A Fruteira.docx

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A FRUTEIRA Vermeer pintou Leitora à janela (ver encarte) mais ou menos na mesma época em que pintou Oficial e moça sorridente. Vemos a mesma sala no andar de cima, a mesma mesa, a mesma cadeira, a mesma mulher usando até o mesmo vestido, novamente a esposa Catharina Bolnes, ou assim creio. Embora a ação dos dois quadros seja diferente, ambos narram mais ou menos a mesma história: a corte entre um homem e uma mulher. A história é visível em Oficial e moça sorridente, no qual vemos a conquista em andamento. Em Leitora à janela, por sua vez, vemos apenas a mulher. O homem tem sua presença no quadro, mas só in absentia: na carta que a mulher lê. Ele está longe, talvez a meio mundo de distância. Ela lê à janela por causa da luz, mas dessa vez a janela não está apenas entreaberta. Está escancarada. O homem está lá fora, em algum lugar, e só pode lhe falar por cartas. Sua ausência física induz Vermeer a construir um clima diferente. O brilho da conversa leve foi substituído pela tensão internalizada, quando a moça se concentra em palavras que nós, espectadores, não temos permissão de ler. Se os dois quadros dividem espaço e tema, diferem nos objetos que mostram. Leitora à janela não tem elementos em excesso, mas há mais objetos no quadro, que participam mais da função de criar atividade visual. Para equilibrar a movimentação desses objetos, Vermeer deixou a parede vazia. Vazia, mas longe de ser um vácuo; com certeza, essa é uma das paredes vazias mais ricamente texturizadas da arte ocidental. A análise radiográfica revela que Vermeer pendurara naquela parede um quadro com um cupido (ele o usou mais tarde em Senhora diante do virginal), para que o leitor soubesse que ela lê uma carta de amor, mas depois decidiu-se contra uma dica simbólica tão óbvia e apagou-o. Para dar à sala a sensação de profundidade e volume, usou a técnica convencional das cortinas, uma pendendo sobre a janela aberta, a outra puxada de lado em primeiro plano, como se aberta para revelar o quadro (era prática costumeira pendurar cortinas sobre os quadros para protegê-los da luz e de outros danos). A mesa está coberta, desta vez com um tapete turco ricamente colorido - esses tapetes eram valiosos demais para pôr no chão, como fazemos hoje -, amontoado de um lado para dar vitalidade à cena. E ali, inclinado sobre o tapete, no meio da mesa, está um objeto que, como o chapéu do oficial, aponta para o mundo mais vasto, para onde talvez tenha ido o amante ou marido: um prato de porcelana sob um monte de frutas. Nossos olhos vão, primeiro, para a moça, mas o prato competiu pela atenção dos contemporâneos de Vermeer. Era um prazer admirar fruteiras como essa, mas elas ainda eram raras e caras, e poucos podiam comprá-las. Uma ou duas décadas antes, os pratos chineses raramente apareciam em quadros holandeses; avancemos uma década ou duas e estarão por toda parte. A década de 1650 foi exatamente o momento em que a porcelana chinesa ocupou seu lugar na arte holandesa, assim como na vida holandesa. De fato, esses pratos fizeram parte do surgimento de um gênero de pintura recentemente popular, as naturezas-mortas, que os artistas holandeses do século XVII transformaram numa forma de arte. O artista escolhia objetos de tipo parecido (frutas) ou que tivessem o mesmo tema plausível (o apodrecimento, sinal de vaidade) e arrumava-os na mesa de um jeito visualmente agradável. Uma grande fruteira chinesa seria exatamente o tipo de coisa que serviria para unificar objetos menores, como frutas, e juntá-los num monte dinâmico. O desafio da natureza-morta era tornar a cena tão real que enganasse os olhos e levasse a pensar que não era um quadro; o artista esperto talvez pintasse até uma mosca na cena, como se a mosca também tivesse se

enganado. Criar a realidade em trompe l'oeil era exatamente o desafio com que Vermeer brincou durante toda a sua vida de pintor. A fruteira na mesa diante de Catharina está ali para deliciar os olhos, mas Vermeer usa a natureza-morta de frutas esparramadas para transmitir o derramar de emoções na mente dela ao ler a carta do amante distante - talvez até nas distantes Índias Orientais holandesas - e esforçar-se para controlar os pensamentos. Sua postura e seus modos sugerem uma pessoa calma, mas nem ela consegue manter firmes as ideias. Do mesmo modo, as frutas se derramam da fruteira diante dela. É claro que é tudo armado e encenado. O amante é fictício, a folha de papel que a modelo segura podia não ter nada escrito, e o tapete, o prato e a cortina foram todos habilidosamente posicionados. Mas o mundo é real, e é atrás disso que estamos. Essa fruteira, muito adequada num quadro pintado na cidade que criou a cerâmica de Delft, será a porta pela qual sairemos do ateliê de Vermeer e seguiremos pelo corredor das rotas comerciais que vão de Delft à China. DEZESSEIS GRAUS abaixo do Equador, a 200 quilômetros do litoral da África, uma ilha vulcânica rompe a superfície totalmente vazia do Atlântico Sul. A Companhia das Índias Orientais britânica incorporou a ilha de Santa Helena ao Império Britânico no século XVIII. Construíram Jamestown na baía que era conhecida como Church Bay ("baía da Igreja", hoje baía Jamestown), a sotavento da ilha. A principal razão da fama da ilha é ser o lugar para onde os britânicos desterraram Napoleão depois de derrotá-lo na Batalha de Waterloo, em 1815, na cena final do longo drama que levou à ascendência da Grã-Bretanha como maior potência mundial do século XIX. Antes que os ingleses ocupassem Santa Helena, a ilha servia de escala para os navios de todos os países que faziam a longa viagem de volta da Ásia à Europa. Por estar diretamente no rumo dos ventos alísios de sudeste que levavam os navios para o norte depois do cabo da Boa Esperança, era um lugar de refúgio, onde embarcações e tripulações podiam se recuperar das doenças e tempestades que assolavam as viagens marítimas; um porto seguro para descansar, consertar avarias e abastecer-se de água doce antes do último trecho até a casa. A navegação moderna não precisa dessas ilhas e hoje passa ao largo de Santa Helena, deixando-a, em sua lonjura oceânica, para só turistas visitarem. A única embarcação na baía da Igreja em plena manhã do primeiro dia de junho de 1613 era inglesa, um pequeno navio da Companhia das Índias Orientais chamado Pearle. O Pearle chegara à baía da Igreja duas semanas antes, junto com um comboio de seis navios que voltavam da Ásia para Londres. Havia mais um navio inglês no comboio, o Solomon, mas os outros quatro navegavam os mares para a Companhia das Índias Orientais holandesa. Muito embora os holandeses e os ingleses entrassem em guerra várias vezes no século XVII, os comandantes de ambos os lados preferiam pôr de lado as divergências e navegar juntos para se proteger dos verdadeiros concorrentes, os espanhóis e portugueses. Os seis navios passaram duas semanas em Santa Helena, descansando e recuperando-se para o último trecho da viagem de volta à Europa. Mas quando partiram na madrugada de 1° de junho deixaram o Pearle para trás. Metade da tripulação de 52 homens do Pearle estava doente quando o navio chegou a Santa Helena, e, em sua maioria, os homens ainda estavam fracos demais para trabalhar. Naquela manhã, os barris d'água do Pearle ainda estavam sendo enchidos e embarcados. John Tatton, o comandante, não teve escolha senão retardar a partida até a manhã seguinte, na esperança de alcançar o restante da frota.

Tatton e a tripulação estavam ocupados preparando o Pearle depois que os outros partiram quando, ainda pela manhã, dois grandes navios portugueses foram avistados contornando a ponta sul da baía. Eram carracas, os grandes navios armados de transporte que os portugueses construíam para levar mercadorias pelos oceanos. Tinham feito a viagem inaugural a Goa, pequena colônia de Portugal no litoral oeste da Índia, e estavam no caminho de volta a Lisboa com um grande carregamento de pimenta. Tatton entendeu que o Pearle não era páreo para essas duas grandes embarcações, os maiores navios de madeira já fabricados pelos europeus. O melhor ato de bravura seria sair do alcance de seus canhões, e ele içou as velas e fugiu. A saída apressada fez com que abandonasse na ilha os barris d'água e a metade adoecida da tripulação. Mas Tatton não pretendia apenas levantar âncoras e correr. Seu plano era outro. Ele seguiu em desabalada perseguição do resto do comboio anglo-holandês, na esperança de convencer Jan Derickzson Lam, o almirante holandês, a dar meia-volta com a frota e retornar para capturar as duas carracas na baía da Igreja. O Pearle alcançou o Wapen van Amsterdam, nau capitânia de Lam, depois do anoitecer. Lam "ficou muito contente e fez sinais para que a frota seguisse", contou Tatton depois. Entretanto, nem todos os navios holandeses obedeceram à ordem de dar meia-volta. O Bantam e o Witte Leeuw (Leão Branco) viraram e foram com o comandante, mas o Vlissingen deixou de avisar se recebera a mensagem, assim como o outro navio inglês, o Solomon. Lam não desanimou. Quatro contra dois talvez não fosse tão esmagador quanto seis contra dois, mas sua frota tinha a vantagem da surpresa. Depois de um dia e meio de dura navegação contra o vento, o quarteto angloholandês chegou de volta a Santa Helena. Lam e Tatton acertaram ao contar com a surpresa. Jeronymo de Almeida, comandante da frota portuguesa, devia ter visto o Pearle fugir, mas tirara o navio inglês da cabeça e não se preparara para o seu retorno. A nau capitânia Nossa Senhora de Nazaré estava ancorada com o flanco exposto ao mar aberto. Ao lado, estava ancorado o Nossa Senhora do Monte do Carmo, na verdade, preso pelo navio maior. Lam atacou antes que os portugueses pudessem reposicionar as carracas para melhor se defender. Mandou o Bantam e o Leão Branco para a proa e a popa do Nazaré, em ângulos que tornavam quase impossível aos portugueses usar o canhão contra eles, e depois levou o Wapen diretamente contra o navio. Mais tarde, Tatton escreveu que Lam deveria ter tentado negociar a rendição portuguesa, mas parece que o holandês só queria a captura. "Cobiçoso demais", foi a avaliação de Tatton. O ataque do Bantam à proa do Nazaré "esfriou bastante a coragem de Portugal", de acordo com Tatton. Então Roeloff Sijmonz Blom, comandante do Leão Branco, atirou na popa do Nazaré, perfurando-o acima da linha-d'água. Blom levou o Leão Branco até mais perto para cortar os cabos da âncora da carraca, na esperança de obrigá-la a seguir para a praia. A tripulação do Carmo, impotente atrás do Nazaré, ainda assim conseguiu passar um cabo substituto para o outro navio e prendê-lo de novo. Preparando-se para abordar a nau capitânia, Blom deixou o Leão Branco paralelo ao Nazaré e ao Carmo. Quando o fez, os artilheiros a estibordo trocaram fogo com o Carmo. As opiniões divergem a respeito exatamente do que aconteceu depois. Alguns disseram que os portugueses acertaram um tiro direto no paiol de pólvora do Leão Branco. Outros insistiram que um canhão defeituoso no convés inferior do Leão Branco explodiu. Seja qual for a causa, a explosão destruiu a popa do navio. O Leão Branco afundou em minutos. Tatton acreditava que Blom, a tripulação de 49

homens e mais dois passageiros ingleses a bordo tivessem morrido na explosão ou se afogado na baía, embora na verdade alguns tenham sido salvos e levados de volta a Lisboa para repatriação. Depois de perder um navio inteiro com carga e tripulação, o almirante Lam não podia se dar ao luxo de arriscar mais nada. Ordenou a retirada dos outros navios. Tatton conseguiu levar o Pearle até suficientemente perto da margem norte da baía para, antes de ir embora, recolher 11 homens da tripulação abandonada, que tinham se reunido ali na esperança do resgate. Os infortúnios dessa viagem só terminariam no desfecho dos acontecimentos. Quando passou pelo canal de Texel a caminho do Zuider Zee (hoje Ijsselmeer), o mar interior de Amsterdã, o Bantam encalhou e se rompeu. Foi péssima sorte para Lam. O número de navios da VOC que afundaram nesse canal pode ser contado nos dedos de uma só mão, e um dos dedos foi esse. (A frota portuguesa teve resultado um pouco melhor. O almirante Almeida conseguiu levar ambos os navios de volta a Lisboa, mas o Carmo ficou tão avariado que foi retirado de serviço.) Quando o Leão Branco afundou, em 33 metros d'água, um grande carregamento foi com ele para o fundo. O manifesto do navio ainda existe nos arquivos holandeses e nele é possível verificar exatamente o que se perdeu. O documento lista 15 mil sacos de pimentai, 312 quilos de cravo, 77 quilos de noz-moscada e mais 1.317 diamantes com o peso total de 480,5 quilates. O manifesto foi redigido no cais de Bantam, porto comercial da VOC na extremidade mais ocidental de Java. Dada a mania de exatidão nos detalhes e de contabilidade minuciosa da VOC, não há razão para suspeitar de que houvesse no porão algo que não tivesse sido registrado antes nos livros da companhia. É por isso que os arqueólogos marinhos que mergulharam para resgatar os restos do Leão Branco em 1976 ficaram surpresos com o que acharam. Sabiam que as especiarias teriam apodrecido há muito tempo e que os diamantes estariam perdidos nas areias do porto. Não esperavam encontrar carga. Pretendiam recuperar os objetos de metal do navio, principalmente o canhão. Ainda assim, ali, na lama, sob o casco avariado do navio, estavam espalhadas milhares de peças da mesma coisa que, em 1613, era sinônimo da China: porcelana. Será que a porcelana fora largada em cima do navio naufragado por outros navios que aliviaram a carga enquanto ancorados? É possível, mas havia porcelana demais num lugar só; e, quando as peças foram levadas à superfície, o estilo e as datas indicavam que tinham sido produzidas durante o reinado do imperador Wanli, que terminou em 1620. Todos os indícios, exceto o manifesto do navio, indicam que essa carga era do Leão Branco. O que a explosão destruiu, paradoxalmente se salvou. Se os fardos de porcelana cuidadosamente embalada tivessem chegado às docas de Amsterdã, como deveriam, teriam sido vendidos e revendidos, quebrados e rachados e, finalmente, jogados fora. Esse é o destino comum de quase toda a porcelana que chegou aos Países Baixos no século XVII. Há peças espalhadas pelo mundo, em museus e coleções particulares, que sobrevivem como restos individuais isolados das circunstâncias que os levaram à Europa, separados dos carregamentos dos quais fizeram parte. Sem querer, a explosão do Leão Branco salvou desse destino esse carregamento específico. É verdade que a maioria das peças recuperadas está quebrada, mas o irônico é que sobreviveram mais do que seria possível nos quatro séculos entre 1613 e o presente. Podem estar danificadas, mas ainda estão juntas (hoje no Rijksmuseum, em Amsterdã), e isso significa que podem nos mostrar como era um carregamento de porcelana no início do século XVII. As PRIMEIRAS PEÇAS DE PORCELANA CHINESA que chegaram à Europa espantaram todos os que as viram ou manusearam. Quando instados a descrever

o material de que eram feitas, os europeus só conseguiam pensar em cristal. A superfície vitrificada era dura e lustrosa, os desenhos sob a superfície, bemdefinidos, as cores, vivas e brilhantes. O material das peças mais delicadas era tão fino que se podia ver a sombra da mão do outro lado quando se erguia um prato ou xícara contra a luz. O estilo que mais chamou a atenção dos europeus foi o azul e branco: fina porcelana branca pintada com azul de cobalto e revestida com um esmalte perfeitamente transparente. Esse estilo, na verdade, foi uma evolução tardia na história da cerâmica chinesa. Os ceramistas de Jingdezhen, cidade oleira na província interiorana de Jiangxi, que atendia regularmente às encomendas imperiais, só desenvolveram a tecnologia necessária para queimar a verdadeira porcelana no século XIV. A produção de porcelana exige elevar a temperatura do forno a até 1.300 graus centígrados, suficientemente alta para transformar a mistura do esmalte numa transparência vítrea e fundi-la ao corpo da peça. Presos permanentemente entre os dois, ficavam os desenhos e padronagens azuis que tanto atraíam o olhar. A produção europeia mais próxima era a faiança, cerâmica queimada à temperatura de 900 graus centígrados e coberta com um fino esmalte de óxido. A faiança tem a aparência superficial da porcelana, mas faltam-lhe a finura e a translucidez. Os europeus aprenderam a técnica no século XV com ceramistas islâmicos, que a desenvolveram para fabricar substitutos mais baratos das importações que pudessem competir com a louça chinesa. Só em 1708 um alquimista alemão conseguiu reproduzir a técnica de fabricar a verdadeira porcelana numa cidade perto de Dresden, chamada Meissen, palavra que logo também virou sinônimo de porcelana fina. Os compradores europeus ficaram maravilhados com o efeito do azul sobre o branco. Embora pensemos nas linhas e desenhos em azul-cobalto escuro sobre o fundo branco puro como a quintessência do que é chinês, essa é uma estética emprestada, ou pelo menos adaptada. Na época em que os ceramistas chineses começaram a produzir a verdadeira porcelana, a China estava sob domínio mongol. Os mongóis também controlavam a Ásia Central e permitiam que as mercadorias se movimentassem por terra de uma ponta a outra do seu império continental. Havia muito tempo, o gosto persa pendia para a cerâmica chinesa, ali disponível desde o século VIII. Incapazes de igualar a brancura da cerâmica chinesa, seus ceramistas desenvolveram uma técnica para mascarar a argila cinzenta com um esmalte branco opaco que parecia chinês. Sobre essa base branca, pintavam desenhos decorativos azuis, usando o cobalto local para obter a cor. O efeito era admirável. Depois que a Pérsia e a China ficaram ligadas de forma mais direta pelo domínio mongol no século XIII, os ceramistas chineses tiveram muito mais acesso ao mercado persa. Sempre sensíveis às exigências do mercado, ajustaram a aparência dos seus produtos para atender o gosto persa. Parte dessa adaptação foi incorporar ao projeto das peças a ornamentação com cobalto. Como o cobalto chinês é mais claro que o persa, os ceramistas de Jingdezhen começaram a importar cobalto persa para produzir uma cor que, na opinião deles, atrairia os compradores persas. A porcelana azul e branca surgiu desse longo processo de inovação. Vendia bem na Pérsia, em parte devido à proibição do Corão de comer em pratos de ouro ou prata. Os ricos queriam servir os hóspedes com louça cara e, se estavam proibidos de apresentar a comida em metais preciosos, precisavam de algo igualmente bonito e caro, mas que não existisse na época do Corão. A porcelana de Jingdezhen cumpriu a tarefa. Os compradores mongóis e chineses também ficaram encantados com a aparência dessa porcelana. O que reconhecemos hoje como "porcelana chinesa" nasceu desse cruzamento intercultural aleatório de fatores materiais e estéticos, que transformou a produção de cerâmica no mundo

todo. Os ceramistas sírios da corte de Tamerlão, por exemplo, começaram a fazer seus produtos parecerem chineses no início do século XV. Quando o comércio global de cerâmica se expandiu para o México, o Oriente Médio e a península Ibérica, no século XVI, e para a Inglaterra e os Países Baixos, no século XVII, os ceramistas de todos esses lugares seguiram a mesma trilha. Todos tentaram, embora durante muito tempo também sem sucesso, imitar a aparência e a delicadeza do azul e branco chinês. No século XVII, as bancas de cerâmica dos bazares fora da China estavam cheias de imitações de segunda linha que sequer se aproximavam do produto original. Os leitores holandeses ouviram falar de porcelana chinesa em 1596 por meio de Jan Huygen van Linschoten, holandês que foi à Índia a serviço dos portugueses. Itinerário, seu livro de sucesso, inspirou a geração seguinte de comerciantes mundiais holandeses. Van Linschoten viu a porcelana chinesa nos mercados de Goa. Embora nunca tenha ido à China, conseguiu recolher informações razoavelmente sólidas sobre a mercadoria. "Ninguém acreditará caso se fale das porcelanas lá feitas" - ele fala da China com base no que descobriu em Goa - "nem daquelas que são exportadas todo ano para a Índia, Portugal e Nova Espanha e outros lugares! "Van Linschoten soube que a porcelana era produzida "no interior" - onde ficava Jingdezhen - e que somente o material de segunda linha era exportado. As melhores peças, "tão maravilhosas que nenhum vidro cristalino se compara a elas", eram mantidas no país, para a corte. Os comerciantes indianos levavam porcelana chinesa para o subcontinente desde o século XV, pelo menos. Eles a adquiriam de mercadores chineses no sudeste da Ásia, que a traziam de portos ao longo do litoral sudeste da China, para onde, por sua vez, os negociantes de cerâmica a levavam desde o interior. De repente, o desenvolvimento da rota comercial marítima em torno da África abriu um mercado na Europa. Os portugueses foram os primeiros europeus a adquirir porcelana chinesa em Goa, e não demorou para ampliarem suas rotas comerciais até o sul da China, onde podiam negociar diretamente com os atacadistas chineses. Era nessa rota que os holandeses queriam entrar, e logo conseguiram. Mas a primeira grande remessa de porcelana chinesa para Amsterdã não foi um empreendimento holandês. Foi resultante da rivalidade luso-holandesa em alto-mar, ao largo de Santa Helena, aliás. Onze anos antes do naufrágio do Leão Branco, uma frota de navios holandeses capturou ali o português San Iago, em 1602. O navio foi capturado sem dificuldade e levado a Amsterdã com toda a carga. No cais daquela cidade surgiu o primeiro grande tesouro de porcelana a chegar à Holanda, e compradores de toda a Europa brigaram por uma peça. Os holandeses chamaram-na de kraakporselein, "porcelana de carraca", em homenagem à carraca portuguesa da qual fora tirada. O próximo grande carregamento de porcelana a chegar aos Países Baixos veio no ano seguinte, da mesma maneira. O Santa Catarina foi capturado ao largo de Johore, no estreito de Málaca, na rota marítima que liga o oceano Índico ao mar da China Meridional. Foi a captura mais famosa do novo século. O Santa Catarina levava 100 mil peças de porcelana, num peso total de mais de 50 toneladas. (Havia também 1.200 fardos de seda chinesa, que venderam bem porque a produção de seda da Itália caíra naquele ano.) Compradores enviados pelas cabeças coroadas do norte da Europa correram para Amsterdã, com ordem de pagar o preço que fosse pedido. A captura do San Iago e do Santa Catarina e o naufrágio do Leão Branco foram conflitos da grande guerra que os holandeses travavam, não tanto contra os portugueses, mas contra os espanhóis. Entre 1580 e 1640, quando as coroas se uniram, os portugueses foram sócios minoritários dos espanhóis, e assim, aos

olhos dos holandeses, transformaram-se também em alvos legítimos de ataques. Mas a Espanha era o arqui-inimigo: era ela o Estado que ocupara os Países Baixos no século XVI e empregara violência espetacular para sufocar o movimento de independência holandesa. Ainda que a trégua assinada em 1609 entre a Espanha e as Províncias Unidas desse fim, por algum tempo, às hostilidades diretas nos Países Baixos, fora da Europa a luta entre o reino espanhol e a república holandesa continuou a ser travada. Entretanto, a rivalidade em alto-mar - os espanhóis, com certa razão, chamavamna de "pirataria" - não estava ligada apenas à luta holandesa pela independência em seu país. Tinha a ver com a redefinição da ordem global. Suas raízes têm de ser buscadas em 1493, o ano seguinte à primeira viagem de Colombo às Índias Ocidentais. À luz das novas terras descobertas do outro lado do Atlântico, o papa decretou, naquele mesmo ano, que a Espanha gozaria de jurisdição exclusiva sobre todas as terras recém-descobertas que ficassem a oeste de um meridiano norte-sul traçado a 100 léguas das ilhas de Cabo Verde, ao largo do Marrocos, e que Portugal ficaria com todas as terras a leste dessa linha. Todos os outros Estados europeus foram excluídos do direito ao comércio ou à posse nas regiões recém-descobertas. No ano seguinte, Espanha e Portugal alteraram os termos da bula papal de 1493 quando assinaram o Tratado de Tordesilhas. Esse acordo moveu a linha 270 léguas mais para oeste, possivelmente porque os portugueses sabiam, ou pelo menos desconfiavam, que um pedaço da América do Sul poderia projetar-se para leste dessa linha (estavam certos: era o Brasil). O Tratado de Tordesilhas nada dizia sobre onde cairia a linha de demarcação do outro lado do globo, já que nenhum dos lados do tratado tinha chegado lá. Assim, Portugal e Espanha partiram rapidamente em direções opostas na corrida em volta do mundo, Portugal pelo oceano Índico, a Espanha pelo Pacífico. Sabiam que a China estava lá, do outro lado do globo, e quem conseguisse marcar presença naquela região do mundo poderia ganhar o maior de todos os prêmios. O governo chinês não se entusiasmou com a ideia de deixar algum desses Estados firmar pé em seu solo. Os estrangeiros só tinham permissão de ficar na China como visitantes temporários que integrassem embaixadas diplomáticas. O conceito de embaixada diplomática era suficientemente elástico e assim entendido por ambos os lados, de modo que as embaixadas dos Estados vizinhos que iam prestar "tributo" ao trono chinês funcionavam de fato como delegações comerciais. Os embaixadores tinham permissão de comerciar, desde que o volume se mantivesse dentro de limites modestos. Os comerciantes tinham de ser embaixadores, e era isso o que os portugueses queriam ser. Chegaram à China antes dos espanhóis e fizeram o máximo esforço para criar canais oficiais de comunicação com a corte chinesa. Constantemente rechaçados, tiveram de improvisar com o comércio ilegal, ao abrigo das ilhas mais distantes. Finalmente, um acordo não oficial, em meados do século XVI, deu-lhes uma base numa estreita península do litoral sul conhecida como Macau, e lá se instalaram, criando uma base colonial minúscula para controlar o comércio com a China e o Japão. Na virada do século XVII, os navios da VOC também estavam no mar da China Meridional, sondando o litoral ao norte de Macau até a província de Fujian, em busca de um lugar onde pudessem estabelecer o comércio com a China. Como já tinha um acordo comercial em Macau com um grupo de "francs", como eram chamados os europeus naquela época (a palavra vinha do árabe), o governo chinês não estava interessado em fazer concessões a outro grupo. Mas os mercadores chineses privados estavam ansiosos para negociar com todos os francs, e algumas autoridades se dispunham a ser compreensivas se o preço fosse bom. Dentre essas autoridades chinesas, o mais famoso era Gao Cai, eunuco imperial encarregado de cobrar os impostos alfandegários marítimos. Como a receita da

alfândega ia diretamente para a conta da família imperial e não passava pelo ministro das finanças, o eunuco Gao torcia as regras da burocracia em benefício de seu superior. Em 1604, ele criou um entreposto comercial particular a sotavento de uma ilha perto do litoral, onde seus agentes podiam comerciar com os holandeses em troca de belos presentes para ele e para o imperador. O governador da província logo soube do esquema e mandou a marinha interromper o contrabando do eunucoii. A ausência de Estados fortes comparáveis à China no sudeste da Ásia fez com que fosse uma região mais promissora para os holandeses encontrarem uma base. Os espanhóis (instalados em Manila, nas Filipinas) e os portugueses eram muito poucos para dominar os milhares de ilhas da área, de modo que os holandeses agiram rapidamente e tomaram dos portugueses, em 1605, as chamadas Ilhas das Especiarias. Quatro anos depois, a VOC criou sua primeira feitoria comercial permanente em Bantam, na extremidade mais oriental da ilha de Java. Depois de capturar Jacarta, a leste, a companhia transferiu sua sede para lá e rebatizou a cidade de Batávia. Agora, a Holanda tinha, do outro lado do globo, uma base para desafiar o monopólio ibérico do comércio asiático. O novo esquema funcionou bem para a companhia. O valor das importações holandesas vindas da região cresceu quase 3% ao ano. O Leão Branco tornou-se uma das primeiras e mais espetaculares baixas da Holanda na guerra para dominar o comércio com a Ásia. O navio fizera a viagem inaugural de Amsterdã à Ásia - uma distância de cerca de 14 mil milhas náuticas (25 mil quilômetros) - já em 1601, um ano antes da formação da VOCiii. Voltou para casa em julho do ano seguinte. A tensão crescente com as embarcações portuguesas em águas asiáticas justificou a instalação de seis novos canhões de bronze, na proa e na popa. Quando seguiu para a segunda viagem à Ásia, em 1605, o Leão Branco navegava como navio da VOC. O novo acordo comercial está gravado nas costas do canhão de cobre que os arqueólogos pescaram na baía em 1976. O mestre fundidor Hendrick Muers inscreveu seu nome e a data - Henricus Muers me fecit 1604 - e, acima, aplicou as iniciais entrelaçadas da companhia, VOC, mais um A, insígnia da Câmara de Amsterdã. O Leão Branco completou a segunda viagem e, depois, em 1610, partiu para a malsinada terceira. Descarregou em Bantam e foi transferido para um esquadrão naval encarregado de sufocar um levante de comerciantes de noz-moscada nas Ilhas das Especiarias. O Leão Branco passou aquele inverno fazendo parte de uma frota para caçar os navios espanhóis que passassem ao largo de Manila. Cinco foram capturados. O navio passou o verão fazendo o transporte entre as ilhas e depois foi mandado de volta a Bantam para receber o carregamento para a terceira viagem de volta a Amsterdã. Em 5 de dezembro de 1612, partiu como um dos quatro navios sob o comando do almirante Lam. Em 1° de junho do verão seguinte, partiu de Santa Helena, no último trecho da viagem. Já sabemos o resto da história. A pirataria holandesa provocou protestos diplomáticos de outras nações europeias, não só de Portugaliv. Em 1603, quando os holandeses capturaram o Santa Catarina, Portugal exigiu a devolução do navio com todo o seu carregamento, insistindo que fora uma captura ilegal. Os diretores da VOC sentiram que tinham de criar para si uma argumentação de defesa que fosse além de glorificar a capacidade de continuar roubando. Precisavam de princípios jurídicos internacionais para provar que estavam certos em suas ações, e contrataram Huig de Groot, jovem advogado brilhante de Delft (também conhecido pela versão latina de seu nome, Grotius ou Grócio), para redigir uma peroração

que justificasse a pretensão de que a captura não era pirataria, mas sim um ato cometido em defesa dos interesses legítimos da companhia. Em 1608, Grócio entregou aos diretores da VOC o que queriam. De jure praedae, traduzido como Da lei do apresamento, argumentava que o bloqueio naval espanhol dos Países Baixos, então em vigência, era um ato de guerra. Essa provocação deu aos holandeses o direito de tratar os navios portugueses e espanhóis como naus beligerantes. Um desses navios capturado na guerra era butim legítimo, e não captura ilegal. No ano seguinte, Grócio ampliou Da lei do apresamento e criou sua obra-prima, Mare liberum, mar aberto, ou, no título completo, A liberdade dos mares ou o direito que pertence aos holandeses de participar do comércio das Índias Orientais. Em Mare liberum, Grócio apresenta vários argumentos novos e ousados. No mais ousado de todos, ninguém pensara antes: todos os povos têm o direito de comerciar. Pela primeira vez, a liberdade comercial foi considerada um princípio do direito internacional, como tem sido desde então. A partir desse princípio fundamental, segue-se que nenhum Estado tem o direito de impedir os naturais de outro Estado de usar as rotas marítimas para o comércio. Se o comércio era livre, então os mares em que comerciavam também eram livres. Portugal e Espanha não tinham base para abolir esse direito com o monopólio do comércio marítimo na Ásia. Grócio não aceitara o argumento de que tinham conquistado o monopólio por meio da obra que realizavam ao levar o cristianismo aos nativos daquelas regiões do mundo onde comerciavam. Além de não se sobrepor à liberdade comercial, para Grócio o dever de converter os pagãos infringia o princípio de que todos deviam ser tratados igualmente. "A crença religiosa não elimina nenhuma lei humana ou natural da qual derive a soberania", afirmou. O fato de algum povo recusar-se a aceitar o cristianismo "não é causa suficiente para justificar a guerra contra ele, nem para espoliá-lo de seus bens". E o custo de convertê-los não podia ser pago impedindo-se que outras nações comerciassem com eles. Armada com uma interpretação do argumento de Grócio que a beneficiava, a VOC permitiu que seus comandantes usassem a força sempre que fossem impedidos de comerciar. Os diretores da VOC também perceberam que a melhor maneira de dominar o comércio de porcelana era adquiri-la pelos canais comerciais regulares, em vez de roubá-la dos outros navios. Começaram a informar aos comandantes que partiam para Bantam que não deviam nem pensar em voltar sem porcelana chinesa. Em 1608, enviaram a lista de compras: 50 mil manteigueiras, 10 mil pratos, 2 mil fruteiras e mais saleiros, potes de mostarda e várias terrinas e travessas, mil de cada, mais um número não especificado de jarras e xícaras. Esse pedido foi um pico na demanda ao qual os mercadores chineses a princípio não conseguiram atender. Em vez disso, a procura fez os preços subirem. "A porcelana aqui em geral vem tão cara", observou consternado o chefe de operações de Bantam em 1610, numa carta aos diretores da VOC. Pior ainda, sempre que uma frota de navios holandeses chegava ao porto, os mercadores chineses "imediatamente elevam tanto os preços que não consigo calcular o lucro a ser obtido". A única maneira de controlar essa volatilidade dos preços era suspender todas as novas compras e negociar com os chineses o aumento da oferta. "Daqui para a frente, ficaremos atentos à porcelana e tentaremos conseguir dos chineses que tragam muito", escreveu ele, "pois o que têm trazido até agora não é muito e, na maior parte, é inferior." Ele decidiu não comprar nada do que lhe ofereceram naquele ano. "Só mercadorias muito especiais servirão", decidiu. No inverno de 1612, quando o Leão Branco estava sendo carregado no cais de Bantam, os fornecedores chineses atendiam ao padrão mais elevado exigido pela VOC. O Wapen van Amsterdam, nau capitânia da frota dizimada de Lam, levou apenas cinco barris de porcelana; cada um dos quais continha cinco pratos

grandes. Eram compras especiais, presentes para autoridades da VOC. O outro navio holandês que chegou ao destino, o Vlissingen, é que levava o principal carregamento de porcelana. Dele saíram 38.641 peças, variando de travessas grandes e caras e jarras para aguardente a galheteiros modestos, mas atraentes, e pequenos castiçais. A carga valia 6.791 guilderes; essa quantia não era inimaginável, considerando que, na época, um artesão hábil conseguia apurar 200 guilderes por ano, mas ainda assim era substancial. Foi o início de um comércio longo e crescente de porcelana. Em 1640, para escolher uma data e um navio ao acaso, só o Nassau levou para Amsterdã 126.391 peças de porcelana. A carga mais lucrativa do navio não era a porcelana, e sim a pimenta, da qual o Nassau levava 9.164 sacos; mas era a mercadoria que criava a maior presença na sociedade holandesa. Na primeira metade do século XVII, os navios da VOC levaram para a Europa um total de bem mais de 3 milhões de peças. Os CERAMISTAS chineses produziam para o mercado de exportação do mundo todo. Também produziam para o mercado doméstico, em quantidade e qualidade bem além do que remetiam para o exterior. Os chineses da dinastia Ming gostavam tanto de possuir a linda porcelana azul e branca quanto os chefes de família holandeses, mas eles a adquiriam guiados por padrões de gosto muito mais complexos. Wen Zhenheng foi um dos principais conhecedores e árbitros do bom gosto de sua geração (morreu em 1645). Morava na metrópole cultural de Suzhou quando o Leão Branco explodiu e afundou. Sua cidade produzia e consumia as obras de arte e objetos culturais mais finos que se podia encontrar na China, assim como os mais comerciais. Wen estava no lugar perfeito para produzir o seu famoso manual de bom gosto e consumo cultural, o Tratado das coisas supérfluas. Bisneto do maior artista do século XVI, ensaísta por mérito próprio e membro de uma das famílias mais ricas e exclusivas de Suzhou, Wen tinha todas as credenciais necessárias para fazer as avaliações da sua classe sobre o que era feito ou não na sociedade bem-educada e sobre o que se devia possuir e evitar; eis o tema do Tratado das coisas supérfluas. Esse guia do certo e do errado na compra e no uso de coisas belas era a resposta às orações de leitores que, ao contrário de cavalheiros finos como Wen, não eram suficientemente instruídos ou bemnascidos para conhecer essas coisas desde o berço. Era para os novos-ricos que ansiavam ser aceitos por seus superiores na sociedade. Por parte de Wen, foi também um modo esperto de lucrar com a ignorância deles, pois o livro vendeu bem. Na seção sobre objetos decorativos, Wen Zhenheng estabelece um padrão altíssimo para a porcelana de boa qualidade. Admite que a porcelana é algo que o cavalheiro deve colecionar e exibir, mas duvida que algo produzido depois do segundo quarto do século XV tenha valor, pelo menos como algo desejável que os amigos saibam que possuímos. A peça de porcelana perfeita, declara, deveria ser "azul como o céu, lustrosa como espelho, fina como papel e sonora como um carrilhão", embora ele tenha o bom-senso de se perguntar se perfeição assim já foi atingida, mesmo no século XV. Ele deixa algumas peças do século XVI passarem pelo seu exame, mas só na medida em que sejam apenas para uso cotidiano. O anfitrião deveria servir o chá aos convidados em xícaras produzidas pelo ceramista Cui, por exemplo. (O forno particular de Cui, em Jingdezhen, produziu porcelana fina, tanto azul e branca quanto multicolorida, no terceiro quarto do século XVI.) Mas na verdade, queixa-se Wen, as xícaras são um pouco grandes demais para serem elegantes. Só deveriam ser usadas se não houvesse coisa melhor à mão. Possuir objetos de alto valor cultural era um negócio traiçoeiro para os que lutavam para subir a escada do status. Mesmo quem tivesse uma peça de

porcelana que Wen considerasse fina o bastante para ser possuída, ainda precisaria tomar cuidado para não usá-la da maneira errada nem na hora errada. Por exemplo, ao arrumar um vaso para os outros verem, o único móvel onde se poderia colocá-lo seria "uma mesa de estilo japonês", como ele a descreve. O tamanho dessa mesa depende do tamanho e do estilo do vaso, e isso, por sua vez, depende do tamanho da sala onde o vaso é exibido. "Na primavera e no inverno, é adequado usar vasilhas de bronze; no outono e no verão, vasos de cerâmica", insiste ele. Nada mais é aceitável. "Valorize o bronze e a cerâmica, e considere baratos o ouro e a prata", ensina. Os objetos feitos de metais preciosos deveriam ser evitados não para esfriar o pecado do orgulho, como advertia o Corão, mas para pôr em seu lugar os meramente ricos, sem educação nem bom gosto. "Evite vasos com anéis", aconselha também, "e nunca os arrume em pares". Era tudo muito complicado. Entre as muitas regras, Wen incluía algumas para as flores que se podia pôr no vaso. Essas advertências terminam com o grave conselho de que "mais de duas hastes e a sala acabará parecida com uma taberna". A exuberância das exibições florais com que os europeus enchiam alegremente as suas porcelanas chinesas recém-adquiridas e que os artistas holandeses adoravam pintar quando não retratavam cenas de taberna (e, às vezes, nelas também) teria parecido a Wen de um mau gosto total, irremediavelmente típica da classe baixa. Imaginem o horror que sentiria com a maneira como os europeus usavam suas xícaras. Wen admitia como aceitável oferecer frutas e nozes ao tomar chá numa das xícaras do ceramista Cui, por exemplo, mas nunca laranjas. As laranjas eram perfumadas demais para serem servidas com o chá, assim como o jasmim e a cássia. Na guerra que Wen travava contra o mau gosto, os europeus perderiam facilmente. Os europeus não podiam conhecer nada desses jogos de status. Eram novos demais na arte de possuir porcelana para se preocupar com algo além de pôr as mãos nela. Também tinham suas regras, mas o terreno cultural das posses de luxo, pelo menos nas questões cerâmicas, ainda não fora tão revolvido. As preciosas peças de porcelana que saíram do porão do Vlissingen e foram leiloadas em 1613 nos armazéns da VOC eram desejadíssimas, fosse qual fosse o estilo ou mesmo a qualidade. Os únicos valores culturais que transmitiam era serem raras, caras e exclusivas. Sem experiência com porcelana, os europeus puderam deixar que as novas aquisições migrassem para o nicho imaginado pelos compradores. Os pratos chineses começaram a aparecer à mesa na hora das refeições, já que a porcelana era facílima de limpar e não passava o gosto da comida de ontem para o jantar de hoje. Também foram exibidos como curiosidades caras provindas do outro lado do mundo. Decoravam mesas, cristaleiras, lareiras e até a verga das portas. (A atenção cuidadosa aos portais das pinturas de interiores holandeses da segunda metade do século XVII revelará pratos ou vasos pousados neles.) Não faria sentido restringir a colocação de vasos finos às mesas baixas de estilo japonês, já que os europeus não faziam ideia do que era isso. Eles os colocavam onde queriam. Essas coisas eram importantíssimas para Wen Zhenheng. No seu mundo de complexas distinções de status, a superioridade dos refinados em relação aos vulgares vivia ameaçada de perder-se sempre que os ricos sem cultura impunham seu poder sobre os meramente bem educados. A riqueza não era proteção contra a vulgaridade. Ao contrário, como o crescente número de novos-ricos da era comercial em que Wen viveu apressava-se a viver com ostentação sem aprender a viver bem, seria mais provável que a riqueza produzisse vulgaridade do que ajudasse alguém a comprar o caminho para escapar dela. Os não educados comiam em pratos de ouro e prata, sem a mínima consciência de que se comprometiam com uma ostentação grosseira. Lavavam os pincéis caligráficos em

vasilhas de porcelana recém-fabricadas, quando na verdade não deviam usar porcelana, mas jade ou bronze; Wen só permitia o uso de vasos d'água de porcelana se tivessem sido produzidos antes de 1435. Eram regras duras. Favoreciam os culturalmente bem informados, com conhecimentos que os meramente ricos não tinham esperança de obter - a menos, ironicamente, que comprassem um exemplar do Tratado das coisas supérfluas. Na guerra do status, os recém-chegados sempre corriam riscos, já que não tinham acesso à escrita das regras. Por outro lado, pelo menos, podiam participar do jogo. Os pobres, afinal de contas, nunca teriam essa oportunidade. Se Wen Zhenheng tivesse ido às docas do Grande Canal que cortava a cidade para inspecionar os carregamentos de cerâmica que eram remetidos para os holandeses, acharia ridículo o que encontraria. A maioria era porcelana de carraca, feita para exportação. Vista pelos olhos de Wen, a porcelana de carraca era grossa demais e mal pintada, e os motivos da decoração não tinham nenhuma delicadeza. Era apenas o tipo de lixo que se pode impingir a estrangeiros desinformados. Um cavalheiro de Suzhou jamais sonharia em servir petiscos em travessas malpintadas, com "item de excelente qualidade" escrito no fundo (marca inscrita em muitas exportações), nem frutas cristalizadas em pratos com pé, esmalte leitoso com furinhos e datas falsas do século XV na base, nem chá fino em xícaras feitas no ano anterior. Um guia esnobe de Beijing de 1635 admite que os ceramistas de Jingdezhen ainda são capazes de produzir, de vez em quando, uma "peça fina" que não envergonhe o dono, mas observa que o verdadeiro conhecedor sabe que deve manter distância das peças contemporâneas. Em dúvida, a porcelana antiga seria geralmente a opção mais segura. Se, pelos padrões chineses, os europeus eram maus juízes do que saía dos navios da VOC, pelos seus próprios padrões eram juízes excelentes. Afinal, com que comparariam a porcelana chinesa senão com os pratos e jarros de cerâmica grosseira e quebradiça que os ceramistas italianos e flamengos produziam? Esses, os vasilhames chineses superavam em fineza, durabilidade, estilo, cor e em todas as outras características da cerâmica. Reproduzi-las estava além da capacidade de todos os artesãos europeus, e era por isso que, assim que um navio da VOC chegava à Holanda, aparecia gente de toda parte para comprá-los. No início do século XVII, quando a porcelana começou a chegar ao norte da Europa, os preços que atingia eram tão altos que estavam fora do alcance da maioria. Em 1604, quando Shakespeare fez o cômico Pompeu de Medida por medida regalar Escalo e Angelo com o longo relato da última gravidez de Mistress Overdone, sua patroa, conta a eles que ela pedira ameixas-pretas. "Só tínhamos duas na casa, que naquela época tão distante estavam, por assim dizer, numa fruteira, um prato de uns 3 pence; Vossas Honras já viram tais pratos; não são pratos chineses, mas são pratos muito bons. "Como alcoviteira, Mistress Overdone ganhava o bastante para comprar bons pratos, mas não porcelana chinesa. Apenas uma década depois, quando a porcelana chinesa começou a inundar o mercado europeu, e os preços começaram a cair, essa fala já não serviria. Como observou, passados exatamente dez anos, o autor de uma história de Amsterdã, "a abundância de porcelana cresce diariamente", de modo que os pratos chineses "passaram a estar conosco no uso quase cotidiano da gente comum". Em 1640, um inglês que visitou a cidade pôde declarar que "qualquer casa de indiferente qualidade" era bem suprida de porcelana chinesa. Toda essa oferta de porcelana se devia ao que o escritor de Amsterdã chamou de "essas navegações", que mudavam a vida material dos europeus em tal ritmo e de tantas maneiras que muitas vezes os surpreendiam. Foi por isso que, em 1631, René Descartes foi levado a chamar Amsterdã de "inventário do possível". O

viajante inglês John Evelyn ficou igualmente impressionado com a cidade quando a visitou, uma década depois. Maravilhou-se com a "reunião inumerável de navios e embarcações que passam continuamente diante dessa cidade, que é certamente o concurso mais movimentado de homens mortais agora sobre a face de toda a Terra e a mais dedicada ao comércio". Por mais notável que fosse, Amsterdã não era uma grande exceção, se comparada a outros centros urbanos da Europa. Quando Evelyn visitou Paris três anos depois, espantou-se com "todas as curiosidades naturais ou artificiais imagináveis, indianas ou europeias, para luxo ou uso" que "pode-se obter por dinheiro". Num mercado ao longo do Sena, admirou-se principalmente com uma loja chamada Arca de Noé, na qual encontrou um sortimento maravilhoso de "armários, conchas, marfins, porcelana, peixes secos, insetos raros, pássaros, quadros e mil extravagâncias exóticas". A porcelana era uma das extravagâncias que agora era fácil comprar. O crescimento explosivo do mercado dos fabricantes orientais logo começou a afetar a produção. Durante séculos, os ceramistas chineses tinham dado muita atenção à importância de dar forma a seus produtos de acordo com o gosto estrangeiro, achatando a forma esférica de um vaso para que parecesse um frasco turco ou pondo divisórias em pratos para adequá-los ao hábito alimentar dos japoneses. Quando a demanda europeia cresceu, os comerciantes de porcelana chinesa dos portos do sudeste da Ásia aprenderam do que os europeus gostavam e levaram esse conhecimento aos fornecedores no continente, para que reprojetassem seus produtos. Na hora de suprir o mercado externo, os ceramistas de Jingdezhen não se preocupavam com os padrões do bom gosto chinês de Wen Zhenheng. Queriam saber o que venderia, e dispunham-se a mudar a produção na temporada seguinte para se ajustar ao gosto europeu. Por exemplo, na década de 1620, quando as tulipas turcas viraram moda no norte da Europa, os ceramistas de Jingdezhen pintaram tulipas nos pratos. Sem nunca ter visto uma tulipa de verdade, os pintores de porcelana produziram flores quase irreconhecíveis como tulipas, mas isso não tinha importância. A questão é que reagiram imediatamente à mudança do mercado. Quando veio a famosa queda do mercado de tulipas, em 1637, a VOC correu para cancelar todos os pedidos de pratos enfeitados com tulipas, por medo de ficar com o estoque encalhado. Um dos híbridos mais notáveis a surgir nas olarias de Jingdezhen, projetado especificamente para agradar o gosto europeu, é o grande prato de sopa que os holandeses chamavam de klapmuts. O formato desse prato lembrava o chapéu barato de feltro usado pela classe baixa da Holanda, daí o nome. A julgar pelo grande número de klapmutsen no porão do Leão Branco, esse item era popular, e o nome, embora indicasse algo pouco sofisticado, pegou. Os chineses não tinham uso para pratos como esses. O problema era a sopa. Ao contrário da sopa europeia, a sopa chinesa mais parece um caldo que um cozido; é bebida, e não entrada. A etiqueta, portanto, permitia levar o prato à boca para tomá-la. É por isso que as vasilhas de sopa chinesas têm as laterais altas e verticais: para tornar mais fácil beber pela beirada. A etiqueta europeia proíbe erguer a vasilha, daí a necessidade de uma colher grande projetada especialmente para esse fim. Mas tente pôr uma colher europeia numa vasilha de sopa chinesa, e ela vira: os lados são altos demais, e o centro de gravidade não fica suficientemente baixo para equilibrar o peso do cabo do talher. Vem daí a forma mais plana do klapmuts, com uma beirada larga na qual o europeu poderia descansar a colher sem acidentes. Os consumidores chineses não estavam muito interessados na louça de exportação feita para europeus. Se alguma peça circulava dentro da China, era só como curiosidade. Provavelmente, as poucas porcelanas de carraca que surgiram

em dois túmulos chineses do início do século XVII chegaram à posse de seus donos por essa razão. Uma travessa decorada no estilo europeu foi encontrada no túmulo de um príncipe Ming que morreu em 1603, e dois pares de pratos no estilo klapmuts foram achados enterrados junto a um alto funcionário de província. Ambos os túmulos ficam na província de Jiangxi, onde se localizava Jingdezhen, o centro de fabricação de porcelana, o que ajuda a explicar como esses homens obtiveram as peças. Por que as quiseram, só podemos tentar adivinhar. Talvez achassem o estilo das carracas algo exótico, estrangeiro e atraente, que por acaso estava disponível no local. Aqui há uma convergência fascinante: em lados opostos do continente eurasiano, a classe alta adquiria porcelana de carraca; os chineses, por acharem que incorporavam um estilo ocidental exótico, os europeus porque lhes parecia ser a coisa mais puramente chinesa. Na década de 1610, quando os navios da VOC começaram a entregar com mais regularidade os carregamentos de cerâmica, os pratos chineses fizeram mais do que decorar mesas, encher bufês e empoleirar-se em guarda-roupas: surgiram nos quadros holandeses. O primeiro quadro holandês a mostrar um prato chinês foi pintado por Pieter Isaacsz em 1599, vários anos antes de os primeiros grandes leilões de carregamentos portugueses capturados tornarem esses objetos disponíveis para compradores holandeses. O primeiro quadro a mostrar um klapmuts é uma natureza-morta de Nicolaes Gillis, pintada dois anos depois. Gillis arrumara um monte de frutas, nozes, jarras e travessas numa mesa. Para nós, parece igual a qualquer outra natureza-morta holandesa, mas, para o observador de 1601, mostrava uma porcelana chinesa do tipo que só os mais ricos podiam comprar e que a maioria do povo holandês jamais vira, muito menos tocara, na vida real. Gillis não teria como possuir a peça que pintou. Ainda se passariam mais dois anos para o carregamento do San Iago chegar a Amsterdã, e mais uma década para o preço da louça chinesa chegar ao alcance dos compradores comuns. Portanto, é provável que a tenha pintado por encomenda do proprietário: não apenas uma natureza-morta, então, mas o retrato de uma propriedade valiosa. Em meados do século XVII, a casa holandesa era decorada com porcelana. A arte imitou a vida, e os pintores puseram pratos chineses em cenas domésticas para dar um toque de classe e uma pátina de realidade. Em Delft, a porcelana chinesa começou a ficar disponível antes da época de Vermeer. A nau capitânia da Câmara de Delft da VOC, a Wapen van Delft, foi duas vezes à Ásia e voltou em 1627 e 1629 com um carregamento total de 15 mil peças de porcelana, algumas das quais ficariam no local. A maior coleção pessoal da cidade pertencia a NiclaesVerburg, diretor da Câmara de Delft. Verburg podia comprar todos os tipos de itens que os seus navios levavam a Roterdã e suas balsas transportavam até Delft, pois ao morrer, em 1670, era o homem mais rico da cidade. Embora não estivesse no mesmo nível de Verburg, Maria Thins aspirava ter uma casa que atendesse aos padrões de gosto elegante da época. A se acreditar nas telas de Vermeer, a casa dos Thins-Vermeer possuía várias peças requintadas. O klapmuts de Leitora à janela também aparece em Jovem adormecida, logo, é provável que pertencesse à família. A casa talvez também possuísse um jarro chinês azul e branco, porque há um deles atrás do alaúde, na mesa de Moça interrompida em sua música. Entretanto, não poderia ter vindo diretamente da VOC, já que um artesão europeu resolveu adorná-lo acrescentando uma tampa de prata. Também há um pote para gengibre no estilo carraca sobre a mesa do lado esquerdo de Mulher com colar de pérolas. O reflexo recurvado da janela invisível à esquerda sobre a superfície do vaso mostra por que Vermeer, tão cativado pela luz, devia gostar de pintar algo tão lustroso como um pote chinês. Na mesma

mesa, bem diante da mulher com o colar, há uma pequena vasilha de bordas altas - prova de uma quarta peça chinesa na coleção Thins-Vermeer? As PORCELANAS QUE OS NAVIOS DA VOC levavam para a Europa eram itens caros de consumo ostentatório que só caíam nas mãos dos que podiam pagar. Para o resto, os produtores europeus de cerâmica lançaram substitutos das importações, para aproveitar o gosto pelas coisas chinesas. Entre os mais bemsucedidos, estavam os ceramistas e fabricantes de azulejos de Delft. Eram descendentes de italianos de Faenza (cidade que deu nome à louça colorida conhecida como faiança) que tinham emigrado para Antuérpia no século XVI em busca de trabalho e continuaram rumo ao norte para fugir da tentativa militar espanhola de suprimir a independência holandesa. Levaram consigo a técnica de produção de cerâmica e conseguiram construir fornos nas renomadas cervejarias de Delft, muitas das quais forçadas a fechar quando o gosto da classe trabalhadora passou da cerveja para o gim. Nessas novas olarias, começaram a fazer experiências com imitações da nova estética da cerâmica que vinha da China, e os compradores gostaram do que eles produziram. Os ceramistas de Delft não conseguiram atingir a qualidade da louça azul e branca chinesa, mas conseguiram produzir imitações passáveis, a preço baixo. A cerâmica de Delft tornou-se o substituto, de preço acessível, para as pessoas comuns que queriam porcelana chinesa mas, nos primeiros anos do comércio da VOC, não podiam nem sonhar em comprar mais do que algumas poucas peças. Os ceramistas de Delft não só imitaram; eles também inovaram. Seu maior sucesso na faixa inferior do mercado foram os ladrilhos azuis e brancos para a parede das novas casas que a burguesia de Delft construía. O azul desses ladrilhos transpirava um atraente aroma chinês, e o estilo dos desenhos pintados em sua superfície duplicava vagamente o que as pessoas consideravam que seria chinês. Anthony Bailey explica isso muito bem, em sua biografia de Vermeer: "Raramente o plágio a distância produziu resultado tão original: a criação de um tipo de arte popular."A indústria floresceu. Na época em que Vermeer pintava, um quarto da força de trabalho da cidade estava empregada, de um modo ou de outro, no comércio de cerâmica. A porcelana de Delft vendia bem e extensamente entre os que não podiam comprar as peças chinesas, e o nome da cidade viajou com o produto. Na Inglaterra, os pratos de louça passaram a ser chamados de "china", mas na Irlanda chamavam-se "delph". Os azulejos de Delft aparecem em cinco quadros de Vermeer. Como os pintores e fabricantes de ladrilhos de cerâmica pertenciam à mesma guilda, a dos artesãos de São Lucas, da qual Vermeer era diretor, com certeza ele conhecia os donos das olarias. Talvez conhecesse até alguns pintores de cerâmica, que gozavam de uma posição um pouco mais alta que a dos fabricantes de ladrilhos comuns. Parece que Vermeer gostava dos estranhos esboços que decoravam os azulejos - prédios e navios, cupidos e soldados, homens urinando e anjos fumando -, já que reproduz alguns em seus quadros. Parece que adorava o azul-cobalto que usavam, que se tornou uma de suas marcas registradas como colorista. Talvez, no uso do azulcobalto e nas recriações detalhadas da luz sobre a superfície brilhante, comecemos a ver os primeiros sinais de um estilo decorativo conhecido como chinoiserie que dominaria o gosto europeu no século XVIII. Sem provas concretas, ainda podemos imaginar que, como artista que vivia e trabalhava numa das sedes das câmaras da VOC, Vermeer tenha visto exemplos de pinturas chinesas. Sabemos que várias pinturas chinesas foram parar na coleção de NiclaesVerburg, diretor da VOC em Delft, mas é improvável que fossem mostradas fora de sua casa. Ainda assim, algumas imagens do que os chineses consideravam belo devem ter sido levadas por marinheiros curiosos e circulado no

âmbito público. John Evelyn conta ter visto gravuras estrangeiras incomuns na Arca de Noé, em Paris. Haveria entre elas pinturas chinesas? Quando um satirista de Amsterdã divertiu os leitores imaginando "uma pintura em que 12 mandarins foram esboçados com um único traço do pincel", supunha que os leitores conhecessem as pinceladas fluidas e ousadas dos artistas chineses. Se as pinturas chinesas circulavam nos Países Baixos, com certeza Vermeer teria conseguido vê-las. A circulação de objetos decorativos não ia só da China para a Europa. Os objetos e pinturas europeus também circulavam na China. Em 5 de março de 1610, enquanto o Leão Branco fazia a terceira viagem de Amsterdã para a Ásia e alguns anos antes que Wen Zhenheng começasse a escrever o Tratado das coisas supérfluas, um negociante de arte conhecido como "mercador Xia" visitou um dos seus melhores fregueses. Li Rihua era um renomado pintor amador e rico colecionador de arte, e morava em Jiaxing, cidadezinha no delta do rio Yang-tsé, a sudoeste de Xangai. Li frequentava os mesmos círculos sociais da família Wen, e é provável que conhecesse o autor do Tratado das coisas supérfluas. Era um dos fregueses fiéis do mercador Xia e há muitos anos comprava dele pinturas e antiguidades. Xia acabara de voltar de Nanjing, o centro do comércio de antiguidades e curiosidades, do outro lado do delta do Yang-tsé. Levou um sortimento de raridades para que Li examinasse: uma taça de vinho de porcelana da década de 1470; um conta-gotas d'água, do tipo que os calígrafos usavam para diluir a tinta, com o formato de um tigre agachado; e dois brincos esverdeados do tamanho do polegar. Xia garantiu a Li que os brincos eram de um tipo raro de cristal, de um forno que só produziu essas coisas na década de 950, insinuando que esperava que valessem bom preço. Li gostou da maioria das coisas ofertadas, mas logo percebeu que o mercador Xia estava errado a respeito dos brincos. Decidiu divertir-se com Xia, fingindo examiná-los com a devida atenção e depois lhe afirmando que eram feitos de vidro. Além de não serem antiguidades do século X, os brincos nem eram chineses. Como Li escreveu depois em seu diário: "Esses itens eram trazidos para cá em navios estrangeiros vindos do sul - itens de fabricação estrangeira, de fato. Os objetos de vidro que vemos hoje em dia são todos obra dos estrangeiros do oceano Ocidental [Atlântico], que os fazem derretendo pedras, e não tesouros produzidos naturalmente." Li divertiu-se ao levar a melhor sobre o mercador Xia, mas não por maldade. Sabia que a falsificação fazia parte do jogo de compra e venda de antiguidades e apreciou bastante o fato de que, dessa vez, o vendedor é quem foi enganado, não o freguês. O mercador Xia partiu depois de devidamente repreendido, talvez mais envergonhado por ter pago caro pelos brincos em Nanjing do que por tentar vendê-los a alguém tão atento quanto Li Rihua. Esse caso demonstra que os chineses não ficavam curiosos com objetos estrangeiros? De modo algum. Temos de perceber o que Li fazia ao colecionar. Para ele, a razão era descobrir objetos que confirmassem a autoridade cultural dos antigos; era por isso que, para ele, a autenticidade era tão importante. Ele queria coisas que o ligassem a uma época melhor, sempre no passado. O que o caso mostra é que os artigos estrangeiros circulavam na China no século XVII. Se chegavam a Nanjing e depois circulavam nas mãos de mercadores ambulantes até as cidades próximas, devia haver algum tipo de mercado para eles. Não circulavam na mesma escala que as manufaturas estrangeiras na Europa, mas também chegavam à China em volume muito menor. Além disso, ao contrário da Europa, onde cerca de um século de saques e comércio pelo mundo afora ensinara os europeus a se tornarem conhecedores de curiosidades estrangeiras, a demanda desses objetos na China não estava bem desenvolvida. As coisas estrangeiras não eram recusadas pelos colecionadores chineses. Wen Zhenheng

encoraja os leitores de Tratado das coisas supérfluas a adquirir alguns objetos estrangeiros. Recomenda pincéis e papel de escrita da Coreia e defende a posse de uma grande variedade de objetos japoneses, desde leques, réguas de bronze e tesouras de aço a caixas laqueadas e móveis finos. A origem estrangeira não era uma barreira para a valorização. Se os objetos estrangeiros eram um "problema" na China, isso não se devia a algum profundo desdém chinês pelas coisas vindas de fora. Tinha a ver com a natureza flexível das próprias coisas. Os objetos de beleza eram valorizados na medida em que transmitissem significados culturais; no caso das antiguidades, significados relativos ao equilíbrio, ao decoro e à veneração do passado. As antiguidades eram valorizadas porque punham os donos em contato físico com um passado áureo do qual o presente se afastara. Dado o fardo de significado que os objetos tinham de transmitir, era difícil discernir que valor atribuir a objetos vindos de fora. A raridade era uma qualidade apreciada, e a curiosidade com coisas maravilhosas ou estranhas, um impulso louvável no colecionador, mas o impulso essencial de colecionar era se pôr em contato com os valores centrais da civilização. É por esse motivo que Wen podia recomendar aos leitores objetos coreanos ou japoneses. A China tinha uma longa história de interação cultural com a Coreia e com o Japão, e por isso as coisas coreanas e japonesas podiam ser consideradas parte do mesmo éthos civilizatório das coisas chinesas. Eram diferentes, mas a diferença era sutil. Não passava do estranho para o bizarro. Não se podia dizer o mesmo dos objetos europeus. Li Rihua não era indiferente ao que havia além do litoral da China; na verdade, o seu diário contém numerosas observações sobre o que ouvira dizer a respeito dos navios e marinheiros estrangeiros que perambulavam pelas águas costeiras chinesas. Mas os objetos que vinham das terras estrangeiras não tinham lugar em seu sistema simbólico. Não incorporavam valores. Eram apenas curiosidades. Ao contrário, na Europa as coisas chinesas tiveram impacto maior. Lá, a diferença tornou-se um convite à compra. Os europeus sentiram-se inclinados a incorporar essas coisas ao espaço onde viviam e, além disso, até a rever os seus padrões estéticos. A fruteira que Vermeer pôs no primeiro plano de Leitora à janela é uma coisa estrangeira, aninhada, por sua vez, no tapete turco, outra coisa estrangeira. Esses objetos não provocavam desprezo nem ansiedade. Eram bonitos, vinham de lugares onde se faziam coisas bonitas e podiam ser comprados. Era tudo, e isso bastava para fazer com que valesse a pena comprá-los. Se nas salas europeias havia lugar para objetos estrangeiros, esse lugar não existia nas salas chinesas. Em última análise, não era uma questão de estética nem de cultura. Era a relação com o mundo mais vasto a que cada uma delas podia se dar ao luxo. Os mercadores holandeses, com todo o apoio do Estado holandês, percorriam o planeta e traziam às docas do Kolk indícios maravilhosos de como deveria ser o outro lado do mundo. O povo de Delft via os pratos chineses como símbolos de sua boa sorte e exibia-os alegremente em suas casas. É claro que eram bonitos, e ter prazer com a beleza era o que os chefes de família holandeses gostavam. Mas os pratos também eram o símbolo de uma relação positiva com o mundo. O que Li Rihua vê, ao olhar além das docas de sua Jiaxing natal, além do litoral infestado de piratas? De onde estava, aquele mundo maior era uma fonte de ameaça, não uma promessa de riqueza, menos ainda de prazer ou inspiração. Ele não tinha razões para possuir símbolos dessa ameaça e colocá-los em seu ateliê. Por outro lado, para os europeus, valia a pena todo o perigo e toda a despesa para pôr as mãos em mercadorias chinesas. E é por isso que, quatro anos depois do naufrágio do Leão Branco, o almirante Lam voltou ao mar da China Meridional

para saquear navios ibéricos e capturar embarcações chinesas, na esperança de obter mais.

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