista de seu escopo socioeconômico, seria razoável e licitamente esperada pelos contratantes. Ao recorrer à boa-fé, pois, o juiz estará, simplesmente, conferindo ao ajuste as exatas dimensões que a operação econômica por ele formatada reclama, segundo a sua função social e econômica e as legítimas expectativas das partes retratadas em um sinalagma (uma relação que possui prestações opostas e equilibradas). É, outrossim, a boa-fé que justifica a aplicação da teoria da aparência, já que sua base assenta-se na responsabilidade daquele que age ou se omite de forma a gerar expectativas errôneas para a contraparte e viola o dever de não iludir. Da mesma forma ocorre com a vedação ao enriquecimento ilícito e o abuso de direito. Todas essas doutrinas, amplamente aventadas em decisões pretorianas, podem ser perfeitamente unificadas no princípio da boa-fé. 30 Com a recepção do princípio da boa-fé objetiva, a interpretação dos contratos deixa de ser a busca da verdadeira vontade declarada pelos contratantes para se tornar, nas palavras de KARL LARENZ, a "interpretação da regulação objetiva criada com o contrato", ou seja, a descoberta "do sentido total da regulação", 31 respeitando-se tanto a sua finalidade econômica quanto sua função social. 19

10 A BOA-FÉ COMO FONTE DE DEVERES DE CONDUTA O mais relevante papel que hodiernamente representa o princípio da boa-fé é o de fonte de deveres acessórios ou laterais 32 que compõem a relação obrigacional conjuntamente com os clássicos deveres principais e secundários. Trata-se de dever que obriga tanto credores como devedores e que se destina a garantir o processo obrigacional, a fim de assegurar a finalidade econômica e a função social do contrato. Preserva-se, destarte, a satisfação dos interesses recíprocos e a unidade finalística da relação. Em outras palavras: "estes deveres já não interessam directamente

ao

cumprimento

da

prestação

ou

dos

deveres

principais, antes ao exacto processamento da relação obrigacional, ou, dizendo de outra maneira, à exacta satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional complexa". 33 MOTA PINTO define os deveres laterais como: "deveres de adoção de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato (...) dada a relação de confiança que o contrato fundamenta,

comportamentos

variáveis

com

as

circunstâncias

concretas da situação". 34 Ficam os contratantes impedidos de empreenderem condutas que não se justifiquem em face do caráter finalístico do processo que se desenrola no vínculo contratual, e que se tornem empecilhos ao alcance dos fins almejados não só pelas partes, mas pelo conjunto social. Hão as partes de agir com cooperação e lealdade, a fim de proteger os interesses recíprocos e o êxito do vínculo. São exemplos de deveres acessórios de conduta que se lhes impõem, independentemente de previsão contratual específica e respaldo no texto explícito da lei, selecionados por JUDITH MARTINS-COSTA: "a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de aviso e 20

esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação de seu desideratum, o do consultor financeiro, de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts. 12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor; f) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, como v.g., dever do proprietário de uma sala de espetáculos

ou

de

um

estabelecimento

comercial

de

planejar

arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares, pagamento, por parte do devedor etc.". 35 Quando tais deveres opõem-se ao conteúdo das estipulações livres das

partes,

limitando-os

sob

pena

de

abuso

do

direito

de

autovinculação, tem-se a terceira função destacada do princípio da boa-fé. 11 LIMITE AO EXERCÍCIO DE DIREITOS A CF/88 consagra em seu art. 170, dentre os princípios inspiradores da ordem econômica, a função social da propriedade. E o contrato, 21

enquanto veículo de circulação de riquezas, logicamente, há de seguir tal imperativo. A boa-fé será, nessa ordem de idéias, o limite objetivo imposto ao exercício dos direitos subjetivos, inclusive a liberdade de contratar, instrumento da realização da sua função social. Os limites decorrentes do dever de agir com lealdade e honestidade, com força a assegurar o fim social do contrato e a sua equação econômica, são de caráter técnico-jurídico. Pois, conforme adverte JUDITH MARTINS-COSTA, "se vista apenas como norma de reenvio a padrões éticos, tanto faria o apelo à boa-fé, como ao abuso de direito, quanto a um vago juízo de eqüidade, a uma cláusula geral de exceção de dolo ou conceitos similares, pois, em todos os casos, se estaria apenas ampliando a extensão dos poderes do juiz e não se permitindo um juízo com base em certo conteúdo substancial e específico". 36 Não haverá o juiz de afastar a regulamentação decorrente da autonomia privada, que é a fonte por excelência das obrigações, a fim de realizar opções políticas de competência do legislador. As limitações oriundas do princípio da boa-fé só terão espaço para adequar a regulamentação privada ao fim econômico eleito pelas partes e autorizado pela ordem jurídica. Não se prestará a intervir no domínio privado para reequilibrar as diferenças sociais e redistribuir riquezas.

A

finalidade

econômica

e

social

do

contrato

a

ser

respeitada, e que orientará a identificação das regras de conduta limitadoras da autonomia da vontade, é aquela inerente e interna ao vínculo contratual, à operação econômica lícita que lhe compõe a substância. A intervenção estatal, seja através do legislador (normas imperativas restritivas da autonomia), seja através do juiz (modificando o conteúdo do contrato ou retirando-lhe a obrigatoriedade), em um sistema econômico e político que se sustenta na livre iniciativa e na propriedade

privada,

não

pode

ultrapassar

os

limites

da

excepcionalidade e razoabilidade, sob pena de se condenar a 22

sociedade à instabilidade e estagnação econômica. O contrato é, como já se disse, o veículo do desenvolvimento, da acumulação e circulação de riquezas, e do progresso. Nos casos de desequilíbrio das forças socioeconômicas das partes contratantes, que resulte em poder de exercício unilateral e abusivo da autonomia da vontade, "o remédio, consiste, então, em regra, numa intervenção autoritária externa do poder público - geralmente o legislador - que reage às restrições ou à expropriação de facto da liberdade contratual das partes débeis, restringindo, por sua vez, mas com prescrições normativas formais, a liberdade contratual das partes fortes". 37 (grifado no original) Ademais, não se pode olvidar que as regras de conduta decorrentes do princípio da boa-fé não se ligam à prestação principal da operação econômica, mas a manter operante a relação obrigacional, enquanto processo ou conjunto de atos polarizados por um fim econômico social. 12 TEMPERAMENTOS DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ O direito privado, em especial no que se refere à teoria dos contratos, sofreu uma grande evolução desde o século XIX, que reflete a transformação

econômica,

ideológica

e

política

da

sociedade

ocidental. Todas as teorias sobre o fundamento e a finalidade do contrato novecentista partiam do pressuposto da igualdade formal de todos, para edificar sobre a autonomia da vontade as regras e princípios dirigentes de todo o sistema jurídico. A constatação da desigualdade social e da estratificação das camadas sociais marcantes do sistema capitalista e da economia de massa fez com que os juristas passassem a enfocar o direito contratual como um instrumento não apenas de proteção das liberdades individuais, mas de promoção da igualdade. Inspira o direito contratual o princípio consagrado nas sociedades democráticas que optaram pelo modelo de livre mercado e pela iniciativa privada, qual seja o princípio da liberdade, da autonomia da 23

vontade, que jamais deixou de ocupar o posto de maior destaque neste âmbito. Mas o exercício das liberdades, como de todos os direitos, encontrase polarizado por sua destinação. Enquanto membro de uma comunidade

de

indivíduos

que

possuem

iguais

direitos

e

prerrogativas, o homem há de exercer seus direitos até o limite que lhe impõe o direito dos demais. E no conflito de direitos individuais, é o interesse social que pontuará a regularidade de seu exercício. O contrato é, destarte, o exercício de um direito, a expressão de uma liberdade,

que

permite

aos

homens

auto-regulamentar

suas

liberdades e obrigações, que promove a circulação de riquezas, bem como o desenvolvimento econômico e, por conseguinte, o progresso social. Enquanto relação jurídica duradoura, complexa, apresenta-se como um processo, um conjunto seqüenciado e concatenado de atos, obrigações e direitos, que se desenvolve no tempo com o fito de alcançar um resultado econômico legítimo, amparado pelo direito, e relevante para a sociedade. Em decorrência da vocação finalística do contrato, a autonomia privada

limita-se

tanto

pelos

princípios

e

normas

do

direito

contratual, ditas impositivas, inderrogáveis pela vontade das partes, que tem origem ontológica na busca da igualdade social pelo direito, bem como pelo princípio da boa-fé. Este último princípio serve de limite à autonomia da vontade, seja impondo que seu exercício se faça sempre compatível com o fim econômico e social a que o contrato se destina, seja impedindo que a declaração de vontade se interprete de tal forma que frustre esse mesmo fim. Fundamental, porém, é que não se confunda o controle da autonomia da vontade com mero juízo ético e subjetivo. Ao recorrer à boa-fé como método de interpretação e integração do contrato e como fonte de deveres de conduta, o aplicador do direito valer-se-á de uma técnica

jurídica

objetiva

e

concreta

de

revelação

do

fim 24

socioeconômico do contrato, que permitirá que o conjunto de direitos e deveres, que instrumentaliza uma finalidade e uma função perante as partes e a comunidade, cumpra o seu legítimo escopo. Excepcionadas estas limitações, oriundas da ordem pública, das leis imperativas e da boa-fé, tem-se a autonomia da vontade como fonte soberana de obrigações, as quais vinculam as partes na mesma medida que a lei. É, também, a obrigatoriedade do contrato outra decorrência da boa-fé e da exigência social de se tutelar a segurança e o dinamismo das relações contratuais. A declaração expressa gera legítima confiança na outra parte de que o prometido será cumprido. Na transformação econômica que o contrato opera, através da circulação de riquezas, todos os anseios sociais se voltam para garantir a estabilidade e continuidade das relações contratuais. É por tal via que se pode "assegurar-lhes aquele dinamismo que é postulado pelos modos de funcionamento das modernas economias de massa". 38 O respeito a essa lei privada é de extrema relevância para a segurança das relações jurídicas, para o desenvolvimento e a paz social, razão pela qual o ordenamento jurídico confere aos contratos as garantias que atribui também às obrigações decorrentes da lei, impedindo que qualquer das partes, ou mesmo o juiz e o legislador intervenham na vontade declarada para alterá-la ou derrogá-la. Um equívoco comum que se tem verificado nas decisões pretorianas posteriores ao CDC, por exemplo, é admitir-se que a tutela dos desiguais e as carências sociais são capazes de afastar, inclusive, a obrigatoriedade do contrato franqueando ao "frágil consumidor", até mesmo a desistência ou retratação do ajustado, subtraindo do credor o direito de executar in natura o ajuste. Não se pode ignorar a transformação profunda dos fatos e das idéias ocorridas nas relações contratuais e pretender conservar o instituto jurídico tal como concebido na teoria clássica do século XIX. 25

Tampouco parece razoável e mesmo viável defender-se, contra a realidade, propalar o fim do contrato e da autonomia privada. Correto, ao contrário, é vislumbrar como tutelado e fortemente defendido o contrato, imbuído porém da conotação social. Os princípios do consensualismo e da obrigatoriedade continuam plenamente em vigor. O contrato, quando válido, é ainda a lei vigente entre as partes. Releva notar que mesmo quando se limita a autonomia, o que se busca é a proteção da confiança, e por conseqüência, a estabilidade, a celeridade e o dinamismo das operações econômicas que se travam por meio do contrato. Ao

abandonar

a

investigação

da

verdadeira

intenção

de

um

contratante para buscar a força do contrato na declaração externada não se prescinde do ânimo, apenas valoriza a vontade do outro contratante que fiou-se na aparência determinada pela conduta do outro. Na

relação

contratual

polarizada

por

interesses

por

vezes

antagônicos, a investigação do sentido e alcance da lei privada há de se fazer de modo objetivo e não com investigação psíquica do ânimo interno dos pactuantes. Se há um princípio do direito dos contratos que não pode ser abandonado é o da obrigatoriedade do avençando. A obrigatoriedade do contrato só cede em face da constatação do vício de sua formação ou perante a eliminação de um de seus elementos essenciais que desequilibrem a comutatividade inicial ou que lhe retire a validade. Não será, pois, obrigatório o contrato em que não se teve declaração de vontade livre, consciente, que estipulou obrigação ilícita, imoral, que não respeitou aos deveres de conduta que impõe o princípio da boa-fé. O fato de merecerem tutela especial, algumas parcelas ou setores da sociedade em face da desigualdade que os separa dos outros 26

contratantes não os coloca à margem do princípio da vinculação ao contrato, ou imunes à obrigatoriedade da lei privada. Toda a proteção que lhes dedicar o direito será para conferir-lhes poder de manifestar livremente a própria vontade, mas jamais de retratar-se unilateralmente conforme as próprias conveniências e a situação patrimonial em que se encontrar. As limitações da autonomia da vontade, nesse contexto, não colidem, em

absoluto,

com

o

arraigado

e

valorizado

princípio

da

obrigatoriedade, que sustenta toda e qualquer sociedade livre e democrática. Note-se, por exemplo, o art. 157 do novo CC que trata da nulidade do negócio celebrado com lesão nos vícios de consentimento capaz de justificar a anulação do negócio celebrado em estado de premente necessidade

e

com

desvantagem

exacerbada

(manifestamente

desproporcional ao desequilíbrio contratual). Tanto a lesão quanto a função social do contrato representam o estágio avançado da teoria do abuso do direito e a concepção atual da boa-fé objetiva que deve imperar nos acordos de vontade comutativos. Mas tanto o aplicador do direito quanto o legislador têm compromisso com os preceitos, princípios e valores consagrados na CF. Não pode o legislador ordinário livremente intervir na liberdade contratual, sem compromisso com os princípios da CF, ou em desobediência às leis naturais. Na edição do ato legislativo, o Poder Público está obrigado a cumprir sua

função

tal

como

o

Administrador,

com

moralidade,

impessoalidade, inspirado pelo fim e interesse social, respeitando o equilíbrio dos princípios constitucionais. Eventual desvio dará ensejo à decretação da inconstitucionalidade da norma ordinária ou complementar. As regras de intervenção e dirigismo hão de ser excepcionais e pontuais, obedecendo as necessidades sociais, respeitando os valores 27

e princípios maiores da CF, que asseguram a livre iniciativa, o direito adquirido, a propriedade privada e o devido processo legal. As regras emergidas do poder dos contratantes de criarem o próprio direito hão de ser respeitadas como se leis fossem, obrigatórias, cogentes, irretratáveis em princípio, a menos que ofendam às normas de ordem pública, aos direitos ditos indisponíveis, à função social do tipo ou modelo contratual firmado. Retirar a liberdade privada ou a obrigatoriedade do que livremente se ajustou equivale a destruir a paz social, a estabilidade das operações econômicas, instituir a insegurança e sujeitar todo o planejamento da ação humana a fato incerto. Toda sujeição da obrigatoriedade do contrato da execução ou não de seus comandos à vontade e desígnio de uma das partes, seja ela fraca ou forte, é condição potestativa, que impede o desenvolvimento seguro, estável e sustentável da comunidade. "O vínculo contratual (vínculo jurídico) instala uma situação de certeza e segurança jurídicas para as partes. Vale dizer: cada parte tem a aparente certeza e a segurança que desse vínculo defluir, de que, na hipótese de descumprimento do contrato, poderá recorrer a meios jurídicos adequados à obtenção de reparação por esse descumprimento, ou mesmo a execução coativa da avença". 39 Em qualquer contrato, é por conta e em busca da certeza e da segurança jurídica "que as partes se acomodam ao vínculo contratual e, principalmente, o ordenamento jurídico o tutela". 40 Os interesses opostos são harmonizados pela via do contrato e "o sistema funciona para garantir o comércio, a segurança no tráfico", ou seja, por sua própria funcionalidade o contrato "traduz segurança e previsibilidade, porque permite a fluência das relações de mercado". 41 13 CONCLUSÕES 1 - As mudanças drásticas e céleres de cunho social, político e econômico do século XX tornam imperativas as transformações e atualizações do direito privado brasileiro. É necessário que se formule um sistema complexo de normas flexíveis e adequado ao modelo 28

socioeconômico vigente, capaz de resistir às alterações da realidade, sem retirar a segurança que permite ao indivíduo prever as conseqüências de seus atos e programar o seu futuro e fazer opções, sopesando custos e responsabilidades. 2 - Essas exigências da sociedade moderna influenciaram o novo CC e inspiraram, em especial, duas normas da teoria geral dos contratos: os arts. 421 e 422, que tratam da função social do contrato e do princípio da boa-fé. Adotou-se a técnica das cláusulas gerais, que através de linguagem vaga, institui princípio geral e objetivo capaz de nortear o aplicador do direito na solução das mais variadas questões no presente e no futuro. 3 - O novo direito, mais flexível, porém não rompe com valores, princípios e preceitos arraigados profundamente no sistema jurídico pátrio, tampouco com cânones constitucionais. Há que se flexibilizar o sistema

jurídico

sem

abrir

mão

dos

princípios

e

garantias

constitucionais que sustentam a ordem e a paz social e conferem a indispensável segurança às relações jurídicas que promovem o progresso econômico da Nação. 4 - Assim devem ser compreendidos, pois, os artigos no CC citados que determinam que os contratos devem cumprir sua função social e atender aos ditames da boa-fé e da lealdade. O contrato, há muito, deixou de ser entendido como exercício absoluto da autonomia do indivíduo. Instrumento de operações econômicas e indispensável ao regramento do convívio social. O contrato, atualmente, é inspirado por princípios éticos e disciplinado conforme os interesses da sociedade na manutenção da justiça social, na distribuição mais justa das riquezas e na promoção do progresso econômico. Tal qual a propriedade, não pode ser manejado com abuso, devendo cumprir sua função social (arts. 421 e 422 do novo CC). Os contratantes, agora entendidos como parceiros leais e probos, hão de auferir suas vantagens, segundo expectativas legítimas, dentro de 29

uma equação econômica razoável, que não represente excessos irracionais e desproporcionais segundo as praxes do mercado e as leis da livre economia tuteladas pela CF (CF, art. 170, IV). Ao fiscalizar a liberdade de contratar em face desses dois princípios, o aplicador do Direito não poderá anular a função individual do contrato, já que é regulador da propriedade privada e da circulação de riquezas, e capaz de promover o progresso econômico de toda a sociedade

brasileira

integrando

o

País

ao

mundo

atualmente

globalizado. Há de se manter a obrigatoriedade do contrato, o respeito ao direito adquirido (CF, art. 5º, XXXVI) e à propriedade privada (CF, art. 170, II) alçados a garantias constitucionais e inafastáveis por regras jurídicas ordinárias que preconizam a função social e a prevalência da boa-fé nos contratos. A moderna teoria do contrato não enfraqueceu a autonomia da vontade, apenas deu-lhe outro enfoque para fortalecer a verdadeira liberdade de contratar entre personagens socioeconômicos tão desiguais, pois, sem vontade autônoma e livre não há contrato. Nesse contexto, o princípio da boa-fé é entendido como dever de cada contratante conduzir-se de forma a permitir que a relação contratual atinja os seus fins socioeconômicos respeitada a equação econômica instituída pelas partes em convenção livre. Assegurada a manifestação de vontade vinculante de forma livre e válida, o contrato torna-se obrigatório e somente a quebra do sinalagma contratual que proporcione vantagens desarrazoadas a uma das partes em detrimento de outra autorizará a intervenção do Estado para retirar a força do vínculo. Essa intervenção, entretanto, não se faz em nome de uma subjetiva compreensão do que seja justo e ideal para o aplicador do direito, mas segundo critérios objetivos retirados da realidade econômica, dos dados do comércio, das práticas do mercado e dentro da equação econômica eleita pelas partes, que em princípio são livres para dispor 30

do patrimônio segundo suas conveniências e devem responder obrigatoriamente pelos próprios atos. Não pode, pois, o juiz tentar, no caso concreto, reequilibrar as diferenças sociais e promover a redistribuição de riquezas. São a equação e a finalidade econômica e social do próprio contrato que deverão ser fiscalizadas para orientar a investigação de práticas abusivas e desleais na execução do ajuste, e a interpretação das cláusulas e obrigações ajustadas. Por fim, é de se ressaltar que ainda hoje, em face das opções políticas da sociedade brasileira por um modelo econômico que se sustenta na propriedade privada e na livre iniciativa (CF, art. 170, caput e inc. II), a regra geral é a liberdade de auto-regulamentação da vida e das relações privadas, de tal sorte que a intervenção estatal é excepcional e deve ser razoável, sob pena de instalarem-se o caos, a instabilidade, a estagnação econômica e a deterioração do nível de vida social.

31

Related Documents