A-crise-ambiental-e-civilizacional-e-a-alternativa-da-permacultura.pdf

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  • Pages: 348
2018, Cássio P. Octaviani

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A reprodução parcial ou total deste livro, por quaisquer meios, é livre e gratuita.

O autor declara que as informações contidas neste livro são corretas e completas tanto quanto é de seu conhecimento, e não se responsabiliza por eventuais imprecisões e omissões, cabendo ao leitor buscar suas próprias fontes e tirar suas próprias conclusões, em qualquer caso de dúvida. Os conceitos e ideias apresentados nesta obra refetem os pontos de vista do autor. As ideias de design aqui apresentadas são sobretudo sugestões para fns ilustrativos, e não receitas universais ou infalívveis. Nada substitui o bom senso e a experiência própria. O autor exime-se de qualquer responsabilidade sobre os resultados ou consequências da aplicação inadequada das ideias aqui contidas.

Impresso em papel reciclado

Por que este livro? Tem algo de muito errado neste mundo. A humanidade está com um grande problema nas mãos. Claro que não é só um problema — problemas há muitos, tem problema pra todo lado. Mas um em particular, sem dúvida o maior problema de todos, é o objeto deste livro: estamos galopando de rédeas soltas rumo à destruição total da vida no Planeta Terra. Sério, sem exagero. A nossa civilização é totalmente insustentável. Com uma combinação fatal de superpopulação, hiperconsumo, vívcio por crescimento, uso irracional dos recursos, descaso pela natureza, etc., estamos destruindo as verdadeiras bases que sustentam a vida em geral, inclusive a humana, no nosso planeta. Sabe, quando você olha para as pessoas individualmente, talvez pareça que não há nada errado, que estão apenas cuidando de suas vidas — trabalhando, tratando de sobreviver, cuidando de suas casas e suas famívlias, perseguindo seus sonhos... Mas, quando você olha para a humanidade como um todo, parece que estamos determinados a destruir até a última mata, a poluir até o último rio e último mar, levar à extinção até a última forma de vida, exceto aquelas que nos são diretamente úteis. Certamente, qualquer ser extraterrestre de inteligência suprema que visitasse nosso planeta não teria de nós outra impressão, senão essa. Agora, é claro que nós, seres humanos, também somos apenas seres vivos, e dependemos dos mesmos recursos que as demais espécies para sobreviver. Assim, ao poluirmos as águas, destruirmos os solos e acabarmos com a biodiversidade, estamos decretando também nossa própria destruição. Mas o pior é que a imensa maioria das pessoas nem sequer está ciente deste terrívvel fato! Este assunto é um imenso tabu e jamais é tratado de forma direta, clara. Você pode assistir televisão a vida toda, ouvir rádio, ler todos os jornais e revistas, e jamais vai ouvir alguém falando sobre isso. Tampouco nas escolas, e mesmo nas universidades, se fala sobre isso! Embora assuntos ligados à sustentabilidade estejam presentes o tempo todo, são sempre apresentados de forma vaga, oblívqua, evasiva, jamais sequer aranhando a profundidade e magnitude do problema e, especialmente, sua urgência. Claro que há pessoas que estão cientes da gravidade da nossa atual crise ambiental e civilizacional, e suas terrívveis implicações para o futuro da humanidade e a vida na Terra. Porém, mesmo essas, talvez por inércia, ou por não conseguirem enxergar uma alternativa viável, continuam na prática se comportando exatamente como todas as demais; ou seja, por estarem presas aos paradigmas vigentes da nossa sociedade atual, a simples consciência não basta i

para fazer com que as pessoas deixem de fazer parte do problema e passem a contribuir com qualquer solução. Este livro tem, portanto, dois objetivos: em primeiro lugar trazer ao consciente coletivo a gravidade da atual crise ambiental e as terrívveis implicações da insustentabilidade de nossa civilização, da forma clara e objetiva que o assunto merece. E em segundo lugar, mas não menos importante, discutir soluções para esse problema, promover uma pauta de propostas concretas de alternativas a esse caminho de autodestruição que a humanidade vem trilhando. Nesse sentido, será apresentada a proposta da permacultura, que acredito ser o melhor caminho para a preservação da vida na Terra, e a construção de um mundo não apenas sustentável, mas também mais saudável, equilibrado, justo e feliz. Não tenho aqui a pretensão de responder a todas as perguntas, ou oferecer uma solução simples e defnitiva para todos os problemas. Muito ainda há que se aprender e desenvolver para a construção de um caminho sustentável para a humanidade, e ainda estamos apenas no começo dessa jornada. O mais importante neste momento é tentar fazer com que mais pessoas parem para pensar, refitam conscientemente sobre o que vimos fazendo de nossas vidas e nossa casa, percebam o lado negro, predatório e destruidor de nossa civilização, e unam-se no desafo de repensar, reinventar nossa sociedade, para que essa deixe de ser uma ameaça ao mundo natural, do qual dependemos. Trata-se de uma tarefa colossal, mas ao mesmo tempo, certamente o desafo que mais vale a pena enfrentar, dentre todos os que possam existir. Afnal de contas, está em jogo a continuidade de nossa própria existência, além de todas as outras formas de vida que há no nosso planeta.

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Dedico este livro ao planeta Terra

Índice Por que este livro? ................................................................……..................... i

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 1. Uma História de Insustentabilidade ….................................................…... 3 2. Retrato do Mundo Hoje …................................................................…........ 7 3. A Crise Ambiental ..................................................................................... 25 4. Projeções para o Futuro .......................................................................... 39 5. Estado de Emergência Planetária .......................................................... 51

Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança .....…......................................................................... 55 Mas afinal, o que é a PERMACUTTURA? Histórico da permacultura

7. Éticas e Princípios da Permacultura ...................................................... 63 Éticas da permacultura Princípios da permacultura

8. Água em Permacultura ............................................................................ 98 Água na zona rural Água para a casa Água nas cidades

9. Permacultura Rural ................................................................................ 127 Solos Zonas de proximidade e intensidade Particularidades dos trópicos úmidos Particularidades dos trópicos semiáridos Estabelecendo um projeto de permacultura rural

10. A Habitação Permacultural ................................................................. 202 Design da casa permacultural Bioconstrução

11. Saneamento Ecológico ....................................................................... 229 Técnicas de saneamento ecológico Soluções ecológicas para o saneamento urbano

12. Energia ..........................…..................................................................... 13. Permacultura Urbana .......................................................................... 14. Estilo de Vida da Permacultura .......................................................... 15. Comunidades em Permacultura ......................................................... 16. Aprendizado da Permacultura ............................................................ 17. Consultoria e Prestação de Serviços em Permacultura .................. 18. Proposta de uma Transição Global ................................................... 19. Conclusão .............................................................................................

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Parte I A Crise Ambiental e Civilizacional

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

1. Uma História de Insustentabilidade

1 UMA HISTÓRIA DE INSUSTENTABILIDADE

Sustentabilidade é uma palavra que está na moda (na verdade, acho que já até saiu de moda!). Nos últimos tempos, ela tem sido usada tão abusivamente que, para muitos, já passou a não signifcar nada em particular. Empresas afrmam em suas propagandas que estão comprometidas com a sustentabilidade; polívticos simplesmente enfam a palavra aleatoriamente em seus discursos, como algum tipo de palavra mágica. Livros escolares e programas de televisão apresentam o assunto de forma tão superfcial, vaga e desconexa que acabam dando a impressão de que não há nada com que se preocupar. Mas, afnal, o que é a sustentabilidade, e por que isso é importante? Uma consulta ao dicionário é pouco esclarecedora: “sustentabilidade. sf. Qualidade, característica ou condição de sustentável.” Onde sustentável é algo que pode permanecer ou sustentar-se. Agora, o que temos a ver com isso? Qual a importância disso para a humanidade? A nossa civilização é totalmente insustentável, pois com uma combinação fatal de superpopulação, hiperconsumo e uso irracional de recursos, estamos consumindo vorazmente os recursos naturais necessários à nossa própria vida. Vivemos em um planeta fnito, de recursos fnitos; por simples lógica matemática, seu consumo contívnuo levará à sua exaustão. Com o fm dos recursos que servem de base para a existência de vida, obviamente não poderá 3

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

1. Uma História de Insustentabilidade

haver vida. Isso signifcará o declívnio da humanidade e, possivelmente, sua extinção, arrastando junto boa parte da vida complexa no planeta. Muitos cientistas acreditam que, mantido o atual ritmo de consumo de recursos e destruição ambiental, isso deverá ocorrer num futuro bem próximo. Agora, pergunte às pessoas o que elas entendem por sustentabilidade, e provavelmente ouvirá algo do tipo: “signifca preservar os recursos naturais para garantir que as próximas gerações tenham uma boa qualidade de vida”. Como se se tratasse de uma questão opcional, quase como um mero capricho estético! Ou seja, infelizmente, a maioria das pessoas têm grande difculdade de compreender a exata dimensão do problema da insustentabilidade humana. Isso porque, para que haja essa compreensão, é necessária uma análise abrangente, global do que está acontecendo com a humanidade e o planeta, uma análise em escalas de tempo e espaço adequadas — o que raramente é feito. Portanto, nas próximas páginas vamos tentar fazer, de forma breve, essa análise.

Breve histórico da insustentabilidade humana Uma rápida análise histórica revela claramente que o começo da insustentabilidade humana se confunde com o inívcio da própria civilização, e que cada evento marcante de nossa história trouxe consigo um agravamento dessa insustentabilidade, culminando com a atual crise ambiental global. Nossos ancestrais, há milhões de anos, viviam totalmente sujeitos às forças da natureza, como qualquer outro ser vivo: fatores climáticos (frio intenso), obstáculos geográfcos (mares, montanhas e desertos), a disponibilidade de água e alimento, predadores e doenças mantinham as primeiras populações de hominívdeos em uma situação de equilívbrio com o meio ambiente, limitando seu tamanho e distribuição geográfca. Eis, porém, que no processo de evolução nossos antepassados foram adquirindo a notável engenhosidade que nos é caracterívstica, levando ao desenvolvimento das primeiras tecnologias. Isso passou, em grande medida, a defnir o que signifca ser humano — nos destacamos das outras espécies e literalmente deixamos de viver como os outros bichos. Por outro lado, foi justamente aív que nossos problemas com a sustentabilidade começaram a surgir. Com o desenvolvimento das primeiras ferramentas há cerca de 2 milhões de anos, os primeiros hominívdeos começaram a sua escalada rumo ao topo da cadeia alimentar: a caça tornou-se mais fácil, e também a defesa contra predadores. Por possibilitarem a produção de vestimentas e abrigos, as ferramentas também favoreceram a expansão do homem primitivo a outros ambientes, antes inabitáveis. O domínio do fogo, há mais de 100 mil anos, foi o próximo evento de importância fundamental para a história da humanidade, permitindo uma 4

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

1. Uma História de Insustentabilidade

expansão ainda maior para regiões frias, maior proteção contra predadores e um aumento na disponibilidade de alimentos, pela cocção. O fogo também foi muito utilizado como parte essencial de estratégias de caça, e na modifcação em larga escala do ambiente para facilitar deslocamentos, construir assentamentos, etc. O homem primitivo permaneceu assim, como caçador-coletor, por dezenas de milhares de anos, até o advento da agricultura, há cerca de 10.000 anos. Embora tenha permanecido com uma população relativamente constante por esse perívodo, o homem caçador-coletor foi capaz de se espalhar por todos os continentes e causar a extinção de diversas espécies de grandes mamívferos, através da caça. O próximo grande passo da espécie humana rumo à insustentabilidade — e talvez o mais notável — foi o desenvolvimento da agricultura, evento que se confunde com o nascimento da própria civilização, cerca de 10.000 anos atrás. O desmatamento para ampliar terras agrívcolas e a criação de gado passam a representar uma pressão sem precedentes no meio ambiente, e inicia-se o processo de desertifcação antropogênica (i.e. causada pelo homem) do planeta. De nômades, as sociedades passaram a ser sedentárias, e tecnologias cada vez mais sofsticadas passaram a ser desenvolvidas, tecnologias essas que conferiam poder sem precedentes a seus detentores, possibilitando a ascensão de impérios, que progressivamente conquistaram ou destruívram sociedades mais primitivas, espalhando-se pelo planeta, praticamente extinguindo sociedades tribais e impondo a civilização como norma. A Revolução Industrial, no século XVIII, trouxe o desenvolvimento acelerado de tecnologias industriais, com crescente mecanização e uso de combustívveis fósseis dando uma nova dimensão ao impacto das atividades humanas no ambiente: além de uma aceleração sem precedentes na taxa de crescimento populacional, esse perívodo trouxe também, pela primeira vez, a poluição industrial. Inicia-se nesse perívodo o processo do êxodo rural, com concentração crescente da população mundial em cidades. Houve, portanto, um enorme agravamento do caráter de insustentabilidade das atividades humanas. O século XX e a Era do Petróleo O século XX trouxe eventos marcantes que tiveram impactos profundos para a humanidade e o meio ambiente. Na medicina, o crescente desenvolvimento e aplicação dos conceitos de higiene e saneamento, e posteriormente o desenvolvimento de drogas (especialmente antibióticos) e vacinas resultaram em uma redução marcante nas taxas de mortalidade infantil e aumentaram a expectativa de vida mundialmente, contribuindo para o aumento da taxa de crescimento populacional. A descoberta do petróleo como fonte barata e abundante de energia altamente concentrada permitiu um desenvolvimento extraordinário nas tecnologias de produção industrial, agrívcola 5

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

1. Uma História de Insustentabilidade

e transportes, a partir do fnal do século XIX, intensifcando-se vertiginosamente ao longo do século XX. Além disso, o petróleo também passou rapidamente a ser usado como matéria prima para a produção de inúmeros produtos, como fertilizantes, plásticos, solventes, detergentes, tecidos, tintas, pesticidas, etc. Surge a agricultura industrial, baseada em fertilizantes quívmicos e agrotóxicos, trazendo gravívssimas consequências para o meio ambiente. A poluição industrial e petroquívmica também causam degradação ambiental progressiva. A mecanização atingiu nívveis extremos, aumentando a produção e reduzindo o uso da mão de obra humana — o trabalho passou a ser feito pelas máquinas, usando a energia oferecida pelo petróleo. Acentuou-se o processo êxodo rural e acumulação urbana, com cidades inchando-se, abrigando milhões de pessoas. Esse perívodo caracteriza-se também por altívssimos nívveis de mobilidade pessoal e de produtos, enquanto o imenso poder de realizar trabalho e a fonte versátil de novos materiais que o petróleo representa contribuívram para uma brutal revolução tecnológica, a produção excessiva de bens industrializados e o consumismo. O perívodo também é marcado pelo surgimento e ascensão de grandes corporações e empresas multinacionais, e a globalização. A Era do Petróleo é, portanto, marcada pela industrialização, explosão demográfca, urbanização, ascensão da sociedade industrial corporativa de consumo e globalização. Esse perívodo também é igualmente marcado por um extraordinário aumento no consumo de recursos naturais e na geração de poluição ambiental, que continua se intensifcando até os dias de hoje, resultando na atual crise ambiental global.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

2. Retrato do Mundo Hoje

2 RETRATO DO MUNDO HOJE

Estamos no meio de uma crise ambiental global sem precedentes em sua magnitude, severidade e natureza — uma crise que se agrava a cada dia. Essa crise engloba, principalmente, os seguintes problemas: • Destruição de ecossistemas terrestres (e.g. desmatamento). • Destruição de solos, erosão e desertifcação. • Poluição do ar, efeito estufa, chuva ácida e destruição da camada de ozônio. • Poluição das águas com destruição de ecossistemas marinhos e de água doce; acidifcação dos oceanos. • Perturbação do ciclo das águas e deterioração dos recursos hívdricos. • Extinção de espécies e declívnio da biodiversidade, globalmente. Todos esses problemas estão intimamente interligados, e a causa central de todos eles é uma só: as atividades humanas. Embora tenham manifestações fívsicas no mundo natural, esses prolemas não podem ser vistos como problemas meramente fívsicos, a serem resolvidos por “especialistas em problemas ambientais”. Eles têm raívzes históricas, econômicas, sociais, polívticas e tecnológicas, e estão basicamente atrelados à forma que vivemos e vemos o mundo. Além disso, as consequências dessa crise se abaterão sobre nossa própria

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

2. Retrato do Mundo Hoje

civilização — colheremos os frutos de nossos atos, de nossas escolhas, conscientes ou não. Portanto, qualquer análise da crise ambiental não pode ser desvinculada de uma análise da sociedade como um todo. Ou seja, ao se avaliar as questões ambientais quanto às suas causas, caracterívsticas e possívveis soluções, há que se analisar em conjunto com as questões sociais que lhes servem de origem.

Sociedade A Era do Petróleo trouxe uma brutal transformação das relações de consumo, de poder, e até nas relações interpessoais, que moldaram o mundo como o conhecemos hoje. As novas tecnologias dessa era levaram a um aumento brutal da produção de bens de consumo. Agora, produção incessante requer consumo incessante. Em um mercado regido pela antiga lógica da necessidade, produtos em excesso fcariam estagnados nas fábricas ou lojas, restringindo o fuxo de capital e o enriquecimento das grandes empresas. Para remover esse empecilho, o mundo dos negócios aprendeu a usar técnicas psicanalívticas para ler os desejos enraizados no subconsciente irracional das pessoas, para fazer seus produtos e discursos de forma a satisfazê-los. De fato, aprenderam a moldar nossos desejos de acordo com sua própria conveniência, criando e estimulando necessidades artifciais através de métodos manipulativos de propaganda, Esse foi o nascimento do marketing moderno.* Ao contrário das necessidades, que são fnitas, os desejos são potencialmente infnitos. Além disso, enquanto a lógica das necessidades é regida primariamente pela razão, os desejos são regidos por impulsos primitivos e irracionais, permitindo que as massas sejam literalmente treinadas para consumir incessantemente. Portanto, ao mudar o foco das técnicas de marketing, passando das necessidades para os desejos, as empresas conseguiram remover o empecilho ao escoamento de seus produtos, ao transformar culturas baseadas em necessidades em culturas baseadas em desejos e imagens, culturas de consumismo. Isso ocorreu inicialmente nos principais paívses industrializados, logo expandindo-se à maioria dos paívses do mundo no processo colonizador das empresas multinacionais, e esse foi o ponto chave que permitiu às grandes corporações atingir o grau de expansão e domívnio do cenário mundial que conhecemos hoje. Também o mundo da polívtica aprendeu a utilizar as mesmas técnicas de marketing para moldar o comportamento das massas. Da mesma forma que as empresas em suas propagandas, também os polívticos, assessorados por seus marqueteiros, passaram a valer-se de conhecimentos e técnicas psicanalívticas * Para uma análise detalhada deste assunto, veja a série de documentários “The Century of the Self”, da BBC.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

2. Retrato do Mundo Hoje

para satisfazer as massas com seus discursos e suas posturas, apelando para o subconsciente irracional (emoções, imagens) muito mais que o racional (fatos e argumentos), e assim alcançar e manter o poder, servindo a seus próprios interesses, e não os das massas que os elegem, ou o bem comum. A aplicação disseminada das técnicas de marketing moldaram a sociedade como um todo, desde o nívvel individual (comportamento, valores), passando pelo coletivo (comportamento das massas), até a organização social e as estruturas de poder. Criou-se um elevado grau de alienação das pessoas: o “ser” foi substituívdo pelo “ter”; bens materiais passaram a ser endeusados, e as aparências passaram a prevalecer sobre a essência. Para satisfazer seus vívcios de consumo, os indivívduos trabalham cada vez mais, e vivem cada vez menos — a norma passa a ser uma vida caracterizada por sobrecarga de trabalho, endividamento, sensação crônica de insatisfação, ansiedade e vazio existencial, desperdívcio e depressão. Paradoxalmente, quanto mais um indivívduo atinge seus objetivos (“sonhos de consumo” e status social), pior ele se sente, numa sívndrome social que recebeu o nome de affluenza. Movida por suas necessidades crescentes de consumo criadas por essa cultura, a sociedade como um todo passou a ser caracterizada por um vívcio pelo crescimento econômico; a competitividade entre as pessoas, o individualismo e a obsessão por status intensifcaram-se. Observa-se um endeusamento de marcas e criação de “tribos”, que nada mais são que grupos de pessoas que assumem comportamentos padronizados e estereotipados, de acordo com o nicho de consumo em que se encontram. As estruturas de poder da sociedade foram profundamente afetadas pelo marketing e pela ascensão das grandes corporações. Detentoras da supremacia econômica e vasto domívnio sobre as massas, as corporações passaram a ser o elemento central, o poder estabelecido. O próprio Estado é, hoje, penas um vassalo dos interesses das corporações. Ao fnanciarem as campanhas polívticas, as corporações garantem que os governos servirão aos seus interesses, seja na criação ou modifcação de leis que expandam seus mercados, reduzam seus impostos, ou através de facilitações em contratos, fraudes em licitações, enfm todo tipo de esquemas de corrupção. Da mesma forma, grandes bancos fnanciam campanhas ajudando a eleger polívticos, em troca de polívticas econômicas que os favoreçam, garantindo-lhes lucros exorbitantes, sempre em detrimento da população em geral. Vive-se, portanto, uma ilusão de democracia, pois aquela ideia que o povo escolhe seus representantes para cuidarem de seus interesses e do bem comum em nada corresponde à realidade. Temos instalada, de fato, uma espécie de “ditadura das corporações”, ou corporocracia, já que o poder polívtico emana das corporações, e não do povo — esse é mera massa de manobra. Na corporocracia, polívticas públicas e leis são feitas visando acima de tudo 9

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

2. Retrato do Mundo Hoje

o lucro das corporações detentoras do poder, enquanto se mantém o discurso de “para o bem da nação”, “em prol da população”, etc. Assim, obras de infraestrutura como estradas, portos e usinas hidrelétricas são feitas para dar lucro a empreiteiras e construtoras; cidades são planejadas de modo a fazer do carro uma necessidade, gerando lucro para montadoras de veívculos e indústria petrolívfera, enquanto ferrovias são desmanteladas, pelos mesmos motivos; subsívdios são dados ao agronegócio para aumentar os lucros das empresas com a venda de agrotóxicos, por exemplo, em detrimento da saúde do povo e do meio ambiente. Grandes indústrias de armamentos e petrolívferas, através de seus “fantoches-polívticos-presidentes-de-paívses-de-primeiro-mundo”, criam guerras a todo momento, onde morrem milhares de pessoas, apenas para gerar vultuosos lucros com vendas de armas e munições, facilitar o domívnio sobre recursos petrolívferos das regiões atacadas, expandir mercados para seus negócios, etc. Esses grupos poderosos valem-se da mívdia para fazer campanhas permanentes de terrorismo psicológico, fomentando a xenofobia, preconceitos raciais e religiosos, e empregam rotineiramente a estratégia de forjar atentados para “justifcar” e ganhar apoio da população para tais guerras. Um elemento-chave na manutenção desse status quo é a desinformação, ou seja, a utilização das técnicas de comunicação e informação de forma enganosa, para dar uma falsa imagem da realidade, mediante a supressão ou ocultação de informações, minimização da sua importância ou modifcação do seu sentido, com o objetivo de infuenciar a opinião pública de maneira a proteger interesses privados ocultos.

GRANDES BANCOS E CORPORAÇÕES CONTROTAM

GOVERNOS E GRANDE MÍDIA CONTROTAM

SUSTENTA

POVO EM GERAT DESTROEM

MEIO AMBIENTE

Estrutura de poder na sociedade atual — corporocracia 10

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

2. Retrato do Mundo Hoje

A grande mídia é uma das principais ferramentas utilizadas pelo sistema * para a alienação do povo. Rádio, jornais, revistas e televisão despejam continuamente rios de besteiras de toda sorte: propagandas comerciais, flmes imbeciloides, programas e reportagens os mais esdrúxulos que, embora rotulados de “culturais”, na verdade apenas promovem o endeusamento do consumo, da futilidade e uma infnidade de comportamentos bizarros; futebol, novelas, programas de auditório, fofocas sobre “celebridades” e “reality shows” distraem a população para que não pense, e assim não questione o status quo. Desta forma, esses veívculos moldam o comportamento das massas, de forma que seja favorável aos interesses do sistema, ou seja, das corporações, governos e da própria mívdia. Esta é a verdadeira essência do que se convencionou chamar entretenimento. O jornalismo, como é praticado, é um forte instrumento de alienação das massas. Embora teoricamente tenha a nobre função de informar as pessoas, servindo como instrumento essencial para o progresso da humanidade, infelizmente, na prática, seu maior objetivo é apenas vender notívcias; ou seja, os jornalistas estão interessados, acima de tudo, em audiência, números. Por isso, noticiários são sensacionalistas — acidentes e crimes violentos “vendem bem” — e focam fortemente em assuntos popularescos e irrelevantes como fofocas sobre a vida de “celebridades”, futebol, etc., enquanto os assuntos mais cruciais para a humanidade, como a crise ambiental que ameaça nossa própria sobrevivência, não são sequer mencionados. Vendem desinformação, rotulada de informação. Por sua grande penetração e infuência sobre o consciente e inconsciente das massas e, consequentemente seu comportamento, o jornalismo é também sistematicamente “comprado” por grupos poderosos, passando a servir de veívculos de propaganda ideológica velada, defendendo interesses ocultos. Ao ser bombardeada com aquela imensa carga de informações inúteis, esdrúxulas e tendenciosas, infelizmente a população ainda acredita estar-se tornando mais culta e bem informada, enquanto está, de fato, apenas sendo distraívda e manipulada. A literatura em geral também é alienante. Visite qualquer livraria e verá, em todas as vitrines, estandes e prateleiras, livros de todos os tamanhos e formatos, com capas reluzentes e acetinadas, e ricamente ilustrados, abordando todo tipo de assuntos — menos qualquer coisa importante para a humanidade. O mercado de livros ocupa-se primariamente de traduções de “best-sellers” importados, livros que não trazem qualquer informação útil ou relevante; não faltam livros sobre contos de fadas, bruxos e monstros, estórias românticas picantes, mistérios, crimes, detetives… livros de autoajuda, com receitas “infalívveis” sobre como ser feliz, como fcar milionário, como se tornar um * A expressão “o sistema” é comumente utilizada para referir-se ao modo organizacional e estrutura de poder dominante da sociedade atual, regida pela corporocracia.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

2. Retrato do Mundo Hoje

lívder… futebol, horóscopo, livros de piadas, biografas de artistas pop, livros de gatinhos fofos, etc. São tantos livros sobre os mesmos assuntos que faz a gente se perguntar: por que alguém ainda se dá ao trabalho de escrever de novo sobre a mesma coisa? Atrás dessa aparência de diversidade, o que se tem é uma extrema aridez de conteúdo com real relevância à humanidade. São apenas distrações, passatempos, úteis apenas para manter os leitores anestesiados, imersos em suas fantasias, enquanto são manipulados para continuar servindo obedientemente ao sistema. A educação formal, por sua vez, não visa a formação de indivívduos livres, muito pelo contrário: a individualidade é praticamente abolida e o senso crívtico, suprimido; a criatividade, obliterada por uma carga brutal de informações muitas vezes inúteis e, em alguns casos, simplesmente falsas (por exemplo, a história é quase sempre ensinada de forma distorcida e glamourizada de modo a fomentar o patriotismo, que não passa de um tipo de alienação e uma ferramenta útil ao sistema). Conhecimentos e habilidades fundamentais a qualquer ser humano, como saber produzir e preparar seus próprios alimentos, ou mesmo fazer uma manutenção básica em sua própria casa, simplesmente não fazem parte do currívculo escolar. Somos forçados a decorar nomes e datas irrelevantes, e aprender operações matemáticas que jamais serão usadas na vida, etc. — mas que o ser humano está causando uma tremenda crise ambiental que ameaça a vida no planeta, isso jamais é mencionado. Na escola, não se admite qualquer crívtica à sociedade ou nosso modo de vida. O sistema educacional atual é elaborado de forma a garantir que as massas permaneçam alienadas e dependentes do sistema; sua função principal é moldar as pessoas em um formato que atenda às necessidades do mercado, produzindo, distribuindo e, principalmente, consumindo bens e serviços, e pagando impostos, sem jamais ameaçar a estrutura do poder estabelecido. Dizem que estamos na Era da Informação, e realmente, a informação está aív — informação para todo lado. A internet, por exemplo, é sem dúvida uma fonte formidável de informação, com enorme potencial para empoderamento das pessoas. O problema é que, se por um lado ela contém tudo de bom, verdadeiro e importante, por outro lado também contém tudo de mau, falso e irrelevante. Infelizmente, quem não sabe o que procurar (lamentavelmente, a imensa maioria das pessoas) acaba se metendo numa espiral sem fm, um universo paralelo de bizarrices e inutilidades. Como resultado da verdadeira campanha de desinformação que temos instalada em múltiplos nívveis na sociedade e o baixo grau de consciência da população, a despeito da disponibilidade e acessibilidade à informação, vivemos hoje de fato em uma verdadeira “Idade das Trevas Moderna”, em que um grau elevadívssimo de alienação pervade a humanidade. Deve-se ressaltar que essa alienação atinge todos os nívveis da sociedade, desde as massas até as elites 12

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

2. Retrato do Mundo Hoje

(inclusive a intelectual), e este é um ponto-chave para a perpetuação do sistema.

Estilo de vida Artifcialização O estilo de vida do homem moderno é caracterizado por um enorme grau de artifcialização. ou seja, um distanciamento do que é natural. A maioria das pessoas no mundo de hoje passam o dia todo, todos os dias, sem jamais ter contato com a terra. Nem sequer veem a terra — apenas cimento, asfalto, plástico... Mesmo as que andam sobre terra, geralmente não a tocam, pois usam calçados que as isolam do contato com a mesma. As populações urbanas muitas vezes não têm contato algum com plantas, a não ser pelo escasso contato visual com plantas da arborização urbana, praças e jardins (mesmo esses, raros em muitas cidades). Não têm contato com a luz natural, tendo pouco tempo ao ar livre e passando o tempo todo iluminadas por luzes artifciais e insalubres. Aliás, a aplicação intensa e onipresente de iluminação artifcial signifca uma ruptura do homem com um dos mais básicos ciclos naturais, que é o ciclo claro-escuro, do dia e da noite. Com isso, não é surpresa que tantas pessoas necessitem de remédios para dormir, e despertadores para acordar — o que não é sem consequências para a saúde do corpo e da mente. Contato com outros elementos da paisagem natural hoje também é radicalmente reduzido e deturpado. Uma vista do campo, forestas, montanhas ou mar é quase sempre substituívda por ruas com suas placas de trânsito e outdoors, edifívcios, viadutos, etc. Rios também não fazem mais parte da vida das pessoas, já que estão desfgurados, “urbanizados” e, via de regra, transformados em esgotões a céu aberto, ou mesmo canalizados, sepultados. O próprio ar que respiramos é, muitas vezes, artifcializado, provido por aparelhos de ar condicionado de veívculos e edifívcios — um ar ressecado e desagradável, com o qual tantas pessoas já se acostumaram, mas que continua sendo veívculo de afecções alérgicas e infamatórias a milhões de pessoas. O contato com animais, para muitas pessoas, reduziu-se a uma relação de servidão sentimental, estranhamente misturada com uma relação dono-objeto, esta última evidenciada pelo ato corriqueiro de compra e venda, o fetichismo racista, insensibilidade quanto às necessidades intrívnsecas de cada espécie, e até modifcações cirúrgicas para melhor conveniência e conformação com padrões estéticos desejados pelo humano. Enquanto isso, em relação a outras espécies animais como bovinos, suívnos e galinhas, há uma polarização exagerada no posicionamento das pessoas: enquanto uma parte da população está totalmente insensívvel ao valor intrívnseco desses seres vivos e seu direito à vida e bem-estar, e os consomem de forma exagerada e insensívvel a ponto de desenvolverem graves problemas de saúde pela ingestão excessiva de carne e laticívnios, por 13

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

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exemplo, outros, de tão desconectados que se tornaram de suas raívzes primitivas, incorrem em um sentimentalismo exagerado e humanização dos animais. Também as relações inter-humanas e relações de trabalho modernas são altamente artifcializadas. O trabalho que a maioria das pessoas faz diariamente nada tem a ver com o suprimento das necessidades básicas do ser humano. Se antes as tarefas eram diretamente relacionadas à sobrevivência, como caçar, pescar, plantar e colher, construir abrigos e fazer vestimentas, hoje vemo-nos enfados nas mais insignifcantes funções, com o único objetivo de ganhar dinheiro para, com esse, suprir nossas necessidades. Essa falta de vívnculo direto entre a atividade trabalho e o suprimento de necessidades reais torna o trabalho desmotivante, e a vida sem sentido. Já as relações inter-humanas têm se tornado cada vez mais relações de competição ou interesse, e cada vez menos de cooperação voluntária e espontânea. Enquanto isso, os relacionamentos pessoais são gradualmente substituívdos por pseudo-relacionamentos virtuais: num mundo regido por ilusões e aparências, cada vez mais pessoas substituem sua vida e relacionamentos reais por novelas e séries de televisão — muito mais cômodos e práticos, cheios de “aventura e emoções” (ainda que falsas), e isentos de qualquer tipo exposição ou riscos. A maioria das pessoas “conhecem” muito mais celebridades de televisão do que pessoas reais (da mesma forma que conhecem muito mais logotipos de marcas e empresas do que espécies de animais e plantas). As redes sociais da internet fzeram com que esse grau de artifcialização de relacionamentos atingisse novos nívveis: pessoas assumem uma verdadeira “segunda identidade virtual”, puramente baseada em aparências e com pouca relação com a realidade, e muitas vezes com muito mais “amigos” que na vida real (sendo que a maioria desses amigos jamais serão conhecidos verdadeiramente). Humanos evoluívram como parte integrante da natureza, ao longo de milhões de anos, e esse distanciamento todo do que é natural foi um fenômeno extremamente rápido e recente. Isso dito, não é surpresa que esse estilo de vida artifcial de hoje em dia crie grave confito com nossa própria essência humana sendo, por si só, fonte de insatisfação, tensão interna, depressão, infelicidade e má saúde. O estilo de vida moderno é também um estilo de vida de hiperdependência, hiperconsumo, e hiperdesperdívcio. Hiperdependência signifca que a pessoa depende inteiramente de uma série de fatores não naturais para sua sobrevivência. O indivívduo moderno, diferentemente dos seus ancestrais primitivos e mesmo dos camponeses de outrora, não tem a menor condição de suprir nenhuma suas necessidades diretamente. Ao invés disso, ele depende completamente do seu emprego para ter dinheiro; do carro para ir ao trabalho; depende do dinheiro para comprar comida e todo o mais, para o que ele depende do supermercado, o qual depende da agricultura, indústrias, sistemas de transportes, etc. Depende ainda da 14

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companhia de água, senão morre de sede, etc. Essa dependência total de sistemas humanos complexos reduz a resiliência do indivívduo e da sociedade como um todo, e de fato tem sido um frequente fator causador do colapso de civilizações passadas. Hiperconsumo: o estilo de vida contemporâneo é inextricavelmente marcado por um consumo muito maior de recursos naturais do que o necessário à vida humana, comparando, por exemplo, com o homem que viveu antes da Revolução Industrial. Água encanada, energia elétrica e combustívveis fósseis, outrora indisponívveis, hoje são usadas indiscriminadamente, a enormes custos ambientais; alimentos são consumidos em demasia por mais da metade da população mundial (enquanto outros passam fome, diga-se de passagem), levando a uma pandemia de obesidade; produtos industrializados como roupas, acessórios, utensívlios domésticos, eletroeletrônicos, brinquedos e até veívculos acumulam-se nas casas, abarrotando-as. Nessa cultura do consumismo, tívpica de nossa sociedade moderna, as pessoas muitas vezes compram um monte de coisas das quais não precisam e nem sequer vão usar, apenas por não resistirem ao apelo da propaganda e os desejos por ela criados — são as famosas compras por impulso. Não raro, isso torna-se um vívcio: a pessoa compra coisas freneticamente para tentar preencher o vazio existencial de uma vida sem sentido, o que normalmente resulta em endividamento e, de fato, um agravamento de seu quadro psicológico. Já o hiperdesperdício vem de mãos dadas com o hiperconsumo, e também com o conceito subconsciente que os recursos naturais são infnitos. Frequentemente justifcado com base na comodidade, ou em um conceito profundamente torpe de custo-benefício, que leva em consideração exclusivamente o custo em termos de dinheiro, e benefívcio como algo que se deseja egoisticamente, sem qualquer consideração pelos efeitos negativos que podem ser causados às outras pessoas, às gerações futuras, às outras espécies, enfm à vida na Terra. O desperdívcio está em todo lugar. Desperdívcio de água, desperdívcio de energia. Coisas que são jogadas fora sendo que ainda funcionam perfeitamente, ou poderiam ser consertadas. Dois pontos merecem menção especial quando o assunto é desperdívcio. O primeiro é o desperdívcio de comida, que de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) corresponde a cerca de um terço de toda a comida produzida mundialmente — um dado extremamente alarmante. Perdas ocorrem em todas as etapas, desde a produção no campo, passando pelo transporte, entrepostos, varejo (alimentos que vencem nas prateleiras), até casa do consumidor fnal, onde há perdas por compra excessiva e desorganizada, mau armazenamento (alimentos estragando na geladeira), chegando ao hábito horroroso presente na maioria das casas de jogar restos de comida no lixo, seja do prato, seja da panela — por incapacidade de calcular direito a quantidade de alimento a ser preparada, por desleixo ao decidir a 15

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quantidade de comida a pôr no prato, por preguiça de guardar o resto da comida para comer na refeição seguinte; por desprezo ou mesmo ignorância sobre o valor intrívnseco do alimento, que deveria ser sagrado, e também ignorância em relação aos problemas ambientais associados ao lixo. Isso tudo é muitas vezes agravado por uma cultura imbecil de achar que é normal ou até mesmo “chique” jogar comida fora (“sinal de fartura”). Dessa forma, diariamente uma quantidade de alimentos que seriam capazes de acabar com a fome no mundo com ampla folga são transformados em lixo sem jamais serem consumidos, tampouco devolvidos ao solo. O fato de tantos alimentos serem desperdiçados também signifca que comida sufciente poderia ter sido produzida utilizando uma área muito menor de terras, quantidades muito menores de água, energia, fertilizantes, enfm, todos os recursos naturais, ou seja, com custos ambientais bem menores. O outro ponto de destaque em relação ao hiperdesperdívcio é a estratégia, amplamente utilizada pela indústria, da obsolescência programada, em que os produtos são literalmente feitos para durarem pouco, forçando os consumidores a comprarem os mesmos produtos novamente, e de novo, e de novo. Isso pode ser conseguido de várias formas diferentes: fazendo produtos com componentes frágeis que quebram ou se desgastam logo, usando deliberadamente um design industrial que praticamente impossibilita reparos, não oferecendo peças de reposição ou oferecendo-as a um custo descabidamente alto, fazendo com que o reparo ou substituição fque mais caro que o produto novo, etc. Outro tipo de obsolescência programada é a obsolescência psicológica: variações superfciais de estilo e grafsmo fazem com que pessoas de cabeça vazia sintam-se mal com seus produtos “antigos”, por não estarem mais na moda, vendo-se “forçadas” a comprar novos, ainda que seus antigos estejam cumprindo suas funções perfeitamente. Infelizmente, ao invés de se revoltarem contra a obsolescência programada, a maioria das pessoas se acostumam com ela e passam a achar normal comprar várias vezes a mesma coisa. Assim, essa estratégia é central para forjar a atual cultura do consumismo. Embora a ideia das obsolescência programada seja muito atrativa para as corporações, indústria e comércio por aumentarem seus lucros, isso tem efeitos negativos na sociedade, pois gera o endividamento de grande parte da população. Mais devastadores, porém, são os efeitos no meio ambiente, devido à exacerbação do consumo de recursos naturais e da produção de poluição industrial e lixo. Vício por crescimento A humanidade está simplesmente viciada em crescimento. Crescimento populacional, crescimento do PIB, crescimento das cidades… As pessoas querem casas cada vez maiores, carros cada vez maiores; mais casas, mais 16

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carros, mais dinheiro, mais status, etc. Temos instalada uma cultura dominante de acumulação. Agora, veja o seguinte: se uma pessoa tem muitos gatos, dizemos que ela tem problemas; se outro acumula jornais antigos, fazendo pilhas que chegam até o teto, dizemos que é louco. Mas, qualquer um que conseguir acumular uma quantidade obscena de dinheiro, milhares de vezes superior ao necessário para suprir suas necessidades, esse será considerado um modelo de pessoa! A cultura da acumulação é tão prevalente que as pessoas se sentem moralmente compelidas a crescer economicamente a qualquer custo, sob o risco de parecer um fracassado perante a famívlia e amigos, colegas etc., caso não consigam. Na nossa sociedade moderna, o conceito de suficiente foi simplesmente riscado do dicionário. Executivos de empresas e polívticos sobrevivem ou não em seus cargos baseado em sua habilidade de promover crescimento econômico ano após ano. Isso frequentemente leva a práticas deletérias à sociedade, bem como ao meio ambiente. A busca por um crescimento contívnuo e infnito é o elemento central do paradigma econômico atual. Nesse sistema, acredita-se que o crescimento é necessário à prosperidade e bem estar social. De fato, a economia, como atualmente organizada, depende de crescimento contívnuo para gerar empregos e garantir a estabilidade fnanceira e social. Porém, isso cria um grave dilema: se o crescimento é necessário para que haja prosperidade e, ao mesmo tempo, leva à degradação ambiental e depleção de recursos que impedirá a manutenção dessa prosperidade, o que fazer? O problema é que a hegemonia do modelo econômico baseado em crescimento infnito impede as pessoas de questionar os conceitos básicos sobre os quais ele se apoia. O “sacrossanto” crescimento não deve jamais ser questionado. Questione o crescimento, e sua punição será severa e imediata! Você será isolado como um leproso, ridicularizado, sua carreira está encerrada, etc. Uma das manifestações do vívcio por crescimento é a obsessão pelo PIB (produto interno bruto), frequentemente utilizado por economistas, polívticos, jornalistas etc. como indicador de que “está tudo bem”. “Se o PIB está crescendo, está tudo bem!” assumem. O problema é que o PIB é um indicador grosseiro de progresso, pois não leva em consideração os custos ambientais e sociais desse crescimento, e suas implicações para o futuro da sociedade, ou do ambiente do qual ela depende. Ao explorar de forma excessiva e destrutiva os recursos naturais e ambientais, como desmatar para extração de madeira, ou explorar o solo de forma predatória, ou os recursos minerais, ou abusar de recursos hívdricos, etc., tudo isso leva a uma aumento do PIB, mas leva também à exaustão desses recursos, signifcando que no futuro a sociedade não poderá mais contar com eles. Ou seja, você tem uma situação em que a economia está crescendo, a população está crescendo, e justamente em função disso o ambiente está sendo degradado e os recursos naturais, depletados. Essa é uma relação

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inextricável e irreversívvel.* Agora, no momento atual, enquanto estamos crescendo, todo mundo está feliz, e a maioria das pessoas tem a certeza que está tudo bem, estamos indo na direção certa. Mas, até quando vai estar todo mundo feliz? O problema é que enquanto os recursos ainda estiverem disponívveis, as pessoas se recusarão a aceitar o fato lógico que eles estão se extinguindo e um dia fatalmente se tornarão criticamente escassos. Os economistas, polívticos e pessoas em geral não enxergam a gravidade das consequências desse vívcio por crescimento por ignorância a respeito das reais necessidades humanas, de como funciona a economia e sua relação com o meio ambiente e os recursos naturais. Uma das formas dessa ignorância se manifestar é na forma do chamado otimismo tecnológico, ou seja, a ideia que novas tecnologias resolverão todos os problemas, removerão os empecilhos, possibilitando um crescimento infnito. Porém, isso não passa de uma ilusão, uma aposta suicida. De fato, está provado que o desenvolvimento de tecnologias está relacionado a um aumento do consumo de recursos, e não o contrário! Por exemplo, novas tecnologias podem aumentar a efciência na extração do petróleo, dando a impressão que esse recurso foi aumentado. É verdade que, com novas tecnologias, reservas antes inalcançáveis podem passar a ser disponívveis, mas nada pode aumentar a quantidade de petróleo — todo o petróleo que existe foi produzido há milhões de anos, e nenhum está sendo produzido agora; trata-se de um recurso fnito e não renovável, portanto sua extração contívnua inevitavelmente levará à sua exaustão e, na verdade, qualquer aumento na efciência na extração do petróleo só causará um aumento no consumo desse recurso. Outro exemplo muito citado é que carros e televisões modernas consomem menos combustívvel e energia que modelos antigos. Isso pode ser verdade; porém, ao mesmo tempo, hoje são produzidos e consumidos muitos mais carros e TVs, de forma que o consumo global é muito maior que no passado. Energia Outra caracterívstica perigosívssima de nossa civilização industrial é nosso terrívvel vício por energia. Enquanto todas as outras espécies de animais utilizamse de apenas do sol e alimentos como fontes de energia, nós, seres humanos civilizados, em nossas atividades, utilizamos uma quantidade descomunal de energia, de diversas fontes e formas. A vida moderna, em todos seus aspectos, requer enormes quantidades de energia: iluminação, refrigeração, aquecimento, cocção de alimentos, operação de eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos, locomoção e transportes, construção civil e obras de infraestrutura, serviços públicos em geral, etc. A agricultura moderna também é grande consumidora de energia, especialmente devido à * Para uma discussão aprofundada dessa relação, recomendo a leitura de “A lei da entropia e o processo econômico”, de Nicholas Georgescu-Roegen.

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mecanização. Por fm, temos a indústria e o setor tecnológico, peças centrais de nossa civilização atual, que são um dos principais consumidores de energia em todas as suas formas. O consumo per capita de energia tem aumentado vertiginosamente, sendo um refexo do processo civilizatório. Porém, todas essas necessidades artifciais criadas pela civilização vêm a um enorme custo ambiental, na forma de consumo de recursos naturais e geração de poluição, redundando na destruição de ecossistemas. A principal fonte de energia utilizada por nossa civilização atualmente são os combustívveis fósseis, tanto para transporte como para indústrias e mesmo para a geração de energia elétrica, nas usinas termelétricas. Além da poluição do ar causada pela queima desses combustívveis, há ainda o dano ambiental causado pela extração desses recursos, incluindo os eventuais (não raros) derramamentos de petróleo que causam enorme estrago principalmente a ambientes marinhos. Outras formas de energia também destroem o meio ambiente. O etanol, por exemplo, é frequentemente visto como uma alternativa sustentável ao petróleo. De fato, pelo menos em relação à liberação de gases do efeito estufa e outros poluentes atmosféricos, o etanol é bem menos danoso que o petróleo, já que há uma reciclagem do carbono. Porém, seu uso como fonte de energia também traz sérios problemas, entre eles a intensifcação dos problemas ambientais causados pela agricultura industrial (discutidos mais adiante). Outro problema serívssimo é que, ao se investir no etanol como substituto ao petróleo, isso signifca desviar os recursos agrívcolas para a produção do álcool, em detrimento da produção de alimentos — ou seja, os carros e indústrias passam a competir diretamente com as pessoas por alimentos, podendo levar a um agravamento da situação de vulnerabilidade alimentar e fome global, além da intensifcação do desmatamento para acomodar essa nova demanda agrívcola, caso o etanol passasse a ser um elemento predominante na matriz energética global. No Brasil, a principal fonte de energia elétrica são as usinas hidrelétricas. Consideradas por muitos uma “energia limpa”, por supostamente não consumir combustívveis ou poluir a atmosfera, as usinas hidrelétricas são, ainda assim, responsáveis por enorme destruição ambiental, pois inundam vastas áreas, na ordem de milhares de quilômetros quadrados, destruindo forestas nativas, alterando o fuxo das águas, descaracterizando e reduzindo enormemente a biodiversidade pela interrupção dos ciclos biológicos de inúmeras espécies de fauna e fora locais, etc. Além disso, as usinas hidrelétricas também contribuem signifcativamente para a poluição da água e geração de gases do efeito estufa: a inundação de áreas forestais leva à morte e consequente decomposição de toda a biomassa presente na área inundada. Essa decomposição consome vorazmente o oxigênio dissolvido na água, levando à hipóxia ou anóxia e acidifcação, matando milhões de peixes e outras formas de vida. A decomposição de toda essa biomassa libera imensas quantidades de gases como CO2 e metano, isso sem contar que as represas são obras gigantescas, que incluem a utilização de milhões 19

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de toneladas de cimento e centenas de milhões de litros de óleo diesel para mover as máquinas para sua construção — tudo isso representando a geração de quantidades descomunais de gases do efeito estufa, contribuindo para o aquecimento global. Por fm, é importante ressaltar que a construção das barragens também causa sérios problemas sociais como o deslocamento forçado (leia-se expulsão) de ívndios e populações tradicionais, destruindo assim suas culturas. Uma das principais fontes de eletricidade no mundo atualmente são as usinas nucleares. Essas também são extremamente perigosas pois sua operação gera o chamado “lixo atômico”, subprodutos que se mantêm altamente radioativos por milhares de anos — um problema sem solução. Além disso, usinas nucleares são susceptívveis a acidentes e incidentes de todo tipo, incluindo falhas humanas como ocorrido em Chernobyl em 1986, ou provocadas por desastres naturais como ocorrido em Fukushima em 2011, e até mesmo provocados intencionalmente, por exemplo sendo alvos potenciais de bombardeios em guerras ou atentados terroristas. Acidentes em usinas nucleares podem ser catastrófcos, com explosões e vazamento de imensas quantidades de material altamente radioativo, podendo causar muitas mortes a curto, médio e longo prazo, além de maciça contaminação ambiental que pode perdurar por séculos. Fontes de energia alternativas, renováveis, como a solar e eólica, são consideradas muito menos nocivas ao meio ambiente que as fontes mais comuns citadas acima. Embora estejam crescendo em popularidade, em 2015 essas formas de energia renovável juntas ainda representavam apenas cerca de 1,5% da matriz energética global.* Transporte Os nívveis de mobilidade, tanto humana como de cargas, que se tem hoje são assombrosos e jamais vistos na história da humanidade, graças ao grande desenvolvimento e consequente barateamento dos transportes movidos a combustívveis fósseis. Houve de fato uma banalização do transporte. Nos dias de hoje, usando transporte motorizado individual ou coletivo, tornou-se extremamente comum às pessoas percorrer dezenas ou mesmo centenas de quilômetros todos os dias para atividades as mais corriqueiras, como ir ao trabalho ou estudo, fato apenas tornado possívvel pela utilização indiscriminada da energia altamente concentrada presente nos combustívveis, especialmente os derivados do petróleo. O mesmo ocorre com cargas: hoje, a grande maioria dos produtos consumidos pela população, vendidos no mercado próximo às suas casas, vem de fato de regiões muito distantes, sendo transportados por centenas ou milhares de quilômetros, e muitas vezes de outros paívses, literalmente do * 2017 Key world energy statistics. International Energy Agency. 2017.

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outro lado do mundo. Isso se aplica tanto a alimentos como produtos industrializados em geral. Essa banalização do transporte e o vívcio pela locomoção, caracterívsticos da nossa Era do Petróleo, representam um gravívssimo problema ambiental, em múltiplos nívveis. O problema mais óbvio é a poluição do ar pelas emissões diretas dos veívculos, pela queima de combustívveis: os transportes motorizados são a principal fonte de poluição do ar na maioria das grandes cidades do mundo, de forma que as metrópoles são permanentemente envoltas em uma enorme massa acinzentada de fumaça. Tal baixa qualidade do ar está diretamente ligada a inúmeros problemas de saúde das populações urbanas, como doenças respiratórias, cardiovasculares e câncer, além de distúrbios neurológicos e comportamentais, incluindo a depressão. E o problema só tende a se agravar, pois a frota mundial de veívculos está aumentando sem parar. Um caso extremo a ser citado é a cidade de São Paulo, que já tem uma frota de mais de 8 milhões de veívculos, com uma proporção absurda de 2 veívculos para cada 3 habitantes, já tendo superado, em ambos os quesitos (número de veívculos e proporção em relação ao número de habitantes), a cidade americana de Los Angeles, historicamente famosa por ser a cidade com maior número de carros do mundo. Deve-se ressaltar também que os transportes são um dos principais geradores de gases do efeito estufa, mundialmente. Além da poluição atmosférica, também devem ser levadas em consideração toda a degradação ambiental e poluição associadas com a indústria petroquívmica, a fabricação de veívculos, além da construção e manutenção de toda a infraestrutura voltada para o transporte motorizado individual, público e de cargas, como rodovias, ruas, viadutos, linhas férreas, portos, aeroportos, etc. Água Sem dúvida, o uso mais essencial da água é para a hidratação do corpo. Um ser humano adulto necessita, em média, de aproximadamente 2 litros de água por dia para manter-se adequadamente hidratado. No entanto, o homem civilizado utiliza em média 150 a 200 litros de água por dia, para as mais variadas atividades, como lavar louça, lavar roupa, tomar banho, limpar sua casa, lavar o carro, etc. Ou seja, apenas cerca de 1% do consumo diário de água é voltado para um uso essencial! Uma única descarga de privada consome três a quatro vezes mais água que o necessário para manter um adulto hidratado por um dia inteiro; como cada pessoa dá, em média, umas 10 descargas por dia, isso signifca o sufciente para matar a sede de umas 35 pessoas pelo mesmo perívodo! Crescemos tão acostumados a todo esse desperdívcio que nem sequer nos damos conta do tamanho do absurdo que ele representa. E o pior é que os 150 a 200 litros de água citados acima referem-se apenas ao uso direto de cada pessoa, em sua casa. Se forem incluívdos os gastos com manutenção pública e de ambientes de trabalho, comércio, serviços, indústria, 21

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irrigação agrívcola etc, o volume de água consumido por habitante atinge valores muito mais altos e difívceis de calcular. Essa água toda sendo consumida, obviamente não está deixando de existir, mas sim sendo transformada em esgotos, que poluem ambientes aquáticos como rios, lagos e mares, destruindo e acabando com a vida nesses ecossistemas, e ao mesmo tempo diminuindo a quantidade de água limpa disponívvel, tanto para a natureza como para uso humano. Alimentação A artifcialização da vida se manifesta também de forma fagrante nos hábitos alimentares do homem moderno, especialmente nos alimentos processados e ultraprocessados. Alimentos ultraprocessados são aqueles produzidos primariamente a partir de substâncias purifcadas (e.g. açúcar refnado) e substâncias artifciais (corantes, aromatizantes, conservantes, etc.). Exemplos de alimentos ultraprocessados incluem salgadinhos, doces, refrigerantes, sucos processados e bebidas alcoólicas, pães, bolos e pizzas, biscoitos, bebidas lácteas, chocolates e bombons, massas em geral, margarina, sorvetes e sobremesas prontas, embutidos como salame e mortadela, entre uma lista infndável de outros produtos. Esses alimentos fazem mal à saúde porque eles contém quantidades excessivas de açúcar, carboidratos simples, sal e gorduras não saudáveis, além de dezenas de aditivos quívmicos sintéticos. Quando é citado na embalagem que contém aromatizantes, corantes, edulcorantes e conservantes artifciais, isso gera a impressão errônea que se trata de 4 substâncias (o que já deveria ser motivo de muita preocupação!). Mas na verdade a coisa é muito pior, pois muitas vezes cada um desses itens é na verdade uma mistura de inúmeros produtos quívmicos que entram em cada categoria, e simplesmente não são especifcados na embalagem! A longo prazo, esses produtos agem como toxinas no organismo. Por tudo isso, o consumo rotineiro desse tipo de alimento causa uma série de problemas de saúde, incluindo cáries, distúrbios metabólicos e endócrinos como diabetes e obesidade, doenças hepáticas, pancreáticas e renais, hipercolesterolemia, distúrbios oxidativos e infamatórios, arteriosclerose, infartos cardívacos, derrames cerebrais, câncer, e doenças degenerativas crônicas, incluindo degeneração cerebral e mal de Alzheimer, etc. Por outro lado, esses alimentos contém pouca fbra alimentar e quantidades insufcientes e desbalanceadas de nutrientes importantívssimos como proteívnas, vitaminas, minerais e ácidos graxos essenciais, levando a problemas digestivos e desnutrição. Embora pareça paradoxal, é comum pessoas que consomem alimentos processados serem obesas e desnutridas ao mesmo tempo! É estarrecedor notar que muitos dos alimentos ultraprocessados são comumente confundidos pela população em geral com alimentos saudáveis — os chamados “iogurtes de frutas”, barras de cereais e cereais matinais, por exemplo 22

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— quando na verdade são porcarias nocivas à saúde. Isso se deve largamente a ardilosas táticas de marketing dos fabricantes, que associam esses produtos à imagem de pessoas jovens, ativas, felizes e saudáveis. Pior ainda é quando essas propagandas estimulam o consumo por crianças! Por exemplo, pouca gente sabe, mas os chamados “alimentos achocolatados em pó” (como Nescau e Toddy, entre outras marcas), são cerca de 90% açúcar, e apenas 10% de outros ingredientes, dos quais o cacau é um componente quase insignifcante. Já o conhecido cereal Sucrilhos é 54% açúcar, e cerca de 40% milho. Além do impacto na saúde, os alimentos ultraprocessados têm também maior impacto no meio ambiente, devido ao processo de fabricação industrial e embalagens excessivas, geralmente feitas com materiais não biodegradáveis (principalmente plástico). Deve-se ressaltar, porém, que os alimentos processados e ultraprocessados não são os únicos problemas da alimentação moderna, já que a imensa maioria dos alimentos consumidos hoje pela população, processados ou não, são produzidos pela agricultura industrial. Além da destruição ambiental causada por esse modelo de agricultura (conforme discutiremos a seguir), os alimentos assim produzidos também são contaminados por resívduos de agrotóxicos e fertilizantes quívmicos, além de hormônios, antibióticos e outras drogas, que estão associados a inúmeros problemas de saúde, como doenças hepáticas, renais e nervosas, distúrbios hormonais e metabólicos, câncer, etc.

Agricultura A agricultura é a atividade humana mais destrutiva ao meio ambiente, desde o seu surgimento há dez mil anos e até os dias de hoje. É bastante disseminada a noção que a agricultura tradicional, nos moldes antigos, isto é, antes do surgimento da agricultura industrial no século XX, era ecológica, inócua ao meio ambiente. Porém, nada poderia estar mais distante da verdade! É necessário ressaltar que a agricultura, desde seu nascimento, sempre se caracterizou por ser um sistema antagônico à natureza e altamente insustentável. Muito antes da era industrial, desmatamento para conversão de terras ao uso agrívcola, uso indiscriminado do fogo, excessiva pressão de pastejo por rebanhos bovinos e ovinos, etc. já haviam deixado um rastro considerável de destruição ambiental em vastas regiões do planeta. Meio milênio atrás, a maior parte dos paívses europeus já tinham perdido quase todas as suas forestas, enquanto áreas desérticas no Norte da África e Oriente Médio haviam sido consideravelmente alargadas devido à agricultura e pecuária. Há séculos, espécies vêm sendo extintas e biomas inteiros perdidos por causa da agricultura. Tradicionalmente, o solo sempre foi utilizado de forma descartável pela agricultura. Florestas são derrubadas e queimadas para dar lugar a plantações; 23

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nos primeiros anos de exploração agrívcola, a produtividade é normalmente ótima, pois se está explorando a fertilidade do solo ali construívda pela natureza ao longo de milênios. Porém, com a drástica redução na biomassa e biodiversidade do solo, e agravado por práticas como queimadas rotineiras, aração e gradagem que destroem a estrutura do solo e expõem suas entranhas à ação do sol, chuva e vento, observa-se uma perda progressiva na fertilidade. Após alguns anos ou poucas décadas, a terra que antes produzia de tudo começa a dar sinais de cansaço, passando então a ser usada para plantações cada vez menos exigentes. Quando nem essas podem ser produzidas, instituem-se as pastagens; enfm, quando já nem capim cresce mais, a terra é abandonada, e o agricultor avança mais uma vez mata a dentro, desmatando e reiniciando mais um ciclo no processo de destruição da natureza pela agricultura. Agora, os problemas ambientais foram brutalmente intensifcados com o surgimento da agricultura industrial, esta caracterizada por um alto grau de mecanização, uso de fertilizantes quívmicos e agrotóxicos, melhoramento genético de plantas e animais e, mais recentemente, engenharia genética. Apoiada por mecanismos polívtico-econômicos tais como regulamentações legais, subsívdios e incentivos fscais, promoção da abertura de mercados e globalização, etc., a agricultura industrial escalou rapidamente rumo à hegemonia do setor agrívcola mundial, trazendo em seu bojo devastadores efeitos colaterais, tanto ao meio ambiente como à sociedade. A agricultura moderna é a principal causadora de desmatamento e degradação de solos, a maior consumidora de água e uma das principais responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa, mundialmente — daív não ser nenhum exagero dizer que se trata da atividade humana mais destrutiva ao meio ambiente. Além dos danos já citados, a aplicação contívnua de fertilizantes quívmicos e agrotóxicos ainda envenenam o solo, as águas e também os alimentos que consumimos. Dentre as atividades agrívcolas, a pecuária se destaca por seus efeitos destrutivos no meio ambiente.* Do ponto de vista social, a agricultura industrial está associada a concentração fundiária, expulsão do homem do campo (êxodo rural), destruição da estrutura social e perda da identidade cultural rural e intensifcação das desigualdades sociais. Embora muito se diga que a agricultura moderna é uma fonte de divisas pela exportação de commodities, na verdade esse lucro não benefcia a sociedade, pois fca somente nas mãos dos grandes latifundiários, barões do agronegócio, empresas multinacionais e polívticos corruptos. É importante ressaltar que as regiões onde domina o agronegócio são as de mais baixo IDH (ívndice de desenvolvimento humano) do Brasil.

* Steinfeld, H. et al. Tivestock’s long shadow: environmental issues and options. Food and Agriculture Organization of the United Nations. 2006.

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3. A Crise Ambiental

3 A CRISE AMBIENTAL

Superpopulação Estudos antropológicos indicam que a população humana global anteriormente ao nascimento da civilização era de cerca de 5 a 10 milhões de pessoas. Porém, desde o surgimento da agricultura, a população humana passou a crescer e nunca mais parou. A análise da curva de crescimento populacional no gráfco abaixo permite identifcar três perívodos distintos em relação ao crescimento da população humana. Até cerca de 5000 AC (primeira linha pontilhada), a população é relativamente estável. A partir daív, observa-se um crescimento exponencial da população humana (atribuívvel à agricultura), que passa a dobrar de tamanho a cada 900 anos, em média. A Revolução Industrial (fnal do século XVIII e inívcio do XIX, indicada pela segunda linha pontilhada) traz uma aceleração aguda desse crescimento, com a população humana passando a dobrar de tamanho a cada 73 anos. Na Era do Petróleo, a população passou a dobrar a cada 45 anos — o perívodo de crescimento populacional mais rápido de toda a história. Em 2012, a população humana chegou a 7 bilhões de indivíduos — esse número representa um aumento de aproximadamente mil vezes na população mundial, em relação ao seu nívvel basal. Em 2017, a população superou os 7,5 bilhões, e todos os dias o número de pessoas que nascem é aproximadamente 2,4 vezes maior que o número de pessoas que morrem. 25

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

A

3. A Crise Ambiental

População humana mundial (em bilhões)

8 7 6 5 4 3 2 1 0

População humana mundial

B

Ano 10 bilhões

1 bilhão

100 milhões

10 milhões

1 milhão

Ano Gráfco: população humana global ao longo da história, em escala aritmética (painel A), e logarítmica (B).

Sustentabilidade requer populações razoavelmente constantes. Isso deriva de uma simples lógica matemática: não se pode ter crescimento contínuo em um espaço finito. Eis que a Terra é um espaço fnito, com recursos fnitos. Crescendo continuamente, exponencialmente, a exaustão dos recursos necessários à vida humana é consequência inevitável. Cada um dos problemas ambientais enfrentados pelo mundo hoje é agravado pelo aumento da população. Por isso tudo a superpopulação é, sem dúvida, um dos maiores problemas do mundo atualmente.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

3. A Crise Ambiental

Não resta a menor dúvida que o mundo está superpopuloso — as únicas pessoas que não entendem isso são aquelas que não sabem o signifcado da palavra superpopulação. Superpopulação signifca um aumento da população de determinada espécie de ser vivo além da capacidade de suporte de seu ambiente. Hoje, a população humana está aumentada em 1000 vezes em relação a seu nívvel basal, e em função disso os recursos necessários à nossa vida estão em rápido declívnio. Todos os dias há dezenas de milhares de pessoas a mais no planeta — e menos árvores, menos forestas, menos solos, menos água limpa, menos espécies de animais e plantas. Mas, infelizmente, a maioria das pessoas no mundo parecem não estar sequer cientes desse gravívssimo fato, e o assunto é considerado tabu, sendo raramente mencionado na mívdia ou nas escolas. Muitas pessoas ainda se negam a aceitar que a superpopulação seja um problema. Esse tipo de ignorância é, muitas vezes, reforçado pela religião. “Crescei e multiplicaivos, diz na Bívblia. Não fala nada de superpopulação!” Embora seja um problema extremamente complexo e de difívcil solução, é imprescindívvel trazê-lo à pauta de discussão, levar essa informação às pessoas, trabalhar com a conscientização em larga escala sobre o problema. Esse é o primeiro passo, e o mais importante — e simplesmente não está sendo feito! Negar o problema ou evitar tocar no assunto é como enfar a cabeça na areia, e certamente não contribuirá para nenhuma solução.

Desmatamento Mais da metade das forestas do mundo já foram destruívdas pelo homem, sendo que a maior parte desse desmatamento ocorreu nos últimos 100 anos. E o desmatamento continua em ritmo acelerado. Estima-se que até o fnal deste século as forestas tropicais serão totalmente destruívdas, perdidas para sempre.* As causas para o desmatamento são muitas, e sua importância variou bastante de acordo com o perívodo histórico. Desde o ano 2000, conversão de terras para agricultura industrial de commodities (agronegócio), principalmente voltada para o mercado externo, tem sido responsável pela metade do desmatamento ocorrido em regiões tropicais, mas muitas outras causas, como extração de madeiras, mineração, expansão de cidades, construção de estradas, indústria de papel e celulose etc. continuam sendo importantes, e em regiões extremamente pobres e de grande instabilidade social forestas inteiras estão sendo rapidamente destruívdas para uso como lenha para cocção de alimentos, por exemplo. Brasil e Indonésia são atualmente os lívderes mundiais em desmatamento, embora o problema ocorra também em nívveis alarmantes em outras áreas da América Central e do Sul, África, Sudeste Asiático e Oceania. * Tewis, S. Will we still have tropical forests in 2100? World Economic Forum: Global Agenda/Forests. 2015.

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No Brasil, a maior parte do desmatamento ocorrendo atualmente é motivado pela criação de gado e plantação de soja. O Brasil é hoje o maior exportador mundial de carne, e boa parte dessa carne vem do desmatamento da Amazônia (cerca de 90% das áreas de desmatamento recente da Amazônia são ocupadas pela pecuária). Os biomas mais severamente atacados pelo desmatamento no Brasil atualmente são a Amazônia e o Cerrado. Cabe lembrar que a Mata Atlântica, um dos biomas mais ricos e diversos do mundo, já foi quase totalmente destruívda, restando hoje apenas cerca de 7% de sua cobertura original. A extração ilegal de madeiras, uma das causas de desmatamento na maioria das forestas tropicais do mundo, é resultado primariamente da enorme demanda por madeiras nos mercados consumidores da Europa, Estados Unidos, Japão e China (o Japão é o maior consumidor de madeiras tropicais no mundo atualmente, enquanto a China é o maior consumidor de papel). Os maiores exportadores de madeiras tropicais são Brasil, Indonésia e Camarões. Na África, os principais fatores levando ao desmatamento atualmente são a utilização da madeira como lenha para cocção de alimentos e agricultura de subsistência. Exacerbada pela explosão populacional associada a precárias condições econômicas, o desmatamento já destruiu cerca de 80% das forestas do Oeste Africano e 90% das de Madagascar. Mineração, extração de madeiras e expansão do agronegócio também são causas importantes de desmatamento naquele continente, sendo operadas por empresas estrangeiras e voltadas para exportação. Já no Sudeste Asiático, produção de papel e celulose e plantações de palma para extração de óleo, todos visando exportação para mercados como Europa, Índia, China, Japão e Estados Unidos, são as principais causas de desmatamento atualmente. Esses dados deixam claro como a globalização afeta o desmatamento: paívses economicamente desenvolvidos, mesmo após terem destruívdo suas forestas totalmente (ou quase), continuam sendo os principais causadores de desmatamento mundialmente. Só que o verdadeiro impacto ambiental do estilo de vida da população desses paívses ricos muitas vezes ocorre a milhares de quilômetros de distância, em paívses menos desenvolvidos literalmente do outro lado do planeta, bem longe de suas vistas. O desmatamento é um verdadeiro atentado contra a vida, uma das maiores manifestações do ecocívdio cometido pela humanidade. As forestas são os principais berços da biodiversidade terrestre, e o desmatamento é causa de milhares de extinções de espécies todos os anos. Porém, a gravidade do problema do desmatamento vai ainda muito além disso, já que as forestas desempenham outras importantívssimas funções ambientais. Dentre as consequências do desmatamento, podemos citar: • Perda de solos. A foresta protege o solo, mantendo-o sempre ao abrigo do 28

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sol e do impacto da chuva, evitando a erosão e o ressecamento. Além disso, há a contívnua reciclagem dos nutrientes do solo na foresta: matéria vegetal e animal morta deposita-se no solo onde se decompõe, fertilizando-o com nutrientes que, novamente, se transformam em mais matéria viva. Dessa forma, a foresta mantém o solo fértil indefnidamente, e de fato constrói sua fertilidade. Ao destruir as forestas, destrói-se também o solo: esse passa a sofrer erosão e lixiviação, perdendo seus nutrientes e tornando-se seco, compactado e pobre. Inicia-se assim o processo de desertifcação, consequência fnal do desmatamento. • Perturbação do ciclo das águas. As forestas desempenham um papel fundamental na estabilização do ciclo das águas. A foresta favorece a absorção de água pelo solo, pois os troncos e raívzes das árvores, galhos e folhas caívdas oferecem obstáculos que reduzem o escoamento e fazem com que a água da chuva permaneça mais tempo sobre o solo, possibilitando sua absorção e abastecendo, assim, o lençol freático. Com o desmatamento, reduz-se a absorção da água da chuva pelo solo, levando ao abaixamento progressivo do lençol freático e, consequentemente, o secamento de nascentes e rios. Pela evapotranspiração, as árvores da foresta mantêm a umidade do ar, mobilizando continuamente a água dos lençóis freáticos, regulando assim a incidência e regularidade das chuvas. A perda das forestas causa uma mudança drástica no clima, que fca mais quente e seco, com chuvas mais escassas e irregulares. • Efeito estufa. O desmatamento é o principal responsável pelas emissões de gases do efeito estufa no Brasil, e um dos principais mundialmente, contribuindo tremendamente para o aumento da temperatura global e mudanças climáticas, levando por exemplo à redução nos volumes e regularidade das chuvas e aumento da ocorrência e intensidade de eventos climáticos extremos (as mudanças climáticas antropogênicas serão discutidas em mais detalhes no próximo capívtulo). • Mais desmatamento. A perda das forestas, com a resultante desestabilização do clima pelos fatores citados acima, levando a verões mais quentes e secos, torna as forestas remanescentes muito mais susceptívveis a incêndios. Tem-se portanto um ciclo vicioso, no qual o desmatamento gera mais desmatamento. Além desses gravívssimos problemas ambientais, o desmatamento causa ainda terrívveis problemas sociais. A foresta é o meio de sustento de povos indívgenas e comunidades rurais tradicionais e ribeirinhas, entre outras. A destruição da foresta representa, portanto, a privação de seu modo de vida, ameaçando sua própria sobrevivência, já que as atividades de agricultura industrial predatória que se instalam na região desmatada contratam pouquívssima mão de obra. Consequentemente, essas populações veem-se forçadas a migrar 29

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para as cidades, em situação de extrema precariedade e vulnerabilidade. Para piorar, essa expulsão das populações tradicionais muitas vezes se dá através de violentos confitos de terras, promovidos pelos barões do agronegócio e empresas multinacionais, com a conivência de governos locais corruptos: ameaças, assassinatos, destruição e queima de suas casas, enfm, violação brutal dos direitos humanos dessas populações vulneráveis, resultando na maioria das vezes em verdadeiro etnocívdio, ou seja a destruição total de suas culturas.

Poluição Praticamente todas as atividades do homem dito civilizado geram enormes quantidades de resívduos e subprodutos tóxicos que acumulam-se no meio ambiente na forma de poluição, trazendo efeitos adversos à saúde e bem-estar humano, mas principalmente aos ecossistemas. Poluição do ar As principais fontes de poluição do ar são as indústrias e setor energético, veívculos automotores e a agricultura. As indústrias em geral produzem toda sorte de resívduos gasosos, voláteis, aerossóis e matéria particulada que contaminam a atmosfera. Em alguns paívses, o setor energético merece destaque, como é o caso da China, onde a maior causa de poluição do ar são as usinas termelétricas a carvão. O setor energético e industrial juntos são responsáveis por 46% das emissões globais de gases do efeito estufa. Veículos automotores, especialmente carros, caminhões e ônibus (mas também incluindo motocicletas, aviões, navios, trens, etc.), que são as principais fontes de poluição atmosférica na maioria das cidades e uma das principais fontes globalmente, liberam poluentes como dióxido e monóxido de carbono, dióxido de enxofre, óxidos de nitrogênio, metano, benzeno, metais pesados (especialmente chumbo), matéria particulada, etc. Já a agricultura emite imensas quantidades de dióxido de carbono, especialmente pelo desmatamento, queimadas e pela degradação do solo (a redução da biomassa do solo é acompanhada da liberação de carbono para a atmosfera na forma de CO2, contribuindo signifcativamente para o efeito estufa). A aplicação de pesticidas causa poluição transitória do ar, dizimando insetos e aves da área, e a adubação quívmica nitrogenada libera óxido nitroso, que destrói a camada de ozônio à mesma maneira do CFC. Já a pecuária, especialmente a bovina, é uma das principais fontes de metano e óxido nitroso, poluentes atmosféricos que estão entre os principais causadores do efeito estufa, e também é uma das principais causas de desmatamento, com consequente 30

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liberação de CO2. Segundo dados da FAO, a pecuária sozinha é responsável por 14,5% das emissões globais de gases do efeito estufa.* A poluição do ar causa severos danos à saúde humana e redução da qualidade de vida. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a poluição do ar causa a morte de 7 milhões de pessoas ao ano, principalmente por doenças cardiovasculares, pulmonares e câncer. ** Outros problemas de saúde causados pela poluição são malformações fetais, distúrbios imunológicos e hormonais, desenvolvimento de autismo, transtornos psiquiátricos incluindo a depressão, etc. No meio ambiente, a poluição atmosférica leva ao fenômeno de chuva ácida, que traz terrívveis consequências aos ecossistemas, especialmente forestas, o solo e ambientes aquáticos. Algumas espécies vegetais não toleram a acidez, e forestas inteiras já foram dizimadas pela chuva ácida, especialmente no Leste Europeu e Escandinávia, mas também na América do Norte e partes da Ásia. A chuva ácida também altera drasticamente a quívmica e microbiologia do solo. Muitos microrganismos benéfcos do solo morrem devido à acidez, reduzindo a capacidade do solo de reter nutrientes. Enquanto isso, a queda no pH aumenta a perda de nutrientes catiônicos, como cálcio, magnésio e potássio entre muitos outros, por lixiviação, e causa ainda a mobilização do alumívnio no solo, que passa a ser tóxico para as plantas. O resultado geral é um empobrecimento progressivo do solo, o que redunda em mais destruição de forestas, além de prejuívzos para a agricultura. A chuva ácida também causa impacto nos corpos d'água como rios e lagos, onde a acidez causa redução da biodiversidade, já que inúmeras espécies de invertebrados e peixes não sobrevivem em pH baixo. O aumento na concentração de dióxido de carbono na atmosfera também causa a acidifcação dos oceanos, pois esse gás se dissolve na água formando o ácido carbônico. Essa acidifcação causa terrívveis efeitos para os ecossistemas marinhos, pois altera inúmeros processos fsiológicos dos seres aquáticos, deprimindo a taxa metabólica e respostas imunes, impedindo a calcifcação, impedindo o desenvolvimento ou matando inúmeras espécies e desestruturando toda a cadeia alimentar, assim reduzindo a quantidade, qualidade e diversidade da vida marinha. A acidifcação dos oceanos é uma das principais causas da destruição dos corais, juntamente com o aquecimento global e a poluição do mar por resívduos fertilizantes agrívcolas. Outro gravívssimo efeito da poluição atmosférica é o efeito estufa: gases como dióxido de carbono e metano, entre outros, lançados ao ar na forma de * Gerber et al. Tackling climate change through livestock: a global assessment of emissions and mitigation opportunities. Food and Agriculture Organization of the United Nations. 2013. ** Burden of disease from the joint efects of household and ambient air pollution for 2012. World Health Organization. 2014.

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poluentes da nossa civilização, acumulam-se e aprisionam a radiação solar na atmosfera, causando o aumento da temperatura (aquecimento global) e mudanças climáticas. Esse problema será discutido no próximo capívtulo. Poluição dos solos é causada principalmente pela atividade industrial, agricultura e descarte de lixo. Quanto à atividade industrial, prospecção de petróleo, mineração, descargas industriais intencionais e derramamentos acidentais, vazamentos de canos e tanques de armazenamento subterrâneos devido à corrosão, etc. estão entre as principais fontes de contaminação do solo. Também a poluição do ar, acaba se convertendo em poluição do solo, já que os poluentes se depositam na forma de poeira, ou são trazidos à superfívcie da terra pela chuva. Similarmente, ao penetrar no solo, carreados pela chuva, esses poluentes contaminam também os lençóis freáticos, e consequentemente os mananciais de abastecimento de água. Vê-se portanto que a poluição do ar, da água e dos solos estão intimamente ligadas. A agricultura polui os solos principalmente com agrotóxicos e fertilizantes quívmicos, além de dejetos animais concentrados nas criações intensivas. Pesticidas contaminam pesadamente o solo e o ar (pela formação de aerossóis), levando à destruição dos ecossistemas na região, pois quando insetos e moluscos são aniquilados, toda a cadeia alimentar é afetada. Pequenos mamívferos, aves, répteis e anfívbios que se alimentam de insetos morrem de fome devido ao desaparecimento dos mesmos; predadores maiores, como gaviões, corujas e raposas, estarão portanto também condenados. Fertilizantes químicos também são gravívssimos poluentes ambientais, pois matam os micro e macrorganismos do solo e causam sua acidifcação e salinização progressivas, reduzindo sua biodiversidade e biomassa. Além disso, adubos quívmicos são comumente contaminados com metais pesados e poluentes orgânicos persistentes, que sofrem bioacumulação, ou seja, esses componentes tóxicos vão se acumulando nos organismos, causando intoxicação crônica e diversos problemas metabólicos, hormonais, imunológicos, reprodutivos e nervosos, eventualmente levando à morte e culminando com a redução das populações de animais silvestres. Também causam bioamplificação, que signifca um aumento da concentração em organismos de camadas mais altas da cadeia alimentar, ou seja, os predadores, que são particularmente dizimados. Poluição da água. A humanidade está destruindo sistematicamente a vida aquática no planeta, principalmente devido à poluição. Isso acontece a olhos vistos e pode ser constatado por qualquer pessoa, em praticamente qualquer lugar e a qualquer hora. Visite o rio que corta sua cidade, ou mesmo o ribeirão mais próximo de sua casa, e dê uma olhada nele. Você teria coragem de beber aquela água? ou nadar nela? Será que você teria coragem sequer de tocar aquela 32

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água com suas mãos? Provavelmente, não. Por que? Simplesmente porque o pobre rio está tão poluívdo que você tem nojo até de chegar perto dele, ou sentir seu cheiro. Você se arriscaria a tentar pescar nesse rio? O que será que viria no anzol? Agora, você acredita que esse mesmo rio, até algum tempo atrás, era lindo, lívmpido e cristalino, envolto por uma rica mata ciliar, com água pura e cheio de peixes e inúmeras outras formas de vida? Mas, o que aconteceu para que ele fcasse deste jeito, para que ele sofresse essa transformação tão negativa? A resposta é uma só: a humanidade aconteceu. Somos nós que fazemos isso com o rio, e com a água, e com o resto do meio ambiente. São quatro as principais fontes de contaminação da água: esgotos domésticos, poluição industrial, poluição agrívcola e lixo. • Esgotos domésticos. Todos os dias, pelos corriqueiros atos de tomar banho, lavar louça ou roupa, mas especialmente de ir ao banheiro e dar a descarga, bilhões de pessoas estão poluindo os rios, lagos e mares com seus esgotos. Esgotos domésticos são a principal fonte de poluição de águas na maioria das cidades do mundo. Infelizmente, porém, a imensa maioria das pessoas não se enxergam de modo algum como responsáveis por aquela poluição. É como se apenas os outros fossem culpados, como se seus próprios esgotos, da privada de suas próprias casas, também não fossem para o mesmo rio! • Poluição industrial. A indústria, incluindo o setor energético, é uma enorme fonte de poluição de águas, com contaminantes extremamente nocivos à saúde humana e ao meio ambiente. Poluentes ambientais de toda sorte, resívduos da atividade industrial e mineração, são comumente descartados em corpos d'água. Além disso, a maioria das indústrias requer enormes quantidades de água para suas atividades. Essa água passa por vários processos, sendo contaminada com compostos quívmicos tóxicos e depois lançada em rios, lagos e mares. Os poluentes mais comuns incluem metais pesados, hidrocarbonetos policívclicos, compostos orgânicos voláteis, poluentes orgânicos persistentes como dioxinas e PCBs, fosfatos, enxofre, resívduos radioativos, solventes como tricloroetileno e detritos orgânicos entre outros. Petróleo e seus derivados são um dos principais poluentes dos oceanos, devido a derramamentos de navios petroleiros e plataformas, vazamentos em poços de petróleo, além de limpeza clandestina de tanques de navios, derramamentos e vazamentos cotidianos por milhões de embarcações ao redor do mundo, efuentes de indústrias, descarte ilegal de óleo velho ao mar, etc., enquanto usinas nucleares vazam material radioativo que contamina lençóis freáticos, rios, mares e oceanos em várias partes do mundo. • Poluição agrícola. A agricultura convencional é uma das principais fontes de poluição das águas, globalmente. Agrotóxicos são carregados pela chuva, indo acumular-se nos corpos d'água, onde arrasam praticamente toda e qualquer 33

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forma de vida, desde moluscos, insetos e outros invertebrados, passando pelos peixes e anfívbios, e até os mamívferos e aves que ali vivem e se alimentam. A maioria dos pesticidas são poluentes orgânicos persistentes, que acumulam-se no meio ambiente e especialmente em ambientes aquáticos. Fertilizantes quívmicos também são gravívssimos poluentes das águas. Ao serem carreados pela chuva para os cursos d'água, alteram as caracterívsticas quívmicas da água causando intoxicação nos organismos aquáticos. Além disso, causam o fenômeno da eutrofização, que é um crescimento explosivo de algas aquáticas devido ao excesso de nutrientes. Com esse crescimento, as algas consomem excessivamente o oxigênio dissolvido na água e liberam toxinas, causando a morte de peixes e outros organismos aquáticos. Dejetos animais concentrados, provenientes principalmente de criações intensivas, também atingem cursos d'água poluindo-os e causando eutrofzação. Vale lembrar que os poluentes orgânicos persistentes, metais pesados e outras substâncias tóxicas presentes nos agrotóxicos e adubos quívmicos também contaminam a água dos mananciais, sofrendo bioacumulação e bioamplifcação nesses ecossistemas. E a destruição não pára por aív: resívduos dos pesticidas e fertilizantes são levados pelos rios viajando por longas distâncias até os lagos, mares e oceanos, que sofrem os mesmos efeitos deletérios. Em muitas partes do mundo, incluindo o Golfo do México e o Mar Báltico, a eutrofzação causada por fertilizantes agrívcolas (especialmente adubos fosfatados e nitrogenados) e esgotos domésticos criou imensas zonas mortas, que são zonas hipóxicas onde não há mais vida marinha, exceto uma explosão de crescimento de algas, especialmente algas microscópicas chamadas cianobactérias, que matam peixes e outras formas de vida. Um estudo cientívfco em 2008 identifcou mais de 400 zonas mortas nos oceanos, afetando uma área de mais de 245.000 quilômetros quadrados. * Vale lembrar que fertilizantes quívmicos são uma das principais causas da morte de corais e destruição de ecossistemas marinhos ao redor do mundo. A poluição das águas causa também graves impactos na saúde humana. É interessante (na verdade, ultrajante) notar que o rio em que uma cidade despeja seus esgotos é o mesmo rio do qual a próxima cidade capta água para abastecimento público! Essa contaminação causa alguns dos principais problemas de saúde pública no mundo — doenças como diarreias virais, bacterianas e parasitárias, hepatites, cólera, febre tifoide e verminoses, que estão entre as principais causas de mortalidade em regiões subdesenvolvidas que carecem de sistemas apropriados de tratamento de água. Vale ressaltar que, no Brasil, apenas um terço da população conta com coleta de esgotos e, do esgoto coletado, mais de 80% são lançados diretamente nos rios e outros mananciais, sem qualquer tratamento. * Diaz, R. J.; Rosenberg, R. Spreading dead zones and consequences for marine ecosystems. Science. 2008.

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Em regiões mais desenvolvidas, o tratamento da água para abastecimento doméstico reduz drasticamente a incidência dessas doenças. Porém, isso não signifca que a poluição não afete a saúde da população! Primeiramente porque muitos dos poluentes industriais e agrívcolas não são totalmente eliminados da água, atingindo portanto a população que consome essa água tratada. Além disso, para tornar aquela água poluívda “segura” para consumo, após vários procedimentos fívsicos e quívmicos de purifcação (peneiramento, decantação, aeração, foculação, sedimentação e fltragem) são adicionados produtos quívmicos, desinfetantes à base de cloro, com o objetivo de eliminar patógenos como vívrus, bactérias e parasitas ainda presentes. Porém, esse cloro reage com matéria orgânica presente na água (ácidos húmicos), gerando subprodutos tóxicos como o bromofórmio, o trialometano e o dibromoclorometano. Inúmeros estudos toxicológicos e epidemiológicos têm provado que a exposição a essas substâncias através do consumo de água tratada causa diversos tipos de câncer, especialmente de bexiga e intestino, além de problemas reprodutivos, abortos e anomalias fetais, entre outros. Lixo O ato corriqueiro de comprar alimentos no supermercado e produtos em lojas também implica na geração de muito lixo e poluição: sacolas plásticas, usadas indiscriminadamente pela esmagadora maioria dos consumidores; embalagens de alimentos e outros produtos, latas, garrafas de bebidas etc. que signifcam uma enorme quantidade de lixo, principalmente plástico, mas também vidro, papel e metais. Apenas uma pequena parte desses materiais acabam sendo reciclados, enquanto a maior parte é lançada ao ambiente, depositada em lixões, aterros sanitários, ou incinerada, o que também gera poluição. Os produtos industrializados em geral (roupas, mobívlia, eletrodomésticos, eletrônicos, utensívlios em geral, brinquedos, pneus etc.), após o fnal de sua vida útil, também são descartados, geralmente se tornando lixo, muitas vezes contendo substâncias tóxicas (como metais pesados, retardantes de chama e poluentes orgânicos persistentes), que se acumulam no ambiente. A cultura do consumismo e a “cultura do descartável”, tão caracterívsticas dos dias de hoje, agravam muito essa situação, pois levam a uma geração muito maior de lixo, além de contribuívrem para o aumento da poluição industrial e consumo de recursos naturais. Restos orgânicos como alimentos, cascas etc. são corriqueiramente lançados de forma concentrada ao meio ambiente em lixões e aterros sanitários, e até rios, representando poluição que também prejudica os ecossistemas. Essa situação é ainda agravada pelo escandaloso desperdívcio de alimentos (valendo lembrar que cerca de um terço dos alimentos produzidos no mundo são desperdiçados).

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O lixo é um problema ambiental gravívssimo. Sua presença fívsica praticamente eterna está se alastrando sobre a face da terra na forma de lixões e aterros sanitários, que não param de crescer em número e tamanho. Geralmente esses são instalados estrategicamente fora da vista da maioria das pessoas, o que evita que elas tenham noção da dimensão do problema. O lixo também se acumula em rios e outros corpos d'água. Visite qualquer rio dentro de qualquer zona urbana ou próximo a ela, e verá uma imensa quantidade de lixo boiando ali, sendo levada pela corrente, ou enroscado nas margens, sem contar os lixos mais pesados que acumulam-se no leito do rio. Boa parte desse lixo é atirada propositalmente no rio, devido a essa cultura totalmente inacreditável, disseminada em boa parte da humanidade, de achar que rios e corpos d'água em geral são algum tipo de lixeira! Que jogou ali, pronto, sumiu! Além disso, lixo depositado nas ruas e mesmo em lixões também é carregado pelo vento e principalmente pela chuva, indo parar nos rios, lagos e, por fm, nos mares, onde se acumulam (estamos falando de milhões de toneladas). Ali, esse lixo dizima um número incalculável de animais marinhos, como peixes, golfnhos, tartarugas, aves, etc., que acabam se enroscando ou cometem o terrívvel erro de ingerir pedaços de plástico e outros materiais, o que causa obstruções, matando-os. Além da óbvia contaminação fívsica, os subprodutos da degradação do lixo também poluem o ar, o solo e as águas. A decomposição anaeróbica do lixo é grande emissora de gases do efeito estufa, como CO 2 e metano. Além disso, em muitos lugares, o lixo é incinerado, contribuindo signifcativamente para a poluição do ar, inclusive com subprodutos da queima incompleta de plástico, como as dioxinas e PCBs, causadores de problemas endócrinos, imunológicos, reprodutivos e câncer. Nos lixões e aterros sanitários, a decomposição anaeróbia da matéria orgânica do lixo produz o chorume, um lívquido escuro, viscoso, fétido e altamente poluente, que escorre e contamina o solo. A partir daív, o chorume percorre dois caminhos: penetrando no solo, atinge os lençóis freáticos poluindoos, e também é carreado pelas chuvas, indo contaminar diretamente corpos d'água como rios e lagos. Além disso, há também a liberação de outras substâncias quívmicas tóxicas, metais pesados, poluentes orgânicos persistentes, etc., que se acumulam tanto no solo como nos corpos d'água. A redução na geração do lixo através de um consumo mais consciente e a reciclagem adequada de materiais atenuariam enormemente esses problemas, além de economizar energia e outros recursos naturais (matérias primas); porém, ainda que tenha-se observado alguns avanços no ramo da reciclagem, a quantidade de lixo sendo produzida e lançada ao ambiente só vem aumentando em todo o mundo, tanto pelo aumento da população como pelo aumento do consumismo e desperdívcio.

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Extinções em massa Quando se fala em extinções em massa, as pessoas em geral associam esse termo e episódios extremamente remotos, que ocorreram há milhões de anos, como aquele que levou à extinção dos dinossauros, por exemplo. Extinção em massa nada mais é do que um perívodo em que a taxa de extinções é substancialmente superior ao normal, o que, em um determinado perívodo de tempo, causa o desaparecimento de um grande número de espécies e grande redução na biodiversidade da Terra. O que pouca gente está ciente é que neste exato momento nós estamos bem no meio de um período de extinção em massa! Mas qual seria a causa desse fenômeno? Um meteoro? Uma nova era glacial? Nada disso — a causa do atual perívodo de extinção em massa somos nós, seres humanos. Extinções de espécies provocadas pelo homem não são novidade. Migrações do homem primitivo pelo globo há milhares de anos foram acompanhadas de inúmeras extinções de espécies de animais, devido principalmente à caça indiscriminada, conforme já citado. Entre as espécies que desapareceram para sempre nesse perívodo estão incluívdas dezenas de espécies da megafauna, extintas desde a transição do Pleistoceno para o Holoceno (cerca de 11.000 anos atrás), incluindo mamutes, mastodontes e outros parentes dos elefantes atuais, diversas espécies de preguiças-gigantes, tatus que pesavam até 2 toneladas, espécies de antas, alces, camelívdeos, equívdeos e ursos, tigres dentesde-sabre, leões e guepardos americanos, entre muitos outros. Na Austrália, a chegada do homem há cerca de 45.000 anos levou rapidamente à extinção inúmeras espécies de cangurus, muitas delas gigantes, além de aves e répteis; nas ilhas do Pacívfco incluindo o Havaív, centenas de espécies de aves foram caçadas até a extinção pelos primeiros habitantes humanos há milhares de anos, enquanto na Nova Zelândia, várias espécies de moa, aves gigantes da famívlia do avestruz e das emas, foram caçadas pelos maoris até a extinção, há cerca de seis séculos. De lá para cá, com o aumento vertiginoso da população humana e o desenvolvimento de novas tecnologias cada vez mais destrutivas, a situação foi piorando progressivamente para a biodiversidade. Atualmente, espécies estão sendo extintas a uma taxa 1000 vezes superior à natural, por consequência das atividades humanas; milhões de espécies de animais e plantas estão iminentemente ameaçados de extinção.* As extinções antropogênicas (causadas pelo homem) devem-se à caça abusiva, colheita predatória de espécies vegetais como árvores de madeira nobre; destruição e fragmentação de habitat (e.g. desmatamento), poluição, introdução de espécies exóticas que, através de predação, competição ou introdução de doenças levam espécies autóctones à extinção; mudança climática e acidifcação * Pimm, S. T. et al. The future of biodiversity. Science. 1995.

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dos oceanos, etc. Quando se fala nos episódios de extinções em massa que ocorreram no passado, as pessoas tendem a assumir que as espécies desapareceram da noite para o dia, o que é incorreto — tais eventos geralmente ocorrem ao longo de centenas ou milhares de anos. Porém, mesmo assim, na escala de tempo da evolução da vida no planeta Terra isso ainda representa um perívodo curto e, portanto, um declívnio abrupto da biodiversidade. A maioria das pessoas não conseguem perceber que estamos no meio de um episódio de extinção em massa porque ignoram como tais eventos ocorrem, e também porque são incapazes de entender escalas de tempo adequadas. Por exemplo, para as pessoas 1000 anos parecem uma eternidade; no entanto, em termos do planeta Terra, ou da história da vida, ou da evolução de qualquer espécie, 1000 anos é um tempo extremamente curto (as pessoas em geral têm enorme difculdade de compreender escalas de tempo superiores à da vida humana, como algumas décadas, um século no máximo). Porém, certamente o maior entrave à compreensão da gravívssima crise ambiental global e suas possívveis consequências é o puro e simples desconhecimento — ignorância mesmo, para ser bem claro — em relação à escala da destruição ambiental global pelo homem e a velocidade com que ela avança, ou sobre a importância dos ecossistemas. E o problema tende a se agravar, já que que tanto a população humana como os nívveis de consumo de recursos e poluição só estão aumentando, dia após dia. Como essas mudanças são exponenciais, o cenário mais provável é que logo atingiremos um ponto crítico, em que o dano acumulado causará um agravamento abrupto de todos os problemas que compõem a crise ambiental. levando a um colapso do ambiente natural e da biodiversidade, e consequentemente da civilização e da própria humanidade.

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4. Projeções para o Futuro

4 PROJEÇÕES PARA O FUTURO

Na sociedade atual, devido à artifcialização da vida e também o alto grau de alienação, talvez muitas pessoas acreditem que o homem não precisa da natureza para sobreviver e que, portanto, a preservação do meio ambiente é algo opcional, não prioritário, quase como um mero detalhe estético. Porém, nada poderia estar mais longe da verdade! Assim como todas as outras espécies de seres vivos, a humanidade depende totalmente do equilívbrio da natureza e dos recursos naturais para sua sobrevivência a longo prazo. Também nossa civilização é totalmente dependente da abundância de recursos naturais, já que sem eles, qualquer tecnologia e de fato toda a economia e consequentemente a estrutura social como um todo tornam-se inviáveis. Sendo assim, logicamente a destruição do equilívbrio ambiental implicará no colapso da civilização e da própria humanidade. Isso não seria algo inédito — nos últimos 10.000 anos o mundo já testemunhou a ascensão e queda de inúmeras civilizações, em diferentes épocas e diversas regiões do planeta. Embora diversos fatores possam causar ou contribuir para a desintegração de sociedades e civilizações, a história mostra que, na maioria dos casos, tem-se a repetição de um padrão comum: primeiro, você tem uma fase de ascensão, que é marcada por desenvolvimento tecnológico, crescimento populacional, melhoria das condições de vida e 39

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

4. Projeções para o Futuro

aumento da complexidade das estruturas sociais. Isso causa um aumento da pressão sobre o meio ambiente, com consumo crescente de recursos naturais essenciais, como água, solos férteis para agricultura, madeira para construção e combustívveis (energia), etc. Então, você tem uma combinação de aumento da população e depleção de recursos naturais, acompanhada de deterioração ambiental. Porém, na euforia do crescimento, poucos se dão conta desse fato — o crescimento contívnuo por longos perívodos leva a um clima de otimismo, e a impressão que a coisa só vai melhorar, e nada pode dar errado. Então, a partir de determinado momento, essa relação predatória do homem em relação à natureza causa a uma escassez crívtica dos recursos naturais necessários à própria civilização, inviabilizando seu crescimento e mesmo sua manutenção, levando à desestruturação econômica, tecnológica, social e administrativa, resultando na deterioração das condições de vida e culminando num rápido declívnio da população por fome, violência e epidemias.

Império Romano Ocidental

Civilização do Vale do Indo Império Acádio

Dinastia Tang

Dinastia Han

Maias Civ. Micênica

Civilização Cartaginesa

Anasazi Império Khmer

20 00

15 00

10 00

50 0

0

-5 00

-1 00 0

-1 50 0

-2 00 0

-2 50 0

-3 00 0

Rapa Nui

Ano

Ascensão e queda de algumas civilizações passadas

Claro que é temerário se aventurar em fazer “profecias”, já que é impossívvel prever com certeza como e quando eventos futuros ocorrerão. Porém, com base no exposto até aqui pode-se, sim, afrmar com segurança que os fatores básicos que levaram à queda de civilizações anteriores já se insinuam claramente no mundo atual, anunciando a possibilidade de um colapso de nossa própria civilização em um futuro próximo.* * Para uma análise aprofundada do tema do colapso de civilizações passadas e implicações para nossa sociedade atual, recomendo a leitura de “Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso”, de Jared Diamond, e “The collapse of complex societies”, de Joseph Tainter.

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4. Projeções para o Futuro

Há, porém, um fator inédito muito importante em relação à situação da nossa civilização atual. As civilizações passadas eram relativamente pequenas e geografcamente restritas; sendo assim, mesmo com seu colapso, sempre havia novas áreas disponívveis, permitindo a migração ou a ascensão de novas civilizações, etc. Em contraste, hoje temos uma civilização gigantesca e global da qual nenhuma parte do planeta está a salvo. Ou seja, com seu colapso, não haverá para onde ir. Justamente por isso o colapso da atual civilização representa um risco real de destruição total da espécie humana.

Exaustão de recursos naturais A Terra é um espaço fnito, com recursos fnitos, e por causa das atividades humanas todos os dias há menos forestas, menos água limpa, menos solos férteis e menos biodiversidade que no dia anterior. Por outro lado, todos os dias há mais pessoas, mais carros, mais fábricas... mais rios, lagos e mares poluívdos, mais lixo, mais gases do efeito estufa, etc. que no dia anterior. Logicamente, o resultado inevitável desse processo é que chegaremos a um ponto em que o planeta estará coberto de gente, lixo e poluição, enquanto os recursos mais básicos necessários à manutenção da vida humana se tornarão tão escassos que isso forçará a uma redução da população. Para melhor entender essa situação, vamos focar no que está acontecendo com dois dos recursos mais essenciais à vida humana: a água e o solo. Água O recurso natural mais essencial à vida é também um dos mais ameaçados pela nossa civilização. Devido a uma combinação de diversos fatores, o risco de uma crise hívdrica global é considerado por muitos uma das principais ameaças à humanidade num futuro próximo. A água é ameaçada por: • Crescimento populacional, associado a um aumento no consumo per capita de água. • Poluição das águas por esgotos domésticos e industriais, poluição agrívcola, assoreamento de rios devido à erosão do solo, etc., levando a uma redução na quantidade de água limpa disponívvel. • Intensifcação de práticas agrívcolas com uso indiscriminado de irrigação, causando esgotamento de águas superfciais (rios) e subterrâneas (lençóis freáticos).

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

4. Projeções para o Futuro

• Desmatamento e agricultura insustentável, compactação do solo pelo gado e impermeabilização por cidades e estradas, aumentando o escorrimento superfcial de chuva e reduzindo a penetração de água no solo, levando ao abaixamento de lençóis freáticos, secando nascentes e reduzindo a vazão de rios. • Mudança climática, devido ao aquecimento global e desmatamento, levando à redução no volume e regularidade de chuvas, contribuindo para escassez de água em muitas regiões do mundo, enquanto em outras há eventos climáticos extremos, como tempestades e inundações. Devido à crescente precariedade dos recursos hívdricos mundialmente, a FAO estima que, em 2025, dois terços da população mundial estarão sujeitos a estresse hívdrico severo.* E o cenário mais provável é um agravamento progressivo dessa situação, devido à nossa trajetória de aumento populacional, deterioração ambiental e mudança climática. Isso gera uma perspectiva sombria: em algum ponto, talvez não muito distante, a falta de água para irrigação passará a comprometer a agricultura em muitas regiões do mundo, com risco de uma crise alimentar e, consequentemente, crise humanitária e migratória em escala global. Enquanto isso, a crise no abastecimento urbano colocará grandes centros econômicos em cheque. Devido à sua importância e escassez, a água passará a ser uma questão estratégica, o que poderá motivar confitos internacionais, incluindo guerras para se apoderar de recursos hívdricos de outros paívses, semelhantemente ao que já ocorre em relação ao petróleo.** Solo Solos são a base da vida terrestre, incluindo a humana — 95% dos nossos alimentos vêm do solo. A porção do solo que é capaz de suportar vida (e, portanto, produzir alimentos) é a camada superfcial, geralmente até cerca de 20 centívmetros de profundidade. Essa é a porção que contém a maior concentração de matéria orgânica, microrganismos e nutrientes. Solos superfciais formam-se ao longo de milênios e são, por isso, para efeitos práticos, considerados recursos não renováveis. Acontece que os solos superfciais estão sendo destruívdos rápida e progressivamente devido à marcha do desmatamento e práticas agrívcolas insustentáveis, conforme já descrito. Atualmente, cerca de 80% dos solos agrívcolas ao redor do mundo já estão * Coping with water scarcity – challenge of the twenty-first century. Food and Agriculture Organization of the United Nations. 2007. ** Crawford, J. What if the world’s soil runs out? Time/World Economic Forum. 2012.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

4. Projeções para o Futuro

moderadamente ou severamente degradados*, e cientistas estimam que dentro de 60 anos, a humanidade poderá ter destruívdo praticamente todos os solos férteis do planeta. Isso signifca que haverá uma redução dramática na capacidade de produzir alimentos, o que, associado ao crescimento populacional (devemos chegar a 11 bilhões de pessoas ainda este século, segundo projeções da ONU), signifcará uma crise alimentar global generalizada e irreversívvel. Embora a utilização de fertilizantes quívmicos permita a produção de alimentos em solos degradados, isso não resolverá o problema, podendo apenas mitigar por um certo perívodo a crise alimentar. Isso porque os fertilizantes quívmicos também são recursos finitos, não renováveis, que estão sendo extraívdos e utilizados crescentemente pela agricultura industrial, de forma que também um dia fatalmente entrarão em declívnio. Dentre eles, vale destacar o caso do fósforo e nitrogênio. O fósforo é um elemento totalmente essencial à vida, necessário ao metabolismo energético celular, à formação das membranas celulares, DNA e outras moléculas vitais de todo organismo conhecido — e é um macronutriente do solo (necessário em grandes quantidades para o crescimento vegetal). No entanto, é um elemento disponívvel em quantidades limitadas na Terra. A fonte predominante de fósforo agrívcola são as rochas fosfáticas, abundantes apenas em alguns poucos paívses, especialmente o Marrocos, com 70% das reservas mundiais. Estima-se que a quantidade disponívvel de rocha fosfática que pode ser obtida de forma economicamente viável entrará em declívnio terminal e exaustão globalmente dentro de algumas décadas — o chamado pico do fósforo.** Outro macronutriente do solo, o nitrogênio, também representa um desafo. A adubação nitrogenada na forma de ureia agrívcola representa a maior parte dos fertilizantes consumidos pela agricultura mundialmente. Porém, esse fertilizante é derivado de combustívveis fósseis (gás natural), um recurso que também está em declívnio, conforme discutiremos a seguir. Com a destruição da fertilidade natural dos solos e exaustão dos fertilizantes minerais e quívmicos, e resultante declívnio na capacidade de produção de alimentos, associada à superpopulação, isso criará uma pressão esmagadora para a abertura de novas terras agrívcolas — em outras palavras, desmamento. Ou seja, as pessoas verão na exploração da fertilidade do solo das áreas das poucas forestas virgens remanescentes a única saívda para não morrerem de fome. Nesse cenário, as forestas remanescentes do planeta não terão a menor chance — estará decretado o fm da biodiversidade terrestre. Agora, tente adivinhar: o que acontecerá quando também esses últimos solos forem destruívdos? * Gomiero, T. Soil degradation, land scarcity and food security: reviewing a complex challenge. Sustainability. 2016. ** Rhodes, C. J. Peak phosphorus – peak food? The need to close the phosphorus cycle. Science progress. 2013.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

4. Projeções para o Futuro

Pico do petróleo e crise energética A utilização de combustívveis fósseis em larga escala, ou seja, o carvão mineral desde a Revolução Industrial e especialmente o petróleo a partir do século XX, possibilitou o desenvolvimento tecnológico mais rápido da história da humanidade, e também o perívodo de crescimento populacional mais intenso jamais visto. A população humana global em 2015 já é seis vezes maior que no inívcio do século XX, e isso tudo graças ao petróleo, com seu imenso potencial energético, sua praticidade, versatilidade como matéria prima e, muito importantemente, sua disponibilidade em grande volume e baixo custo. Desde 1900, a porcentagem de pessoas vivendo em cidades aumentou de 13% para mais de 54%. Isso signifca que hoje temos 4,1 bilhões de pessoas vivendo em cidades, enquanto havia apenas 200 mil há 110 anos atrás — um aumento de mais de 20 vezes em um perívodo extremamente curto. Isso só foi possívvel graças ao petróleo. Todas nossas tecnologias modernas foram desenvolvidas graças a ele, de forma que nossa civilização se tornou totalmente dependente desse recurso. Agora, pense no seguinte: nos dias de hoje, um professor dando suas aulas, um arquiteto fazendo projetos, um vendedor trabalhando em uma loja ou um bancário sentado o dia todo, na sombra e com ar condicionado, atendendo clientes (só para citar algumas profssões, mas o mesmo vale para a maioria das profssões hoje em dia), ganham o sufciente para comprar comida, roupas, pagar uma casa, ter um carro, etc. Até aív, aparentemente tudo bem, não é? Vamos ver. Agora, compare o esforço que esses profssionais teriam que fazer para plantar toda a comida que comem, transportá-la, benefciá-la... para construir suas casas — não apenas assentar os tijolos, mas fazer os tijolos, transportá-los, minerar para fazer o cimento, serrar toras de árvores para fazer os caibros de seus telhados... extrair e trabalhar todo o ferro e outros metais, sem contar plásticos, borrachas, vidros, etc. para fazer seus carros... Compare todo esse esforço com o que realmente fazem, no dia a dia dos seus trabalhos. Já parou para pensar na discrepância entre esses dois “esforços”: o que realmente fazemos e o que seria necessário para fabricar e construir tudo o que consumimos? O que pode explicar essa discrepância? Muitos dirão: “a tecnologia”. E está certo, mas isso é apenas metade da resposta. A outra metade da resposta é que preocupa: a energia. Isso porque a energia que move toda essa tecnologia, e faz todo esse esforço para nós, é proveniente principalmente dos combustívveis fósseis, especialmente o petróleo. É o petróleo que move os tratores agrívcolas para plantar, e os caminhões para transportar a comida, e as máquinas pesadas para minerar; petróleo e carvão mineral para os altos-fornos, para calcinar e fundir, e moldar e fabricar e construir, e transportar, etc. tudo o que é produzido e consumido pela nossa civilização. Ou seja, são os combustívveis fósseis, através da tecnologia, que 44

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

4. Projeções para o Futuro

fazem praticamente todo o serviço pesado, e por isso as pessoas podem fcar sentadas, fazendo muito pouco esforço fívsico, engordando, e ainda assim terem casa, carro(s), viagem de avião nas férias, etc. Aqui é conveniente citar o conceito de “escravos energéticos”, introduzido por Richard Buckminster Fuller, arquiteto, inventor e flósofo americano. O conceito é o seguinte: se não fosse pela tecnologia moderna e uso de fontes artifciais de energia, o padrão de vida, comodidade e conforto de qualquer homem moderno só poderia ser mantido se ele tivesse à sua disposição dezenas ou centenas de escravos fazendo para ele todo o serviço pesado (de cultivar os alimentos, transporte, mineração, fabricação de bens, etc.). O escravo energético é uma unidade abstrata de energia que representa o trabalho braçal de um ser humano adulto, mas que é na verdade feito pelas máquinas modernas (tecnologia), usando fontes de energia como petróleo, eletricidade, etc. O número de escravos energéticos varia de acordo com a classe social e nívvel de consumo, mas calcula-se que para que uma pessoa tenha um padrão de vida normal de classe média, ela deve ter permanentemente à sua disposição cerca de 150 escravos energéticos. Agora, não é só o padrão de vida das pessoas que depende dos escravos energéticos. Na verdade, eles são as verdadeiras bases que sustentam toda a nossa civilização industrial. Claro que todo esse consumo de energia e outros recursos é um fator central da crise ambiental. Mas o problema não é só esse: combustívveis fósseis são recursos finitos e não renováveis. Todo o petróleo que existe foi produzido milhões de anos atrás, e tudo o que estamos fazendo é extrair e consumir esse petróleo, a uma taxa exorbitante e cada vez maior. A extração contívnua desse recurso fnito levará inevitavelmente a um desfecho totalmente previsívvel: sua exaustão. Tecnicamente falando, o que acontecerá não é exatamente o fm do petróleo, mas sim um declívnio nas reservas convencionais, de óleo de boa qualidade e que pode ser extraívdo de forma economicamente viável, levando à necessidade de investimentos cada vez maiores para obter um retorno cada vez menor em termos de energia, já que só sobrarão reservas cada vez mais difívceis (e caras) de acessar, e de qualidade cada vez pior, forçando, a partir de um certo ponto, a uma redução na produção anual global (declívnio terminal) associada a uma elevação progressiva dos preços. Esse ponto, em que a extração global de petróleo atinge seu máximo, é chamado de pico do petróleo. É consenso entre cientistas que as reservas de petróleo já estão em um estágio avançado de depleção, e que os efeitos do pico do petróleo poderão ser sentidos num futuro muito próximo — antes de 2030 e, provavelmente, antes de 2020.* * Miller, R. G., Sorrell, S. R. The future of oil supply. Philosophical Transactions. Series A, Mathematical, physical, and engineering sciences. 2016.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

4. Projeções para o Futuro

A demanda mundial por petróleo tem aumentado continuamente ao longo das décadas, e tende a aumentar ainda mais com o crescimento populacional, o desenvolvimento de novas tecnologias (quase todas dependentes de petróleo) e desenvolvimento econômico de paívses emergentes grandes e altamente populosos, como China e Índia. A combinação fatal de aumento na demanda e redução na oferta do petróleo causará um aumento vertiginoso e irreversívvel no preço do petróleo, até chegar a um ponto em que o volume extraívdo será tão pequeno e o preço tão alto, que o petróleo deixará de ser um recurso viável. Do ponto de vista prático, isso é equivalente a dizer que o petróleo “acabou”. Embora haja uma ênfase no petróleo por sua particular relevância, deve-se destacar que o mesmo princívpio se aplica igualmente a todos os outros combustívveis fósseis, como carvão mineral e gás natural (e até mesmo combustívveis nucleares como o urânio 235, enfm, todos os recursos não renováveis). Os combustívveis fósseis correspondem a mais de 80% do consumo energético global. A escassez (e consequente encarecimento) de uma fonte de energia naturalmente leva à intensifcação do uso das outras fontes. Por isso, acredita-se que as principais fontes energéticas do mundo atual atinjam um pico e declívnio de forma mais ou menos sincronizada, fazendo com que uma crise energética generalizada seja difívcil de evitar — talvez até fosse possívvel, através de um esforço colossal de substituição da matriz energética por formas renováveis e reformulação geral dos modelos econômicos e sociais, mas isso simplesmente não está sendo feito. Vale lembrar que, embora haja investimentos nessa área, as energias renováveis como solar e eólica ainda correspondem a apenas cerca de 1,5% da matriz energética global.* Guerras por petróleo já são comuns há décadas — de fato, a maioria dos confitos armados internacionais envolvendo nações industrializadas desde a Segunda Guerra Mundial foram motivados pelo controle de petróleo e gás natural.** Se isso já ocorre em tempos de abundância desse recurso, imagine o que poderá ocorrer quando ele começar a fcar criticamente escasso? A crise energética decorrente do pico do petróleo acarretará uma crise econômica global sem precedentes, já que o modelo econômico atual e a própria organização da sociedade são dependentes de uma abundância absurda de energia. O mundo como o conhecemos hoje só foi possívvel por causa da abundância de combustívveis fósseis. O fm desses recursos poderá causar o colapso da nossa atual civilização industrial.

* 2017 Key world energy statistics. International Energy Agency. 2017. ** Klare, M. T. Twenty-first century energy wars: how oil and gas are fuelling global conflicts. Energy Post. 2014.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

4. Projeções para o Futuro

Aquecimento global/mudança climática O aquecimento global é a elevação nas temperaturas médias do clima da Terra quem vem ocorrendo, predominantemente em decorrência das atividades humanas, devido às emissões dos chamados “gases do efeito estufa”, dos quais os principais são o dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O). As emissões antropogênicas (i.e. causadas pelo homem) de gases do efeito estufa são derivadas principalmente da queima de combustívveis fósseis (carvão mineral, petróleo e gás natural) para a geração de eletricidade, aquecimento, realização de trabalho industrial e transportes (95% da energia utilizada no transporte mundial vem de combustívveis fósseis, especialmente gasolina e diesel), e pelo (mau) uso da terra, incluindo a agricultura, pecuária, desmatamento, queimadas e degradação do solo — todas intimamente relacionadas. Outros Indústria (32%)

Residencial e serviços (18,5%)

Transportes (14,5%)

Agricultura (25%)

Emissões globais de gases do efeito estufa por setor econômico. Fonte: IPCC*

Esses gases produzidos pelo homem vêm-se acumulando crescentemente na atmosfera desde a Revolução Industrial, e mais agudamente na nossa Era do Petróleo, de forma que suas concentrações são hoje muito superiores aos nívveis naturais.

* IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). Climate change 2014: mitigation of climate change. Working Group III contribution to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. 2014.

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4. Projeções para o Futuro 330

400 390 380

Partes por bilhão (ppb)

Partes por milhão (ppm)

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

Dióxido de carbono (CO2)

370 360 350 340 330 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015

325 320

Óxido Nitroso (N2O)

315 310 305 300 295 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015

Partes por bilhão (ppb)

1850 1800 1750

Metano (CH4)

1700 1650 1600 1550 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015

Gráfco: concentrações atmosféricas dos principais gases do efeito estufa. Fonte: NOAA – National Oceanic and Atmospheric Administration, EUA.

Os gases do efeito estufa absorvem a radiação indireta, proveniente do sol e refetida pela Terra, e devolvem essa energia na forma de calor causando um aquecimento da atmosfera (e, consequentemente, da crosta terrestre e oceanos). Até recentemente, as consequências do efeito estufa não eram nitidamente reconhecívveis pelas pessoas, mas hoje já está claro, em qualquer parte do mundo, que o clima está realmente mudando: o clima em todas as regiões está fcando mais quente, e em muitos lugares é possívvel perceber uma redução no regime de chuvas. Regiões antes úmidas hoje são secas, e regiões antes secas, hoje são verdadeiramente áridas ou semiáridas, etc. Desde 1900, a temperatura média da superfívcie terrestre aumentou em cerca de 1 °C, e o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) prevê em seu relatório de 2013 a possibilidade de um aumento de até 4,8 °C até o fnal do século XXI.* A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) concluiu que, para evitar um aquecimento global de consequências desastrosas, é preciso evitar que ocorra um aquecimento global acima de 1,5 ou 2 °C em relação à média histórica de temperatura, e que para isso é necessária uma redução dramática e imediata na emissão de gases do efeito estufa. Embora praticamente todos os paívses tenham se comprometido em * Stocker, T. F. et al. Technical summary. In: Climate Change 2013: The physical science basis. Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. 2013.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

4. Projeções para o Futuro

acordos internacionais a cumprir essa meta, as emissões de gases do efeito estufa continuam só aumentando, ano após ano. Cientistas preveem uma vasta gama de efeitos 0,8 negativos do aquecimento Média Anual 0,6 global no futuro, incluindo a elevação dos nívveis dos 0,4 oceanos (devido à expansão 0,2 térmica e derretimento de 0 calotas polares), mudanças -0,2 no padrão de chuvas, expansão dos desertos, -0,4 aumento na frequência e -0,6 intensidade de eventos 1880 1900 1920 1940 1960 1980 2000 2020 climáticos extremos como Ano Gráfco: variação da temperatura média global da ondas de calor, secas, com superfície terrestre (terra e oceano) de 1880 a 2017, tempestades relativa à média de 1951-1980. inundações, tufões, etc. e Fonte: NASA Goddard Institute for Space Studies, EUA também uma intensifcação da acidifcação dos oceanos (com morte de corais) e extinções de muitas espécies por alteração das temperaturas e perda de habitat.

Variação da temperatura

1

O aquecimento global trará serívssimas conseqüências para a humanidade: a elevação do nívvel dos oceanos forçará ao deslocamento de centenas de milhões de pessoas que vivem nas zonas costeiras, já que grande parte dessas cidades fcarão submersas. O aumento da temperatura poderá tornar boa parte da zona tropical simplesmente inabitável. Além disso, devido à perturbação do regime de chuvas e expansão de desertos, vastas regiões enfrentarão crises hívdricas e de abastecimento, levando à fome generalizada em diversas regiões tropicais. Isso tudo forçará à migração de bilhões de pessoas que ali vivem, gerando uma crise migratória global sem precedentes. Esses fatores adicionarão enorme estresse nas relações polívticas entre paívses, com fortifcação de fronteiras para conter os fuxos migratórios de famintos e sedentos, exacerbando a crise humanitária.

Ligando os pontos A crise energética causada pelo pico do petróleo poderá trazer o fm de nossa civilização industrial, pois todas as tecnologias atuais, dependentes do petróleo, se tornarão inviáveis. Sem combustívveis, todas as pessoas que dependem de carro ou transporte público para ir ao trabalho serão afetadas, ou seja, não poderão trabalhar. Tampouco terão trabalho, pois sem energia e

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

4. Projeções para o Futuro

matéria prima muitas indústrias pararão; sem produtos para vender, o comércio também vai parar. Com a crise nesses setores, o setor de serviços também sofrerá, pois sem emprego as pessoas não terão dinheiro para gastar, gerando uma “bola de neve” de desemprego. Com a paralisação das atividades econômicas, não haverá arrecadação pelos governos, e assim os serviços públicos como educação, saúde, infraestrutura, saneamento, segurança pública, etc. também serão interrompidos. Desempregadas e sem renda, as pessoas não terão dinheiro para comprar alimentos. A população vivendo em grandes centros urbanos estará especialmente vulnerável, pois o transporte dos alimentos a partir das regiões produtoras fcará extremamente encarecido ou inviabilizado pela escassez de combustívveis. Pior ainda, tampouco haverá alimentos, pois toda a agricultura fcará inviabilizada, já que a agricultura moderna depende totalmente de tratores, fertilizantes quívmicos e pesticidas, todos dependentes do petróleo, que é o combustívvel para os tratores e a matéria-prima para os fertilizantes e pesticidas. Com a exaustão desses insumos, cairá por fm a máscara da agricultura industrial, mostrando que ela destruiu completamente a fertilidade natural dos solos, tornando-os estéreis, desprovidos de vida e incapazes de produzir alimentos. Isso tudo sem contar a crise hívdrica global! A falta de água e escassez de alimentos levará à fome generalizada, que atingirá primeiramente as classes mais vulneráveis e as regiões mais pobres, avançando inexoravelmente até que todos sejam atingidos. E tudo isso será enormemente agravado pelas mudanças climáticas. O desespero das pessoas levará à instabilidade e caos social, colapso econômico de paívses e esfacelamento de instituições, guerras civis e ascensão de regimes totalitários. Assim como já citado para a água, guerras serão travadas e paívses subjugados e destruívdos em disputas pelos últimos recursos agrívcolas como solos e nutrientes (pobre Marrocos, com suas reservas de rochas fosfáticas!). Viveremos uma crise humanitária global sem precedentes em que todos os dias morrerão milhões de pessoas, e a população humana será reduzida, de forma drástica, progressiva e irreversívvel, por fome, sede, violência, guerras e epidemias, em meio às ruívnas da civilização. Ou seja, temos um cenário de “tempestade perfeita”, em que um conjunto de fatores extremamente sombrios, cada um dos quais isoladamente já seria uma grave ameaça à nossa civilização, vêm se avultando, convergindo para causar uma crise sem precedentes, ainda este século. Mas a coisa pode fcar ainda pior do que o já descrito, pois na iminência do colapso, quando paívses travarem guerras para se apoderar de recursos energéticos, agrívcolas e hívdricos, isso criará o cenário ideal para uma provável terceira guerra mundial, com um risco substancial de aniquilação nuclear global.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

5. Estado de Emergência Planetária

5 ESTADO DE EMERGÊNCIA PLANETÁRIA

Diante do exposto até aqui, fca evidente que estamos de fato num estado de emergência planetária, e que a insustentabilidade humana é o maior problema do mundo. Claro que há muitos outros problemas no mundo atual, como pobreza, fome, violência, desigualdade e injustiça social, corrupção de governos, guerras, doenças como câncer e AIDS, etc., todos também importantes, tristes realidades que devemos nos empenhar em mudar. Porém, mesmo em conjunto, todos esses problemas não se comparam, em gravidade, à insustentabilidade. Se todos esses outros problemas atuais fossem milagrosamente resolvidos, e de repente tivéssemos um mundo sem pobreza ou injustiça social, somente governos honestos, e mesmo que fossem descobertas curas para todas as doenças, etc., certamente terívamos um mundo muito mais feliz; porém, mantendo nossos estilos de vida insustentáveis como são, essa felicidade duraria pouco. Com a exaustão dos recursos, tudo isso desmoronaria como um castelo de cartas, descambando para o mesmo cenário apocalívptico descrito acima. Se quisermos ter uma chance de sobreviver como espécie e deixar um mundo saudável ou pelo menos habitável para as próximas gerações, necessitamos urgentemente de uma mudança radical de paradigma. A preservação do meio ambiente e dos recursos naturais deverão ser prioridade máxima e a busca da sustentabilidade, o objetivo principal da humanidade. Esta é justamente a proposta da permacultura, apresentada nas páginas seguintes. 51

Parte II A Alternativa da

Permacultura

Parte II – A Alternativa da Permacultura

6. Tempo de Mudança

6 TEMPO DE MUDANÇA

Na Parte I, discutimos brevemente a trajetória da espécie humana em sua escalada rumo à insustentabilidade. Ali, estão condensadas informações de livre domívnio público, informações a que todos têm acesso. De fato, a maior parte dessas informações já não são novidade para ninguém — quem nunca ouviu falar de superpopulação, desmatamento, poluição ou efeito estufa? No entanto, raramente o indivívduo liga os pontos, ou analisa essas informações de forma integrada e clara, considerando suas origens e evolução histórica, ou seja, o agravamento de nossa insustentabilidade com o passar do tempo, sua extrema exacerbação nos tempos recentes, a magnitude da atual crise ambiental e civilizacional e as consequências previsívveis da mesma, tanto para o ambiente como para a humanidade. Quando o indivívduo fnalmente faz essa análise é que se dá conta da gravidade da situação atual, e isso vem como uma bomba, um choque. Mas, como pudemos nos meter nesta situação, chegar a este ponto? Afnal, de quem é a culpa por essa crise que ameaça a humanidade e a vida na Terra? Quando confrontados com essa pergunta, muitos se apressam em “atirar para cima”: “A culpa é dos banqueiros, magnatas donos de grandes corporações multinacionais, industriais do ramo petrolífero, automobilístico ou redes de fast food; madeireiros, barões do agronegócio, políticos corruptos, etc.”, dizem. Tudo bem, está certo. Mas agora, vamos pensar uma coisa: imagine uma pessoa, um cidadão comum — pode ser seu vizinho, seu amigo ou irmão, seu 55

Parte II – A Alternativa da Permacultura

6. Tempo de Mudança

pai ou sua mãe, pode até ser você mesmo — que tem um emprego qualquer, numa fábrica, ou loja, um banco... pode ter seu próprio negócio, talvez uma ofcina ou restaurante, ou talvez seja professor, ou funcionário público, etc. Ou seja, está envolvido na produção e venda de bens e serviços, seja direta ou indiretamente, ou de alguma forma dando suporte a essas atividades. Essa pessoa ganha seu salário, compra coisas para sua casa, comida, roupas para si e sua famívlia... talvez tenha um carro que usa diariamente para ir trabalhar, fazer compras, viajar nas férias com a famívlia, etc. Essa pessoa junta dinheiro para comprar sua casa própria, garantir a faculdade dos flhos, uma segurança para a velhice, etc. Claro que não há absolutamente nada de errado em nada disso, certo? Trata-se de uma pessoa perfeitamente normal e comum, que muito provavelmente ama sua famívlia e preocupa-se com o próximo, procura cumprir as leis, contribuir para a sociedade; que tem necessidades, expectativas, sonhos, etc. — uma pessoa como qualquer outra. Agora, e se eu te disser que são justamente todas essas atividades descritas acima (assim como todas as outras não citadas, mas que fazem parte do dia a dia de qualquer pessoa normal) que estão destruindo o planeta? Ora, cada vez que você usa um carro (ou mesmo transporte público!), está não apenas poluindo a atmosfera e contribuindo para o efeito estufa, mas também patrocinando toda a destruição ambiental causada pela indústria petrolívfera, infraestrutura viária, etc. Cada vez que compra alimentos, está patrocinando a agricultura industrial e toda a destruição ambiental associada. Toda vez que compra alguma coisa, está patrocinando a poluição industrial, a mineração, etc., e toda vez que põe o lixo para a coleta, está entupindo os lixões de materiais que levarão milhares ou milhões de anos para se decompor (claro que a reciclagem melhora bastante isso, mas quantos % do seu lixo é realmente reciclado?). Cada vez que acende uma lâmpada ou liga a televisão, está patrocinando a destruição das forestas pelas usinas hidrelétricas, ou a liberação de gases do efeito estufa ou produção de lixo nuclear, dependendo de onde esteja, e toda vez que dá a descarga no banheiro, está poluindo os rios e/ou lençóis freáticos com seus dejetos, e por aív vai. Podemos estar sempre todos limpinhos, cheirosos e arrumadinhos, em vizinhanças decentes e bonitas (se tivermos sorte), mas é necessário alertar para o fato que cada aspecto de nossa cômoda vida moderna envolve um imenso consumo de recursos e geração de resívduos, que se traduz em degradação ambiental — ainda que longe de nossas vistas. Agora, multiplique isso por alguns bilhões de pessoas, e está explicada a imensa crise ambiental em que estamos metidos! Ou seja, a natureza não está sendo destruívda apenas pelos ricos e poderosos. Claro que eles são grandes culpados, mas o fato é que a natureza também está sendo destruívda por cada homem e mulher, cada pessoa neste mundo que leva uma vida “normal”, nos moldes de nossa sociedade atual, inserida na civilização industrial de consumo. Porém, muitas pessoas não estão preparadas para aceitar esse fato, inclusive muitos dos fervorosos ativistas de 56

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ONGs ambientalistas, que adoram atacar os poderosos, e sentem-se virtuosos por fazê-lo. Isso é compreensívvel, pois é muito mais cômodo apontar para forças maiores do que você, coisas que você não pode mudar, do que arregaçar as mangas e mudar o que você pode mudar — a começar por você mesmo. Agora, como você pode criticar grandes indústrias, por exemplo, por seus estragos ambientais, se você mesmo está o tempo todo consumindo e utilizando seus produtos? Não é muita hipocrisia? É claro que a sociedade deve sempre fazer pressão para que as elites — empresas, governos, grupos e indivívduos poderosos — adotem boas práticas ambientais e sociais. Porém, sem uma profunda mudança de hábitos das pessoas, isso jamais fará diferença alguma. Toda demanda tende a gerar uma oferta, e as grandes indústrias só produzem tanta coisa desnecessária porque as pessoas as consomem vorazmente — a despeito dos custos ambientais. Por isso, qualquer mudança signifcativa só pode partir de baixo, da base da sociedade, ou seja, das pessoas. É inútil esperar que a mudança parta do topo, das elites. Diante da consciência que com nossos estilos de vida estamos causando a crise planetária, é moralmente injustifcável que continuemos agindo como sempre fzemos. Para sairmos da nossa atual rota de colisão com o ambiente natural e evitarmos a destruição total da humanidade e da vida no planeta, o que é necessário é uma grande mudança de paradigma na nossa sociedade. É necessário um alvorecer da consciência, que abandonemos essa cultura predominante, baseada no individualismo, focada no benefívcio próprio, nas aparências, no consumo e na acumulação, e adotemos uma cultura em que a preservação e recuperação ambiental sejam prioridade máxima. E cada pessoa interessada nessa mudança deve começar por si mesma. Porém, romper com o paradigma atual no qual estamos imersos é um enorme desafo. Afnal, cada um de nós foi treinado e condicionado a este atual estilo de vida desde o nascimento; este é o único modo de vida que conhecemos, e tudo está pronto para você continuar como está. Sem dúvida, trata-se de um grande desafo, mas ao mesmo tempo, não pode haver desafo que valha mais a pena encarar. Afnal, é o futuro da humanidade e da vida no planeta Terra que estão em jogo! Mas, afinal, o que exatamente podemos, devemos fazer? Por onde começar? Diante desse impasse, muitas pessoas veem-se paralisadas. Sem saber o que fazer, a maioria das pessoas prefere simplesmente fngir que não vê e continuar vivendo como de costume. Talvez se agarrem à esperança que tudo vai acabar bem, embora não saibam como — talvez se agarrando à fé religiosa, fé na ciência, ou fé em governantes, enfm, alguém ou alguma força superior que venha nos salvar. Algumas passam a adotar pequenas atitudes sustentáveis, como apagar as luzes ao sair da sala, fechar a torneira enquanto escovam os dentes, ou separar o lixo seco para reciclagem, e tentam cultivar a ilusão que estão fazendo sua parte 57

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para salvar o planeta, quando obviamente apenas essas atitudes pontuais não farão diferença alguma. Há também aqueles que, sentindo-se moralmente impedidos de continuar fazendo parte desta tragédia, passam a rejeitar o modo de vida convencional e valores da sociedade; porém, sem conseguirem visualizar uma alternativa viável, passam a viver às margens da sociedade, vivendo “na estrada”, ou em ocupações, praticando freeganismo, etc. — o que também é uma ilusão, pois permanecem totalmente dependentes da sociedade que reprovam, não representando, portanto, nenhuma solução, nenhum caminho para frente. Ação positiva para a mudança Felizmente, algumas pessoas abraçaram esse desafo e puseram-se a pensar de forma racional e positiva, buscando soluções práticas, concretas, que pudessem ser aplicadas por qualquer pessoa, em qualquer lugar, desde o nívvel individual até o coletivo e em qualquer escala, para que tanto nós como o resto do mundo natural possamos prosperar na Terra. Assim nasceu a permacultura!

Mas afnall, o que é a PERMACULTURA? A permacultura é um modo de organização consciente das atividades humanas, visando o suprimento das nossas necessidades ao mesmo tempo em que se preserva e restaura o meio ambiente e os ecossistemas. Numa defnição mais ampla, pode-se dizer que ela é um conjunto de três coisas: • Uma ciência multidisciplinar que engloba um conjunto de técnicas, habilidades e conhecimentos aplicados para projetar sistemas produtivos (agrívcolas, de energia, água e outros), habitações, assentamentos humanos, estruturas sociais, etc. de forma que sejam verdadeiramente sustentáveis, baseando-se na observação ativa e aplicação de princívpios da natureza e uso criterioso dos recursos naturais. Agricultura orgânica, agroecologia, design ambiental e ecológico, bioarquitetura, saneamento ecológico, energias renováveis, sistemas de água de chuva, economia solidária, etc. são elementos centrais da permacultura. • Um estilo de vida simples, natural e sustentável, pautado por uma flosofa de máximo respeito à natureza e todas as suas criaturas. O estilo de vida da permacultura é também caracterizado por um foco na cooperação (tanto entre as pessoas como em relação à natureza), e não na competição. • Um movimento global de pessoas que compartilham dessas ideias, valores e visão, e buscam esse estilo de vida, aprendendo, aplicando e transmitindo os 58

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conhecimentos, habilidades e técnicas da permacultura, sendo elas mesmas a mudança que querem ver no mundo e inspirando outros a se unirem na construção de uma sociedade sustentável. Acreditamos que, se abraçada por um número sufciente de pessoas, a permacultura tem o potencial de reverter o processo de colisão de nossa civilização com o meio ambiente natural. A permacultura é abraçada por aqueles que entendem que as coisas simples e naturais são aquelas que preenchem a essência da existência humana — pessoas que sabem dar valor à beleza e o perfume das fores, ao canto dos pássaros; que sabem apreciar um céu estrelado ou um nascer do sol, que amam o contato com a terra e o cheiro dos animais; que gostam de trabalhar, viver e compartilhar com outras pessoas. A permacultura é um caminho natural para aqueles que já perceberam que a competição humana exacerbada, bem como a ganância por riquezas materiais, bens de consumo e status social, tão caracterívsticos de nossa triste era, representam um grave equívvoco, sendo de fato venenos para a alma e fontes permanentes de insatisfação, vazio existencial, ou seja, infelicidade, além de destruívrem o que é realmente belo: a natureza. Dois enganos comuns das pessoas ao entrar em contato pela primeira vez com as ideias da permacultura são achar que ela representa uma “volta ao passado”, ou algum tipo de autossacrifívcio. Não se trata de autossacrifívcio, muito pelo contrário, já que entendemos que um estilo de vida simples, intimamente conectado à natureza e mais autossufciente é muito mais prazeroso, saudável, feliz e repleto de sentido que o estilo de vida totalmente artifcializado, alienado e dependente atualmente prevalente. É verdade, porém, que se trata de um caminho repleto de desafos, que para ser trilhado requer que saiamos da zona de conforto, o que exige uma dose considerável de coragem. Tampouco representa uma volta ao passado, pois a busca consciente e intencional por um estilo de vida sustentável é na verdade algo incomum, talvez inédito na história humana. É importante, aliás, ter a clareza que a vida no passado era muito mais dura! Muitas pessoas têm uma visão idealizada, romantizada do passado, e isso é um problema. Na verdade, a precariedade, a fome, a doença e a morte estavam sempre ali, a expectativa de vida era muito mais baixa que hoje, e a mortalidade infantil, altívssima, para citar alguns exemplos. Embora tenham sido criados novos problemas (como a servidão corporativa moderna, isolamento e falta de sentido na vida, etc.), no geral é claro que a modernidade facilitou e melhorou a qualidade de vida do homem tremendamente, e de inúmeras maneiras. O problema é, justamente, que seguindo o curso em que estamos, todos esses avanços serão perdidos, e da pior forma possívvel. Sendo assim, a proposta da permacultura é, justamente, manter e avançar as conquistas na qualidade de vida humana, aliado a uma reversão do papel da humanidade em relação à natureza — de destruidor para preservador e regenerador do meio ambiente, dos recursos naturais e ecossistemas. 59

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A permacultura representa, sim, uma volta em alguns aspectos, na medida em que se busca uma vida mais simples e em contato com a natureza, etc., o que pode ser visto como um resgate da essência humana. Agora, muita gente, quando pensa no futuro, pensa logo em um mundo de altívssima tecnologia e total urbanização, e artifcialização do ambiente; talvez colônias espaciais, etc., como frequentemente visto em flmes de fcção cientívfca. Porém, isso mostra a falta de visão dessas pessoas, os otimistas tecnológicos que ainda acreditam na falácia do crescimento infnito, que falham em perceber que, embora esses cenários sejam teoricamente possívveis, eles esbarram na iminente exaustão dos recursos necessários a esses avanços; ou seja, que o colapso ambiental e civilizacional acontecerá muito antes que esses cenários possam se tornar realidade. Portanto, a permacultura signifca a libertação para as pessoas que a abraçam e a possívvel salvação para a vida no planeta Terra, representando, portanto, não uma volta ao passado, mas sim um salto para o futuro — a verdadeira evolução que a humanidade tanto necessita. Uma das coisas mais legais sobre a permacultura é que ela é positiva — ela mostra o que você pode fazer, apresenta soluções, caminhos concretos. Isso contrasta com o ambientalismo convencional, que se ocupa primariamente de dizer o que você não pode fazer.

Histórico da permacultura A origem da permacultura não pode ser dissociada do movimento ambientalista no século XX. Até a primeira metade do século XX, praticamente não existia qualquer consciência quanto ao valor intrívnseco da natureza. O mundo selvagem era visto de forma negativa, como uma coisa bestial — algo a ser dominado, explorado, ou mesmo combatido pelo homem. Isso começou a mudar ao longo do século XX, e especialmente algum tempo após a Segunda Guerra Mundial, quando problemas relativos à destruição ambiental e poluição tornaram-se óbvios principalmente em centros urbanos de paívses economicamente desenvolvidos. Em 1962, houve a publicação do livro “Primavera Silenciosa” de Rachel Carson (e, antes dele, o menos conhecido mas igualmente importante “Nosso Ambiente Sintético”, de Murray Bookchin), o que deu grande impulso à consciência ambiental, com forte adesão pelo movimento de contracultura que marcou aquela década. Em 1970, organizou-se o primeiro “Dia da Terra”, nos Estados Unidos, em que 20 milhões de pessoas participaram de manifestações, protestando contra derramamentos de petróleos, usinas nucleares, poluição de rios por esgotos, pesticidas agrívcolas, etc., evento que passou a acontecer anualmente, crescendo ano a ano, tornando-se um evento mundial. 60

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O ambientalismo havia chegado, numa forma que podemos chamar de ambientalismo “clássico” ou de oposição, pois as pessoas se manifestavam contra coisas que não gostavam no mundo. Ou seja, todos sabiam o que eles não queriam, mas havia uma carência de propostas de alternativas concretas, de soluções. Isso iria mudar com a permacultura. A permacultura nasceu da colaboração acadêmica entre Bill Mollison e seu então aluno David Holmgren no curso de Design Ambiental da Faculdade de Educação Avançada da Tasmânia, trabalhando em um projeto de pesquisa que consistia do desenvolvimento de sistemas agrívcolas sustentáveis, em oposição aos métodos destrutivos da agricultura convencional cujos efeitos devastadores já eram claramente perceptívveis na Tasmânia àquela época. Mollison havia observado que, na agricultura, o homem estava em constante guerra contra a natureza — uma guerra na qual não poderia haver vencedores. Porém, todos os nossos alimentos, sejam animais, vegetais ou outros, são provenientes da natureza, onde têm existido e produzido, de forma sustentável e sem interferência humana, por milhões de anos. Pensando nisso, pôs-se então, juntamente com Holmgren, a elaborar uma metodologia de design de sistemas produtivos baseados nos mesmos princívpios existentes na natureza, com a intenção de criar sistemas altamente estáveis e automantenedores, que benefciariam tanto ao homem (menos necessidade de trabalho) como a natureza (menos interferência no ambiente, preservação de recursos como solo, água, energia, biodiversidade, biomassa), sendo portanto altamente sustentáveis. O termo permacultura é uma palavra-valise resultado da fusão de agricultura e permanente. Inicialmente, o signifcado da palavra era exatamente esse, pois os fundadores da permacultura estavam tratando de criar sistemas agrívcolas sustentáveis, permanentes. Porém, mais tarde a palavra passou a ter seu signifcado expandido para cultura permanente, uma vez que se observou que suas éticas e princívpios eram aplicáveis não apenas à agricultura, mas a todos os ramos da atividade humana, desde o projeto de habitações sustentáveis até assentamentos humanos e cidades inteiras; desde os hábitos diários até direcionamentos de vida, polívticas públicas e mesmo dos rumos da sociedade. Em 1978, foi publicado o primeiro livro sobre permacultura, de autoria de Holmgren e Mollison, intitulado “Permaculture One” (“Permacultura Um”). Logo após criarem o conceito de permacultura, Mollison passou a se dedicar à sua divulgação, escrevendo artigos, dando palestras e entrevistas a rádio e jornais, inicialmente na Austrália, e mais tarde em outros paívses. Suas ideias, potencializadas por seu forte carisma, tiveram grande impacto, gerando uma verdadeira avalanche de interesse. Nessa época, Mollison desenvolveu seus Cursos de Design em Permacultura, conhecidos pela sigla “PDC” (“Permaculture Design Certificate”, em inglês). A visão de Mollison era “formar um verdadeiro exército de permacultores para saívrem pelo mundo ensinando as ideias de produção sustentável de alimentos”. Mollison propunha que, ao invés de fcarem 61

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esperando que governos e outras instituições façam alguma coisa, as pessoas preocupadas com o futuro do planeta deveriam tomar a causa em suas mãos — armar-se de conhecimento e fazer elas mesmas o que era necessário. Enquanto Mollison assumiu o papel de principal disseminador da permacultura nos anos iniciais, Holmgren permaneceu praticamente anônimo por quase duas décadas, testando e aprimorando os princívpios da permacultura em sua propriedade no interior da Austrália. Em 1995, Holmgren publicou seu livro “Melliodora: ten years of sustainable living” (“Melliodora: dez anos de viver sustentável”). Desde então, emergiu à cena mundial, escrevendo importantes livros e promovendo palestras e cursos de permacultura ao redor do mundo, destacando-se como um dos principais intelectuais da atualidade, no ramo da sustentabilidade. Desde seu nascimento, a permacultura se transformou em um movimento global que não pára de crescer.

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

7 ÉTICAS E PRINCÍPIOS DA PERMACULTURA

Nossa insustentabilidade resulta do fato de termos sistemas antinaturais que requerem altas quantidades de trabalho e energia para estabelecer e manter, e que utilizam recursos de forma irracional, de um lado consumindo-os excessivamente e levando à sua depleção, e do outro gerando desperdívcios na forma de resívduos e poluição. Para alcançarmos a sustentabilidade, devemos reverter cada um desses erros; ou seja, precisamos estabelecer sistemas naturais, automantenedores, com baixa necessidade energética, aproveitamento máximo de recursos e minimização de desperdívcios, de forma que possamos suprir nossas necessidades não apenas a curto prazo, mas sim indefnidamente. Isso é muito fácil de se dizer. Porém, como vimos na Parte I, nosso estilo de vida e a própria estrutura de nossa civilização são resultado de um longo processo histórico, e nossos modos de pensar e agir, tanto no nívvel individual como coletivo, são baseados em conceitos, conscientes e subconscientes, extremamente arraigados. Ou seja, nossa civilização é inteiramente alicerçada em um paradigma de insustentabilidade. Assim sendo, ações e mudanças pontuais nunca serão capazes de reverter o problema da insustentabilidade humana, ou evitar suas consequências. Para isso é necessária uma ampla e profunda mudança de paradigma. Porém, é claro que não se pode simplesmente jogar fora tudo o que somos e recomeçar do zero — isso seria impossívvel. O que precisamos é um conjunto 63

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de conceitos-chave para nos guiar nessa transição de paradigma. Pensando nisso foram criados os princívpios da permacultura. Os princívpios da permacultura se dividem em duas categorias: princívpios flosófcos, normalmente referidos como éticas da permacultura, e princívpios práticos, muitas vezes referidos como princípios de design ou, simplesmente, princípios.

Éticas da permacultura A sociedade atual é baseada no individualismo e competição — uma sociedade em que a realização pessoal é confundida com acúmulo de riquezas materiais e status (onde status implica não apenas “estar bem”, mas também estar “melhor que os outros”). Assim, pode-se dizer que nossa sociedade é focada no ego, e não no coletivo, e praticamente não leva em consideração a preservação da natureza — não reconhece devidamente o valor intrívnseco da natureza e da vida, considerando-a secundária aos interesses individualistas já citados. Esse egocentrismo também se refete na forma como encaramos escalas de tempo, ou seja, o indivívduo quer benefívcio para si, e agora! Qualquer consequência dos seus atos que escape ao perívodo de vida do próprio indivívduo é simplesmente desconsiderada; em outras palavras, ninguém deixa de fazer nada em benefívcio próprio porque isso poderá prejudicar as próximas gerações. Essa constituição ideológica defeituosa é a base dos maiores problemas atuais da sociedade, e dentre eles o mais grave, a insustentabilidade. Portanto, na construção de um mundo melhor, é fundamental iniciar por uma revisão dessa base ideológica. A flosofa da permacultura parte de uma visão holívstica do ser humano, como parte integral e inseparável tanto da humanidade como da natureza em geral. Dissolve-se, assim, o antropocentrismo e o egocentrismo tão caracterívsticos de nossa civilização e sociedade atual: a pessoa humana só passa a ter sentido quando analisada em seu contexto social e ambiental. As bases flosófcas da permacultura são sumarizadas nas três éticas: • • •

Cuidar da Terra Cuidar das pessoas Partilha justa dos recursos

O cuidar da Terra signifca reconhecer o valor intrívnseco da natureza em seu todo e todas as suas partes: o ar, a água, o solo, e todas as criaturas com as quais compartilhamos o planeta. A Terra contém em suas variadas paisagens uma imensa diversidade de 64

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formas de vida (a maioria delas ainda desconhecidas pelo homem), desde mirívades de seres microscópicos até os grandes e óbvios animais e plantas. A beleza e exuberância de nosso planeta contrasta enormemente com a esterilidade e aridez ora gélida, ora tórrida de todos os corpos celestes até agora conhecidos pela ciência. A vida, sob todos os aspectos, é de fato o fenômeno mais extraordinário, maravilhoso e intrigante que pode existir — um verdadeiro milagre. Cada organismo vivo é o resultado de bilhões de anos de evolução, sendo infnitamente complexo e encerrando infndáveis segredos; cada indivívduo ou espécie existe não em isolamento, mas totalmente integrado na malha da vida, no delicado equilívbrio dos ecossistemas. Em conjunto, os seres vivos moldaram as paisagens de nosso planeta — até a própria atmosfera terrestre foi defnida de forma dinâmica e interativa pela atividade dos seres vivos, permitindo que a vida atingisse sua expressão máxima. É necessário lembrar, porém, que no mundo natural até mesmo uma simples pedra é merecedora de reverência, quando consideramos que se trata de um ser que, embora inerte, existe há milhões ou mesmo bilhões de anos. Todas as coisas que existem no mundo natural são, portanto, dotadas de incalculável valor intrívnseco e merecedoras do mais elevado respeito, pela sua própria existência, por sua natureza, antiguidade e complexidade, e pelas funções que desempenham, ainda que nós não as compreendamos, e mesmo que não nos pareçam úteis às nossas necessidades. Apesar da aparente vastidão e antiguidade de nosso planeta e da vida que nele existe, é preciso lembrar que a Terra representa um espaço contido, fnito, e que embora a vida tenha existido aqui por bilhões de anos, ela ainda assim é frágil e dependente de um delicado equilívbrio. A ética do cuidar da Terra nos lembra que devemos nos abster de ações que danifquem, destruam ou prejudiquem o meio ambiente natural, e trabalhar ativamente em sua preservação e recuperação. Devemos assumir o compromisso de preservar o que resta dos ecossistemas naturais a qualquer custo. O cuidar das pessoas nos lembra que uma sociedade, para ser sustentável, tem que ser antes de tudo justa para com todos, tanto a natureza como os seres humanos. Esta ética contrapõe-se ao egocentrismo, individualismo e competitividade exacerbados da nossa sociedade atual, que resultam em uma brutalização e insensibilização em relação às necessidades e a essência da pessoa humana. A ética do cuidado das pessoas tem também a vital função de combater a misantropia — sentimento de distanciamento, aversão e desprezo pela humanidade, comum em pessoas sensívveis às causas ambientais. Na permacultura, visa-se não apenas um mundo sustentável do ponto de vista ambiental, mas um mundo melhor, mais saudável e feliz em todos os sentidos. 65

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

Portanto, a flosofa da permacultura é basicamente uma flosofa de amor. Para que a permacultura atinja seus objetivos de criar uma cultura permanente que proteja os ecossistemas e favoreça o futuro do planeta, é necessário que ela se espalhe pelo mundo; para isso, é necessário despertar, mobilizar e inspirar o maior número de pessoas a fazerem o bem pelo planeta, o que jamais se conseguirá através do ódio, e sim através da empatia e do amor, disseminando informações, ajudando às pessoas e inspirando através do exemplo, formando assim uma corrente para o bem da vida e do planeta. Esta ética signifca encarar toda a humanidade como uma irmandade, e como parte indissolúvel da natureza, já que estamos todos juntos nesta nossa nave, nossa mãe Terra. A partilha justa signifca reconhecer que vivemos em um planeta fnito, de recursos fnitos, aos quais todos os seres tem igual direito. Ao consumir mais recursos que os necessários para uma vida digna, o indivívduo está de fato usurpando a parte que cabe aos demais — essa desigualdade representando injustiça, e causando um prejuívzo ao conjunto da sociedade e da vida na Terra. Esta ética signifca, portanto, estabelecer voluntariamente limites ao consumo dos recursos, dentro de um ideal de vida frugal e partilha de excedentes, de forma alinhada com as duas éticas anteriores. As éticas da permacultura nos lembram que, em tudo o que fazemos, devemos nos preocupar: como isso afetará as outras pessoas? E como afetará o meio ambiente? Não apenas no curto prazo e no seu entorno imediato, mas no longo prazo e globalmente. Ou seja, devemos procurar praticar apenas ações que benefciem não somente a nós, mas que também benefciem ou pelo menos não prejudiquem as demais pessoas, tanto do presente como do futuro, e a natureza e suas criaturas.

Princípios da permacultura Os princívpios de design permacultural são elaborados a partir de uma dose maciça de lógica e bom senso, conhecimentos cientívfcos e observação atenta do funcionamento de sistemas na natureza, já que a natureza em si é o arquétipo da sustentabilidade. Eles nos ajudam a planejar, construir e executar estruturas (casas e outros edifívcios, sistemas de água e saneamento), sistemas produtivos (plantações, criações) e paisagens inteiras, de forma que sejam altamente produtivos, harmoniosos, resilientes e sustentáveis, através da utilização de recursos da maneira mais efciente possívvel, extraindo o máximo de benefívcio funcional com o mívnimo de desperdívcio ou resívduos, através da perfeita integração entre seus componentes. 66

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

Porém, os princívpios não são úteis apenas no projeto de estruturas e sistemas, mas também em redesenhar nosso próprio estilo de vida: aplicados na orientação de hábitos do dia a dia e escolhas de vida, os princívpios da permacultura levam a um estilo de vida altamente sustentável, tanto do ponto de vista ambiental como social. Vale lembrar que, embora tenham caráter de aplicação universal, os princívpios da permacultura não são fxos, estanques; pelo contrário, estão em constante evolução, e a forma como são enumerados e descritos varia de acordo com o autor ou permacultor. Isso em nada tira seu mérito, muito pelo contrário, pois deixa claro que não são dogmas (quem gosta de dogmas, que procure uma religião!), e sim conceitos originados de observação cuidadosa, raciocívnio lógico e experimentação prática, e que estão aív para serem aplicados, testados, adaptados e aperfeiçoados. São Princípios da Permacultura: 1. Observe e Imite a Natureza A natureza é o padrão universal de perfeição. 2. Valorize a diversidade A diversidade nos proporciona sistemas ricos e resilientes. 3. Promova a integração A integração resulta em sistemas altamente produtivos e automantenedores. 4. Capte, armazene e utilize os recursos disponíveis Entenda os fuxos de matéria e energia, e canalize-os de forma produtiva. 5. Não produza lixo, não polua Abrace o ideal do lixo zero. 6. Princípio da efciência energética A disposição inteligente de elementos poupa tempo, energia e materiais. 7. Dê preferência às espécies nativas, valorize a biodiversidade local Contribua para a restauração do ecossistema nativo de sua própria área. 8. Princípio da máxima biomassa e biodiversidade Uma área deve conter o máximo de biomassa e biodiversidade que ela pode naturalmente manter. 9. Use soluções pequenas e lentas Acredite no poder transformador de atitudes pequenas e simples. 10. Projete dos padrões aos detalhes O uso de padrões possibilita um alto grau de harmonia, funcionalidade e eficiência energética. 11. Prefra recursos renováveis e utilize-os de forma sustentável Utilize recursos de forma econômica e eficiente, e promova sua regeneração. 67

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

12. Versatilidade e redundância Cada elemento performa múltiplas funções, e cada função importante é suportada por diversos elementos. 13. Use a tecnologia de forma apropriada Evite a dependência de tecnologias insustentáveis. 14. Obtenha um rendimento Proteger o meio ambiente sem esquecer da provisão das necessidades humanas. 15. Pense globalmente, aja localmente (faça sua parte) Faça da permacultura seu estilo de vida, e mude seu papel na história do mundo. 16. Cooperação ao invés de competição Os interesses máximos da permacultura transcendem os interesses individuais. 17. Autossufciência e empoderamento local Trabalhar para si e para os seus significa empoderamento, independência, liberdade e realização. 18. Reavalie-se constantemente … para adaptação e aperfeiçoamento contínuo.

1. Observe e imite a natureza A natureza é um laboratório gigantesco que de forma aleatória tem testado de tudo por bilhões de anos; tudo o que não deu certo foi sendo eliminado, e só o que deu certo foi mantido, resultando na imensa diversidade e complexidade (e beleza!) que se tem hoje. Sendo assim, pode-se dizer que a natureza é uma espécie de padrão universal de perfeição. A maioria dos erros da humanidade, que acumulados culminaram na atual crise ambiental que ameaça a vida na Terra, são resultado de uma separação entre o homem e a natureza, no estabelecimento de hábitos, sistemas e metodologias antinaturais. A reversão desse quadro só pode ser alcançada através de um retorno ao que é natural, e para isso temos que aprender a observar a natureza e aprender com ela. Uma velha máxima da permacultura diz: “Observação prolongada e cuidadosa, ao invés de ação prolongada e descuidada.” A observação cuidadosa e interação atenta com a natureza serve de fonte infndável de conhecimento e inspiração. Mesmo que não consigamos compreender completamente como as coisas funcionam na natureza, muitas vezes através da observação conseguimos identifcar padrões de formas, posicionamentos e interações entre elementos e fenômenos naturais; ao imitar esses padrões em nossos projetos, muitas vezes 68

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

atingimos um elevado grau de funcionalidade, harmonia e efciência. Observe e imite a natureza é o princívpio máximo da permacultura, e muitos dos outros princívpios derivam diretamente dele.

2. Valorize a diversidade Diversidade é chave para a resiliência. Paisagens naturais contêm inúmeras formas de vida, cada uma desempenhando múltiplas funções na manutenção dos ecossistemas. Porém, o homem civilizado, com sua obsessão por dominar e controlar a natureza, desenvolveu uma forte tendência reducionista: quanto menos elementos houver, mais fácil de entender e controlar. Assim, decide os poucos elementos que quer que fquem, e busca eliminar todos os outros. Dessa forma, o homem está sempre em pé de guerra com a natureza, sempre lutando contra a vida, com graves consequências para a sustentabilidade. Ao valorizar a diversidade, estamos de fato imitando a natureza (o Princívpio n.o 1). A diversidade traz vantagens óbvias. Por exemplo, no caso da agricultura, ao se apostar em uma única espécie cria-se uma situação de grande vulnerabilidade: um ano ruim, com adversidades climáticas, ou o surgimento de uma praga ou doença, etc. podem facilmente dizimar uma plantação, se for uma monocultura. Por outro lado, em um sistema diversifcado, uma policultura, temse praticamente a garantia de alguma produção, pois o clima ruim para uma espécie é aceitável para outra, e uma praga que afeta uma espécie de planta é inofensiva para as demais, etc. Além disso, quanto maior a diversidade na produção, maior será o seu grau de autossufciência. As monoculturas — que são o oposto da diversidade — são uma das principais causas da insustentabilidade da agricultura industrial. Ao estabelecer uma monocultura para a produção de alimentos, o homem está, na prática, tentando estabelecer um “ecossistema de uma espécie só” — coisa que não existe na natureza! Parece esquecer-se que aquele alimento que se quer produzir é uma espécie de ser vivo, e que nenhuma espécie existe isolada das outras, pelo contrário: todas fazem parte e dependem de um ecossistema; precisam dos microrganismos do solo que mantém a fertilidade, de insetos e outros organismos para a polinização, aeração e descompactação da terra, controle de predadores, etc. Ao optar por monoculturas, o agricultor torna-se automaticamente dependente de fertilizantes, maquinários e pesticidas, que acabam com a fertilidade, arrasam os ecossistemas e produzem alimentos contaminados. Além disso, passam a depender de recursos não renováveis (e.g. combustívveis fósseis, fertilizantes minerais e quívmicos) que logo acabarão, criando grave situação de insegurança alimentar a longo prazo. Na permacultura, procuramos sempre estabelecer sistemas altamente diversifcados, utilizando grande número de espécies e valorizando variedades 69

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tradicionais e crioulas, espécies nativas e plantas alimentívcias não convencionais. Conseguimos assim estabelecer sistemas ricos e resilientes, produzir grande quantidade de alimentos com riqueza de sabores e alto valor nutritivo, prestando ainda importantívssimos serviços ambientais, preservando essas espécies e a biodiversidade.

3. Promova a integração Tudo na natureza ocorre de forma integrada — são inúmeros fatores, inúmeras formas de matéria e energia, inúmeras formas de vida, todas interligadas e dependentes umas das outras. Diversidade e integração são duas faces da mesma moeda: o equilívbrio da natureza depende da manutenção da diversidade de ambientes, organismos e ecossistemas, e de sua integração. Os tipos de conexões ou relacionamentos entre os diferentes elementos de um ecossistema variam enormemente, indo da cooperação (simbiose, mutualismo) até a competição e predação, e da harmoniosa integração entre todos esses fatores resulta a autorregulação e estabilidade dos sistemas naturais. A autorregulação atua em todos os nívveis: no clima, nos ecossistemas, nas populações das diversas espécies, e dentro de cada organismo, onde é uma caracterívstica crucial do controle fsiológico (homeostasia). Ecossistemas naturais funcionam por si mesmos, com uma produção altívssima e incrivelmente diversifcada, por milhões de anos, sem qualquer necessidade de interferência externa na forma de trabalho humano ou importação artifcial de recursos. Essa imensa estabilidade e produtividade é resultado da perfeita integração dos múltiplos elementos, fatores bióticos e abióticos que compõem os ecossistemas e a biosfera. A torpe óptica reducionista do homem civilizado destrói as bases dessa estabilidade e produtividade ao reduzir drasticamente o número de elementos e dispô-los de forma arbitrária e não integrada, na moda totalitária de suas fleiras, canteiros e piquetes, gerando com isso sistemas pobres, inefcientes, frágeis, dependentes de insumos externos e intensas doses de trabalho, enfm, totalmente insustentáveis. Ao projetarmos nossos sistemas permaculturais, devemos ter sempre em mente a busca pela perfeita integração dos elementos, em todos os nívveis, ou seja, entre os elementos de cada sistema, e a integração entre sistemas, conforme ocorre na natureza. A correta integração dos elementos em sistemas produtivos possibilita pelo menos três efeitos vantajosos: concentração, interações positivas e autorregulação. • Concentração: esse efeito decorre do fato que plantas e animais de espécies diferentes e estágios de desenvolvimento diferentes têm necessidades diferentes 70

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de nutrientes, exposição solar, umidade, temperatura, etc., podendo portanto ocupar nichos diferentes dentro do mesmo espaço, permitindo portanto um melhor aproveitamento do espaço e uma produção total por área maior e mais diversifcada. • Interações positivas: a integração perfeita entre os elementos cria uma proximidade funcional. Por exemplo, em uma foresta, o resívduo de uma espécie é imediatamente utilizado como recurso pela outra, e tem-se uma alta reciclagem de matéria e energia; as folhas caívdas de uma árvore servem de cobertura de solo, benefciando as demais; sombreamento parcial de uma árvore favorece ervas que não toleram sol pleno; leguminosas fxam nitrogênio do ar no solo benefciando outras plantas; certas plantas atuam repelindo pragas, ou servindo de isca para as mesmas, assim poupando outras plantas, ou mesmo atraindo insetos que são predadores de pragas, etc.; frutas caívdas de uma árvore servem de alimento a animais, que por sua vez adubam a terra com seus dejetos, e ainda ajudam na disseminação das sementes, etc. A competição (por espaço, nutrientes, luz) continua existindo, mas é mais que compensada pelos benefívcios mútuos, de forma que o sistema é benefciado no seu conjunto, e a produção é aumentada. • Autorregulação: diversidade e integração geram sistemas estáveis e automantenedores, assim como ocorre na natureza, reduzindo a necessidade de manutenção e insumos externos. Isso signifca economia de trabalho, dinheiro e tempo, conferindo autonomia e independência, além da preservação do meio ambiente no local (na verdade uma melhora progressiva do ambiente) e fora dele (já que o uso contívnuo de insumos externos como adubos causa sua depleção e destruição ambiental em seu local de origem, como desmatamento e poluição, custo ambiental do transporte, etc.). As interações positivas são a base para o conceito das plantas companheiras, ou seja, plantas que, quando postas em proximidade, ajudam-se mutuamente por terem interações predominantemente benéfcas. Pelo contrário, plantas não companheiras são aquelas que competem entre si, não favorecendo a proximidade, por exemplo por necessitarem dos mesmos recursos, como sol, ou terem as mesmas necessidades nutricionais, ou por liberarem substâncias com efeito inibidor (efeito alelopático), etc. Por isso, devemos sempre prestar muita atenção a essas interações e aprender a posicionar as diferentes espécies de forma inteligente, explorando ao máximo as interações positivas para maior produtividade. O princívpio da integração complementa o princívpio da diversidade, pois de nada adianta ter um grande número de elementos em um sistema se eles estiverem sempre em pé de guerra uns com os outros. Por isso, pode-se dizer que mais importante que a quantidade de elementos presentes em um sistema é a quantidade e qualidade de relações benéfcas entre esses elementos, contribuindo 71

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para a produtividade e autorregulação. Por exemplo, uma agroforesta habilidosamente estabelecida, com rica diversidade em perfeita integração, desempenha todas as funções ambientais de uma foresta natural (proteção do solo, da água, da biodiversidade), ao mesmo tempo em que supre as necessidades do homem, como alimentos, fbras, madeiras, pigmentos e remédios, entre outras, de forma natural e estável. Outros sistemas produtivos, como lagoas artifciais, também devem ser projetadas para serem automantenedoras, estabelecendo-se nelas um ecossistema aquático completo e saudável, com plantas, animais invertebrados, rãs, peixes, patos, etc. Um ecossistema assim mantém a água sempre razoavelmente limpa, livre de insetos indesejáveis como mosquitos, gera uma produção diversifcada de alimentos, fomenta a fauna local e migratória e cumpre ainda várias outras funções, praticamente sem necessidade de interferência humana. Diferentes sistemas produtivos (plantações, criações) e não produtivos (construções, estradas), bióticos (animais, plantas, microrganismos) e abióticos (sol, vento, água, topografa), também devem ser integrados em nossos projetos, pois isso traz como resultado alta efciência energética e produtividade.

4. Captel, armazene e utilize os recursos disponíveis Este princívpio signifca que devemos observar e entender os fuxos de energia e matéria ao nosso redor e intervir de forma racional e estratégica para canalizá-los de forma produtiva — enxergar recursos, muitas vezes de forma não convencional, e utilizá-los. Captar a água da chuva é tão óbvio, mas ao mesmo tempo tão revolucionário, porque ninguém está fazendo! Esse é um recurso fabuloso, tanto em situações urbanas como rurais, podendo facilmente, na maioria dos casos, suprir totalmente nossas necessidades de água, de forma natural. Infelizmente, a maioria das pessoas ignoram isso — desperdiçam toda a água da chuva, e suprem suas necessidades de formas artifciais, como águas municipais, poços e bombeamento de rios, etc., com altos custos energéticos e levando a inúmeros problemas ambientais. Energia solar pode ser usada para aquecimento de água, através de sistemas simples e de baixa tecnologia que podem ser feitos por você mesmo; aquecimento e iluminação de ambientes pode ser feito através do design passivo para energia solar (dimensionamento e posicionamento adequado de janelas, estufa acoplada à casa, etc.), além, claro de painéis fotovoltaicos. Energia eólica pode ser vantajosa em muitas situações, e energia hidráulica também tem inúmeras aplicações em situações rurais, como bombeamento de água por rodas d'água ou carneiros hidráulicos, moagem de grãos por moinhos d'água, e às vezes geração de energia elétrica. Energia geotérmica de baixo grau pode ser usada para aquecimento de ambientes em locais frios, e refrigeração 72

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em locais quentes, etc. A forma mais simples, rudimentar porém bastante funcional de captar a energia solar é na forma de biomassa, por exemplo na forma de lenha para uso como combustívvel. Também os nutrientes do solo devem ser captados e utilizados, e reciclados, por exemplo através da compostagem, e uso do banheiro seco. Muitas vezes, temos a oportunidade de captar recursos valiosos de fora de nossa propriedade, que de outro modo seriam desperdiçados. É o caso de restos de podas e aparas de grama, serragem de madeireiras (muito úteis para uso como cobertura de solo ou na compostagem), cinzas de olarias (úteis na fertilização e neutralização da acidez do solo), materiais de demolição que podem ser muito úteis em construções, etc. Outra aplicação deste princívpio é o benefciamento de alimentos para sua conservação. Frutas geralmente são produzidas em grande quantidade por um curso perívodo, em uma estação bem defnida, e na maioria das vezes o que ocorre é um grande desperdívcio nessa época, sendo que no restante do ano simplesmente não se tem a fruta. Felizmente, há todo um conjunto de técnicas que podem ser usadas para conservar essa produção, permitindo seu armazenamento por todo o ano, evitando o desperdívcio e possibilitando o usufruto máximo desses produtos, além de sua comercialização — por exemplo, desidratação (uvas e bananas passas, etc., podendo ser usados secadores solares), compotas, polpas congeladas, doces, etc.

5. Não produza lixol, não polua Não há lixo na natureza — o lixo é uma criação do homem. Na natureza, todas as formas de matéria e energia são permanentemente recicladas. Já o homem moderno, com seu estilo de vida artifcializado, consome uma quantidade enorme de recursos e os utiliza de forma irresponsável, criando resívduos que se acumulam na natureza, causando-lhe enormes danos. A maioria das pessoas não é sensibilizada quanto ao problema do lixo devido ao conforto e comodidade do serviço de coleta urbana, que leva para longe o lixo todos os dias, impedindo as pessoas de terem contato prolongado com seu próprio lixo, e sequer ter noção de quanto lixo elas realmente produzem. Agora, faça o seguinte experimento: tente acumular em sua casa todo o lixo que produz em um mês — um mês inteirinho sem colocar lixo para fora nenhuma vez, e entenderá do que eu estou falando! Aproveite, e faça uma visita ao lixão ou aterro sanitário de sua cidade, para ter uma noção melhor do que o lixo representa para a natureza. Outra coisa que muita gente não pensa, mas o simples fato de usar um banheiro convencional de descarga signifca que cada pessoa está lançando diariamente seus excrementos, misturados com água, ao meio ambiente, seja 73

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em fossas sépticas que contaminam os lençóis freáticos, seja em rios, lagos e mares, através dos canos de esgoto. Cursos d'água por todo o mundo estão poluívdos por esgotos domésticos, e apesar disso a imensa maioria das pessoas não se consideram culpadas dessa situação, embora sejam elas mesmas dando a descarga várias vezes ao dia. Isso mostra claramente como as pessoas têm uma enorme difculdade em assumir a responsabilidade por seus próprios atos. Para citar um terceiro exemplo de mau uso dos recursos gerando poluição, podemos nos referir ao uso do automóvel como modo de transporte diário. As pessoas enchem os tanques de seus carros com 50 litros de gasolina, e a única preocupação que têm nesse momento é o preço do combustívvel. Raramente relacionam o problema da poluição do ar nas grandes cidades ou a mudança climática global ao seu próprio estilo de vida; porém, para cada tanque de 50 litros de combustívvel utilizado, 60.000 litros de gases poluentes são lançados à atmosfera. Pela primeira ética da permacultura (cuidar da Terra), temos a obrigação moral de evitar produzir qualquer tipo de lixo ou poluição. O ideal do lixo zero deveria ser abraçado por todas as pessoas conscientes do mundo! Isso pode ser visto como utópico ou inviável no atual modelo da sociedade; afnal, estamos tão acostumados a nossos estilos de vida desperdiçadores e poluentes, tão acostumados a “jogar o lixo fora”, que a ideia do lixo zero parece até revolucionária. Porém, o que temos que entender é que não há fora — o lixo continua lá, em algum lugar; só foi levado para longe da nossa vista. Vivemos em um sistema fechado, o planeta Terra, que é nossa casa e do qual devemos cuidar. Se com nosso atual estilo de vida é impossívvel viver sem gerar lixo e poluição, então está claro que temos que mudar nosso estilo de vida. E não adianta fcar esperando que o governo, a prefeitura ou qualquer autoridade tome providências para resolver este problema — está na hora de assumirmos a responsabilidade pelo lixo e degradação ambiental que geramos. Cabe a cada indivívduo dar seus próprios passos rumo à direção certa, para um futuro sustentável. A velha regra dos “3 Rs” — reduzir, reutilizar, reciclar — tão conhecida por todos, e ainda assim tão pouco praticada, continua sendo a melhor receita para economizar energia, minimizar a exaustão dos recursos e reduzir a produção de lixo. Reduzir signifca evitar o consumismo, ou seja, não comprar ou consumir algo que seja desnecessário, redundante, supérfuo; sempre que possívvel consertar o que está quebrado, ao invés de comprar um novo. Signifca também evitar embalagens, por exemplo comprando alimentos a granel, ou pacotes grandes, e evitando embalagens duplas, etc. Reutilizar signifca evitar a cultura do descartável. Dar preferência a utensívlios permanentes, reutilizáveis, ao invés dos descartáveis. Por exemplo,

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dar preferência a produtos em vasilhames retornáveis, utilizar sacolas de compras resistentes e duráveis, ou mesmo reutilizar as sacolinhas comuns de supermercado tantas vezes quanto possívvel, ao invés de jogá-las fora após um único uso, e pegar novas toda vez que fzer compras (mesmo as sacolas chamadas de ‘descartáveis’ podem ser reutilizadas dezenas de vezes!). Por fm, tudo aquilo que não se pode evitar ou reutilizar, deve ser, sempre que possívvel, reciclado. A imensa maioria do lixo produzido diariamente no mundo poderia ser reciclado, embora apenas uma pequena fração efetivamente o seja. O lixo doméstico consiste basicamente de papel, plástico, metais, vidro e resívduos orgânicos — tudo isso é reciclável. Além de evitar a geração de lixo, a reciclagem economiza energia, pois reciclar materiais consome muito menos energia que fabricar novos a partir de matérias primas brutas. Vá além da maioria, faça um esforço para garantir que seu lixo seja efetivamente reciclado, separando-o corretamente, mantendo-o limpo e, se necessário, levando-o diretamente a um centro de reciclagem. Converse com as pessoas lá, veja o que você pode fazer para aumentar a efciência da reciclagem do seu próprio lixo. Um conceito-chave que tem que ser compreendido é que o lixo na maioria das vezes nada mais é que um recurso que não está sendo devidamente aproveitado. Aqui, fca claro que este princívpio está intimamente ligado ao anterior (capte, armazene e utilize os recursos disponívveis). “Transforme problemas em soluções, resíduos em recursos.” Devemos procurar usar sempre que possívvel materiais naturais, de baixo impacto e totalmente recicláveis; usá-los de forma efciente e buscar efetivamente a reciclagem total desses recursos. Devemos projetar nossos sistemas de forma que o resívduo de um processo seja utilizado como matéria prima de outro, fazendo com que a matéria e energia sejam permanentemente recicladas. Ou seja, transformar problemas em soluções, resívduos em recursos. Ao se utilizar banheiro seco, além de poupar água ainda gera-se adubo orgânico, evitando o desperdívcio dos nutrientes contidos nos excrementos, que são retornados de forma segura ao solo e efetivamente reciclados, não havendo a produção de esgotos ou qualquer tipo de poluição. Da mesma maneira, águas cinzas (de pias, tanque e banho) devem ser reaproveitadas em sistemas de irrigação, evitando assim a geração de esgotos e economizando água, e ao mesmo tempo obtendo uma produção vegetal, seja no jardim, pomar ou horta. Restos de poda e folhas caívdas devem ser utilizadas como cobertura de solo, sendo retornadas ao ciclo da vida; no entanto, ainda é comum as pessoas queimarem esses materiais, desperdiçando essa matéria orgânica e transformando-a em poluição do ar, além do fato que essa prática é causa frequente de queimadas forestais e incêndios forestais.

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6. Princípio da efciência energética Com a farta disponibilidade de energia barata na forma de combustívveis fósseis, nos acostumamos a “despejar petróleo” sobre todos os problemas que aparecem — o bom senso foi gradualmente sendo substituívdo por tecnologias sofsticadas, e as pessoas tornaram-se literalmente viciadas em energia. Acontece que essa energia toda vem a um altívssimo custo ambiental: poluição, desmatamento, lixo atômico e aquecimento global, etc. Embora esses efeitos já sejam evidentes, a real gravidade dessa situação só fcará clara para a maioria das pessoas quando houver o colapso das fontes não renováveis de energia e a intensifcação terminal da crise ambiental. Para reduzirmos a pressão que exercemos sobre o meio ambiente, e também para sobrevivermos ao fm do petróleo, é fundamental desenvolvermos um estilo de vida de baixo consumo energético, utilizando a energia de forma racional e evitando seu desperdívcio ou uso improdutivo. Isso se aplica não somente à energia, mas aos recursos em geral. O uso efciente de um recurso signifca extrair o máximo de benefívcio utilizando a mívnima quantidade do mesmo. Para que tenhamos alta efciência energética em nossos projetos e atividades, devemos ser econômicos em espaço e projetar nossos sistemas de modo inteligente para que sejam perfeitamente integrados, passivos e autorregulados, de forma a economizar recursos como energia, materiais e tempo. No projeto de uma casa, por exemplo, o princívpio da efciência energética signifca dispor elementos e utilizar materiais e estratégias que minimizem tanto quanto possívvel as necessidades de gasto de energia e tempo. Deve-se preferir casas pequenas, que atendam às necessidades dos moradores mas não necessitem trabalho excessivo para manutenção e limpeza. Deve-se ainda utilizar técnicas de design passivo para energia solar, tanto para fns de iluminação como aquecimento — por exemplo, maximizando o aproveitamento de iluminação e ventilação natural pelo dimensionamento e posicionamento adequado de janelas, utilização adequada de árvores caducifólias ao redor da casa, que façam sombra no verão e permitam o aquecimento da casa pelo sol no inverno, utilizando na construção da casa materiais que confram conforto térmico, como o cob e hiperadobe, utilizando a energia geotérmica, etc. Diferentes sistemas, produtivos e não produtivos, devem ser integrados entre si. Por exemplo, a casa dentro de um sívtio deve ser posicionada de forma que efuentes de águas cinzas possam ser utilizadas passivamente, por gravidade, em sistemas de ferti-irrigação de jardins, hortas, pomares etc., reduzindo a necessidade de irrigação manual, sem porém contaminar fontes de água potável, como nascentes, córregos ou lagoas. Outro exemplo de integração entre casa e sistema produtivo, especialmente vantajoso em locais de clima frio, é uma estufa acoplada à casa (geralmente à cozinha), que oferece no mívnimo duas vantagens: o aquecimento da casa pela estufa no inverno, e a proximidade 76

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(e portanto praticidade) da horta, facilitando seu manejo. Demais sistemas também devem ser projetados para serem passivos, reduzindo a necessidade de trabalho e energia: por exemplo, reservatórios de água da chuva devem ser feitos o mais alto possívvel, para permitir o uso por gravidade, eliminando a necessidade de bombeamento. Caminhos e estradas devem ser planejados para serem planos ou terem inclinações suaves, tanto quanto possívvel, pois isso reduz a tendência à erosão, reduzindo os esforços e gastos com manutenção. “A disposição inteligente de elementos poupa recursos como tempo, energia e materiais.” Um dos aspectos mais importantes da permacultura que é decorrente do princívpio da efciência energética é o uso das zonas de proximidade e intensidade, que serão discutidas em detalhes no capívtulo 9, “Permacultura Rural”. Nesse modo de organização, sistemas produtivos que requerem atenção constante são posicionados mais próximos à casa, caminhos mais utilizados e locais de maior permanência, enquanto sistemas mais extensivos e de baixa manutenção são posicionados progressivamente mais afastados. Com isso, consegue-se uma grande economia de tempo e energia com deslocamento e transporte de materiais, além de um maior controle de sistemas mais delicados e intensivos.

7. Dê preferência biodiversidade local

às

espécies

nativasl,

valorize

a

Durante os últimos séculos de expansão da civilização ocidental, houve supressão progressiva dos ecossistemas na maior parte do mundo e implementação de sistemas agrívcolas e urbanos com apenas algumas poucas dezenas de espécies vegetais e animais. Ou seja, se antes a fauna e fora eram muito ricas e diferentes em cada região do mundo, hoje com a onipresente antropização você vê praticamente sempre as mesmas espécies em qualquer lugar: galinhas, cachorros, gatos, vacas, pardais, ratos... trigo, milho, arroz, mamão, abacate, maçãs… Esse processo se agravou intensamente ao longo do último século, com a agricultura industrial. Como resultado, temos um grande empobrecimento da biodiversidade, onde milhares de espécies nativas de cada região estão sendo extintas, substituívdas por monoculturas de variedades comerciais altamente homogeneizadas de plantas e animais. O princívpio da biodiversidade local signifca que devemos: • Priorizar espécies da fauna e fora nativas do local. • Resgatar variedades tradicionais e crioulas. • Evitar a introdução de novas espécies exóticas. 77

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Ao priorizar espécies nativas da sua área, tanto para reforestamento como para produção de alimentos, e mesmo em jardins e arborização urbana, você fortalece o ecossistema local como um todo. Isso porque plantas nativas são as melhores fontes de alimento e abrigo para animais nativos, que por sua vez são os melhores polinizadores e disseminadores de sementes de árvores nativas, etc. Assim, mesmo que se reintroduzam um número limitado de espécies nativas do local, essas trarão e encorajarão inúmeras outras espécies de animais e plantas também nativas, muitas vezes sem que você sequer tenha conhecimento. Aqui é conveniente citarmos as plantas alimentícias não-convencionais, ou “PANCs”. Das cerca de 12.000 espécies de plantas comestívveis conhecidas, menos de 200 são de fato comumente consumidas por humanos, e apenas três — arroz, milho e trigo — correspondem a 60% de nosso consumo*. E essa situação está se agravando, com menos espécies ocupando uma fração cada vez maior da alimentação da população mundial, enquanto a maioria dos alimentos cai no esquecimento, devido principalmente ao processo de urbanização, desconexão do campo e natureza e dominação da agricultura industrial moderna, que ocorrem de forma crescente, globalmente. PANCs são plantas que são alimento para humanos mas não são comumente consumidas e, muitas vezes, são desconhecidas da maioria das pessoas. Pesquise e descubra as plantas nativas de sua área que são alimentívcias e cultive-as e coma! Assim, estará não apenas contribuindo para o resgate e preservação dessas espécies e a restauração e enriquecimento do seu ecossistema local, mas ainda melhorando a qualidade da sua alimentação. Diversidade é chave para a boa nutrição, e as plantas alimentívcias nãoconvencionais fornecem uma rica variedade de cores, sabores, aromas e formas, e muitas vezes são mais ricas do ponto de vista nutricional, contendo mais vitaminas, minerais, enzimas, etc. que os alimentos mais comumente consumidos, especialmente as variedades industriais. Agora, este princívpio não se restringe a espécies nativas. Espécies de animais e plantas úteis ao homem têm sido domesticadas há milhares de anos, e durante todo esse tempo, nas diferentes regiões do globo, foram surgindo milhares de variedades e raças de animais e plantas úteis, selecionadas de forma rústica conforme as condições ambientais e as necessidades de cada povo. Porém, ao longo do último século, essas variedades e raças tradicionais têm sido crescentemente abandonadas e substituívdas por variedades geneticamente uniformes da agricultura industrial, muitas vezes fruto de hibridização e manipulações genéticas. Com a tendência crescente de se produzir apenas visando o mercado e focando em um número tão reduzido de espécies e variedades comerciais, estamos de fato virando as costas para um patrimônio alimentívcio gigantesco, que está sendo extinto, já que as espécies e variedades 78

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tradicionais não estão sendo cultivadas e seus ambientes naturais e culturais estão sendo destruívdos. Segundo dados da FAO, 75% da diversidade genética agrívcola se perdeu ao longo do último século * — e a tendência é isso se agravar cada vez mais. Essa erosão da agrobiodiversidade representa um grave risco à segurança alimentar global, pois as variedades industriais que passaram a dominar são altamente dependentes de insumos insustentáveis (como irrigação, fertilizantes quívmicos, pesticidas e mecanização) que poderão não estar disponívveis no futuro. Por isso, na permacultura devemos também nos dedicar ao resgate e preservação das variedades e raças tradicionais e crioulas, ao invés de cultivar variedades industriais. As variedades crioulas são mais rústicas e adaptadas, sendo em geral mais resistentes a doenças e mais fexívveis quanto às condições de solo e clima, por exemplo, o que favorece seu cultivo natural, ecológico e sustentável. Seu cultivo representa a preservação e resgate de um patrimônio genético, cultural e alimentar ancestral, e uma medida essencial de proteção da segurança alimentar no futuro. A introdução de espécies exóticas tem sido praticada extensivamente pela humanidade. Porém, trata-se de uma prática perigosa que já foi causadora de desastres ambientais de enormes proporções, levando à extinção de inúmeras espécies de animais e plantas por predação, competição, introdução de pragas e doenças, etc. Agora que temos pleno conhecimento desses graves efeitos, é injustifcável continuar incorrendo nesses riscos, especialmente neste momento em que os ecossistemas naturais já estão tão fragilizados, e considerando que já temos tantas opções de espécies nativas e naturalizadas (i.e. introduzidas há muito tempo) para utilizar em nossos sistemas produtivos. Em suma, ao seguir o princívpio da valorização da biodiversidade local, cada permacultor estará contribuindo para a restauração do ecossistema nativo de sua própria área, protegendo espécies e raças ameaçadas, combatendo a homogeneização genética global e protegendo a segurança alimentar global.

8. Princípio da máxima biomassa e máxima biodiversidade A vida ocorre no planeta Terra na forma de ecossistemas, ou seja, um conjunto de inúmeras espécies de seres vivos que vivem de forma integrada em seu ambiente. É essa variedade e integração que garante o equilívbrio e, consequentemente, a estabilidade da vida em qualquer dada área. Aqui, é importante defnir os conceitos de 'biodiversidade' e 'biomassa'. Biodiversidade é a diversidade de espécies de seres vivos que há em um determinado espaço, enquanto biomassa é a quantidade total de matéria contida na forma de seres vivos, nesse espaço. * What is happening to agrobiodiversity? In: Building on gender, agrobiodiversity and local knowledge – a training manual. FAO. 2004.

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Na natureza, todos os seres vivos presentes em um determinado ecossistema, em sua luta contívnua para sobreviver e se multiplicar, coevoluívram ao longo de milhões de anos com as condições do ambiente local, para que a vida se expressasse em sua forma máxima possívvel para aquele local. Portanto, se uma área tem condições de abrigar uma foresta, ela naturalmente será coberta de foresta; se só tiver condições de abrigar uma caatinga, ali haverá uma caatinga; se as condições forem muito restritivas, só haverá algum tipo de deserto, e assim por diante. Se uma área abrigava originalmente uma foresta, não é justo manter essa foresta suprimida para, em seu lugar, plantar hortaliças ou pastagens, ou mesmo grãos, já que todas essas plantações contém tremendamente menos biomassa e biodiversidade que uma foresta. A biomassa e biodiversidade são medidas de vida, quantitativa e qualitativamente. Portanto, substituir uma foresta por plantações como as supracitadas signifca reduzir e piorar brutalmente a vida nessa área. “Uma área deve conter o máximo de biomassa e biodiversidade que ela pode naturalmente manter.” Sendo assim, temos que nos perguntar qual o tipo de ecossistema caracterívstico de nossa área, para planejar nossos sistemas produtivos de acordo. Em áreas que originalmente abrigavam biomas forestais, devemos instituir sistemas agroforestais que refitam o ecossistema original e incluam ao máximo seus elementos, já que uma agroforesta desempenha todas as funções ambientais de uma foresta, não apenas abrigando biomassa e biodiversidade (animal, vegetal, microbiológica etc.), mas também protegendo o solo, a água, o clima, etc. Áreas de campos e prados naturais são mais adequadas a pastagens e plantações de grãos. Claro que, em algumas situações, os interesses humanos entrarão em confito com este princívpio da biomassa e biodiversidade. Por exemplo, para construir uma casa será necessário suprimir a foresta, e também podemos necessitar ou desejar plantar hortaliças para nossa alimentação. Nesses casos, cabe o bom senso de manter essa supressão em um mívnimo possívvel para suprir nossas necessidades. Infelizmente, porém, é extremamente comum ver pessoas suprimindo indiscriminadamente a vida em largas áreas, apenas para satisfazer um senso “estético” culturalmente arraigado. Um grande exemplo disso, extremamente comum em regiões rurais, é manter a propriedade toda capinada ou roçada, ou seja, suprimir a vida natural sistematicamente e a um alto custo energético, apenas para dizer que está tudo “limpo”. Esse tipo de cultura deve ser abolido, pois é simplesmente contra a vida. Um outro exemplo semelhante, comum em áreas residenciais, são os gramados, que ocupam grandes áreas e consomem 80

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muitos recursos (água para irrigação, fertilizantes), sem produzir nada. Pense no tanto de fores, verduras e arbustos frutívferos poderiam ser plantados ali! E as abelhas, pássaros, etc. que se benefciariam disso, além de nós mesmos, humanos. Regiões semi-áridas e desérticas têm abrigado populações humanas há milhares de anos; portanto, é perfeitamente possívvel viver nessas áreas, mas os sistemas produtivos e mesmo o estilo de vida devem ser adequados às condições locais. É verdade que em muitas situações é possívvel obter um aumento da biomassa e biodiversidade de uma área, além do que ocorre naturalmente, através da aplicação habilidosa dos princívpios e técnicas da permacultura. Porém, deve-se fcar muito atento, pois na maioria das vezes, devido ao uso de estratégias inadequadas, uma aparente melhoria da vida em uma área no curto prazo pode vir a um alto custo ambiental, não sendo sustentável e tendo, no médio e longo prazo, um efeito global negativo ao meio ambiente. Seguem alguns exemplos: • Em locais de clima semiárido, o uso indiscriminado da irrigação pode causar sérios problemas, como excessivo uso de energia e custo ambiental associado, e redução na vazão e mesmo secamento de rios. O uso de águas subterrâneas para irrigação causa abaixamento progressivo do lençol freático, não sendo sustentável a longo prazo. Além disso, via de regra causa a salinização do solo, tornando-o estéril. • O uso de fertilizantes quívmicos para melhorar a fertilidade do solo pode aumentar a biomassa no curto prazo, mas seu uso contívnuo é tóxico ao solo, reduzindo sua biodiversidade, não sendo, portanto, sustentável. Ainda, contamina cursos d'água, reduzindo a qualidade da vida nesses ecossistemas, ou seja, tem um efeito global negativo. • Mesmo com fertilizantes orgânicos (e.g. esterco animal), é preciso ter cuidado. Embora criem uma melhora da vida onde são usados, deve-se observar que, na verdade não houve um aumento da fertilidade, mas sim uma transferência da mesma: essa fertilidade que aumentou em sua área talvez tenha passado a faltar no local de onde o adubo foi retirado. Por isso, deve-se ser crívtico quanto à fonte desse adubo, procurando captá-lo de locais e situações onde ele de outra forma seria desperdiçado, enfm, obtê-lo de formas que não causem um dano no local de origem, levando também em consideração o custo energético relativo ao seu transporte, etc. Portanto, o único caminho sustentável para se obter um aumento na quantidade e qualidade da vida em uma área é através do uso dos princívpios da permacultura: utilizando recursos do próprio local, fxando a água, reciclando nutrientes, atentando para a efciência energética, valorizando as espécies locais, 81

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

integrando-as de forma habilidosa para obter o máximo de relações benéfcas, imitando o funcionamento do ecossistema local, etc. Como veremos nos capívtulos seguintes, a biomassa e biodiversidade do solo e do ecossistema terrestre são as responsáveis pela construção e manutenção da fertilidade do solo, e qualquer redução na biomassa e biodiversidade fatalmente acarreta redução da fertilidade. Outra importante implicação deste princívpio diz respeito à fxação de carbono: uma das mais importantes formas de prevenir ou reverter o efeito estufa é o sequestro de carbono atmosférico na forma de biomassa. Quanto mais biomassa, maior a quantidade de carbono fxada, ou seja, sendo retirada da atmosfera.

9. Use soluções pequenas e lentas Quando uma pessoa toma consciência da gravidade da crise ambiental atual e decide entrar para o movimento por um mundo melhor, mais justo, mais sustentável, é muito comum sentir-se perdida e intimidada: “tudo está tão errado, e eu também tenho feito tudo tão errado... quero mudar isso, fazer a minha parte, mas por onde começar?” A resposta para essa pergunta é muito simples: comece com o que é mais fácil, com o que está ao seu alcance imediato. Acredite no poder transformador de um conjunto de atitudes pequenas e simples. Lembre-se do velho ditado: “para fazer uma caminhada de mil quilômetros, o mais importante é dar o primeiro passo.” Claro que a segunda coisa mais importante é continuar caminhando! A primeira coisa a fazer é adotar a permacultura como estilo de vida, o que signifca aplicar os princívpios da permacultura em seu dia a dia. Usar o mívnimo de recursos possívvel: tome um banho mais rápido, use o chuveiro na posição “verão” e abra menos o registro; colete a água do seu banho com uma bacia, e use-a para dar descarga. Você também não precisa dar descarga cada vez que faz um mero xixi! Apenas com medidas simples como essas, é possívvel reduzir o consumo diário de água a menos da metade. Acenda o mívnimo de lâmpadas à noite, e apague-as quando não estiver usando. De dia, nunca acenda lâmpadas — abra as janelas! Evite usar o carro, vá de bicicleta. Reduza seu consumo de carne, leite e derivados, busque uma alimentação mais saudável, compre a granel, na feira; evite embalagens, valorize os produtores locais, sempre que possívvel. Reduza seu consumo comprando menos coisas, e separe criteriosamente seu lixo; descubra formas de garantir que eles sejam reciclados (em alguns locais, com a coleta urbana muito desorganizada, pode ser necessário levá-los diretamente a um centro de reciclagem). Faça compostagem em sua casa, plante algumas verduras e ervas, de acordo com o espaço que tiver disponívvel. Capte água da chuva, das calhas do seu telhado — inicialmente, pode ser com bombonas de 200 litros, enquanto elabora planos para uma captação 82

Parte II – A Alternativa da Permacultura

7. Éticas e Princípios da Permacultura

mais efciente. Use essa água para regar seu jardim, lavar roupa, o chão, etc. (o estilo de vida da permacultura será o assunto do capívtulo 14) Claro que apenas medidas desse tipo não serão sufcientes para resolver o problema da insustentabilidade, mas tudo tem que começar com elas! Isso é essencial para iniciar a jornada da permacultura — é uma transformação que leva tempo, e o importante é começar, e continuar caminhando. Um erro que muitas pessoas cometem ao fcarem muito empolgadas e ansiosas com a permacultura é querer fazer grandes movimentos em um curto espaço de tempo. Por não terem experiência, acabam gastando muito dinheiro, causando estragos e na maioria das vezes os sistemas não funcionam a contento. Arrumam briga com familiares e vizinhos, etc., e isso tudo muitas vezes faz com que desanimem e desistam, o que é a pior coisa que pode acontecer. Portanto, o melhor é começar pequeno e ir reavaliando-se constantemente (veja o princívpio n.o 18), para evoluir gradualmente, alcançando resultados mais profundos. Enquanto você assimila essas atitudes, deve dedicar-se continuamente à elaboração de planos para uma vida realmente sustentável, à luz da permacultura. Este planejamento é muito importante, e deve ser feito com calma e com a máxima seriedade. Não adianta nada querer fazer uma revolução de forma precipitada, e acabar não sobrevivendo, morrendo na praia. O mesmo princívpio se aplica quando a pessoa vai desenvolver seu projeto de permacultura rural. Um erro muito comum é a pessoa bolar um plano que ela acredita ser ótimo, e chegar fazendo grandes modifcações na paisagem, usando maquinários, suprimindo vegetação, mexendo na topografa... consumindo um monte de petróleo, trazendo um monte de recursos de fora, investindo um monte de dinheiro, partindo do argumento que os resultados fnais compensarão todo esse estrago (tendo em mente aquela visão de seu projeto num futuro próximo, lindo, exuberante e altamente produtivo). Infelizmente, porém, na maioria das vezes os resultados fnais fcam muito aquém do esperado — os benefívcios não se concretizam, e fca apenas o estrago. O fato é que quanto maior a escala de nossas ações, maiores os danos e menor nossa capacidade de prevê-los ou consertá-los, e isso é agravado pela inexperiência. Começando devagar e lentamente, com observação e reavaliação constante, podemos evitar esses danos e aperfeiçoar gradualmente nossos sistemas, podendo, depois, se necessário, aplicá-los em maior escala, de forma segura. É preciso sempre lembrar que a natureza também está trabalhando para sua própria restauração, pois é isso que ela faz. O princívpio das soluções lentas e pequenas também inclui o conceito da mínima interferência, ou seja, de deixar a natureza fazer o seu trabalho. Muitas vezes, quando interferimos demais, apesar de nossas boas intenções acabamos atrapalhando-a e comprometendo a recuperação ambiental que ocorreria naturalmente. 83

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

10. Projete dos padrões aos detalhes A observação cuidadosa da natureza e também de sistemas humanos altamente harmoniosos e funcionais permite a identifcação de padrões que se repetem — fórmulas consagradas pelo uso. Aprender a reconhecer esses padrões nos dá um bom ponto de partida na elaboração de nossos projetos. Começar com padrões gerais para depois tratar dos detalhes é a abordagem mais usada por artistas plásticos como desenhistas, pintores e escultores, por arquitetos ao projetarem seus edifívcios, e urbanistas ao planejarem cidades inteiras, e essa abordagem é a que dá os melhores resultados, resultando em obras e projetos equilibrados, harmoniosos, bonitos e funcionais. O mesmo ocorre em projetos de permacultura e por isso essa abordagem deve ser também empregada em design permacultural — partir de padrões, acrescentando depois os detalhes, levando em consideração as relações entre os elementos, de forma a atingir um alto grau de integração dos sistemas, o que resulta em harmonia, funcionalidade e efciência energética. A abordagem oposta, ou seja, tratar de cada elemento de forma individual e ir adicionando-os arbitrariamente, é frequentemente utilizada por pessoas inexperientes ou não capacitadas, e via de regra resulta em sistemas instáveis, desarmoniosos e inefcientes. No design permacultural, já que buscamos uma perfeita integração dos elementos, devemos começar por conhecer os elementos. Assim, a elaboração de um projeto deve se iniciar com um levantamento detalhado das condições do local e da região: aspectos geográfcos (altitude, latitude, tamanho, orientação, topografa, geologia/edafologia, hidrologia, clima), ecológicos (bioma nativo, grau de preservação/antropização), elementos humanos (vizinhança, cultura local etc.), questões de infraestrutura local (situação urbana ou rural, acesso, disponibilidade de recursos materiais e humanos), etc. Igualmente importantes são os objetivos do projeto, que podem incluir produção de alimentos para fns comerciais, produção para autossufciência, recuperação ambiental, moradia, educação ambiental, etc. A partir daív, começamos com um esboço do design. Neste ponto, o que normalmente se observa é que para cada categoria de projeto (por exemplo, projeto de permacultura rural em pequena propriedade em região tropical, ou então projeto de permacultura urbana em uma casa com quintal, em região temperada, etc.), os aspectos gerais do design se repetem. Por exemplo, em um projeto rural, um processo tívpico de elaboração do design geralmente começa pelos sistemas de água (área de captação e pontos de armazenamento, favorecendo uso por gravidade), acessos, e posição da casa (altura intermediária no terreno, para ter abastecimento de água por gravidade e espaço sufciente abaixo da casa para lidar com efuentes). Em seguida, trata-se dos sistemas produtivos. Aqui, aplica-se o método de zonas de proximidade e intensidade 84

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(que em si são um importante aspecto da aplicação de padrões em permacultura, e serão discutidos em detalhes no capívtulo 9, “Permacultura Rural”). Por fm, trata-se dos sistemas produtivos e não produtivos, e seus detalhes (espécies a serem usadas e sua disposição, instalações e benfeitorias como galpões, viveiros, estufas, casas, etc.) A aplicação deste princívpio — projete dos padrões aos detalhes — se dá em cada um dos nívveis do projeto, e em todas as escalas. Ou seja, aplica-se tanto no design de um projeto individual de permacultura, como em uma ecovila ou mesmo uma cidade inteira; e também se dá no projeto de um simples galinheiro, uma horta ou uma lagoa artifcial.

11. Prefra recursos renováveis e utilize-oos de forma sustentável Utilizar recursos não renováveis pode ser vantajoso em certas situações, mas ao criarmos uma dependência desses recursos nos metemos em uma verdadeira arapuca, e o pico do petróleo é, talvez, o melhor exemplo disso. Porém, não basta usar recursos renováveis — é imprescindívvel que os utilizemos de forma sustentável, ou seja, devemos utilizá-los de forma consciente e controlada, de fato permitindo que se renovem, pois mesmo recursos renováveis podem se extinguir, e isso de fato ocorre a todo tempo em nosso mundo atual. Muitos dos maiores problemas da humanidade derivam justamente do uso insustentável de recursos que, em sua natureza, são renováveis. Por exemplo, animais, plantas, forestas e água são todos recursos renováveis; porém, seu uso abusivo, descontrolado e irracional tem levado à extinção de milhares de espécies de animais e plantas, o desaparecimento de forestas e biomas inteiros, e crises hívdricas em diversas partes do mundo. Assim, além de se priorizarem os recursos renováveis, há que se estabelecer limites quanto ao uso de recursos, dentro de uma taxa que permita sua renovação, e adotar práticas que encorajem sua renovação, evitando seu declívnio. Por exemplo, a lenha pode ser usada como combustívvel em situações rurais, já que é um recurso renovável produzido naturalmente dentro da propriedade, podendo ser considerada mais vantajosa que o gás liquefeito de petróleo, que tem que ser comprado, implicando portanto em um gasto de dinheiro e uma dependência de um recurso externo e não renovável. O erro está em utilizar a lenha a uma taxa superior à de renovação da madeira na propriedade, levando a uma redução progressiva na disponibilidade desse recurso e degradação ambiental. Isso acontece em diversas partes do mundo, onde o corte para lenha é uma importante causa de desmatamento. Um manejo adequado da lenha permite que se colha quantidade sufciente, continuamente, e sem jamais entrar em declívnio; isso signifca manter um baixo consumo, e 85

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promover sua renovação. Para tanto, deve-se utilizar o recurso de forma econômica e efciente, obtendo o máximo benefívcio com a mívnima quantidade de lenha: otimizar o uso do fogo, utilizar fogões de alta efciência, como o rocket stove, priorizar alimentos consumidos crus; utilizar aquecimento solar de água, e design adequado da casa que permita abolir ou minimizar o uso de lenha para aquecimento, através de isolamento e vedação adequada, o uso de materiais que promovam conforto térmico, design passivo para energia solar, etc. Do outro lado, para promover sua regeneração, deve-se adotar boas práticas: não abater as árvores, mas ao invés disso apenas podá-las, permitindo sua regeneração, e usar os galhos podados como lenha; plantar e cultivar espécies de árvores bem adaptadas, de crescimento rápido, para suprimento contívnuo e sustentável de lenha, etc. Também o uso da água deve obedecer critérios racionais para que este recurso seja preservado e de fato aumentado. Isso signifca reduzir o consumo doméstico de água, e o consumo de produtos que demandam muita água para sua produção (e.g. carne, leite e derivados); captar, armazenar, utilizar e reciclar ao máximo a água de chuva; evitar usar água de corpos d’água naturais subterrâneos e superfciais, mas, caso seja necessário, usá-la de forma criteriosa; jamais poluir quaisquer corpos d'água, tanto superfciais (nascentes, córregos, rios, lagos e mares) como subterrâneos (lençol freático); proteger as forestas e dedicar-se ao reforestamento de áreas desmatadas, para preservar e recuperar os recursos hívdricos, etc. O princívpio dos recursos renováveis se aplica também aos sistemas produtivos, pois devemos sempre focar na reciclagem dos nutrientes do solo, através da adubação orgânica, compostagem, cobertura vegetal morta de solo, etc., ao invés de fertilizantes quívmicos. Também na construção, devemos dar preferência a materiais naturais, renováveis e de preferência do próprio local, e técnicas de bioconstrução. Este princívpio também nos lembra que devemos preferir sempre que possívvel formas de energia renováveis e de baixo impacto, como a solar e eólica.

12. Versatilidade e redundância Na natureza, não há praticamente nada que tenha apenas uma função — todos os elementos desempenham múltiplas funções. Uma árvore, por exemplo, oferece abrigo para inúmeros seres vivos como insetos, aves, morcegos, esquilos, outras plantas (epívftas), etc., fornece alimento para inúmeros animais (seiva, pólen, folhas, frutos, sementes), protege o solo, estabiliza o clima e o ciclo das águas, fornece madeira, sombra, beleza, etc. Já uma minhoca digere matéria orgânica produzindo húmus, aera o solo e serve de alimento para inúmeras espécies de aves e mamívferos. Também no corpo humano, a maioria dos órgãos 86

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têm diversas funções, com raras exceções de órgãos extremamente especializados, como por exemplo o olho. A sociedade moderna, com sua mania reducionista, tem grande tendência em favorecer a especialização: hoje temos ferramentas e utensívlios cada vez mais especializados, e pessoas cada vez mais especializadas em suas funções. É fato que, via de regra, quanto maior o grau de especialização, maior a efciência com que se performam funções especívfcas; porém, ao mesmo tempo, perde-se em fexibilidade: quanto mais especializados os utensívlios ou equipamentos, maior quantidade de diferentes utensívlios tornam-se necessários para que se possam desempenhar todas as funções. Da mesma forma, indivívduos altamente especializados muitas vezes tornam-se totalmente dependentes de outros indivívduos para funções básicas à sua própria sobrevivência. Sistemas naturais funcionam de forma efciente e estável devido à diversidade, integração e autorregulação. Porém, para que haja integração, é preciso que haja um certo grau de fexibilidade nos elementos do sistema. Isso explica por que não são comuns elementos altamente especializados na natureza: por sua falta de fexibilidade e alto grau de dependência, tais elementos foram naturalmente excluívdos no processo natural de seleção. “Cada elemento performa múltiplas funções; cada função importante é suportada por diversos elementos.” Por isso, ao projetarmos nossos sistemas, é importante que cada elemento desempenhe diversas funções. Por exemplo, se você só tiver espaço para uma árvore, que seja uma árvore de boa sombra e que produza frutas comestívveis. Ao se projetar uma agroforesta, faça-o de forma que ela produzirá diversos produtos úteis, como frutas e outros alimentos, madeiras, fbras, óleos, mel, e ainda sirva diversas outras funções, como abrigo para fauna, corredor biológico, funcione como cerca viva, aumentando a privacidade e reduzindo barulho e poeira da estrada, etc. Ao projetar uma lagoa artifcial, faça-o de forma que sirva a várias funções, como reservatório de água para consumo e irrigação, produção de plantas aquáticas, peixes, rãs e pitus, atraia aves e outros animais silvestres, seja bonita e agradável, e ainda dê para dar uns mergulhos! Estradas e caminhos podem ser feitos em nívvel e elevados, servindo para reter água da chuva e controlar a erosão. Cercas vivas devem incluir várias espécies vegetais, para que além de servirem como cerca, ainda produzam frutas, folhas comestívveis e lindas fores. Na casa, o fogão a lenha pode servir não apenas para cozinhar, mas também para aquecer o ambiente (acoplado a um irradiador), e aquecer água (com um sistema de serpentina). Mesmo que você tenha um aquecedor solar de água (e deve ter mesmo!), isso poderá te salvar em dias frios e chuvosos de inverno. O outro lado da moeda é que funções essenciais devem ser suportadas por 87

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diversos elementos, pois isso dá segurança ao sistema, garantindo que, na falha de um elemento, a função continuará sendo desempenhada. Por exemplo, não se pode ter apenas um reservatório de água na propriedade, e sim vários reservatórios, por segurança. Também, se você utiliza um poço com bomba elétrica, é sempre uma ótima ideia ter também uma bomba manual sempre disponívvel, em caso de falta de energia, etc.

13. Use a tecnologia de forma apropriada Na sociedade moderna há uma forte tendência à supervalorização da tecnologia, enormemente motivada pela indústria e pela mívdia. Criou-se a noção que para algo ser bom, tem que ser a última tecnologia, e que sem os últimos avanços tecnológicos não se pode viver; na maioria das vezes as pessoas nem param para pensar que há apenas alguns anos ou décadas, essas tecnologias nem sequer existiam, e o mundo funcionava, e todo mundo vivia. As chamadas “soluções tecnológicas” muitas vezes oferecem pouca ou nenhuma vantagem sobre métodos tradicionais ou de baixa tecnologia, além de normalmente terem alto custo de aquisição e manutenção, requererem grande quantidade de energia elétrica ou combustívveis, gerarem resívduos, etc. O vívcio por tecnologias avançadas é uma forma de consumismo com alto custo para o ambiente, e ao mesmo tempo causa um tipo de dependência psicológica debilitante, onde o indivívduo sente-se totalmente incapaz de fazer qualquer coisa a não ser que tenha nas suas mãos o que há de mais moderno — por não dispor deste ou aquele aparato tecnológico, muitas vezes o indivívduo até desiste de fazer o que queria, por não se sentir “adequadamente equipado”, sendo que a tarefa poderia muito bem ser feita com aquilo que já se tem à mão. Daív nasce a diferença entre os que fazem pouco com muito, ou fazem muito com pouco. Na permacultura, procuramos sempre estar no segundo grupo. Talvez seja útil citar aqui alguns exemplos de como o princívpio da tecnologia adequada é totalmente ignorado por muita gente: como o indivívduo que desce de elevador de seu apartamento e vai de carro até a academia de ginástica, onde ele gasta dinheiro para fcar em um local com iluminação e ventilação artifcial, usando aparelhos que muitas vezes consomem energia elétrica... para fazer o exercívcio que ele poderia muito bem ter feito de graça e sem nenhum gasto de combustívvel ou energia elétrica, simplesmente usando as escadas de seu prédio e se locomovendo a pé ou de bicicleta. Ou aquelas pessoas que compram avidamente eletrodomésticos e utensívlios para a cozinha — multiprocessadores, centrívfugas, fornos de controle digital, kits disso, kits daquilo... — e simplesmente nunca cozinham! Compram comida pronta congelada, e só esquentam no micro-ondas. Malemá cozinham um arroz e feijão, enquanto outras pessoas, sem nunca terem ou sequer conhecerem aqueles 88

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apetrechos, sempre cozinharam de tudo, sem problema algum. Outro exemplo são os chamados sopradores de folhas: máquinas caras e barulhentas, que consomem energia elétrica ou gasolina (nesse caso ainda geram fumaça fedorenta e tóxica), que fazem exatamente o mesmo serviço que sempre foi feito de forma totalmente satisfatória por simples vassouras e rastelos! E ainda tem a desvantagem de levantar uma quantidade enorme de poeira, que sempre causa muito incômodo e, não raro, irritação nos olhos e sistema respiratório. Muitas pessoas erroneamente assumem que novas tecnologias, cada vez mais modernas, resolverão os problemas da humanidade. Porém, muitas vezes, as novas tecnologias trazem soluções para problemas que nunca existiram. Outra coisa que se pode dizer de novas tecnologias é que, para cada problema que elas resolvem, criam dez outros novos problemas. Está claro que com o crescimento da tecnologia estamos fcando cada vez mais insustentáveis.* A solução para a maioria dos nossos problemas está na verdade em menos tecnologia — tecnologias mais simples, e uma dose maciça de bom senso e ética. Por exemplo, na construção de uma casa, devemos utilizar técnicas naturais (bioconstrução), muitas vezes ancestrais, que corretamente aplicadas resultam em habitações baratas, de baixo impacto ambiental, alta efciência energética, além de uma autenticidade ívmpar. Em sistemas produtivos, devemos focar em sistemas de baixa tecnologia, focando na diversidade e integração dos elementos de forma que imitem as relações naturais, sendo automantenedores, e evitar sistemas automatizados e tecnológicos, pois os primeiros contribuem para nossa autossufciência e independência, enquanto os últimos nos manteriam eternamente dependentes de insumos externos, tecnológicos, e consequentemente recursos fnanceiros (o oposto da autossufciência), além do fato que esses insumos provavelmente deixarão de estar disponívveis no futuro. “Tecnologia não é substituto para bom senso” Claro que há muitas tecnologias modernas que podem trazer reais benefívcios, e essas podem e devem ser utilizadas. Neste contexto, provavelmente o exemplo de maior destaque é a internet — ela é hoje a melhor, mais vasta e mais acessívvel fonte de informação disponívvel à maioria das pessoas, o que sem dúvida é de um potencial maravilhoso, que deve ser explorado ao máximo. Também é útil como forma de conectar pessoas e formação de redes de contatos e trabalho, ou networking, o que ajuda os indivívduos e fortalece movimentos como a permacultura, por exemplo. * Para uma análise aprofundada deste tema, recomendo a leitura de “Techno-Fix: why technology won’t save us or the environment”, de Michael Huesemann e Joyce Huesemann.

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Outro exemplo é o uso de maquinário pesado, como retroescavadeiras e carregadeiras, em projetos de permacultura, por exemplo na escavação de reservatórios de água, como lagoas artifciais. Criticado por uns e defendido por outros, aqui na verdade deve prevalecer o bom senso, numa avaliação caso a caso. Sem dúvida é possívvel e preferívvel escavar à mão, desde que se tenha muitas pessoas para ajudar. Em outros casos, em que mão de obra for escassa ou cara, enquanto maquinário seja disponívvel a baixo custo, a mesma lagoa pode levar meses e custar carívssimo para se escavar a mão, ou poucas horas e 50 litros de óleo diesel para fazer o mesmo serviço com uma máquina — um uso perfeitamente justifcável da tecnologia disponívvel, especialmente considerando o benefívcio ambiental a longo prazo. Ou seja, o princívpio do uso apropriado da tecnologia não preclui o uso das tecnologias modernas, e sim implica no uso racional e criterioso das mesmas.

14. Obtenha um rendimento A permacultura visa alcançar dois objetivos: o suprimento das necessidades humanas e a preservação e restauração do meio ambiente. Embora diferentes indivívduos possam focar mais em um ou outro aspecto, ambos são igualmente importantes e devem ser sempre considerados em conjunto. O que acontece muitas vezes, porém, é que as pessoas que se sentem atraívdas para a permacultura têm uma história de vida predominantemente urbana, e estão cansadas e desgostosas por seus estilos de vida artifciais e estressantes; amam a natureza e ressentem-se do fato que a humanidade a está destruindo, e querem “mudar de lado”, passando a defendê-la. Sentem uma necessidade de se reintegrar à natureza, e têm o ideal de produzir alimentos de forma orgânica e saudável, mas não têm uma história no campo e, assim sendo, não estão acostumadas a produzir e depender dessa produção. Consequentemente, muitas vezes, ao iniciarem seus projetos de permacultura, os novatos tendem a focar muito na preservação e recuperação ambiental, e desenvolvimento de um estilo de vida que consideram simples e natural, deixando em segundo plano a produtividade. Cria-se assim um impasse: não faz sentido tentar recuperar uma área degradada, ou plantar uma foresta, se você não consegue nem sequer se manter! Pela mais pura lógica, se você não sobreviver, seu projeto também perecerá. Então, o que muitas vezes acaba acontecendo é que, sem produção sufciente para se manterem, essas pessoas acabam exaurindo seus recursos fnanceiros e tendo que abandonar seus projetos, e retornar à vida de antes, ou seja, à mesma realidade da qual queriam se afastar. Fracassam, assim, em deixar de fazer parte do problema, e passar a fazer parte da solução do problema da insustentabilidade humana, e fracassam também em alcançar o 90

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

estilo de vida que desejam. A permacultura parte da premissa que é perfeitamente possívvel ter alta produtividade sem degradar o meio ambiente. Para cumprir esta promessa, projetos de permacultura devem produzir alimentos e outros produtos em quantidade e qualidade sufciente para suprir as necessidades do permacultor e sua famívlia, e ainda prover um excesso de produção que pode e deve ser compartilhado, seja pela troca ou venda, benefciando mais pessoas e também o meio ambiente, tanto diretamente, pela recuperação ambiental, aumento da biodiversidade e biomassa, proteção do solo, da água etc, como indiretamente, ao oferecer alimentos orgânicos no mercado, “roubando” espaço do agronegócio ecocida. Portanto, ao nos dedicarmos à permacultura, não devemos nunca nos esquecer que devemos buscar essa produtividade, com a máxima seriedade.

15. Pense globalmentel, aja localmente (faça sua parte) Um dos mais graves vívcios de atitude das pessoas é aquele pensamento: “se todo mundo faz o errado, não adianta nada só eu fazer o que é certo, pois isso fará qualquer diferença”. Claramente, esse tipo de atitude só contribui para a degradação progressiva, tanto da sociedade como do meio ambiente. É imperativo que tomemos as rédeas de nossas próprias vidas, e passemos a vivêlas em consonância com nossos próprios princívpios, e não baseado no comportamento das demais pessoas. Agir localmente signifca, acima de tudo, fazer da permacultura o seu estilo de vida. É melhorar o meio ambiente ao redor de sua própria casa. Mais do que partir para o ativismo, ou depositar grandes expectativas em outros grupos de pessoas, governos ou corporações, é fazer, concretamente, o que está ao seu alcance, porém partindo de uma compreensão global dos problemas existentes. Vejamos alguns exemplos práticos de como adotar este princívpio: • Considerando que automóveis consomem muitos recursos e poluem o meio ambiente, e não é viável cada pessoa no mundo ter um automóvel, então procurarei me abster de ter ou utilizar um. • O desmatamento é um gravívssimo problema da atualidade, então não comprarei madeiras oriundas do desmatamento, e plantarei eu mesmo muitas árvores. • A agricultura industrial está destruindo a natureza, então comprarei produtos orgânicos, ou melhor ainda, produzirei meus próprios alimentos de forma orgânica.

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• A pecuária causa graves problemas ambientais, então limitarei meu consumo de produtos de origem animal. • O consumismo está destruindo o planeta, então consumirei apenas o essencial. • A água está fcando escassa, então captarei água da chuva, economizarei e reciclarei água. • Esgotos estão matando os rios e mares, então, usarei banheiro seco. • Temos um problema de superpopulação, então limitarei meu número de flhos a no máximo dois, etc. O pensamento de “não conseguirei mudar o mundo”, ou “isso não fará diferença nenhuma” é extremamente derrotista e contraproducente. Deve-se ter em mente que, ao adotar uma postura de positividade e ação o indivívduo cria um campo de infuência à sua volta, incitando à refexão e infuenciando várias pessoas a seguirem seu exemplo. E essas, por sua vez, também infuenciarão outras, e assim por diante. Assim, ao adotar a permacultura como estilo de vida, o indivívduo torna-se um elo de uma corrente que pode, sim, ter um forte impacto no mundo. Além disso, mesmo que não se consiga mudar a história do mundo, certamente é possívvel mudar o seu papel nessa história: deixar de ser parte do problema, e passar a ser parte da solução. Essa mudança, por ter um fundo essencialmente moral, representa um resgate da dignidade do indivívduo, o que é extremamente recompensador — você saberá que está fazendo a coisa certa, e isso por si só já fará tudo valer a pena.

16. Cooperação ao invés de competição Na sociedade moderna, há uma grande ênfase em competição. Na maioria das profssões, você tem que produzir mais, ou vender mais, ou inovar mais, etc. para sobreviver em seu emprego ou ter uma chance de ascender em sua carreira. Ou seja, há uma pressão constante para que você se destaque, se sobressaia, seja melhor que os outros — o que signifca competição. Essa cultura já fcou tão arraigada, que contaminou até mesmo as mais ívntimas relações familiares: muitas mães têm como principal preocupação que seus flhos se mostrem “avançados para sua idade”, estejam acima da média nisso ou naquilo… muitas vezes o fazem de forma inconsciente; outras vezes, procuram justifcar esse tipo de atitude com o argumento que querem garantir sucesso de seus rebentos no mercado de trabalho mais à frente — sem perceber que estão de certo modo comprometendo, corrompendo a pureza da primeira infância, que não volta mais. O espívrito de competição se manifesta também nos cívrculos sociais, onde as pessoas estão sempre se comparando com outras e buscando parecer melhores, mais bonitas, ricas e felizes — uma competição largamente 92

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baseada em aparências falsas, e onde sentimentos inferiores e medívocres como a inveja têm lugar garantido. Outro aspecto de nossa sociedade que ilustra essa cultura da competitividade é a paixão, fxação, obsessão de algumas pessoas por esportes — não a prática de exercívcios fívsicos, que poucos na verdade fazem, mas competições desportivas. Claro que é normal e saudável, e mesmo caracterívstico da natureza humana querer se superar, forçar nossos limites — faz parte da busca por evolução. Agora, isso no que o esporte se transformou é algo bem diferente: trata-se uma verdadeira indústria. O conceito de esportista “profssional” é algo muito recente na história; pessoas que não fazem mais nada além de correr, pular e chutar bolas, coisas que em si não têm utilidade, não produzem nada, em nada contribuem para a solução de qualquer dos muitos problemas do mundo. Do jeito que a coisa virou, nem sequer bom para a saúde dos atletas é — seus corpos são usados de forma abusiva e descartável, utilizando drogas para aumentar a performance, acumulando lesões crônicas, etc. Os que chegam ao topo, os campeões, são vistos pelas massas como heróis. Mas, heróis do que? Com que isso tudo contribui para a sociedade? Afnal, para que serve tudo isso? Claro, serve para dar destaque aos seus patrocinadores, ajudando-os a vender mais seus produtos, ganhando da concorrência — ou seja, um tipo de competição alimentando outro tipo de competição. Ah sim, também serve para manter a massa acéfala distraívda, anestesiada. Claro que não cabe dizer que a competição em si é algo ruim. Ela existe na natureza, onde é importantívssima, sendo a força motriz da evolução e manutenção das espécies, conforme postula a famosa teoria de Charles Darwin. É importante destacar, porém, que também na natureza a competição é apenas parte da estória! De fato, são muitos os tipos de relacionamentos que ocorrem entre os seres vivos, podendo eles ser positivos (também chamados harmônicos), como as colônias, a simbiose e o comensalismo, e negativas (ou desarmônicas) como a competição, a predação e o parasitismo, etc. Também nas sociedades humanas, a competição é natural e inevitável, e tem uma função positiva à medida que é um fator de estívmulo para que as pessoas se superem, atingindo o máximo de seu potencial. O problema é a supervalorização e exacerbação da competição na sociedade atual, ou seja, uma falta de equilívbrio. Aqui, temos que destacar uma diferença da sociedade convencional (paradigma atual) e a proposta da permacultura: de modo geral, na sociedade, quando se fala em superação e evolução, o indivívduo está pensando em sua própria ascensão na carreira, ou sua ascensão econômica, social, etc., Ou seja, os objetivos dos esforços do indivívduo são focados no ego. Já na permacultura, os objetivos dos esforços são bens maiores: a preservação da natureza e o futuro da humanidade (que podem ser vistos como uma só coisa). Sendo assim, a motivação para a superação é de natureza totalmente diferente: não o benefívcio próprio ou interesses egocêntricos, mas 93

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primariamente uma motivação moral, de valores — pode-se dizer, um verdadeiro espívrito heroico (bem diferente dos jogadores de futebol!). Por isso, permacultores não devem competir entre si, e sim cooperar, pois só assim alcançaremos de forma máxima os objetivos da permacultura. Exemplos de cooperação comuns na permacultura incluem: a ajuda mútua, como em mutirões e trabalhos conjuntos, voluntariado, economia solidária (troca de saberes, serviços e produtos, incluindo excedentes de produção), liberdade de informação, etc. Além disso, a própria proposta da permacultura representa essencialmente uma cooperação do homem com a natureza: “Trabalhar com a natureza, e não contra ela”.

17. Autossufciência e empoderamento local Nossa sociedade atual é marcada pela compartimentalização de tarefas e funções, melhor expressa pelo conceito de profissão. Por esse conceito, cada indivívduo tem praticamente a obrigação de adquirir uma habilidade especívfca, ou especializar-se em um conjunto restrito de tarefas, que desempenhará todos os dias em seu trabalho — na maioria das vezes na condição de empregado. Argumenta-se que, nessa estrutura, a função desempenhada por cada um contribui de alguma forma para a construção e manutenção da sociedade. Geralmente, as pessoas são induzidas a escolher uma profssão, dentro de um leque de opções preestabelecidas, quando ainda bem jovens, dentro das opções e oportunidades que se lhe são disponívveis, e visando acima de tudo ganhar dinheiro para suprir suas necessidades, através do consumo de bens e serviços. Enquanto isso, os conhecimentos e habilidades mais essenciais, como produzir e preparar seus próprios alimentos, são simplesmente postos de lado, caindo no esquecimento. O considerado normal no mundo hoje é o indivívduo trabalhar o dia inteiro todos os dias em um emprego, desempenhando tarefas que não tem relação direta alguma com o suprimento de suas necessidades mais primordiais e básicas como alimentação e habitação, por exemplo. Trabalhar na frente de um computador em um escritório, atender clientes, vender produtos, falar ao telefone, dirigir veívculos, apertar botões, dar aulas, etc. são atividades profssionais comuns, e todas elas suprem as necessidades básicas do indivívduo de forma indireta, através do dinheiro. Isso é o considerado normal hoje em dia. Pode parecer que tudo está bem, à medida que, realmente, dentro desse sistema as pessoas têm suas necessidades supridas, e o mundo está aív, de pé (ainda). Porém, esse tipo de organização do trabalho traz também pelo menos dois sérios problemas: 1. A falta de um sentimento de sentido naquilo que o indivívduo faz, pois dedicar-se a funções muito especívfcas e sem relação direta com o

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

suprimento de necessidades básicas geralmente não é motivante, não gera uma sensação de importância, e portanto de preenchimento e satisfação. Daív a maioria das pessoas declararem que não gostam de seu trabalho, caracterizando uma insatisfação crônica que se traduz em uma baixa qualidade de vida e baixa autoestima, chegando até à depressão. 2. Uma situação de total dependência do sistema. Enquanto o sistema estiver funcionando, e o indivívduo tiver emprego, e houver transporte e infraestruturas em geral, e comida no supermercado, estará “tudo bem”. Porém, quando essas estruturas fnalmente ruívrem, fcará clara a real situação de fragilidade, de precariedade que essa dependência no sistema representa. Além disso, vale citar que vivemos em uma sociedade doente e insustentável, portanto praticamente todas as atividades convencionais no mercado de trabalho contribuem também direta ou indiretamente para a insustentabilidade humana. Isso sem contar o fato que hoje muitas das atividades e profssões simplesmente carecem de qualquer propósito ou signifcado mais profundo, são completamente supérfuas, fúteis, desnecessárias, e muitas vezes até degradantes. Esses fatores geram um confito psicológico especialmente insuportável para aqueles que são sensívveis ao grave problema da crise ambiental, ou que buscam algum sentido na vida. Trabalhar para si mesmo, para sua famívlia e comunidade, para o suprimento direto das reais necessidades humanas, signifca empoderamento pessoal e coletivo, independência, liberdade e realização. Claro que é impossívvel a um indivívduo ou pequeno grupo ser totalmente autossufciente, a não ser que se viva como os homens das cavernas. Porém, um certo grau de autossufciência é totalmente possívvel, e cheio de signifcado — viver da terra, produzindo seu próprio alimento; construir e manter sua própria casa, seus sistemas energéticos e de água, etc. Trabalhar para si mesmo e para os seus é extremamente prazeroso e gratifcante, por ser provido de sentido direto e imediato, além de apresentar infnitos desafos e oportunidades de aprendizado e desenvolvimento pessoal. A autossufciência pode ser vista em vários nívveis, partindo do individual e passando ao coletivo (famívlia, comunidade, região). No nívvel coletivo, coopere com seus vizinhos (Princívpio n. o 16), faça trabalhos voluntários, troque alimentos e serviços, compre produtos locais, pois com isso você estará fortalecendo a sua comunidade, criando laços, contribuindo para a autossufciência local e regional. Deve-se ressaltar que, ao contrário do que alguns possam imaginar, a autossufciência não signifca necessariamente viver em uma “bolha”, isolado da sociedade. É perfeitamente possívvel e de fato muito desejável desempenhar funções também na comunidade maior que nos cerca, seja no exercívcio de uma 95

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

profssão de forma conciliada, ou através da venda dos seus excedentes de alimentos orgânicos, por exemplo. Tal integração com a sociedade em geral é fundamental para uma convivência harmoniosa, fortalecimento de laços sociais e realização individual, além de auxiliar na expansão do movimento da permacultura, por alcançar e inspirar mais pessoas.

18. Reavalie-ose constantemente Uma situação tívpica é a seguinte: o indivívduo está cansado e desiludido com sua vida e os rumos do mundo. Ele conhece a permacultura e tudo ali faz total sentido para ele, e ele percebe que aquele é o caminho a ser seguido. Passa então a estudar sobre o assunto, lê alguns livros, devora artigos, assiste vívdeos, talvez faça um curso... Então, bola um plano para sua transição, e ele parece infalívvel. Ele já se imagina, daqui a um ano, talvez, em sua nova vida, autossufciente, vivendo em contato e harmonia com a natureza… Só que não é bem assim! Temos que deixar claro uma coisa: o estudo aprofundado da permacultura é absolutamente essencial ao sucesso de seus projetos, mas nada substitui o trabalho duro e a experiência. Você vai ver que, no começo, não importa quanto você tenha estudado e se preparado, as coisas muitas vezes não saem como planejado, e você não terá o progresso no ritmo rápido que você havia imaginado. Até porque, muitas das informações que você encontrará são exageradamente otimistas, representando um “melhor cenário possívvel”, que não necessariamente se refetirá nas suas condições particulares. Na permacultura, como em tudo na vida, persistência é a chave para o sucesso. Ela é a principal diferença entre os que alcançam seus objetivos, e os que estão sempre morrendo na praia, ou vivem pulando de galho em galho, de um modismo para outro. Mas persistência não signifca continuar tentando tudo do mesmo jeito! Pois, obviamente, não se pode fazer a mesma coisa sempre igual e esperar resultados diferentes. Persistência signifca, portanto, continuar tentando tenazmente, mas com reavaliação constante, tentando abordagens diferentes, buscando corrigir erros, para alcançar cada vez melhores resultados. Pare, olhe para outro lado, respire fundo. Olhe de novo para o que vem fazendo, veja o passado, o presente, compare suas expectativas com os resultados que você vem tendo. Estão de acordo? Procure identifcar possívveis razões para os insucessos, questione. Tente olhar para sua vida e seu projeto de outro ângulo, como se pelos olhos de outra pessoa. Aceite criticamente opiniões externas: ouça as pessoas, experientes ou não. Muitas vezes, mesmo alguém leigo pode ter uma visão, um conhecimento ou informação, dizer uma simples coisa que pode fazer uma grande diferença, algo que você ainda não tinha pensado, e que era crucial. Tente abordagens diferentes, especialmente para o que não vem dando certo.

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7. Éticas e Princípios da Permacultura

Os Princívpios da Permacultura são baseados em lógica e bom senso, conhecimentos cientívfcos, observação cuidadosa da natureza e décadas de experiência permacultural. Eles são realmente úteis, fundamentais para alcançarmos o estilo de vida natural e sustentável que queremos, mas não são palavras mágicas que, decoradas ou proferidas, farão o trabalho por você, ou garantirão seu sucesso! Quando as coisas não dão certo, é preciso fazer dar certo, através da reavaliação constante, adaptação e aperfeiçoamento contívnuo. Não é que você vai descobrir que este ou aquele princívpio estava errado — na maioria das vezes você vai perceber que sua interpretação deles, da forma como eles se traduziam na prática, estava errada. Mas claro que, conforme já mencionado, os Princívpios não são dogmas. Com a experiência, você pode adaptá-los à sua realidade; pode modifcá-los, e criar os seus próprios, etc. Compartilhe com outros. Isso é importante para a evolução e desenvolvimento, e o aperfeiçoamento da permacultura. Para que a permacultura alcance seus objetivos na larga escala, é necessário que ela mesma evolua, desenvolva-se, para que alcance cada vez mais pessoas, e funcione para cada vez mais pessoas. Só que ela não vai se desenvolver sozinha. A permacultura é feita por pessoas, então cabe aos permacultores desenvolverem-na. Vale lembrar que a evolução, entendida como transformação ao longo do tempo, não é em si necessariamente boa. Ela pode ser boa (desenvolvimento), ou ruim (degeneração). A evolução positiva só pode ser resultado de um esforço intencional, consciente e contívnuo por parte dos atores envolvidos. Reavaliação constante também signifca estar atento às mudanças que ocorrem no mundo à nossa volta, e usá-las de forma positiva. A mudança é a única constante no mundo. Isso se aplica tanto ao ambiente natural como ao social. As projeções que fazemos, sobre a crise ambiental e civilizacional, por exemplo, têm que ser constantemente revisadas, pois poderão mostrar-se inexatas, tanto para mais como para menos; novos fatores e problemas (e também soluções) podem surgir, etc., e a forma como conduzimos nossos projetos, e direcionamos a permacultura, deve acompanhar essa evolução do quadro geral em que estamos inseridos, tanto global como localmente.

Principais referências: David Holmgren. Permaculture: principles and pathways beyond sustainability. Holmgren Design Services. 2002. Bill Mollison; Reny Mia Slay. Introduction to permaculture. Tagari Publications. 1991. Sepp Holzer. Sepp Holzer’s permaculture: a practical guide to small-scale, integrative farming and gardening. Chelsea Green Publishing. 2011.

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8. Água em Permacultura

8 ÁGUA EM PERMACULTURA

A água é um recurso vital e sagrado. No entanto, tem sido extremamente maltratada pela humanidade. Na permacultura, tratamos da água sempre com a máxima reverência e respeito. O uso racional da água é vital para a sustentabilidade. Já seu uso irracional e irresponsável cria uma vasta gama de efeitos extremamente negativos ao meio ambiente e ao próprio homem, como depleção de recursos hívdricos (abaixamento de lençóis freáticos e secamento de poços, nascentes e rios), alto consumo energético, degradação do solo (erosão, salinização), poluição e destruição de ecossistemas aquáticos, etc.

O ciclo das águas É impossívvel fazer um planejamento racional e efciente do uso da água sem compreender como funciona o ciclo das águas no nívvel local. A situação tívpica é a seguinte: numa foresta, você tem o solo permanentemente protegido por múltiplas camadas de proteção: a copa das árvores no alto, o sub-bosque numa altura intermediária e, por fm, a serrapilheira, uma camada de matéria orgânica predominantemente vegetal em diversos estágios de decomposição que recobre o solo. Assim, o solo nunca está exposto ao sol, permanecendo sempre úmido, possibilitando intensa atividade 98

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8. Água em Permacultura

biológica e reciclagem de nutrientes. Também está protegido do vento e do impacto das gotas de chuva. Quando chove, o impacto da chuva é amortecido pelo choque com as diversas camadas de folhas e galhos das copas das árvores, arbustos, ervas e serrapilheira. Ao chegar ao solo, essa água fui muito lentamente, pois encontra infndáveis obstáculos à sua passagem: troncos e raívzes de plantas, galhos e folhas caívdos da serrapilheira, etc. Além disso, o solo é extremamente aerado e poroso, devido à contívnua ação de agentes biológicos como minhocas, insetos e outros animais que escavam túneis, raívzes que apodrecem, etc. Isso tudo favorece a penetração da água no solo; portanto, você tem uma enorme infltração, e muito pouca água escorrendo pela superfívcie da terra. Essa água que penetra no solo viaja muito lentamente para baixo; ela mantém o solo úmido por longos perívodos, e ao fnal encontrará uma camada mais profunda, rochosa ou de outro modo impermeável, onde se acumula, formando uma zona de saturação, o lençol freático. No lençol freático, a água migra a uma velocidade extremamente lenta. Onde o plano do lençol freático se encontra com o nívvel do solo, essa água afora na forma de nascentes. Ou seja, a água das nascentes é água da chuva que caiu meses ou anos atrás, fltrada de modo lento e passivo por grandes extensões de solo, coletadas no lençol freático e trazidas à superfívcie da terra. Por isso, as águas de nascente são tão puras e, ao mesmo tempo, muitas vezes carregadas de importantes minerais. A água das nascentes fui, então, formando riachos e córregos, e rios que, enfm, tipicamente a levam até o mar. Agora, nem toda a água que penetra no solo vai parar nas nascentes. No perívodo em que está migrando pelas camadas mais superfciais do solo, mantendo pois sua umidade, parte dessa água é absorvida pelas raívzes das plantas, sendo utilizada pelas mesmas para seu crescimento, produção e manutenção, e também transferida à atmosfera através da evapotranspiração. Nas camadas da foresta entre o nívvel do solo e a copa das árvores, essa água mantém um microclima especialmente úmido. Essa umidade também é liberada para a troposfera acima, contribuindo signifcativamente para a manutenção da umidade relativa do ar, a formação de nuvens e, fnalmente, chuvas, reiniciando o ciclo das águas.* Então, vem o homem e corta as árvores, desmata aquela área para uso na agricultura, pecuária, desenvolvimento urbano, etc. O solo, antes protegido, permeável e cheio de obstáculos, agora está desnudo, ressecado, compactado * Claro que o ciclo das águas é muito mais complexo que isso, incluindo os oceanos, geleiras, etc. Porém, para maior simplicidade, nos ateremos às partes do ciclo que ocorrem no nível local, da propriedade, e sobre as quais nos é possível intervir, tendo portanto mais relevância prática.

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pela ação de máquinas ou pisoteio pelo gado, ou impermeabilizado por casas e outros edifívcios, pavimentação, etc. Por isso, quando chove, muito pouca água consegue penetrar no solo, enquanto a maior parte escorre pela superfívcie morro a baixo, diretamente em direção ao rio. O lençol freático deixa de ser abastecido adequadamente, e vai abaixando de nívvel, levando à redução na vazão e, enfm, ao secamento das nascentes. Além disso, a cada chuva, devido às enxurradas que se formam, você tem uma elevação abrupta e destrutiva do nívvel do rio, as enchentes; o solo desprotegido passa a sofrer erosão, com perda da sua camada mais superfcial, rica em matéria orgânica e nutrientes, levando ao seu empobrecimento progressivo, e surgimento de grandes buracos, as voçorocas. Essa terra toda vai se acumular nas partes mais baixas e no leito do rio, causando assoreamento, prejudicando a qualidade da água, o curso do rio e todo o ecossistema aquático. Quando o solo está protegido pela foresta, devido ao pequeno escorrimento superfcial de água, mesmo durante as chuvas o nívvel do rio permanece praticamente inalterado. Também, em perívodos secos, o rio continua sendo abastecido pela água das nascentes, de modo que sua vazão é mantida. Em contraste, na área desmatada, nos perívodos secos você tem uma redução da quantidade de água fuindo no rio, já que as nascentes estão com sua vazão reduzida ou secaram de vez. Em casos extremos, o próprio rio pode secar em perívodos secos, tornando-se intermitente — só tem água quando chove. Conforme já mencionado, as árvores contribuem para a manutenção da umidade relativa do ar, formação de nuvens e chuva pela evapotranspiração. Além disso, absorvem a energia do sol usando-a na fotossívntese, e fazem sombra no chão, refrescando o clima. Com o desmatamento, você perde essa evapotranspiração, e passa a ter uma incidência do sol sobre o chão, o asfalto e concreto, tudo isso levando a um clima muito mais quente e seco. Observando esse quadro geral, chegamos à seguinte conclusão: em uma situação natural, de foresta preservada, todos os elementos em conjunto funcionam como um sistema para retenção, preservação da água no local. Em contraste, num ambiente ocupado e alterado pela atuação humana, o local se torna um sistema de drenagem da água — um sistema para mandar a água para fora da área o mais rápido possívvel. É importante ressaltar que, quando a água da enxurrada desce rio a baixo, ela já está a caminho do mar e, portanto, na prática você já perdeu essa água. No dia seguinte, ela não estará mais ali — terá ido embora sem desempenhar nenhuma de suas vitais funções no ambiente local. Portanto, o desmatamento causa uma diminuição da água no local e na região. Aív, o homem precisa de água. E onde ele vai buscar? Claro, vai buscar onde é mais óbvio, onde ele sabe que tem água: no lençol freático (furando poços), nas nascentes, rios e lagos. Assim, os recursos hívdricos sofrem 100

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duplamente: não bastasse o homem causar o abaixamento do lençol freático, ainda bombeia sua água, fazendo-o abaixar ainda mais; não bastasse o homem causar o secamento de nascentes, ainda desvia a água das que restaram para seu próprio uso; não bastasse o homem causar a redução no fuxo dos rios e nívvel de lagos, ainda retira sua água para irrigação e abastecimento urbano, etc. Assim, o homem segue furando poços cada vez mais fundos, em busca da última gota de água. Nascentes secando por toda parte, rios desaparecendo. Aquívferos profundos que levaram milhares de anos para se preencherem estão sendo drenados rapidamente, gerando a crise hívdrica global discutida na Parte I.

Sem chuva

Sem floresta

Com floresta

Com chuva

Efeitos do desmatamento sobre o ciclo das águas e o solo: redução da penetração de água no solo, com abaixamento do lençol freático e secamento de nascentes; erosão do solo e assoreamento do rio; grande oscilação no nível do rio (baixo em dias secos, enchente quando chove); redução da evapotranspiração, levando a redução do regime de chuvas.

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Cultivar a água A aplicação dos princívpios da permacultura ao assunto água permite a criação de um conjunto de princívpios especívfcos em relação ao seu manejo e uso. São eles: 1. A chuva é a fonte primordial de água. Capte, armazene e utilize a água da chuva. 2. Armazene a água o mais alto possívvel, faça-a percorrer o maior caminho possívvel na propriedade, desempenhando o maior número de funções benéfcas. 3. Use a água de forma consciente e econômica. 4. Promova a penetração de água no solo e a restauração do ciclo das águas. 5. Jamais polua qualquer corpo d'água. Conforme já citado, quando usamos a água de forma irracional e predatória, causamos a sua redução progressiva. Por isso, é essencial que utilizemos esse recurso de forma racional e consciente. A chuva é a fonte primordial de água e, no entanto, é geralmente negligenciada ou ignorada, o que é um grave erro. A chuva é fonte abundante de água de boa qualidade, e de fato todas as outras fontes de água doce (nascentes, rios, lagos, poços) são abastecidas pela chuva. A aparente necessidade de lançar mão de outras fontes de água que não a chuva normalmente só ocorre quando o indivívduo não fez seu dever de casa, ou seja, não está captando, armazenando ou utilizando adequadamente a água da chuva. Quando captamos e utilizamos a água da chuva, estamos aumentando sua permanência no local — uma água que seria normalmente perdida, escorrida para fora da propriedade — e fazendo-a desempenhar funções produtivas, enquanto preservamos os outros recursos hívdricos e os ecossistemas aquáticos. Ao reciclarmos a água, damos-lhe múltiplos usos, economizando-a. Por exemplo, a água com sabão da lavagem de roupas pode ser usada para lavar o chão; a água do enxágue pode ser guardada e usada para a lavagem das próximas roupas. A água do banho e da lavagem de louça pode ser coletada em bacias e usada para regar o jardim e horta, etc. O destino fnal da água deve ser sempre o solo, na forma de irrigação e ferti-irrigação, cumprindo assim algumas de suas funções vitais, mantendo a umidade do solo, fomentando a vida e produção. Ao favorecermos a penetração da água no solo, estamos garantindo o abastecimento do lençol freático e a permanência das nascentes. Isso pode ser conseguido, em primeiro lugar, através da preservação de forestas, mas também fazendo reforestamentos e estabelecimento de agroforestas, etc. Além de aumentar a penetração da água no solo, isso ainda contribui com a preservação do clima através do sombreamento e evapotranspiração. Ou seja, ao plantarmos árvores estamos de fato contribuindo para a restauração do ciclo das águas. 102

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Também nas cidades, diversas estratégias podem ser usadas nesse sentido, conforme será discutido mais adiante. Isso tudo leva não apenas a uma preservação, mas de fato a um aumento da quantidade e qualidade da água no local. Por isso dizemos que, em permacultura, nós não apenas utilizamos a água — nós cultivamos a água.* Para que se consiga um uso racional da água, devemos planejar cuidadosamente nossos sistemas, visando o aproveitamento máximo desse recurso, da forma mais efciente possívvel, evitando desperdívcios e gastos desnecessários de energia. Para isso, é necessário um dimensionamento adequado dos sistemas; planejá-los de forma que a água fua por gravidade, reduzindo ou abolindo a necessidade de bombeamento e gasto energético e, por fm, uma perfeita integração com os outros sistemas, potencializando os benefívcios e evitando problemas como erosão, enchentes, etc. A água é um recurso limitado, e a tendência é a situação piorar progressivamente, devido às mudanças climáticas. Portanto, ao planejar nossos sistemas, é necessário fazê-lo com um olho no futuro, preparando-se para um cenário diferente, mais difívcil que o atual. Isso signifca instituir sistemas de captação e armazenamento maiores do que seria necessário para suprir nossas necessidades hoje, e também construir sistemas altamente efcientes e econômicos em seu uso de água.

Água na Zona Rural É muito comum a noção que uma propriedade rural só terá valor ou utilidade se nela houver algum curso d'água, como rio, riacho, lago nascente. Porém, essa visão é errônea e na verdade um tanto absurda. São raros os locais no planeta onde haja uma grande abundância de nascentes e outros cursos d'água, em grande proximidade. Assim sendo, insistir nessa ideia é o mesmo que assumir que praticamente toda a superfívcie terrestre é imprópria para a ocupação humana, ou para a produção de alimentos, etc. Todos sabemos que água é essencial. O problema é que as pessoas só conseguem ver a água olhando para baixo, esquecendo-se completamente da fonte primordial de água: a chuva. Para ilustrar, tomemos o exemplo de um terreno com área de um hectare, em um local de ívndice pluviométrico mediano, de 800 mm/ano. Isso signifca que chovem, por ano, oito milhões de litros de água limpa, de boa qualidade sobre esse terreno. Em muitos casos, cerca de metade dessa água deixa o terreno na forma de escorrimento superfcial, ou seja, * O conceito de cultivar a água, e água em permacultura em geral, é discutido de forma aprofundada, brilhante e inspiradora no livro “Rainwater harvesting for drylands and beyond”, de Brad Tancaster.

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é simplesmente perdida, sem cumprir qualquer função, quer para o homem, quer para a natureza. Assim, fca claro que o ponto crucial na questão do abastecimento de água não é se há uma nascente ou rio no terreno ou não, e sim a captação e armazenamento de água de chuva. Na imensa maioria dos casos, a água da chuva seria plenamente sufciente para suprir todas as necessidades de uma propriedade rural, bastando apenas que esse recurso fosse efcientemente captado e armazenado, e utilizado de forma racional. Há diversas estratégias possívveis para se captar, armazenar e utilizar a água de chuva em situações rurais. As principais técnicas serão abordadas a seguir.

Lagoas artifciais A principal forma de armazenamento superfcial de água de chuva em propriedades rurais para usos diversos é na forma de lagoas artifciais. A ideia é muito simples: coleta-se a água de escorrimento superfcial (i.e. a água que corre sobre a superfívcie do solo durante chuvas fortes) através de drenos escavados no solo, que a conduzem a um reservatório impermeável escavado na terra. Lagoas artifciais são extremamente versáteis e incrivelmente úteis. Com elas, pode-se armazenar volumes muito expressivos de água. Elas podem servir a inúmeros propósitos, tais como abastecimento doméstico, irrigação, aquacultura, criação de microclimas, paisagismo, recreação, fomento à vida selvagem, etc. Escolha do local A situação da lagoa dentro da propriedade e em relação à topografa do local é de vital importância. Um engano comum, quando se fala de lagoas artifciais, é a pessoa imaginar que a lagoa será abastecida pela água da chuva que cai diretamente sobre a lagoa. Mas não é assim que funciona! Claro que vai chover na lagoa, mas deve-se ressaltar que a chuva que cai sobre lagoa representa uma fração irrisória da captação de água, sendo que o importante é a captação da água de escorrimento superfcial da área do terreno situada em nívveis superiores ao da lagoa. Essa captação se faz com canais — curvas em desnível que conduzem essa água até a lagoa. Por esse motivo, a lagoa nunca pode ser construívda no topo do um morro, devendo ser deixada sempre uma área sufciente acima da lagoa para permitir captação efetiva de água. Essa área de captação deve ser, sempre que possívvel, forestada. Porém, é importante ter uma lagoa alta o sufciente para permitir seu uso por gravidade na maior área possívvel, permitindo o abastecimento da(s) casa(s), irrigação e outros usos, sem necessidade de bombeamento. Essa lagoa mais alta conterá água mais limpa, sendo indicada para os usos mais nobres, como 104

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abastecimento de água para a casa. Claro que você pode ter mais lagoas, tantas quantas quiser ou conseguir construir em seu terreno. As lagoas mais baixas tendem a ter mais matéria orgânica e nutrientes, devido a contaminação oriunda das criações de animais e plantações, sendo mais indicadas para produção, tanto vegetal como de peixes, rãs, patos, etc. e também para irrigação. Na escolha do local da construção da lagoa, deve-se levar em consideração também outros fatores. Um deles é a topografa: locais mais ívngremes são sempre muito mais complicados de se armazenar água. Locais com menos inclinação são mais fáceis e seguros: com menos interferência na topografa, e a um custo muito menor, você conseguirá construir lagoas muito maiores, com muito mais capacidade, evitando também riscos de rupturas e desmoronamentos. Locais rochosos devem ser sempre que possívvel evitados, por motivos óbvios. Outro fator a ser considerado é o grau de vegetação arbórea do local: deve-se, sempre que possívvel, dar preferência a locais que já tenham clareiras, de forma que você não tenha que cortar árvores para construir a lagoa. Tamanho da lagoa A lagoa pode ter praticamente qualquer tamanho, mas tem que comportar um volume sufciente de água para suprir as suas necessidades. Não adianta ter uma lagoa muito pequena que a água acabe no meio da estação seca! Também tem que ser compatívvel com seu potencial de captação — não adianta ter uma lagoa enorme que não enche nunca. Por isso, o tamanho da lagoa tem que ser planejado cuidadosamente. Como ponto de partida, para um projeto em pequena escala, em um terreno com uma área de 5.000 a 25.000 m 2, pode-se pensar em lagoas com cerca de 10 a 25 metros de largura e 1 a 2 metros de profundidade, com uma capacidade para 50 a 500 metros cúbicos, aproximadamente. Construção da lagoa Teoricamente, qualquer lagoa pode ser escavada à mão, com enxadões, pás e carrinho de mão, etc. Porém, trata-se de um trabalho árduo e demorado. A não ser que se trate de uma lagoa bem pequena, ou você tenha à sua disposição um bom número de pessoas dispostas e motivadas e não tenha pressa, o mais comum é escavar com maquinário pesado, como retroescavadeiras, pás carregadeiras ou tratores de esteira. Em locais bem planos, a escavação de uma lagoa produz grande quantidade de terra, que pode ser usada para aterramentos, construção, fazer barreiras de terra, ou simplesmente fazer um morro ao lado da lagoa, que pode criar um efeito paisagívstico interessante, ou ajudar a criar um microclima, servindo como barreira contra o vento, aumentando a sombra, retendo calor do sol, etc. Claro que esses efeitos benéfcos dependem de seu posicionamento adequado, o que por sua vez depende de planejamento cuidadoso. Já em locais de topografa 105

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inclinada, a escavação da lagoa não gera nenhum excedente de terra. Isso porque a terra escavada deve ser depositada na margem inferior da lagoa e compactada, formando a barragem que dará forma e capacidade à lagoa. Lagoas de água de chuva devem ser rigorosamente impermeabilizadas, pois qualquer perda por penetração da água ou vazamentos pode signifcar uma lagoa vazia no meio da estação seca. A forma mais simples e garantida de impermeabilizar uma lagoa é com a instalação de uma lona plástica. Lonas plásticas são 100% impermeáveis, mas são fotodegradáveis, o que signifca que, se fcarem expostas à radiação solar, deterioram-se e rompem-se em questão de poucos anos. Porém, se protegidas do sol, podem durar virtualmente para sempre. Por isso, a lona plástica deve receber uma cobertura permanente de terra. Antes da instalação da lona, o interior da lagoa deve ser adequadamente preparado. As laterais devem ser feitas em “degraus”, com plataformas planas de no mívnimo 20 cm de largura, e taludes com inclinação máxima de 45° e altura de cerca de 45 cm. Esse formato é importante para permitir que a terra permaneça sobre a lona, ao invés de escorrer toda para o fundo da lagoa na primeira chuva forte. O interior da lagoa deve ser bem compactado Degraus com soquetes ou mesmo 45 cm de altura com os pés. Quaisquer tocos ou pedras devem ser Plataformas 20 cm de largura cuidadosamente removi(mín.) dos, e a superfívcie interna Inclinação dos taludes deve fcar bem lisa, para 45° (máx.) evitar danos ou ruptura na lona plástica. Também, antes de se instalar a lona plástica, é necessário preparar o local onde será construívdo o canal de entrada de água. Este é uma depressão na lateral da lagoa em forma de canaleta, com dimensões e capacidade superiores às do canal de captação. Como o próprio nome já diz, é por ele que a água entrará na lagoa. O canal de entrada deve ser escavado cuidadosamente, mantendo-se o padrão de degraus, e suas bordas devem ser elevadas para ajudar a confnar o fuxo de entrada de água dentro do canal, mesmo em dias de chuva muito forte. Preparado o interior da lagoa, procede-se à instalação da lona plástica. Há tipos de lona especívfcos para impermeabilização de lagoas, muitas vezes comercializados com o nome de “geomanta” que, embora apropriados para esse fm, infelizmente costumam ser substancialmente caros. Como alternativa, podese usar uma lona plástica de PEAD (polietileno de alta densidade) de 200 μm de espessura, daquelas normalmente usadas para cobrir silos. Essas lonas custam 106

Parte II – A Alternativa da Permacultura

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uma pequena fração do preço das geomantas e podem ser perfeitamente efcientes, mas são mais frágeis e, por isso, requerem cuidado redobrado para evitar rupturas, e proteção contra o sol. Além do custo, têm a vantagem de serem mais fáceis de se obter e instalar, e de representarem um consumo reduzido de plástico. A lona deve cobrir todo o interior da lagoa, ultrapassando o limite das margens e o topo da barragem em cerca de 50 cm. Muitas vezes não é possívvel cobrir toda a lagoa com uma única lona plástica. Pode-se usar fta adesiva tipo silver tape para fazer emendas, bem como reparos. Deve-se cuidar para que a lona fque perfeitamente ajustada ao interior da lagoa. A lona deve ser coberta com uma camada de terra de, no mívnimo, 10 cm de espessura. Deve ser usado solo areno-argiloso, misturado com capim picado, que ajuda a estabilizar a camada de terra, evitando que escorra. Pode ser necessária a correção de acidez e fertilização da terra antes de usar para cobrir a lona, pelo menos sua camada mais superfcial, para permitir o crescimento de plantas dentro e fora da água, estabilizando defnitivamente a camada de terra que protege a lona. As plantas aquáticas serão também importantes para a criação e manutenção de um ecossistema aquático equilibrado e saudável, melhorando a qualidade da água, permitindo a produção de peixes, rãs, etc. Isso é vital para evitar a proliferação de mosquitos. O canal de entrada de água na lagoa é um ponto crívtico. Ele deve ser construívdo com pedras e argamassa de cimento (ou, alternativamente, manilhas, canaletas de concreto, ferrocimento, etc.), de forma que comporte e conduza de forma segura a água para dentro da lagoa, sem transbordar, evitando assim qualquer erosão dentro da lagoa, com exposição da lona plástica. Fluxo da água

Canal de entrada 107

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8. Água em Permacultura

O excesso de água deve deixar a lagoa por um canal de saída ou dreno. O canal de saívda é uma parte crucial de todo armazenamento de água de chuva, e deve ser planejado, construívdo e mantido cuidadosamente. Quando armazenamos água da chuva, nós captamos escorrimento superfcial de uma grande área. Em chuvas fortes, isso pode causar a concentração de grandes volumes de água, excedendo a capacidade de armazenamento de nosso sistema, o que signifca que ele irá transbordar. Agora, nós nunca podemos deixar que essa água “decida” por onde ela vai correr, pois ela sempre decidirá correr pelo caminho mais curto, ou seja, pelas descidas mais ívngremes, com imenso potencial de causar danos, especialmente na forma de erosão, além de danifcar instalações, plantações, etc. Para evitar esse tipo de problemas, devemos conduzir a água excedente de forma suave através do terreno, até onde ela deve ir. Algumas pessoas pensam logo em usar tubos, mas na maioria dos casos a melhor forma de conduzir essa água é na superfívcie, através de curvas em desnívvel semelhantes às usadas para captação da água. O posicionamento e construção do canal de saívda devem ser orientados com uso de um nívvel de mangueira, para garantir que o ponto de saívda da água seja realmente o ponto mais baixo da margem da lagoa, estando no mívnimo uns 50 cm mais baixo que a altura da barragem (ou mais, no caso de lagoas grandes). Isso é crucial para evitar que a água transborde por sobre a barragem, o que causaria erosão e danos à barragem, e possivelmente até sua ruptura, com graves consequências. Os canais de saívda são feitos na forma de uma curva em desnívvel com caívda de 1 a 2%, zigue-zagueando pelo terreno, conduzindo a água suavemente até a próxima lagoa do sistema. Por fm, devem conduzir a água até uma “lagoa seca”, não impermeabilizada, onde a água poderá penetrar, indo abastecer o lençol freático. Canais de captação Conforme já citado, a captação é feita através de canais, na forma de curvas em desnívvel que direcionam a água de escorrimento superfcial do solo para dentro do reservatório (lagoa). A construção dos canais é simples: começando do ponto de entrada de água na lagoa, você traça no terreno, usando um nívvel de cavalete e estacas, uma linha sobre o solo com uma inclinação de 1 a 2%, com caívda para a lagoa. A linha formada pela união dos pontos (estacas) marcará o local onde você deve escavar o canal. Você pode ter 2 canais, formando os braços direito e esquerdo da sua captação, que trarão toda a água de escorrimento superfcial da seção do morro acima dos canais, conduzindo-a à lagoa. Os canais podem ser escavados com trator ou à mão, com enxadões. Muitas vezes, você terá em seu terreno uma grota, uma depressão linear no terreno escavada pela água da chuva onde se concentra o fuxo das enxurradas e,

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8. Água em Permacultura

portanto, sempre que chove passa por ali um enorme volume de água. Isso representa claramente uma ótima oportunidade de captação de água. Porém, não se deve nunca tentar represar a água na grota em si. Isso porque o local onde se forma a grota é sempre a porção mais ívngreme do terreno, devendo ser evitado, conforme já mencionado. Ao invés disso, você deve construir a lagoa num local de topografa mais amena, e apenas um fosso de captação na grota (ou seja, uma pequena escavação e uma parede reforçada com pedras, pneus, sacos de terra, concreto, etc.), conduzindo essa água através de uma curva em desnívvel até a lagoa conforme descrito acima. Escave um pequeno fosso, talvez com 1,5 m de diâmetro por 1 m de profundidade, ao fnal do canal de captação, logo antes da entrada na lagoa. Esse fosso não deve ser impermeabilizado. Ele servirá para reter terra, areia, restos vegetais ou quaisquer materiais carregados com a água, evitando que entrem e se acumulem na lagoa. O fosso deve ser limpo periodicamente, com remoção dos materiais retidos. Canais de captação

Fosso seco

Canal de entrada Interior da lagoa

É difívcil determinar previamente com precisão o tamanho ideal dos canais de captação, mas é bom não exagerar, pois um excesso de água trará problemas, especialmente em dias de chuva forte. O ideal é que a lagoa se encha lentamente, ao longo de várias chuvas, talvez levando alguns meses para o enchimento completo. Por isso, é melhor começar com uma captação modesta e observar, durante as chuvas, o fuxo da água, acompanhar o enchimento da lagoa, e ampliar os canais, se necessário. Terminada a construção da lagoa, plante grama ou de preferência várias espécies herbáceas nativas do local na camada de terra que recobre a lona plástica — as raívzes das plantas são a forma mais efetiva de fxar a terra no local, 109

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evitando que escorra com as chuvas. Plante também plantas aquáticas, como aguapés e taboas, etc., no interior da lagoa, uma vez que esteja cheia. Rãs e pererecas virão espontaneamente habitar a lagoa, mas você também pode introduzir peixes, pitus, etc. (falaremos um pouco sobre aquacultura no capívtulo 9, “Permacultura Rural”). Agora, um detalhe muito importante de segurança: você deve cercar bem a sua lagoa, com uma boa cerca de arame ou alambrado. Isso é vital para a segurança das pessoas, pois sempre há riscos de afogamento, e também para proteção da lagoa em si — você não vai querer um animal grande e pesado como uma vaca ou cavalo entrando na sua lagoa, e danifcando a lona plástica com seus cascos! Mesmo que você não tenha esses animais, é sempre possívvel que alguém esqueça uma porteira aberta, ou os animais do seu vizinho atravessem a cerca e entrem no seu terreno — esse tipo de ocorrência é extremamente comum na zona rural. Por isso, cerque bem sua lagoa, e você viverá muito mais tranquilo. Por fm, plante árvores em volta da lagoa, para fazer sombra na água, mantendo-a fresca e evitando evaporação excessiva, e dando um efeito paisagívstico agradável. Em climas frios, plante árvores caducifólias no lado ensolarado, permitindo que o sol aqueça a água no inverno.

Uma lagoa construída próximo à casa ou no caminho para ela pode criar um efeito muito agradável Séries de lagoas Você pode e deve ter mais de uma lagoa na propriedade. De fato, pelo princívpio da redundância, é sempre melhor ter duas ou mais lagoas menores do que uma única lagoa enorme — assim, se você tiver algum problema com uma lagoa, seu suprimento de água estará garantido. 110

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Começar construindo uma lagoa pequena para depois construir mais lagoas traz ainda várias outras vantagens. Você terá água mais rápido, já que uma lagoa menor é mais rápida de construir e encher. Com essa água, tudo fcará mais fácil: construir, plantar e até construir as demais lagoas. Além disso, é melhor adquirir experiência construindo lagoas menores — você irá se aperfeiçoando e tudo fuirá melhor nas lagoas subsequentes. E o custo também é fracionado, o que é uma grande vantagem. Por fm, você terá os benefívcios da lagoa espalhados pelo terreno: a criação de microclimas favoráveis à produção, a possibilidade de sistemas independentes de irrigação, e múltiplas oportunidades para dar usos variados, como sistemas de aquacultura. Você também criará muitos pontos de fomento à vida selvagem, fornecendo água, abrigo e alimento para animais silvestres, aves migratórias, etc. As diversas lagoas podem ser de formatos e tamanhos variados, de acordo com a topografa e outras qualidades do terreno, como potencial de captação de água, espaço disponívvel, etc. A captação de água para essas múltiplas lagoas deve ser feita em série, onde o excesso de água de uma lagoa mais alta fui para a próxima lagoa no sistema (o canal de saívda de uma lagoa é um canal de captação da próxima lagoa mais abaixo). Direção do escorrimento superficial da água da chuva

Canal de captação

Canal de saída

Fosso seco

Tagoa artificial

Próxima lagoa

Lagoas em série: o excesso de água de uma lagoa fui para a próxima lagoa mais abaixo.

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Cisternas subterrâneas Outra forma possívvel de se armazenar água da chuva de escorrimento superfcial é na forma de cisternas. Elas são econômicas em espaço e podem ser especialmente vantajosas em projetos em pequena escala, onde a área talvez não seja sufciente para uma lagoa. Também têm aplicação especial em locais de clima muito árido, com estação seca muito prolongada, onde a evaporação excessiva em uma lagoa poderia te deixar sem água. Cisternas são reservatórios impermeáveis de água da chuva, normalmente subterrâneos. Em sua forma mais comum, cisternas são abastecidas por água coletada de telhados, mas a captação também pode ser feita a partir do escorrimento superfcial do solo, através de curvas em desnívvel, como descrito para as lagoas. O fosso seco continua sendo essencial para evitar o acúmulo de sujidades grossas; a partir do fosso, a água entra em um cano que a leva até a cisterna. A rota de saívda também deve ser planejada: do cano de escape, a água é conduzida diretamente até a próxima cisterna, ou pelo terreno através de curvas em desnívvel. Em caso de sistemas de captação relativamente pequenos, que não gerem riscos, o excesso de água pode ser direcionado a uma área vegetada e não muito ívngreme, onde possa ser absorvida ou correr sem causar erosão. Os canos de entrada e saívda de água da cisterna devem ser guarnecidos com telas fnas, metálicas ou de nylon, para evitar a proliferação de mosquitos e também a entrada de pequenos animais, que morreriam na cisterna contaminando a água. Cisternas podem ser construívdas em praticamente qualquer tamanho. Podem ser feitas de alvenaria ou materiais como plástico, fbra de vidro, ferrocimento, etc. Elas podem ser vistas como grandes caixas d’água subterrâneas, ou piscinas cobertas com laje. A construção de uma cisterna grande de alvenaria é uma obra séria, e requer mão de obra especializada, com experiência na construção de piscinas ou outros reservatórios profundos. Se não tomadas as devidas medidas durante a construção, como alicerce, colunas, reforços metálicos nas paredes, impermeabilização, etc., com a pressão da água e movimentações do solo surgirão rachaduras e vazamentos, problemas que podem ser de difívcil solução depois. Por serem subterrâneas, as cisternas mantêm a água sempre fresca. Cisternas devem ser protegidas com coberturas rívgidas, preferencialmente de concreto, como lajes. A água deve ser protegida da incidência de luz solar, para evitar a proliferação de algas, mas deve haver uma abertura de acesso, com porta ou tampa para possibilitar a manutenção e limpeza regular.

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Armazenamento de água no solo Conforme já foi mencionado, é fundamental que façamos tudo o que estiver ao nosso alcance para restaurar o ciclo das águas. Para isso, talvez o fator mais essencial seja aumentar a penetração de água no solo. O solo pode ser visto como o maior reservatório de água que se pode ter. Claro que, uma vez na terra, a água não está mais visívvel ou disponívvel para muitos de nossos usos. Porém, ela está lá, desempenhando suas funções de forma natural, e portanto nos poupando de certos trabalhos. Por exemplo, quando o solo está bastante úmido, por perívodos prolongados, isso diminui nosso trabalho e consumo de água com irrigação. Além disso, sabemos que ao restaurar o ciclo das águas estamos contribuindo ativamente para a manutenção e aumento na quantidade e qualidade de água disponívvel para humanos e todas as formas de vida, local e globalmente. Há várias estratégias e técnicas que podem e devem ser utilizadas para aumentar a penetração da água no solo. Todas essas técnicas têm, na verdade, dupla função, pois além de favorecerem a penetração de água também ajudam na prevenção e controle da erosão hívdrica do solo. Reflorestamento Certamente, a melhor forma de armazenar água no solo e preservar e restaurar o ciclo das águas é protegendo e aumentando a cobertura vegetal arbórea, ou seja, através da conservação de forestas e reforestamento. A palavra reforestamento é muito bonita e suscita pensamentos positivos na maioria das pessoas. É comum ver pessoas, muitas vezes tidas como heróis populares locais, gabando-se de terem plantado milhares de mudas de árvores. Porém, aqui é importante desmistifcar uma coisa: plantar mudas é fácil — o difívcil é cuidar delas e garantir que se transformem em árvores! Nos extremos, você tem duas situações tívpicas: de um lado, você tem uma situação difívcil, de solo degradado, geralmente aquele local que foi desmatado há bastante tempo e sofreu por décadas ou séculos com a agricultura insustentável; e do outro lado, uma situação fácil, de solo ainda fértil, que foi desmatado recentemente e ainda não foi completamente massacrado pelo homem. Na prática, a diferença entre essas situações é a seguinte: no caso mais fácil, tudo que você plantar, cresce. Também, se não plantar nada, cresce do mesmo jeito! Pois a natureza tem grande potencial de se regenerar sozinha. Então, basta deixar a área em paz que, naturalmente, daqui a uns 10 ou 20 anos, você terá ali uma jovem foresta. No caso oposto, de uma situação difívcil, a natureza já apanhou tanto do homem que seu potencial de autorregeneração está seriamente comprometido — a fertilidade foi perdida, e você agora tem um solo pobre, sem matéria orgânica ou nutrientes, e ressecado, compactado, lençol freático esgotado, talvez problemas com salinização, etc. Não que essa área não 113

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possa se recuperar sozinha, mas isso pode demorar séculos ou milênios. Quando você tenta intervir nesse processo, por exemplo plantando mudas para acelerar a recuperação, você vê que é muito difívcil e trabalhoso ter sucesso — suas mudas têm uma grande difculdade de sobreviver e crescer, e se desenvolver, produzir, etc. Claro que isso não signifca que essas áreas devam ser abandonadas, muito pelo contrário, pois é justamente aív que está um dos maiores e mais belos desafos da permacultura: atuar não apenas na conservação, mas também na recuperação da natureza, e ao mesmo tempo suprir as necessidades humanas. Técnicas e estratégias para estabelecer forestas e agroforestas serão discutidas no capívtulo 9, “Permacultura Rural”. Bacias em meia-olua A bacia é uma concavidade escavada/construívda no solo ao redor de uma planta, com capacidade para reter um certo volume de água. Esta técnica é muito útil, e de fato essencial nas fases iniciais de vida das árvores (mudas), sendo portanto vital para o sucesso em reforestamentos e estabelecimento de agroforestas. A principal fnalidade das bacias é facilitar a rega e favorecer a hidratação das plantas, pois elas retêm a água, possibilitando que penetre no solo próximo à planta, atingindo assim as raívzes com máxima efciência. Em contraste, se você não faz uma bacia ao redor da planta, quando você rega geralmente a maior parte da água escorre para longe da sua planta, sem benefciá-la — você gasta a água e o seu tempo, mas sua planta continua “com sede”. Esse é um erro muito comum. Sem bacia

Com bacia

Água escorre

Água fica

Agora, quando se faz uma bacia relativamente grande e em formato de meia-lua, com braços de captação, ou seja, pequenas “lombadas” em desnívvel que conduzem a água de escorrimento superfcial para o centro da bacia, ela passa a funcionar também para concentrar ao redor da muda água da chuva. Se usadas em larga escala, ou seja, em grande número, bacias em meia-lua podem 114

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aumentar signifcativamente a penetração de água no solo, evitando que escorra para fora do terreno, servindo portanto como estratégia de fxação de água no local. As bacias também são muito benéfcas a árvores adultas, podendo ser mantidas em pomares e agroforestas maduras. Isso porque elas não apenas aumentam a hidratação do solo e das plantas, mas também favorecem a fxação e penetração de nutrientes, como os provenientes da adubação, evitando que sejam carreados pela chuva e favorecendo sua máxima disponibilidade e utilização pelas plantas. O tamanho da bacia varia principalmente de acordo com o tamanho da planta. Para mudas de árvores, uma bacia de cerca de 60 cm de largura e 10cm de profundidade, com capacidade para cerca de 30 litros da água, pode ser sufciente. Para plantas maiores, aumenta-se também o tamanho da bacia, para comportar até 100 ou 150 litros de água. O modo de construção das bacias será descrito no capívtulo 9, “Permacultura Rural”. Barreiras em curva de nível Barreiras em curva de nívvel, também chamadas simplesmente de “curvas de nívvel”, são uma técnica muito empregada para aumentar a penetração de água da chuva no solo e prevenção da erosão. Elas podem ser aplicadas em qualquer escala, desde um pequeno jardim no seu quintal até fazendas inteiras. As curvas de nívvel são barreiras lineares que, como o nome já diz, são construívdas em nívvel, ou seja, em uma dada barreira, todos os seus pontos estão no mesmo nívvel. Essas barreiras retêm a água de escorrimento superfcial do trecho do terreno acima, impedindo-a de continuar escorrendo e permitindo que seja absorvida. Elas podem ser construívdas com ferramentas de mão como enxadões e pás, especialmente em pequena escala, ou com maquinário pesado no caso de grande escala, mas devem sempre ser planejadas e traçadas cuidadosamente, utilizando instrumentos para garantir que sejam feitas rigorosamente em nívvel (nunca “a olho”). Para pequenas escalas, pode-se usar 115

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um nívvel de cavalete, pêndulo ou mangueira, enquanto em grandes escalas prefere-se o uso de teodolitos.

Água retida

Penetração

A barreira em curva de nívvel é composta de duas partes: o corte (canal) e o aterro, sendo que a terra proveniente da escavação do corte é usada para a construção do aterro, imediatamente abaixo.

corte

aterro

As dimensões das curvas de nívvel variam em função de diversos fatores: • Escala. Por exemplo, em um jardim, você fará pequenas lombadas de um palmo de largura e 10 cm de altura, enquanto em uma área grande as curvas de nívvel poderão ter mais de 1 metro de altura e 3 metros de largura). • Tipo de solo. Solos argilosos drenam lentamente, e portanto requerem barreiras maiores e mais frequentes, enquanto solos bem drenados (arenosos) podem ter barreiras menores e mais espaçadas. • Topografa. Quanto mais ívngreme o terreno, maior a altura e maior a frequência das barreiras (ou seja, menor a distância entre elas). É importante ressaltar que, embora úteis, as curvas de nívvel não substituem a cobertura vegetal permanente para a estabilização do solo. Não há motivo para pensar em destruir árvores por causa das curvas de nívvel — você pode construívlas preservando todas as árvores, sem qualquer problema. Já a vegetação rasteira será inevitavelmente destruívda no local onde será construívda a barreira, tanto o canal como o aterro. Porém, com o tempo nova vegetação tende a se desenvolver

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sobre as curvas de nívvel, o que é útil para a estabilização do aterro. A vegetação e estrutura do solo no restante do terreno (fora das curvas de nívvel) devem ser preservadas tanto quanto possívvel. Terraços Esta é uma técnica milenar, utilizada por povos em diversas regiões montanhosas do mundo, especialmente no Sudeste Asiático e também pelos Incas na América do Sul. A técnica do terraceamento consiste em se construir séries de plataformas em nívvel em um terreno inclinado. As plataformas causam uma redução da velocidade da água de escorrimento superfcial da chuva, favorecendo sua penetração no solo e atuando também na prevenção da erosão. Esta é uma técnica que tem grande impacto ambiental inicial, por mover grandes quantidades de terra e interferir com a estrutura do solo e a topografa. Por isso, só deve ser utilizada em locais que não tenham uma cobertura vegetal arbórea substancial (árvores isoladas podem ser contornadas, permitindo a construção dos terraços). O solo fca muito susceptívvel à erosão no primeiro momento, após a construção dos terraços. Sendo assim, para evitar problemas, devem ser tomadas as medidas adequadas. Deve-se corrigir a acidez e adubar o solo como um todo na área sendo terraceada, tanto os platôs como taludes, no momento da construção dos terraços, para possibilitar o crescimento vegetal rápido. Uma vez construívdos os terraços, deve-se plantar imediatamente espécies vegetais rústicas e de rápido crescimento nos taludes para a estabilização dos mesmos, evitando a erosão hívdrica. Nos platôs, pode-se iniciar o cultivo imediatamente. Assim como citado para as curvas de nívvel, também os terraços têm maior efetividade quando associados a uma cobertura vegetal permanente, de preferência arbórea. Isso é muito importante, especialmente na estabilização dos taludes.

Inflitração

Terraços

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Manejo de águas pluviais para controle da erosão Como temos visto, ao promover a penetração da água no solo estamos também prevenindo a erosão, e a maneira mais natural e efetiva de conseguir isso é através da manutenção de uma cobertura vegetal permanente no solo. Porém, há situações em que isso não é possívvel, e o caso mais tívpico são os caminhos, carreadores e estradas de terra. Nesses locais, a pavimentação utilizando materiais e técnicas permeáveis, que possibilitam a penetração da água e ao mesmo tempo impedem a erosão, são a solução ideal. Porém, nem sempre são viáveis economicamente. Estradas de terra são extremamente susceptívveis à erosão, e tanto mais quanto maior for a inclinação do terreno. De fato, algum grau de erosão em estradas de terra é inevitável, e em locais de topografa acidentada, isso causa sérios problemas. O problema mais óbvio do ponto de vista do usuário da estrada é que, a cada chuva forte, criam-se fendas que comprometem a trafegabilidade e segurança, enquanto do ponto de vista do gestor da via, o problema mais óbvio são os custos de manutenção da estrada. Porém, do ponto de vista ambiental, o problema são as enormes quantidades de terra que estão sendo carreadas com a chuva e indo parar nas baixadas e rios, causando assoreamento. Para minimizar todos esses problemas, devem-se aplicar técnicas adequadas de prevenção de erosão. Bacias de infltração As bacias de infltração, também chamadas de bacias de acumulação, são covas escavadas ao lado das estradas, a intervalos variáveis conforme a necessidade, para receber e reter a água de escorrimento superfcial da chuva. Estradas são construívdas em perfl convexo para que a água escorra para suas laterais. Isso reduz a erosão na área de rodagem da estrada, mas exacerba o potencial de erosão nas laterais onde corre a enxurrada. Para minimizar a erosão, deve-se impedir que essa água ganhe volume e velocidade, o que se consegue escavando drenos que conduzem essa água para fora da estrada, para dentro das bacias de infltração. As bacias então retêm a água, possibilitando sua penetração no solo. As bacias de infltração transformam problemas em soluções: a erosão na estrada é reduzida e o assoreamento dos rios prevenido, e você tem um aumento da penetração da água no lençol freático. A terra (areia e argila) proveniente da erosão acumula-se nas bacias, o que implica na necessidade de manutenção regular, ou seja, remoção dessa terra. Porém, mesmo isso tem um lado positivo: essa terra pode ser usada para reparar a própria estrada, ou outros fns como aterramento e bioconstrução. 118

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8. Água em Permacultura

Por seu porte, as bacias devem ser vistas como reservatórios temporários de água da chuva, e por isso devem contar com uma rota planejada de transbordamento. O melhor é que essa água excedente seja conduzida para longe da estrada, através de drenos em suave desnívvel (com uma caívda de cerca de 2%) até uma área de topografa mais plana e bem vegetada, que possa absorver ou lidar com essa água sem sofrer danos. Essa água também pode ser vista como um recurso, pois ao trazê-la para dentro do seu terreno você tem um aumento da água disponívvel, que pode ser usada para fns produtivos. Lombadas Dentro da propriedade, os caminhos mais ívngremes, que ligam as partes altas às baixas, também são muito propensos à erosão, tornando-se canais de enxurrada. Portanto, aqui também é necessário tomar medidas de prevenção da erosão. Para isso, deve-se fazer obstáculos à passagem da água na forma de lombadas — ao encontrar o obstáculo, a água é forçada a deixar o caminho, passando à área vegetada ao lado, onde será absorvida ou escorrerá sem causar erosão. Essa água desviada do caminho pode ser canalizada para fns produtivos: pode-se, por exemplo, ligar a lombada a um dreno em suave desnívvel, levando até a bacia de uma planta, seja uma muda, arbusto ou árvore, plantada próximo ao caminho. Assim, você previne a erosão e rega a planta ao mesmo tempo! As lombadas são construívdas a intervalos variáveis, talvez a cada 5 a 10 metros, de acordo com o grau de inclinação do terreno e propensão à erosão, devendo o tamanho e espaçamento ser ajustado de acordo com a necessidade observada.

Água para a casa Toda casa vem equipada com um ótimo sistema de captação de água de chuva — o telhado. Telhados são sempre ótimas oportunidades de captar grandes volumes de água de boa qualidade, e isso vale tanto para situações rurais como urbanas. Se toda a chuva que cai sobre o telhado de uma casa ao longo do

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ano fosse coletada e armazenada, essa água sozinha seria sufciente para suprir todas as necessidades da casa e seus moradores, na maioria dos casos. Mesmo que você tenha ótimas lagoas que possam fornecer água para a casa por gravidade, ou que você confe na companhia de abastecimento de água da sua cidade, não há desculpa para desperdiçar toda essa água que você ganha de presente, literalmente do céu, todo ano. Para captar água da chuva do telhado, você vai precisar instalar calhas, que levarão a uma caixa d'água ou cisterna. Para começar, você pode simplesmente colocar bombonas plásticas de 200 litros recebendo a água das calhas, ou mesmo uma caixa d’água convencional, se tiver espaço na sua casa. Isso pode ser feito sem complicação ou muitos custos, e você fcará surpreso com a facilidade com que esses reservatórios se enchem, e com a qualidade da água — limpinha! Provavelmente fcará perplexo: “como eu pude desperdiçar toda essa água a vida toda?” Você descobrirá o prazer de usar essa água para molhar suas plantas, lavar suas roupas e outros usos menos exigentes. Porém, isso é só um começo mesmo, pois esses reservatórios improvisados são muito pequenos perante o potencial de captação dos seus telhados. O que normalmente acontece nessa situação é que, durante a estação chuvosa, seus reservatórios se enchem muito rapidamente, a partir do que passam a transbordar a cada chuva, ou seja, você estará perdendo a maior parte da água. Com o fm das chuvas, você rapidamente acaba com aquele volume armazenado, e seus reservatórios passarão todo o perívodo das secas vazios. Isso não é muito racional ou efciente. Além disso, reservatórios instalados sobre o chão não são muito convenientes para uso — você não vai querer fcar tirando a água com baldes a vida toda. Pelos princívpios da utilização da água, ela deve ser captada e armazenada o mais alto possívvel, permitindo seu uso por gravidade. Porém, no caso da captação de água da chuva do telhado de uma casa, para uso na própria casa, isso geralmente não dá muito certo, pois os telhados muitas vezes não são altos o sufciente, e além disso, fazer um reservatório de grande capacidade a mais de dois metros de altura do solo apresenta inúmeros inconvenientes, como difculdade de construção, alto custo, o grande espaço que ocupa, impacto estético, etc.; portanto, temos que lançar mão de outras estratégias. Em situações rurais, muitas vezes você tem um galpão ou garagem em um nívvel acima do da casa — uma estrutura que tem um telhado grande, com boa capacidade de captação de água de chuva, mas que consome pouca água. Nesses casos, você pode armazenar essa água em uma cisterna no local, e usá-la por gravidade para abastecimento da casa abaixo. E a água do telhado da casa, por sua vez, pode ser usada por outra casa mais abaixo, talvez por um vizinho, ou usada para irrigação, etc. Em situações urbanas, devido principalmente à limitação de espaço, 120

Parte II – A Alternativa da Permacultura

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normalmente a melhor estratégia é construir uma cisterna subterrânea, que pode ser feita no quintal, ou mesmo debaixo da garagem. Uma cisterna com capacidade para até uns 25 mil litros pode ser construívda, e permanecerá invisívvel, e sem ocupar qualquer espaço! Instale uma bomba na cisterna, ligada a um pequeno painel fotovoltaico e acionada por uma boia elétrica, para mandar a água da cisterna até uma caixa d’água instalada no telhado. A cisterna deve ser coberta com uma laje bem reforçada. Assim, você poderá guardar seu carro, ou ter o seu jardim em cima da cisterna, sem qualquer problema. Agora, há uma série de cuidados que devem ser observados para que a água da chuva possa ser aproveitada sem causar problemas. A cisterna deve ser bem construívda, como já mencionado, para ser impermeável e resistente, para que suporte a pressão da água sem causar rachaduras e vazamentos. Também deve ser muito bem fechada e protegida contra a entrada de mosquitos. A água da chuva pode apresentar variados graus de contaminação por poeira e poluição do ar, mas principalmente sujidades acumuladas no telhado e calhas. Por isso, a primeira água deve sempre ser separada, pois é a mais carregada de contaminantes. Para tanto, deve-se instalar um sistema de separação da primeira água. Esse sistema deve conter um elemento fltrante para separar impurezas grossas, como folhas de árvores, penas e insetos; um reservatório com tampa que vede bem, um respiro para permitir a saívda de ar, uma torneira para retirar a Calha para caixa água, além das tubulações que d’água conectam à calha e à cisterna. O volume do reservatório do sistema de separação da primeira água deve ser proporcional ao tamanho da área do telhado, sendo Respiro recomendada uma relação de um litro para cada metro quadrado de telhado. A água acumulada no reservatório deve ser escoada após a chuva, permitindo o esvaziamento do reservatório, deixando-o pronto para funcionar na próxima chuva. Mas isso não signifca Reservatório que você tem que desperdiçar Cisterna essa água! Você também pode subterrânea usá-la para os mais diversos fns. Após um perívodo longo de Bomba estiagem, você perceberá que a 121

Parte II – A Alternativa da Permacultura

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água da primeira chuva estará realmente suja, e ela só servirá mesmo para irrigação. Mas, na estação chuvosa, com chuvas regulares, mesmo essa primeira água será limpa o sufciente para outros usos, como limpeza geral e até lavagem de roupas, bastando o bom senso na avaliação da qualidade da água (aspecto lívmpido). Devido ao fato da água no interior da cisterna ser totalmente protegida da luz solar, ela normalmente não terá a tendência de desenvolver problemas como crescimento de algas ou mau cheiro. Assim mesmo, como todo reservatório de água, a cisterna deve ser limpa regularmente. A água da chuva, desde que adequadamente captada e armazenada, pode ser usada para todos os fns domésticos, inclusive para beber e cozinhar. Porém, antes de ser usada para consumo humano, ela deve ser devidamente sanitizada (e.g. fltragem, cloração).*

Água nas cidades Nas cidades, a perturbação do ciclo das águas pela ação humana ocorre com a máxima intensidade. Geralmente, mais de 90% da superfívcie do solo nos centros urbanos é impermeabilizada, com casas, edifívcios e pavimentação (asfalto e concreto), e hoje em dia não é difívcil encontrar locais com uma taxa de impermeabilização próxima de 99%. Os problemas decorrentes dessa impermeabilização são muitos. Nesse tipo de cenário, obviamente pouquívssima água da chuva consegue penetrar no solo. Desse jeito, como o lençol freático vai sobreviver? Dentro das cidades, em locais onde há nascentes, elas são consideradas um problema (!!), empecilhos ao desenvolvimento urbano, e por isso essas áreas são comumente aterradas, drenadas, etc., enfm, destruívdas. As poucas nascentes que sobrevivem já vêm com água poluívda, contaminada pesadamente pelos esgotos das milhares de fossas sépticas e vazamentos de redes de esgotos, que penetram no solo até atingirem o lençol freático. Os rios são transformados em canais de enxurrada e esgotos. Por fm, são muitas vezes canalizados, estando portanto mortos e sepultados. A impermeabilização também signifca que praticamente toda a água da chuva escorrerá pela superfívcie, o que em chuvas fortes causa enxurradas violentas que causam enchentes, danos a propriedades, perdas de vidas e transmissão de doenças de veiculação hívdrica, como leptospirose e cólera, além das doenças transmitidas por mosquitos, como a dengue. Além de todos esses problemas, a impermeabilização das cidades ainda as * Rahman, S. et al. Sustainability of rainwater harvesting system in terms of water quality. The Scientific World Journal. 2014.

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8. Água em Permacultura

transforma em verdadeiras panelas de pressão, nas chamadas ilhas de calor. O concreto, asfalto e metal da cidade absorvem a radiação solar, devolvendo-a na forma de calor tanto para o ambiente interno como externo. Por isso, a temperatura no centro das cidades pode ser até 10 °C mais alta que na periferia. No verão, isso causa sérios problemas de desconforto térmico e aumento no consumo de energia com ar condicionado, além de contribuir para o aquecimento global. Agora, todos esses problemas podem ser resolvidos ou minimizados, através de um planejamento adequado do espaço urbano — um planejamento que leve em consideração o solo, a água, as árvores e animais, enfm, a natureza, e não apenas o crescimento e o lucro. Aumento da permeabilidade Reverter a impermeabilização do solo nas cidades é essencial para a preservação dos recursos hívdricos. Isso pode ser alcançado através da adoção de um conjunto de estratégias: • Aumento da área de parques, praças e áreas verdes na cidade. Obviamente, quanto maior a área não pavimentada, maior o potencial de absorção de água da chuva. Nessas áreas, deve-se empregar as mesmas técnicas de retenção de água de chuva apresentadas para a zona rural, como cobertura vegetal arbórea permanente, ou seja, reforestamento urbano e, por que não, agroforestas urbanas; curvas de nívvel, bacias de infltração, etc. Todas essas técnicas são compatívveis com um paisagismo urbano belívssimo, harmonioso, servindo de refúgio à vida selvagem e também à população urbana, para práticas de recreação, esporte, relaxamento, etc. Além de preservar a água, o aumento do verde nas cidades ainda as deixa mais bonitas e agradáveis, e ajuda enormemente na melhoria da qualidade do ar e redução do calor. Todos sabemos a diferença entre a sensação de caminhar dentro de um bosque ou em um estacionamento descoberto, ou a diferença entre andar descalço no verão ao meio-dia pisando no asfalto ou em um gramado. As plantas reduzem a temperatura através de diversos mecanismos: fazem sombra, evitando o aquecimento do solo, pavimento, etc.; absorvem a radiação solar para uso na fotossívntese, e consomem calor no processo de evapotranspiração, causando uma redução da temperatura. A arborização urbana é ainda uma excelente oportunidade de preservação de espécies nativas ameaçadas, que devem ser utilizadas preferencialmente. • Aumento da permeabilidade dentro de cada lote, pelo aumento de áreas ajardinadas nas casas e o resgate das hortas urbanas. • Pavimentação permeável, pelos chamados pisos drenantes, como elementos vazado de concreto, ou feitos a partir da reciclagem de pneus, etc. 123

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8. Água em Permacultura

Pavimentos permeáveis são totalmente viáveis tanto em áreas privadas como nas vias públicas, podendo ser usados não apenas em passeios e calçadas como também na pavimentação das ruas. • Aplicação de perfl coletor de água na arborização urbana, canteiros, rotatórias etc. O perfl coletor de água signifca fazer as áreas permeáveis e vegetadas em um nívvel mais baixo que o da rua, e com aberturas estrategicamente planejadas na sarjeta, permitindo que a água de escorrimento superfcial da chuva fua a partir da rua para dentro desses espaços. Isso funciona de forma semelhante às bacias de infltração: a água acumulada nessas estruturas será absorvida pelo solo, melhorando a hidratação das plantas, contribuindo para o lenços freático, e ao mesmo tempo reduzindo o volume da enxurrada.

Rua com perfil coletor de água

Captar e utilizar água da chuva Os sistemas descritos nas páginas anteriores, em “água para a casa”, são totalmente aplicáveis em zonas urbanas, assim como na zona rural. E não somente para casas, mas também, com as devidas adaptações, a prédios, galpões, escolas, indústrias, etc. Quanto maior o telhado, maior seu potencial de captação de água. Estima-se que, em média, cerca de 25% da área das cidades seja ocupada por telhados (podendo chegar a mais de 1/3 da área, em alguns locais). Se a água da chuva fosse efcientemente coletada e armazenada de todos esses telhados, já se teria uma redução signifcativa no volume das enxurradas nas vias públicas, galerias de águas pluviais, rios, etc., o sufciente para prevenir muitas enchentes. Além disso, pense em toda a economia de águas municipais! Isso signifcaria não apenas grande economia, mas também menos impacto nos mananciais usados para abastecimento urbano. 124

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Telhados verdes Telhados verdes são coberturas em casas, prédios e outros edifívcios que contém uma camada de terra e vegetação. Eles têm uma capacidade signifcativa de retenção de água da chuva e devolução para a atmosfera por evapotranspiração. Também ajudam a diminuir a poluição, reduzir as ilhas de calor, favorecem a biodiversidade (especialmente avifauna, abelhas, etc.), além de deixarem a cidade muito mais bonita. Eles também podem ser usados para produzir alimentos (horta sobre o telhado!). Telhados verdes serão abordados em mais detalhe no capívtulo 10, “A Habitação Permacultural”. Proteção de cursos d’água Nascentes são valiosívssimas, milagrosas fontes eternas de água pura, e devem ser tratadas com o máximo respeito e reverência, inclusive e especialmente nas cidades! Qualquer ser extraterrestre de inteligência altamente desenvolvida fcaria chocado com o descaso, o desprezo com que tratamos as nascentes na zona urbana, aterrando-as, canalizando-as, poluindo-as. Toda área de nascente deveria ser tombada como patrimônio natural e, no local, estabelecido um parque ou praça, devidamente arborizada para refetir o bioma local — um verdadeiro santuário da água e da vida selvagem. Essa área de preservação permanente deve ocupar um raio de pelo menos 50 metros ao redor da nascente.* Não apenas nascentes, mas também outros cursos d’água, como córregos, rios e lagos, devem receber o mesmo tratamento. Séries de praças devem ser construívdas ao longo do curso dos riachos e córregos, e parques lineares devem ser instituívdos ao longo dos rios e ao redor de lagos. Esses parques lineares passarão a funcionar como corredores ecológicos**, permitindo o fuxo de animais (e, com eles, sementes, microrganismos, etc., ou seja, a biodiversidade em geral) entre os parques, praças, rios e lagos em todas as partes da cidade e além, conectando-se também com a zona rural, outras cidades, reservas naturais, etc., tendo portanto um signifcado profundo de preservação ambiental que vai muito além da proteção da água. Por fm, a pureza dos corpos d’água, subterrâneos e superfciais, deve ser restaurada e mantida a qualquer custo. Esgotos devem ser totalmente segregados de corpos d’água — coletados em tubulações rigorosamente impermeáveis, sem vazamentos, e conduzidos até estações de tratamento. Mesmo após o tratamento, os efuentes resultantes não devem ser lançados a corpos d’água, pois continuam * Área de preservação permanente (APP) é definida como uma área com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas. ** Corredores ecológicos serão discutidos no capítulo 9, “Permacultura Rural”.

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substancialmente poluentes e, portanto, nocivos aos ecossistemas aquáticos. Ao invés disso, devem ser bombeados e utilizados de forma segura para irrigação de forestas plantadas, áreas de recuperação ambiental, produção madeireira ou agroforestal (este assunto será discutido no capívtulo 11, “Saneamento Ecológico”). É preciso parar de achar normal que rios na cidade sejam poluívdos, sujos, fétidos. Eles devem ser lívmpidos e cristalinos, envoltos por matas ciliares; cheios de vida, peixes, aves aquáticas — locais para se apreciar, nadar, etc.

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A missão da permacultura é a provisão das necessidades humanas aliada à preservação e restauração dos ambientes naturais e ecossistemas. Neste capívtulo, discutiremos técnicas para a provisão de uma das necessidades mais essenciais à vida humana: os alimentos. Embora a permacultura se aplique a qualquer ambiente, é na zona rural que a ela pode expressar seu potencial ao máximo, no desenvolvimento de um estilo de vida saudável, autossufciente e realmente integrado de forma benigna à natureza. É na zona rural que você terá espaço para captar milhares ou milhões de litros de água da chuva, fazer reforestamentos em larga escala, recuperar nascentes e produzir toneladas de alimentos, etc. Até mesmo coisas essenciais à permacultura como saneamento ecológico são muitas vezes inviáveis em um contexto urbano, por dependerem da adesão de toda a sociedade, enquanto soluções individuais (e.g. banheiro seco) são limitadas pela simples falta de espaço. Vale lembrar que, em seus primórdios, a permacultura signifcava agricultura permanente, e a produção de alimentos de forma sustentável e ecologicamente equilibrada continua sendo seu principal aspecto, tanto pelo fato de a alimentação ser essencial à vida humana, como por ser a agricultura convencional a atividade humana mais impactante ao meio ambiente. Aqui, a ideia é criar um oásis de fertilidade e abundância, onde alimentos, água e outros recursos indispensáveis (como madeira, fbras, plantas medicinais 127

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etc.) sejam produzidos e estejam disponívveis contívnua e permanentemente, tanto para nós, humanos, como para as demais criaturas. Esse ideal pode ser atingido através do uso racional dos recursos e disposição inteligente dos elementos, de acordo com os princívpios da permacultura. Assim, os recursos naturais são poupados e de fato aumentados, e alta produtividade vem acompanhada de uma melhora progressiva da qualidade do solo, quantidade e qualidade da água, biomassa e biodiversidade. Sabe aquela imagem do Jardim do Éden, onde você estica um braço e colhe uma fruta aqui, estica o outro e colhe outra fruta, dá dois passos e tropeça em algum legume... Pois é de algo mais ou menos assim que estamos falando — de sistemas ricos, harmoniosos e automantenedores que, uma vez estabelecidos, mantêm alta produtividade com muito pouco trabalho. Essa visão contrasta gritantemente com a agricultura convencional, caracterizada pela necessidade contívnua de trabalho intenso, pelos efeitos nocivos ao meio ambiente, com redução da qualidade do solo e água, redução da biomassa e biodiversidade (ou seja, supressão da vida em geral), alto consumo de recursos e geração de poluição, etc. Por isso dizemos que em permacultura nós trabalhamos com a natureza, e não contra ela. Quando tratamos de sistemas produtivos em permacultura rural, é comum nos depararmos com a pergunta: “qual a diferença entre agricultura orgânica e permacultura?” A agricultura orgânica pode ser defnida como uma forma de agricultura que não utiliza fertilizantes quívmicos, pesticidas, hormônios e outros aditivos sintéticos, apoiando-se em técnicas como rotação de culturas, adubação verde, compostagem e controle biológico de pragas para obter produtividade de forma natural, minimizando impactos negativos à saúde humana e ao meio ambiente. Ou seja, a agricultura orgânica é uma abordagem conservativa, ética, naturalista à agricultura; já a permacultura é algo muito mais amplo, pois se estende a todas as atividades humanas — habitação, saneamento, manejo de resívduos, estilo de vida, relações sociais, etc. Pode-se dizer que, no tocante à produção de alimentos, a permacultura emprega basicamente as mesmas técnicas da agricultura orgânica. Porém, mesmo aív há algumas diferenças. Por exemplo, muitos agricultores orgânicos não estão preocupados se utilizam uma fonte de água para irrigação de forma sustentável ou não, ou seja, talvez não captem a água da chuva e, ao invés disso, abusem de recursos hívdricos como rios ou águas subterrâneas, ou consumam muita energia para bombeamento, etc., sem ver nisso um problema. Ou talvez importem recursos, como adubos orgânicos, a longas distâncias e a altos custos energéticos e ambientais, ou exportem sua produção para regiões distantes, ou empreguem embalagens excessivas, etc. Todas essas práticas são comuns no universo da agricultura orgânica em geral, mas são consideradas reprováveis na permacultura. Por outro lado, há práticas que não são aceitas pela maioria das associações certifcadoras de orgânicos, mas são consideradas importantes na permacultura, como por exemplo o emprego de lodo de esgoto tratado como fertilizante, o que 128

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é necessário para fechar o ciclo dos nutrientes, sem o que não pode haver sustentabilidade.

Solos Solos são a principal matriz produtora de alimentos para humanos, portanto é essencial que tenhamos uma boa compreensão do que eles são e como funcionam. O solo é uma mistura complexa de elementos: uma matriz mineral predominante, matéria orgânica, ar, água, microrganismos, etc. Ele representa o substrato para a vida nos ecossistemas terrestres por fornecerem suporte (um local para as raívzes se agarrarem, e as criaturas caminharem, etc.) e nutrientes. Também são importantes reservatórios de água e um componente vital do ciclo das águas, conforme discutido no capívtulo anterior. Grosseiramente, o solo pode ser dividido em duas camadas: o solo superfcial e o solo profundo. O solo superfcial é a camada mais externa do solo, normalmente com uma espessura de 5 a 20 cm. Esta é a camada que contém a maior concentração de matéria orgânica, micro e macrorganismos e nutrientes — é a porção do solo que mais fornece condições para o desenvolvimento de vida, e portanto a de maior atividade biológica. Dessa forma, é essa a parte mais vital do solo para a produção de alimentos. Devido à imensa variedade de formas de vida que existem de forma inter-relacionada e interdependente, e por suas caracterívsticas especiais, o solo superfcial deve ser visto como um ecossistema à parte, e ainda assim indivisívvel do ecossistema terrestre “visívvel”, acima da linha do solo. Além de ser a fração do solo mais importante para a produção de alimentos, a camada superfcial é também a mais delicada e susceptívvel à destruição pela ação do homem, especialmente por práticas agrívcolas insustentáveis. Nossa discussão daqui para frente será focada no solo superfcial, ao qual por simplicidade nos referiremos simplesmente por “solo”. Como solos são formados Posto de forma simples, solos formam-se a partir de um material original rochoso, através da ação combinada de dois processos: intemperismo (desintegração e decomposição através de processos fívsicos, quívmicos e biológicos) e acumulação biológica de nutrientes. Nutrientes minerais são substâncias quívmicas necessárias aos processos biológicos em geral e, portanto, ao crescimento e funcionamento de todas as 129

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formas de vida. Em geral, são contidos em concentrações pequenas em rochas e outros materiais inorgânicos, e às vezes altamente concentrados em certos tipos de minérios. Com a desintegração e decomposição das rochas por processos fívsicos e quívmicos, como desgaste, erosão eólica, choque térmico, oxidação, redução, hidrólise, etc., esses nutrientes são liberados, passando a alguma forma solúvel ou de outro modo disponívvel para microrganismos, plantas e animais, que os absorvem e utilizam em seu metabolismo. Desta forma, os nutrientes que passaram uma eternidade aprisionados em rochas são “liberados” e subsequentemente capturados pela “malha da vida”. A partir daív, esses nutrientes passam a ser permanentemente reciclados na biosfera: animais herbívvoros se alimentam de plantas; carnívvoros se alimentam dos herbívvoros; detritívvoros e microrganismos se alimentam de excrementos e partes mortas em decomposição de outros organismos, devolvendo os nutrientes ao solo, de onde passam a ser absorvidos novamente pelas plantas, reiniciando o ciclo. Enquanto os elementos necessários (nutrientes) são fxados na malha da vida, outras substâncias também originárias do material original rochoso mas desnecessárias ou excessivas para os organismos vivos vão sendo lentamente dispersados para fora dessa zona mais ativa da biosfera terrestre, carreados pelo vento, lavados pela chuva, ou lixiviados através do solo, etc. Com esse processo ocorrendo de forma contívnua ao longo das eras, as substâncias essenciais (nutrientes) vão sendo acumuladas na biosfera terrestre, permitindo a expressão máxima da vida no local. É através desse processo que o solo superfcial de uma foresta, por exemplo, acumula enorme fertilidade, que sustenta e é sustentada pela foresta e todos os organismos ali presentes, de forma contívnua, por milhões ou mesmo bilhões de anos. Como os solos são destruídos pela agricultura Pelo que discutimos acima, sobre como os solos são formados, deve ter fcado clara uma coisa: a fertilidade não está no solo, e sim na biomassa do solo. Claro que a biomassa também faz parte do solo, mas o que isso quer dizer é que os nutrientes não estão simplesmente presentes ali, soltos, de forma solúvel na matriz mineral do solo. Se você separar a biomassa (matéria orgânica) da matriz mineral do solo de uma foresta, os nutrientes estarão na primeira, e não na última. A construção da fertilidade do solo pelo processo de acumulação biológica de nutrientes ocorre de maneira tão mais efciente quanto maior for a densidade e diversidade das formas de vida no local. Isso porque diferentes espécies têm diferentes necessidades nutricionais e, portanto, diferentes habilidades de absorção e utilização, resultando em fxação de nutrientes. Deste modo, estando inúmeras espécies diferentes todas juntas e em alta densidade, todos os nutrientes serão efcientemente fxados e acumulados no ecossistema terrestre. Em outras palavras, a fertilidade do solo depende da manutenção de alta 130

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atividade biológica, ou seja, de vida no solo e no ecossistema terrestre. O homem destrói a fertilidade dos solos justamente por interferir negativamente com todos os fatores essenciais à manutenção da vida e fertilidade, especialmente através das práticas agrívcolas. Cobertura

Ao derrubar forestas e instituir plantações e pastagens, estamos eliminando a proteção que as árvores e a vegetação perene em geral ofereciam ao solo. Conforme já discutido, na foresta o solo está totalmente protegido da ação direta do sol, do impacto da chuva, do efeito ressecante e erosivo do vento, etc., além do fato da foresta favorecer a máxima penetração da água da chuva. Com a retirada da densa e permanente cobertura vegetal da foresta, o solo passa a absorver bem menos água, e perdê-la bem mais, por escorrimento superfcial e evaporação direta da superfívcie, levando a uma redução dramática no nívvel de hidratação do solo que impacta todas as formas de vida. A ação direta do vento, o impacto das gotas de chuva e especialmente o escorrimento superfcial também passam a causar erosão, processo onde o solo superfcial rico em nutrientes é literalmente arrancado da área, sobrando apenas o solo mais profundo, estéril. Estrutura

O solo não é apenas um amontoado de terra e matéria orgânica — pelo contrário, ele tem uma estrutura especívfca, saudável, que possibilita sua máxima fertilidade e vida. Essa estrutura inclui principalmente dois fatores: o emaranhado de raívzes de plantas, vivas e mortas, que dão enorme sustentação e estabilidade à terra e às formas de vida ali presentes (agregação), e a adequada porosidade, que permite a aeração e, portanto, respiração e penetração de água da chuva. Agora, na agricultura convencional, as práticas da aração e gradagem destroem totalmente essa estrutura. Com isso, expõem-se as verdadeiras entranhas da terra à ação impiedosa do sol, do vento e da chuva, levando invariavelmente a uma mortandade em massa dos organismos do solo, com uma redução brutal e quase instantânea da sua biomassa e biodiversidade a cada tratamento, além de um enorme aumento na susceptibilidade à erosão Outro fator que afeta a estrutura do solo é a compactação, que ocorre devido à aração e gradagem, tráfego de maquinário agrívcola e particularmente pelo pisoteio pelo gado. A compactação reduz a porosidade da interface entre o solo e o ar, reduzindo as trocas gasosas e asfxiando o solo, reduzindo também a penetração de água, comprometendo portanto a hidratação e aumentando a tendência a erosão. Vida

A perda de solo superfcial e, portanto, da fertilidade devida à erosão dispensa maiores explicações. Esse fator isoladamente é um dos principais 131

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causadores da perda de nutrientes e desertifcação ao redor do mundo. Agora, cada um dos outros eventos que causam morte de macro e microrganismos do solo também contribui para a perda progressiva da fertilidade. Cada vez que você resseca o solo, ou o revolve, ou aplica pesticidas, etc. você tem uma mortandade em massa dos organismos do solo — plantas, animais, fungos, microrganismos. Como sabemos, num ecossistema equilibrado e estável, há muito poucos nutrientes disponívveis de forma solta, solúvel no solo — os nutrientes estão aprisionados dentro dos “corpos” dos organismos ali presentes, e há uma competição intensa por esses nutrientes. Cada vez que um nutriente é liberado, por exemplo quando uma célula morre e se rompe, há sempre outros organismos ali presentes, seja uma bactéria ou fungo, ou a raiz de uma planta, etc. para absorver esse nutriente o mais rápido possívvel antes que outro organismo o faça. Protegidos dentro da biomassa, os nutrientes do solo estão de fato fxados no local — a chuva passa, penetra e segue pura rumo ao lençol freático, e os nutrientes permanecem ali. Agora, quando você tem uma abrupta redução na biomassa, com mortalidade dos organismos do solo e ruptura de suas células, o que acontece é a liberação repentina dos nutrientes ali presentes, sem que haja organismos vivos sufcientes para absorverem esses nutrientes que fcam, portanto, soltos no solo de forma solúvel. Ora, o que acontecerá com esses nutrientes? A tendência é eles serem absorvidos novamente com a multiplicação dos organismos do solo, no processo de reparação natural, ou na produção agrívcola. Porém, nesse intervalo de tempo em que eles estão solúveis, fcam totalmente susceptívveis a serem lavados a cada chuva, perdendo-se por escorrimento superfcial ou por lixiviação, ou seja, penetrando no solo junto com a água da chuva e indo parar no lençol freático, e depois nos rios através das nascentes, deixando, portanto, o solo e a área, sendo levados para longe, de forma defnitiva. E é assim, pela combinação desses fatores, que a agricultura vem destruindo a fertilidade dos solos e causando a desertifcação do planeta! Agora, todos esses nutrientes vão sendo carregados pelos rios e levados até os mares e oceanos, onde se acumulam, causando também enormes danos aos ecossistemas. A poluição dos ecossistemas aquáticos por nutrientes do solo causa seu desbalanço quívmico e eutrofzação, ou seja, crescimento explosivo de algas aquáticas, que consomem excessivamente o oxigênio dissolvido na água e liberam toxinas, causando a morte de peixes e outros organismos aquáticos, fenômeno que vem causando a erosão da biodiversidade aquática, extinção de inúmeras espécies, colapso de reservas pesqueiras, morte dos corais ao redor do mundo, etc. A redução na biomassa do solo também implica na liberação do carbono do solo à atmosfera, sendo a degradação dos solos um das principais fontes de emissão de gases do efeito estufa na atmosfera, conforme já citado.

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Preservação dos solos Para a sustentabilidade é imprescindívvel que adotemos práticas que preservem a fertilidade dos solos, e para isso é fundamental que não continuemos cometendo os erros da agricultura convencional descritos acima. Sendo assim, manter a cobertura vegetal permanente, preservar a estrutura do solo e, assim, sua umidade, biomassa e biodiversidade são os elementos centrais de nossa estratégia de conservação do solo. As principais técnicas de preservação do solo serão descritas a seguir. Agroflorestas

Agroforestas podem ser vistas como ecossistemas forestais altamente diversifcados, projetados por humanos em maior ou menor grau, em que além de elementos (espécies) nativos da área em questão, são incluívdos, em proporções relativamente elevadas, espécies particularmente úteis aos humanos, como alimentos, madeiras, fbras, etc. Elas são sistemas altamente integrados que imitam forestas naturais, cumprindo todas as funções e serviços ecológicos de uma foresta natural, como preservação do solo, do ciclo das águas, do clima e da biodiversidade, enquanto suprindo também as necessidades humanas. Agroforestas têm enorme potencial para produzir diversos tipos de alimentos para humanos, especialmente frutas, nozes, castanhas, raívzes, produtos animais, etc. Porém, a maior parte da alimentação humana atualmente consiste de grãos, especialmente cereais, realidade que nasceu juntamente com a agricultura, há cerca de 10 mil anos. O problema é que grãos em geral são culturas anuais, não perenes, e não são efcientemente produzidos em sistemas agroforestais. Este impasse sugere que a transição para um estilo de vida sustentável deve contemplar uma mudança nos hábitos alimentares, afastando-se dos cereais e aumentando a importância de alimentos de espécies perenes, de fácil produção agroforestal. Porém, isso talvez não seja possívvel ou viável em todas as partes do mundo onde há humanos. Além disso, há que se considerar o fato que mudanças grandes de paradigma, inclusive relacionado a hábitos alimentares, levam tempo e requerem todo um processo de transição. Isso tudo signifca que temos que ter também opções de práticas agrívcolas tão sustentáveis quanto possívvel para a produção de grãos, e também hortaliças. Essas técnicas, amplamente empregadas na agricultura orgânica e também na permacultura, serão descritas a seguir. Plantio direto

Chama-se de plantio direto a prática de plantio que dispensa o revolvimento sistemático do solo (aração e gradagem) caracterívstico da agricultura convencional. Com isso, evita-se a destruição da estrutura do solo, evitando-se portanto a erosão, perda de matéria orgânica, preservando-se sua 133

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aeração e capacidade de absorção de água, e sua fertilidade. A supressão vegetal necessária ao plantio e para minimizar problemas de competição é feita de forma mecânica (corte), acima do nívvel do solo, sem interferir com sua estrutura. A aplicação de adubos também é feita sobre a superfívcie, acompanhada de medidas para evitar perdas por escorrimento, favorecendo sua penetração (por exemplo, construção de curvas de nívvel e aplicação de cobertura vegetal morta). Cobertura vegetal morta

Conforme já discutido, para que haja proteção da fertilidade do solo é imprescindívvel que o mesmo esteja permanentemente protegido da ação agressiva das intempéries. Em outras palavras, o solo nunca deve permanecer nu. Porém, sempre que trabalhamos a terra, para plantar, por exemplo, algum grau de supressão de vegetação é inevitável, até para evitar a competição feroz das ervas espontâneas e permitir o crescimento de nossas plantas. Mas isso não signifca que tenhamos que deixar o solo descoberto — pelo contrário, devemos deixá-lo sempre protegido, e nesses casos o fazemos pela aplicação de matéria vegetal (entre outras), como cobertura do solo. Na agricultura convencional, restos culturais e plantas daninhas, após arrancados, são geralmente desprezados, amontoados em algum canto ou mesmo queimados, por serem considerados estorvos ao (mau) manejo do solo e das plantações, à mecanização, etc. Porém, em qualquer agricultura sustentável, esses restos vegetais devem ser aplicados ao solo para lhe servirem de cobertura. Isso traz vários benefívcios: • Proteção do solo contra as intempéries, prevenindo a erosão e protegendo a biomassa e fertilidade. • Aumento da absorção e redução da perda de água por evaporação, ajudando a manter o solo mais úmido. • Inibição da germinação de sementes e crescimento de plantas indesejáveis (“ervas daninhas”) que poderiam comprometer o crescimento e produção de suas plantas. • Reciclagem de nutrientes, pois à medida que essa cobertura vegetal se decompõe, os nutrientes são devolvidos ao solo de forma natural. Uma coisa legal sobre a cobertura vegetal morta é que ela permite que você transforme um problema em uma solução: o crescimento de plantas espontâneas e ervas daninhas em geral signifca que você terá trabalho em cortá-las, mas também signifca um suprimento contívnuo de cobertura vegetal morta de solo para suas plantações. Aparas de grama, restos de poda, restos culturais (e.g. palha de milho), ervas daninhas, etc. são as principais fontes de cobertura do solo produzidas no 134

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próprio terreno. Serragem e restos de madeira, provenientes de madeireiras, marcenarias e construções, palha de arroz, etc. também são comumente empregados. Além de material vegetal, outros tipos de material podem ser usados para cobertura do solo, cumprindo, se não todas, pelo menos algumas das funções acima. Esses materiais incluem pedras, papelão, tecidos (cobertores, estofados e roupas velhas), tapetes e carpetes, lonas e encerados de caminhão, toldos, etc., couros sintéticos (corino, courvin, napa), restos de plástico de cobertura de silos, sacarias, etc., entulhos de construção, enfm, quaisquer materiais que estejam disponívveis ou possam ser captados em sua área. Os materiais sintéticos devem ser preferencialmente reciclados, mas em alguns casos, onde não haja possibilidade de reciclagem e materiais mais naturais não estejam disponívveis em quantidade sufciente, eles também podem e devem ser usados como cobertura de solo, por cumprirem funções benéfcas ao solo e plantas. Deve-se, porém, ter o cuidado de não usar produtos contendo substâncias tóxicas e perigosas, como venenos, solventes, substâncias corrosivas e metais pesados, além de objetos cortantes (e.g. cacos de vidro), materiais que ofereçam risco de contaminação biológica, etc. Rotação de culturas

Rotação de culturas signifca a alternação de culturas diferentes em um dado local, ao invés de plantar sempre as mesmas coisas nos mesmos lugares. O cultivo rotacionado traz duas vantagens principais: • Preservação da fertilidade. Cada espécie vegetal utiliza com mais intensidade um certo conjunto de nutrientes. Se você ocupa uma certa área repetidamente com a mesma espécie vegetal (monocultura), acontecem duas coisas: os nutrientes mais intensamente utilizados são depletados por sua extração, e os demais nutrientes vão se perdendo por lixiviação, por não estarem sendo utilizados e, portanto, retidos na biomassa. Ao alternar culturas diferentes, evitam-se parcialmente esses efeitos. levando a uma maior conservação dos nutrientes no solo. • Redução na ocorrência de doenças e pragas. Nas monoculturas, a grande densidade e repetitividade das mesmas espécies criam condições ideais para a proliferação, propagação e perpetuação de agentes patogênicos (fungos, vívrus, bactérias) e pragas (insetos, moluscos, etc.), que terão um suprimento farto e contívnuo de seus alvos preferidos. Com a alternação de culturas, quebra-se essa continuidade e, consequentemente, esses ciclos de transmissão, e portanto você terá plantações mais saudáveis. Plantio consorciado

O plantio consorciado consiste em cultivar duas ou mais espécies juntas, ou seja, em grande proximidade, na mesma área e ao mesmo tempo. Um exemplo 135

Parte II – A Alternativa da Permacultura

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clássico é o plantio de cereais ou gramívneas junto com leguminosas: por exemplo, milho com feijão-guandu, pastagens com leucena, etc. Esta técnica pode apresentar várias vantagens, sendo que a mais óbvia é que você terá uma produção diversifcada. Muitas vezes, você terá uma vantagem adicional, pelo princívpio das plantas companheiras, levando a um aumento na produção. Por exemplo, uma leguminosa (feijão-guandu) benefciando outra planta por fxar nitrogênio no solo. No caso de uma pastagem consorciada de gramívnea com leguminosa, além da fxação de nitrogênio aumentar a produtividade geral da pastagem, ela ainda fornece uma suplementação proteica aos animais de pasto. Outro benefívcio do plantio consorciado é que ele favorece a preservação da fertilidade do solo, de forma semelhante ao que acontece na rotação de culturas: plantas de espécies diferentes utilizam nutrientes de forma diferente, fxando portanto esses nutrientes no ambiente de formas diferentes. Por isso, duas espécies fxam nutrientes melhor do que apenas uma. Adubação orgânica

Adubação orgânica signifca adicionar restos orgânicos ao solo para lhe fornecer nutrientes. Na verdade, isso signifca fechar o ciclo dos nutrientes — o que veio do solo deve voltar ao solo. Com isso, estamos não apenas adicionando nutrientes, mas o estamos fazendo da forma mais estável possívvel, na forma de matéria orgânica, ou seja, biomassa, encorajando sua atividade biológica, o que garante que os nutrientes sejam fxados e continuamente reciclados no local, de forma natural. Os principais adubos orgânicos são resívduos de origem animal, especialmente estrume, mas também outros produtos como penas, cascas de ovos, conchas de moluscos, guano, etc., e composto orgânico, proveniente da compostagem de lixo orgânico. Na verdade, alguns desses adubos, especialmente estrumes animais, são universalmente utilizados, tanto pela agricultura orgânica como pela industrial, já que seu valor como fertilizante é amplamente reconhecido. Isso faz com que eles raramente sejam desperdiçados, e em muitas situações são comercializados, adquirindo o status de commodities. Os adubos orgânicos incluem ainda os excrementos humanos, seja na forma de lodo de esgoto tratado, seja na forma de composto orgânico proveniente de banheiros secos. Esse assunto será discutido em detalhes no capívtulo 11, “Saneamento Ecológico”. Adubação verde

Chama-se de adubação verde a prática de plantio consorciado de suas plantações com diversas espécies de leguminosas, para que essas enriqueçam nutricionalmente o solo com nitrogênio. O nitrogênio é um dos principais macronutrientes necessários ao 136

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desenvolvimento das plantas, e um nutriente limitante em muitos solos ao redor do mundo. Embora seja o elemento mais abundante na atmosfera e no ar que respiramos, as plantas em geral não conseguem absorvê-lo e utilizá-lo diretamente por essa fonte, devendo estar presente em outras formas quívmicas orgânicas e inorgânicas no solo para efetiva utilização pelas plantas como nutriente. Plantas da famívlia Fabaceae (leguminosas) têm em suas raívzes nódulos contendo bactérias diazotrófcas (fxadoras de nitrogênio), especialmente do gênero Rhizobium, que são capazes de fxar o nitrogênio atmosférico transformando-o em formas quívmicas úteis às plantas, como amônia e aminoácidos. A adubação verde consiste de plantarem-se espécies de plantas leguminosas (por exemplo, crotalárias, guandu, mucuna, etc.) com o objetivo especívfco de aumentar o teor de nitrogênio do solo, benefciando assim as demais plantas que se deseja produzir. É uma forma natural, sustentável e totalmente ecológica de fornecer nitrogênio às plantas, evitando os custos econômicos e ambientais da adubação quívmica nitrogenada, a qual é feita normalmente com ureia agrívcola, produzida a partir de combustívveis fósseis, portanto de fontes insustentáveis, sendo ainda uma das principais causas de poluição agrívcola das águas. Para se obterem os melhores resultados, a prática mais comum consiste no plantio sistemático das leguminosas que, após atingirem bom desenvolvimento, são ceifadas — suas raívzes se decompõem, liberando o nitrogênio ali acumulado que benefciará então as demais plantas, enquanto a parte aérea é usada como cobertura vegetal morta. Assim, além de fornecer especifcamente o nitrogênio, a adubação verde também traz todos os outros benefívcios da cobertura vegetal morta, descritos acima. Recuperação de solos degradados Muito dano já foi feito, pois, conforme visto na Parte I, cerca de 80% dos solos agrívcolas do mundo já estão degradados, e a cada dia a situação fca pior. Portanto, faz parte da missão da permacultura atuar na restauração dos solos degradados, ajudando na recuperação dos ecossistemas e garantindo que haverá comida no futuro. Para tanto, adotar as práticas descritas acima é imprescindívvel; porém, isso só não será sufciente, pois trata-se de medidas preventivas, sendo necessárias também medidas complementares de caráter curativo. A recuperação da fertilidade do solo e dos ecossistemas em geral ocorre naturalmente, mas ao longo de enormes perívodos de tempo, que vão de séculos a milênios. Por isso, temos que empregar todas as técnicas disponívveis para favorecer esse processo, para que ocorra no menor tempo possívvel. Além disso, num cenário de exaustão de nutrientes do solo, quer in situ, quer nas reservas de 137

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fertilizantes minerais e sintéticos, associado ao aumento da população que se projeta ainda para este século, faz-se necessário buscar a produção sustentável de alimentos também em solos degradados, de forma que eles produzam, ao mesmo tempo que são recuperados. Sequência natural

Dá se o nome de agricultura de sequência natural a práticas agrívcolas e de manejo do solo, águas e meio ambiente em geral em que se imitam as sequências de eventos que ocorrem no processo de regeneração natural de ecossistemas e paisagens, tomando-se medidas para preservar e estimular esses processos para que a regeneração ocorra no menor tempo possívvel, e que ao mesmo tempo se consiga extrair a maior produtividade possívvel da área, de forma natural. A agricultura de sequência natural emprega todas as técnicas e práticas descritas até agora: fxação da água no terreno e favorecimento de sua penetração para evitar erosão e perda de nutrientes, aumentar a hidratação do solo favorecendo desenvolvimento de biomassa e preenchimento do lençol freático, revertendo ainda problemas como a salinização do solo (que será discutida mais adiante), e demais técnicas de preservação da fertilidade, como plantio direto, cobertura vegetal morta do solo, adubação verde, etc. Agora, em relação à produção vegetal, as áreas degradadas representam um enorme desafo, pois os nutrientes não estão lá — foram perdidos, destruívdos, removidos por anos de práticas agrívcolas insustentáveis. Muitas vezes, adubos orgânicos não são disponívveis em quantidade sufciente na área, nem podem ser trazidos de fora de forma economicamente viável ou ambientalmente responsável. Mesmo a adubação verde nesses casos fca inviabilizada, por dois motivos: primeiro porque as leguminosas fornecem nitrogênio apenas — elas não produzem outros nutrientes e, portanto, poderiam resolver apenas parte do problema. Além disso, elas também são plantas, que requerem nutrientes e um ambiente propívcio para se desenvolverem. Em um solo severamente degradado, sem nutrientes, ressecado, salinizado, etc., as espécies de leguminosas comumente utilizadas em adubação verde também não crescerão, e portanto elas sozinhas não poderão ajudar em nada. A agricultura de sequência natural parte da observação de como a regeneração ocorre na natureza. Geralmente, mesmo em áreas severamente degradadas, alguma vegetação ainda consegue sobreviver e se desenvolver. São as espécies pioneiras, que são extremamente rústicas e adaptadas a adversidades como falta d’água, insolação intensa, solos pobres e ácidos ou salinos, etc. Se uma área degradada é abandonada, essas espécies são as primeiras a se instalar, e começam o longo trabalho de melhorar as condições do local, fxando os nutrientes do solo, favorecendo a penetração de água, fornecendo sombreamento parcial, fomentando a fauna, etc., tornando-o mais propívcio para outras espécies 138

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— as secundárias — que são um pouco mais exigentes e sensívveis, mas uma vez instaladas passarão também a agir, favorecendo outras espécies, e assim progressivamente até a restauração da área a um nívvel semelhante ao original. Na agricultura de sequência natural, procuramos focar sempre nessas espécies que são adaptadas e portanto conseguem sobreviver e produzir no local. As espécies espontâneas são valorizadas e encorajadas, e outras espécies com potencial de serem úteis também são tentativamente introduzidas, visando obter o máximo de cobertura vegetal e atividade biológica possívvel na área, atuando na sua restauração. Agora, pelos princívpios da permacultura, devemos obter um rendimento. Por isso, sempre que possívvel, temos que introduzir espécies pioneiras que produzam algo de interesse para nós, humanos, sejam alimentos, fbras, madeiras, etc. que possamos utilizar ou vender para obter alguma renda tão logo quanto possívvel, viabilizando assim nossa própria sobrevivência e o trabalho de restauração da área. Conforme o processo de restauração evolui, podemos passar a utilizar espécies cada vez mais produtivas e exigentes. Uma questão importante é que, em uma área degradada, os recursos são poucos e estão diluívdos, espalhados em uma larga área. Quando não for possívvel aumentar esses recursos rapidamente através de sua importação (discutida a seguir), é imprescindívvel que se concentrem os recursos para que se tenha sucesso. Ou seja, ao invés de plantar coisas espalhadas por todo o terreno, você deve criar focos, núcleos onde os recursos serão concentrados, possibilitando o crescimento vegetal, a atividade biológica e a produção. O primeiro recurso a ser concentrado é a água, com o uso das técnicas já descritas, como barreiras em curvas de nívvel ou, principalmente, as bacias em meia-lua. Ao concentrar a água da chuva na bacia, você terá ali uma umidade acima da média no terreno, favorecendo o desenvolvimento vegetal. Além de água, essas estruturas acumularão também matéria orgânica, nutrientes, sementes, detritos que servirão de cobertura de solo, etc., dando as melhores condições possívveis para a produção. O melhor é fazer bacias amplas e rasas, com braços de captação longos que captem chuva de uma grande seção do relevo e a infltrem em uma área que comporte não apenas uma, mas algumas árvores — uma pequena moita. Isso porque as plantas, ervas, arbustos e árvores, também se benefciam mutuamente da proximidade umas com as outras — elas fornecem alguma sombra, evitando o calor e evapotranspiração excessiva; mais plantas também mantêm o solo melhor coberto, preservando melhor a umidade. Uma moita de plantas fornece uma barreira contra o vento, etc., ou seja, também as plantas, unidas são mais fortes! A partir do estabelecimento consolidado da vegetação em um certo núcleo, ele passa a ser capaz de se manter e tende a ir naturalmente se expandindo — as

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condições do solo, como fertilidade, estrutura e umidade, vão melhorando gradualmente, e ali forma-se um microclima mais favorável a plantas e animais, etc. À medida que o núcleo se estabelece e cresce, você deve adaptar o sistema de captação de água da chuva, favorecendo essa expansão. Quando tiver certeza que o núcleo está estabelecido frmemente e já não precisa mais de ajuda, refaça os sistemas de captação de água de chuva, direcionando-a para novos núcleos. No longo prazo, conforme os núcleos crescem e outros são criados, eles tendem a se aproximar e se fundir, e você terá enfm uma restauração da área por completo. Importação de recursos

Nos casos de defciência leve a moderada de nutrientes no solo, pode ser possívvel ter uma produção substancial apenas utilizando as estratégias acima descritas. Porém, em casos de degradação mais severa do solo, essas técnicas, mesmo em conjunto, podem ser insufcientes para se ter qualquer produção em um prazo razoável, inviabilizando seu projeto. Uma das formas de saber a condição do seu solo é fazendo uma análise laboratorial para determinar o teor de matéria orgânica, acidez e nívveis dos principais nutrientes. Mas você não precisa fazer uma análise de solo de cara. O problema de se partir logo de inívcio para uma análise do solo é que, tipicamente, essas análises, sua interpretação e recomendações são feitas ou coordenadas por agrônomos e outros técnicos que estão inseridos no paradigma da agricultura industrial. Quando você faz uma análise, quase invariavelmente eles recomendarão a aplicação em larga escala de adubos quívmicos, pois isso é o que eles fazem. Porém, em muitas situações, isso pode não ser necessário, e você poderia perfeitamente alcançar uma boa produção e recuperação da área utilizando apenas técnicas naturais e orgânicas. Portanto, o mais indicado é seguir os princívpios da permacultura: usar soluções pequenas e lentas, captar e utilizar recursos naturais disponívveis e, enfm, utilizar tecnologias apropriadamente, o que pode, sim, em muitos casos, incluir o emprego de fertilizantes minerais. Comece observando o que já está crescendo no seu local, pois isso dará uma indicação da qualidade do solo. Pergunte aos vizinhos, antigos donos ou moradores, pessoas que conheçam bem o terreno e a região, para obter informações sobre o histórico de produção do terreno: o que era produzido, e com que difculdade? O que não se conseguia produzir? Essas informações te darão um bom ponto de partida na tomada de decisões. Agora, será essencial você fazer seus próprios experimentos. Plante de tudo que você quer, e veja o que acontece. Será que vai crescer bem? Se crescer bem, ótimo. Caso o desempenho de suas plantas esteja abaixo do esperado, você terá que ir tentando coisas diferentes, mudar isso ou aquilo: plantar em locais 140

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diferentes no terreno, ou em épocas diferentes; plantar na sombra parcial, plantar no sol pleno, regar mais, tentar um tipo diferente de cobertura de solo, focar mais a adubação nesta ou naquela planta, etc. Porém, em alguns casos acabará chegando à conclusão que não cresce praticamente nada, tipicamente num terreno que já foi muito maltratado, cortado, queimado, arado, etc. por décadas, às vezes séculos. Nesses casos, será necessário trazer recursos como nutrientes de fontes externas. Você deve lançar mão de todas as fontes de matéria orgânica e outras fontes de nutrientes disponívveis na sua área: estrumes animais, restos da indústria alimentívcia e agroindústria (farinha de ossos, cascas de ovo, torta de mamona, etc.), restos de podas e aparas de grama trituradas, serragem de madeireiras e marcenarias, palha de arroz, cinzas de origem vegetal, provenientes de olarias, carvoarias, usinas de álcool, etc., composto municipal (da compostagem do lixo orgânico urbano), lodo de esgoto tratado, etc., quando disponívveis. Porém, esses recursos devem ser obtidos de forma consciente. O ideal é focar em recursos que de outra forma seriam desperdiçados. Uma boa maneira de saber se eles seriam desperdiçados é pelo preço: se for de graça, é sinal que não seria utilizado por outros! Cinzas, serragem e restos de poda são recursos que são na maioria das vezes obtidos sem custos — se você não os usar, eles serão simplesmente jogados fora e acumulados como resívduos em algum lugar, se tornando um problema ambiental. Por isso, seu uso traz um benefívcio duplo: baixo custo e efeito ambiental positivo. Em relação ao estrume, as situações variam bastante. Há locais em que ele é vendido, alcançando altos preços; porém, em outros casos, você pode obter grandes quantidades de graça, bastando você se oferecer para fazer a limpeza de currais e estábulos em fazendas de gado, haras, hívpicas, granjas, etc. Evite trazer materiais de locais longívnquos, evitando assim os custos econômicos e ambientais relativos ao transporte. Um recurso vital que geralmente é possívvel você trazer para o seu terreno de graça é a água de enxurrada das estradas locais. Traga-a por curvas em desnívvel, passando por uma ou mais bacias de infltração para separar o sedimento (areia e argila), conduzindo então para dentro do seu terreno. Tente resolver seu problema de fertilidade apenas com adubos orgânicos. Porém, em alguns casos, dependendo do tipo e grau de degradação do seu solo e da disponibilidade de adubos, pode ser que isso não seja sufciente e você tenha que utilizar também fertilizantes minerais. Nesses casos, ao fazer suas escolhas, procure sempre fazer uma análise global dos fatores envolvidos — não apenas os requerimentos do seu solo e a questão de custos, mas também procure escolher opções que tenham o melhor custo/benefívcio ambiental, ou seja, que além de resolverem seu problema ainda tragam o maior benefívcio ambiental com o menor dano associado possívvel.

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Adubos quívmicos se dividem grosseiramente entre minerais e sintéticos. Os minerais são geralmente oriundos de certos tipos de rochas ricas em determinados nutrientes, que são trituradas e submetidas a um tratamento quívmico (por exemplo, digestão por ácido) para liberação desses nutrientes. Exemplos disso são o calcário agrívcola e o superfosfato simples. Já adubos sintéticos são, como o próprio nome diz, sintetizados de forma artifcial em indústrias quívmicas. O principal exemplo é a ureia agrívcola, usada como fonte de nitrogênio, que é sintetizada a partir do gás natural. O grande problema dos fertilizantes quívmicos é que, da forma indiscriminada como são usados na agricultura industrial, associados à total destruição da vegetação nativa, desnudamento e desestruturação do solo, etc., eles são rapidamente “lavados” do solo, especialmente por escorrimento superfcial mas também por lixiviação, atingindo os cursos d’água onde causam grande destruição nos ecossistemas, conforme já discutido. Sendo assim, eles têm que ser reaplicados frequentemente, ou seja, são usados de forma descartável, o que agrava ainda mais seus efeitos negativos. Porém, não tem que ser assim! Quando os utilizamos em permacultura, o fazemos de forma limitada e contida, associado a todas as práticas já descritas de preservação do solo e da vegetação, e em conjunto com suplementação de matéria orgânica. Dessa forma, os nutrientes são efetivamente fixados no local na forma de biomassa, sendo a partir daív permanentemente reciclados. Ou seja, você tem um benefívcio máximo de sua aplicação, associado a uma minimização dos efeitos negativos. Os nutrientes trazidos e assim empregados são incorporados de forma estável e permanente no solo e no agroecossistema. Os adubos quívmicos nitrogenados são os de pior impacto ambiental, e os mais dispensáveis, já que o nitrogênio pode ser efetivamente suplementado através da adubação verde; portanto, esses jamais são usados em permacultura. Já os adubos minerais podem ser utilizados, quando não for possívvel ou viável alcançar produção apenas com alternativas orgânicas. Há que se ter em mente que os fertilizantes minerais são oriundos de mineração e que sua extração causa grande impacto ambiental no seu local de origem, e além disso são comumente transportados por longas distâncias, ou seja, são produtos que têm um elevado custo ambiental. Portanto, devem ser usados de forma criteriosa, e apenas nas situações em que o benefívcio ambiental, na recuperação da sua área, vão compensar esses custos. Os nutrientes se dividem grosseiramente em macro e micronutrientes, dependendo de seus requerimentos pelas plantas. Macronutrientes são o nitrogênio, sódio, potássio, cálcio, magnésio e enxofre, enquanto micronutrientes incluem boro, cobre, ferro, manganês, zinco, etc. Idealmente, o uso de fertilizantes deve ser orientado de acordo com as necessidades do solo, conforme resultado de análise laboratorial, evitando seu uso excessivo ou desbalanceado.

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Particularidades dos trópicos úmidos Em regiões tropicais úmidas, a abundância de sol, calor e umidade cria uma situação ideal para alta produção. Porém, devido à pluviosidade elevada, há a tendência de “lavagem” dos nutrientes (perda por lixiviação) do solo e seu empobrecimento, geralmente levando também à acidifcação do solo, o que prejudica enormemente as plantas, impedindo que se desenvolvam e produzam. Muitas vezes, um terreno tem uma cobertura vegetal substancial, mas quando você tenta plantar coisas ou estabelecer uma agroforesta, por exemplo, toda muda que você planta morre ou, se não morre, tampouco se desenvolve. Você faz uma análise do solo, e ela indica acidez elevada, e que os principais nutrientes estão muito baixos, talvez 1/10 dos nívveis normais indicados para produção agrívcola. Bom, isso explica porque suas plantas não crescem. Mas, por que então há tantas outras plantas no terreno? A explicação é a seguinte: as espécies de plantas variam quanto à sua tolerância à acidez, e exigência em relação à concentração de nutrientes. Mesmo num solo degradado, ácido e pobre, algumas espécies de plantas rústicas, altamente adaptadas a essas condições, ali se desenvolvem formando toda uma comunidade vegetal. É o inívcio do processo de regeneração do solo, que ocorrerá naturalmente, como já discutido. Só que nessa fase inicial, somente aquelas espécies altamente adaptadas e rústicas conseguem sobreviver e se desenvolver — o que infelizmente não inclui seus abacateiros, mangueiras, mamoeiros e a maioria das principais espécies produtoras de alimentos, madeiras, etc. Daív a necessidade de tratamento ou correção do solo, para permitir que se tenha uma produção a curto e médio prazo. Em regiões úmidas, é comum encontrar solos ácidos e pobres em cálcio, magnésio, potássio, etc. Isso porque os elementos catiônicos tendem a ser mais solúveis, sendo lavados mais facilmente pela chuva, restando os elementos aniônicos, o que leva a uma redução no pH do solo. A acidez é um sério problema para o solo, o ecossistema e a produção. Ela inibe o crescimento das plantas de diversas formas: interfere com a solubilidade e disponibilidade dos nutrientes às plantas, fazendo com que eles não possam ser utilizados. Também aumenta a solubilidade de elementos tóxicos, como o alumívnio, que inibe o desenvolvimento das raívzes, impedindo o crescimento da planta e comprometendo ainda mais a absorção de nutrientes. A agricultura desencadeia o processo de acidifcação do solo por reduzir a biomassa. Numa situação natural, conforme já discutido, os nutrientes estão presos dentro da biomassa. Quando os organismos do ecossistema terrestre são destruívdos pela agricultura e se decompõem, os nutrientes passam a ser expostos, em forma solúvel no solo, permitindo então a perda dos nutrientes catiônicos por lixiviação. Então, você tem um ciclo vicioso em que a destruição da biomassa leva à perda de nutrientes e acidifcação, o que que por sua vez leva a mais perda de biomassa, e assim por diante. 143

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A maioria das plantas prefere solos com um pH entre 6 e 7, embora haja variações importantes em função da espécie e região. Abaixo dessa faixa, você já começa a ter uma acidez tóxica para as plantas. Solos ácidos geralmente são corrigidos com calcário dolomívtico, composto predominantemente por óxido de cálcio e óxido de magnésio, que além de corrigirem a acidez do solo ainda são fontes de cálcio e magnésio, dois importantes nutrientes, normalmente escassos em solos degradados. Pode-se dizer que, em solos ácidos, a calagem é a adubação mais importante, pois num pH ácido, não adianta nada adicionar outros nutrientes, já que devido à acidez as plantas continuarão incapazes de utilizá-los. Corrigindo-se a acidez do solo, elimina-se o alumívnio livre, ou seja, o alumívnio continua lá, mas em forma insolúvel, inócua para as plantas. A quantidade de calcário a ser utilizada deve ser orientada por análise de solo, mas valores comuns giram em torno de 200 g por metro quadrado de solo, ou por muda plantada. O calcário agrívcola é oriundo de mineração e portanto traz um grande custo ambiental embutido. Felizmente, há uma excelente alternativa, disponívvel em muitos locais: cinzas de madeira. Cinzas de madeira são muito ricas em cálcio, predominantemente nas formas de óxido e carbonato, tendo portanto utilidade semelhante à do calcário na correção da acidez do solo. São ainda ricas em magnésio e potássio, contém quantidades menores porém importantes de fósforo, e praticamente todos os nutrientes necessários às plantas, com exceção do nitrogênio e enxofre, que são vaporizados na combustão. Não é surpresa que as cinzas contenham nutrientes de plantas, já que a madeira nada mais é que material vegetal, portanto os nutrientes necessários ao crescimento das árvores têm que estar lá! Cinzas podem ser obtidas em grande quantidade e geralmente de graça em olarias e cerâmicas, carvoarias, indústrias de gesso, indústrias de papel e celulose, usinas de álcool, etc. Nas cidades, pizzarias de forno a lenha podem ser fontes de cinzas úteis à permacultura urbana. Como regra geral, você usa uma quantidade de cinzas equivalente ao dobro da quantidade que usaria de calcário, ou seja, cerca de meio quilo por metro quadrado de solo ou por muda de árvore.

Particularidades dos trópicos semiáridos Regiões áridas e semiáridas têm sido transformadas em grandes centros produtores de alimentos e dado lugar ao crescimento de grandes e modernas cidades, em muitas partes do mundo. Porém, esse aparente milagre operado pela nossa civilização têm sido conseguido usando estratégias insustentáveis, que incluem o desvio de cursos d’água por centenas de quilômetros e a exploração intensa e irresponsável de aquívferos profundos. Isso traz graves consequências ambientais: desviar água signifca que essa água passará a faltar em outro lugar — por exemplo, o Lago Tulare e muitos outros lagos e pântanos 144

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foram secos e seus ecossistemas totalmente destruívdos quando os cursos d’água que os alimentavam foram desviados para uso na irrigação agrívcola e abastecimento de cidades no Vale Central da Califórnia, nos Estados Unidos. Além disso, causa enormes perdas de água por evaporação e penetração em fraturas e outros defeitos do sistema de condução. A exploração de aquívferos profundos, que levam milhares de anos para se preencher, está levando à sua rápida exaustão, e o uso dessa água, geralmente com alto teor salino, para irrigação está causando a salinização dos solos, tornando-os estéreis. Num contexto de mudança climática, antecipa-se que os mananciais e aquedutos que abastecem esses oásis artifciais estarão entre os primeiros a secar, enquanto os aquívferos profundos já dão sinais claros de depleção, podendo suprir água por apenas algumas décadas mais. A consequência inevitável disso é que toda essa água suprida artifcialmente está com os dias contados, e quando esses recursos faltarem num futuro próximo, isso trará o colapso de todas essas estruturas — os desertos voltarão a ser desertos, as cidades terão que ser abandonadas, e todos esses “avanços” serão perdidos, restando apenas os danos ambientais. O principal erro está em trazer esse monte de água de forma artifcial e insustentável, e fcar super empolgado com essa súbita abundância; as pessoas perdem a noção e começam a abusar da água, por exemplo plantando coisas que dependem de irrigação pesada, em um local de clima desértico. Isso logo traz prosperidade econômica e crescimento populacional na área, o que causa uma depleção progressiva e cada vez mais rápida desses recursos hívdricos, levando ao seu colapso. Nada disso signifca que seja impossívvel às pessoas viver e prosperar em ambientes áridos. De fato, sociedades têm vivido em desertos por milhares de anos, e ambientes áridos e semiáridos têm sido o berço de inúmeras civilizações. São justamente essas sociedades que nos dão dois tipos de exemplos: aquelas que usaram os recursos hívdricos de forma sustentável persistiram e prosperaram por longas eras; em contraste, as que não o fzeram acabaram por perecer, muitas vezes de forma abrupta, com o colapso de seus sistemas de abastecimento de água. Esses velhos erros vêm sendo cometidos atualmente em inúmeras partes do mundo, como o já citado Vale Central na Califórnia, Israel e o Semiárido Nordestino, com consequências nefastas previsívveis.* Ambientes áridos e semiáridos são defnidos pela sua escassez de água, e é preciso ter em mente que essa situação tende a piorar progressivamente num contexto de mudança climática. Portanto, temos que instituir sistemas altamente efcientes e econômicos no uso da água, a começar pela efetiva captação, armazenamento e utilização da água da chuva, e escolha de espécies adequadas ao clima. * Este assunto é discutido de forma aprofundada e brilhante no livro “Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso”, de Jared Diamond.

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Também aqui, assim como na zona tropical úmida, você tem uma grande diferença entre terrenos férteis e degradados, e da mesma maneira, os férteis devem ser preservados, e os degradados, recuperados. O desmatamento é, via de regra, o fator desencadeador do processo de degradação, então a solução passa necessariamente pelo reforestamento ou, de um ponto de vista mais prático, o estabelecimento de agroforestas, para restaurar o equilívbrio da área. Porém, como fazer para que as suas mudas sobrevivam, e cresçam e se tornem árvores em condições tão adversas, de escassez hívdrica e um ambiente particularmente hostil? Aqui, mais que em qualquer outro lugar, é necessário empregar uma estratégia de concentração de recursos. Focos

Conforme já discutimos acima, na agricultura de sequência natural, em uma área difívcil ou severamente degradada não devemos tentar restaurar uma grande extensão de uma vez, mas sim estabelecer núcleos ou focos com várias plantas dispostas em proximidade, onde concentraremos nossas atenções e esforços, e também os recursos. Isso é particularmente importante no caso de climas áridos e semiáridos. É importante ressaltar que uma árvore sozinha não será capaz de recuperar a pequena área que ocupa; mas, ao se criar um foco mais amplo, com uma área maior, talvez de uns 10 metros de diâmetro, essa área passa a ser gradualmente recuperada. A disposição das plantas em proximidade nos focos ainda é importante para que elas se ajudem mutuamente, aumentando a taxa de sobrevivência das plantas e a velocidade do estabelecimento da vegetação naquele foco. Água

Como aqui você tem uma estação chuvosa muito curta, com um volume anual pequeno, e uma estação seca muito prolongada, é imprescindívvel que você não meça esforços para captar e armazenar toda a água da chuva que for possívvel. Isso poderá signifcar um custo substancial, mas valerá muito a pena. Faça sistemas interligados de lagoas artifciais e grandes cisternas. Cisternas são mais caras e geralmente têm menor capacidade, mas têm a vantagem que você não terá perdas de água por evaporação. Um grande volume de água será muito importante para manter suas plantas hidratadas e saudáveis através da irrigação durante a estação seca, permitindo um estabelecimento dos núcleos muito mais rapidamente. Claro que você não contará apenas com a rega para hidratar o seu solo: nos núcleos, você terá que usar a técnica da bacia em meia-lua — isso é essencial. Em um terreno com pouca declividade, você pode fazer o núcleo todo em apenas uma grande bacia, plana e rasa, e dentro dessa grande bacia, cada muda de árvore terá também sua pequena bacia particular, para possibilitar uma rega efciente na estação seca. Agora, em terrenos mais inclinados, você deverá fazer várias bacias próximas umas das outras, 146

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acompanhando o declive, ou seja, evitando grandes interferências na topografa. Faça braços de captação de água da chuva longos, para concentrar bastante água nos seus núcleos. Você não terá que se preocupar com irrigação durante a estação chuvosa. Porém, na longa estação seca, você terá que manter suas plantas regadas para acelerar seu estabelecimento e o desenvolvimento de cobertura vegetal permanente. Deve-se focar no uso de espécies arbóreas adaptadas às condições climáticas locais e resistentes à falta de água, para que elas se desenvolvam o mais rápido possívvel, passando a desempenhar o seu papel regenerador do ambiente. Para aumentar a efciência no uso da água, você pode usar outras estratégias como irrigação por gotejamento (nunca por aspersão!), mas o mais vital mesmo é o uso de bacias para reter a água, e farta cobertura de solo para evitar perdas por evaporação. Cobertura do solo

É essencial prevenir a perda de umidade por evaporação a partir da superfívcie do solo. Agora, aqui, você provavelmente não terá recursos para manter toda a sua área coberta por matéria vegetal morta, pedras ou outros materiais. Portanto, você terá que concentrar esses recursos nas bacias das suas plantas, dentro dos focos. Para manter o solo coberto, você deverá lançar mão de todos os recursos que tiver disponívveis. Tipicamente, você terá uma escassez de matéria vegetal no seu terreno, então terá que usar outros recursos. Se houver pedras no terreno, essas devem ser ajuntadas e usadas para cobertura do solo nos seus focos, mas elas raramente serão sufcientes. Então, geralmente você terá também que importar recursos. As beiras de estradas geralmente são largamente poupadas da degradação do solo e salinização excessiva, já que ali não é praticada agricultura ou irrigação, e portanto geralmente têm crescimento vegetal exuberante no perívodo das chuvas, passando a criar problemas de visibilidade na estrada, escondendo a sinalização, curvas, etc. Isso gera a necessidade de corte regular dessa vegetação, o que gera uma grande quantidade de matéria vegetal morta, que você pode trazer para o seu terreno, normalmente sem problemas. Outros materiais descartados, como madeiras, papelão, plásticos, entulhos, etc., podem e devem ser empregados para garantir a mais efetiva cobertura de solo possívvel, pelo menos até que se tenha uma produção sufciente de matéria vegetal no próprio terreno para usar como cobertura vegetal morta de solo, que é o natural e ideal. Com o estabelecimento dos seus focos, você poderá começar a alargá-los e criar novos, expandindo a recuperação do solo progressivamente, até cobrir toda a sua área. Além da estratégia descrita acima, o uso de aditivos condicionadores do solo pode ser útil ou mesmo necessário para o sucesso das suas árvores e, consequentemente, de seu trabalho de recuperação do solo. Também aqui, a adubação orgânica com esterco animal ou composto orgânico será muito 147

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benéfca. Porém, diferentemente dos solos ácidos tívpicos de regiões chuvosas, em solos alcalinos e salinizados (tívpicos de climas áridos) em geral não se indica a aplicação de calcário agrívcola, e sim gesso agrívcola, composto essencialmente de sulfato de cálcio. Além de fornecer cálcio e enxofre, o gesso aumenta a capacidade de troca de cátions, reduzindo a toxicidade do sal e e alcalinidade, e aumentando a efciência de absorção de nutrientes pela planta. O gesso agrívcola é mais solúvel e penetra mais no solo que o calcário, e por isso se distribui bem no perfl do solo, favorecendo o crescimento das raívzes e a absorção de água pela planta. O gesso e adubo orgânico podem ser misturados à terra de preenchimento das covas, no plantio das mudas. Técnicas de plantio serão discutidas em mais detalhes mais adiante, neste capívtulo. Salinização Áreas semiáridas e áridas são muitas vezes caracterizadas por uma elevada salinidade, ou seja, alta concentração de sais no solo e águas subterrâneas. Você pode furar um poço e encontrar água, mas essa água muitas vezes será salobra. A diferença é que nas áreas de alta pluviosidade o sal é continuamente “lavado” do solo, sendo levado para fora da área através das nascentes e pelos rios até o mar, já que não é um nutriente essencial para as plantas e, portanto, não é especifcamente retido na malha da vida. Já nas regiões com baixo ívndice de chuvas, esse processo não ocorre com a mesma intensidade, resultando em nívveis mais elevados de sal no ambiente. O problema da salinidade é muito mais comum em planívcies baixas. Nessas áreas, a topografa plana não favorece a drenagem de água através de nascentes e rios, como ocorre nas topografas acidentadas, ou seja, você tem uma certa estagnação da água no local. Sendo assim, aquele processo de lavagem contívnua dos sais para fora da área não ocorre de forma efciente, resultando em sua acumulação no solo e lençol freático. Além disso, diferentemente das áreas de topografa acidentada, onde o declive favorece o escorrimento superfcial da água da chuva, em locais com topografa plana a água naturalmente penetra no solo com grande efciência, com ou sem vegetação. Portanto, aqui o lençol freático é preenchido, inevitavelmente. Então, nessas áreas tipicamente você tem uma combinação de lençol freático alto e salinidade. O excesso de sal é tóxico às plantas, mas mesmo assim a zona semiárida muitas vezes consegue desenvolver uma cobertura vegetal substancial. Isso porque a própria vegetação atua na regulação da distribuição dos sais no perfl do solo, impedindo que se concentrem nas camadas mais superfciais onde se encontram a maior parte das raívzes. Agora, as atividades humanas, especialmente o desmatamento e agricultura, causam um aumento progressivo da concentração de sais na camada superfcial do solo, num processo chamado de salinização, que então começa a comprometer a saúde e potencial produtivo 148

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do solo, tornando-o estéril. A vegetação atua de diversas formas para evitar a salinização. Ela aumenta a penetração da água e ao mesmo tempo reduz a evaporação a partir da superfívcie do solo, por mantê-lo coberto e sombreado. Esses dois fatores juntos fazem com que que haja um fuxo predominante da água para baixo, movido pela penetração e migração da água, e esse fuxo mantém os sais nas camadas mais profundas do solo e lençol freático. Agora, as árvores atuam na dessalinização do solo por outros importantes mecanismos: árvores nativas de ambientes secos são caracterizadas por terem raívzes particularmente profundas, especializadas na absorção de água. As árvores perdem umidade por evapotranspiração a partir das folhas. Ou seja, elas “puxam” a umidade das camadas profundas do solo para lançá-la na atmosfera a partir de suas copas. Com isso, elas intensifcam o fuxo da umidade no solo para baixo, já que a água entra por cima (penetração na superfívcie) e sai por baixo (absorção pelas raívzes), sendo conduzida internamente pelo xilema das árvores até a copa, onde haverá a evapotranspiração. Assim, pode-se dizer que as árvores funcionam como verdadeiras “bombas dessalinizadoras” do solo. Não que elas removam ou eliminem o sal, mas ajudam a mantê-lo nas camadas mais profundas do solo, evitando portanto que se concentre na camada mais superfcial onde causaria maiores problemas. Por fm, árvores têm uma taxa de evapotranspiração muito mais elevada que vegetações rasteiras. Por isso, são importantes para lançar para a atmosfera o excesso de umidade contido no lençol freático. Em áreas baixas e bacias fechadas que carecem de drenagem por escoamento, é comum o acúmulo excessivo de água no solo, fazendo com que o lençol freático fque muito alto, ou seja, com o nívvel de saturação de água muito próximo à superfívcie. Trata-se de um paradoxo interessante: o clima é árido ou semiárido, mas você tem o solo cheio de água! Isso pode parecer ótimo, e realmente seria, se não fosse pelo fato dessa água ser salobra. Um lençol freático muito alto faz com que os sais migrem por capilaridade, junto com a água, acumulando-se na superfívcie do solo com Árvore como “bomba dessalinizadora” muito mais intensidade, causando O equilíbrio do fluxo da água mantém os sais distribuídos no perfil do solo problemas de salinização. As árvores, 149

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através da evapotranspiração, consomem esse excesso de água, mantendo o nívvel do lençol freático a uma distância segura da superfívcie do solo, prevenindo a salinização. Agora, a partir do momento que você desmata a área, você perde esse importantívssimo serviço de dessalinização prestado pelas árvores e pela vegetação em geral, causando uma elevação do nívvel do lençol freático e a subida por capilaridade dos sais para as camadas mais superfciais da terra, até que literalmente aforem na superfívcie, que em casos mais extremos fca coberta com uma camada visívvel de sal. Esse processo é ainda agravado de forma aguda pela irrigação com águas subterrâneas salobras, prática comum da agricultura convencional, em que o sal, junto com a água, é lançado diretamente sobre o solo superfcial — a água então evapora, sobrando só o sal. Devido a esse processo, o sal passa a prejudicar as plantas, primeiro as mais sensívveis à salinidade, que vão morrendo, deixando apenas as mais resistentes. No fnal, nem mesmo as mais resistentes sobrevivem. Vastas áreas do planeta estão sendo desertifcadas desse modo. Observe que, nesse tipo de situação, o desmatamento interfere de maneira diferente, porém ainda assim negativa, no ciclo hidrológico e qualidade do solo. Se nas topografas acidentadas as árvores contribuem principalmente por favorecerem a absorção de água pelo solo e Salinização preenchimento do lençol freático, aqui, em condições naturais, as árvores atuam na remoção por evapotranspiração do excesso de água, prevenindo a elevação excessiva do nívvel do lençol freático e favorecendo a distribuição dos sais no perfl do solo. Ou seja, a interação entre a topografa, a pluviosidade e cobertura vegetal determina a altura do lençol freático e a distribuição dos sais no solo através de um equilívbrio de forças entre a quantidade de água que penetra e a quantidade que sai do solo, seja na forma de nascentes ou por evapotranspiração. Também neste caso, a restauração da vegetação arbórea é a melhor solução para restaurar o potencial produtivo da área. Os objetivos são a manutenção do nívvel do lençol freático a uma profundidade segura, restaurar o equilívbrio hidrodinâmico no solo e prevenir a evaporação da superfívcie (usando-se para isso técnicas de cobertura de solo). Inicialmente, deve-se utilizar espécies adaptadas a condições de salinidade e alta umidade do solo, de crescimento rápido e alta taxa de evapotranspiração, para fazer a biodrenagem 150

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da área. Variedades selecionadas de eucaliptos estão entre as espécies mais empregadas para esse fm. Gramívneas adaptadas a alta salinidade e alcalinidade podem ser plantadas concomitantemente ao estabelecimento das árvores da biodrenagem, possibilitando a criação de animais e retorno econômico. Algumas espécies de árvores frutívferas (e.g. goiabeiras) também têm se mostrado úteis já em fazes iniciais desse processo de recuperação, por apresentarem boa tolerância às condições de alta salinidade, alcalinidade e saturação do solo. Ou seja, mesmo o plantio para recuperação da área através da biodrenagem pode e deve ser feito de forma diversifcada e integrada, na forma de agroforestas. Uma vez conseguida a dessalinização, e feitas as devidas correções e adubações, terá sido restaurado o potencial produtivo do solo, possibilitando culturas mais exigentes. A biodrenagem é a forma mais natural e efciente de resolver problemas de salinidade e encharcamento do solo. Suas principais vantagens em relação aos sistemas de drenagem artifciais (drenos subterrâneos e emissários) são: baixo custo de implantação e manutenção; perenidade do sistema, e sua consequente valorização ao invés de depreciação ao longo do tempo; inexistência de emissários e de geração de efuentes; contribuição no sequestro de carbono atmosférico na forma de biomassa, ajudando a combater o efeito estufa; aumento da cobertura vegetal, fomentando a fauna; atua como quebra vento em sistemas agroforestais, além de proporcionar renda adicional devido à produção de madeira, lenha, carvão, frutos, etc. * Os sistemas de biodrenagem atuam ainda na restauração do ciclo das águas: a evapotranspiração contribui para uma melhora no clima, especialmente em locais semiáridos e áridos, contribuindo para um aumento da umidade do ar, redução da amplitude térmica (ou seja, melhora do conforto térmico tanto para humanos como para os sistemas produtivos e ecossistema) e aumento do regime de chuvas — todos importantívssimos serviços que sistemas artifciais de drenagem não prestam. Agora, o estabelecimento das mudas para seu sistema de biodrenagem encontrará um importante obstáculo inicial, que é o alto nívvel de salinidade no solo que pode comprometer o estabelecimento de suas mudas. Para lidar com esse problema, deve-se usar a abordagem de concentração de recursos, especialmente água, adubos e cobertura de solo, conforme descrito acima. Comece fazendo as bacias, em focos, com concentração da água da chuva e cobertura morta de solo, para “lavar” o solo nas covas, por pelo menos uma estação chuvosa, a partir do que você pode passar ao plantio das mudas. O tratamento nas covas de plantio com gesso agrívcola e matéria orgânica (esterco ou composto) conforme descrito acima também pode ser útil ou necessário para o estabelecimento das mudas e árvores. * Gheyi, H. R. et al. (eds.). Manejo da salinidade na agricultura: estudos básicos e aplicados. 2010.

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Zonas de proximidade e intensidade Ao estabelecer um projeto de permacultura, nossos objetivos são estabelecer um assentamento humano altamente sustentável e harmônico, muito produtivo e que preserva e recupera a natureza e os ecossistemas, com recuperação da fertilidade do solo, incremento da biodiversidade local e biomassa. Devemos fazê-lo com alta efciência no uso de recursos, ou seja, sem desperdívcio e sem gerar resívduos poluentes. Buscamos um alto grau de independência e autossufciência. Além disso tudo, queremos criar um ambiente que possibilite uma vida humana digna e prazerosa, com abundância e cheia de signifcado. Para que tudo isso seja conseguido, é necessário um cuidadoso planejamento, onde todos os princívpios da permacultura são habilidosamente empregados. Uma das técnicas centrais da permacultura que tem uma aplicação particularmente importante em assentamentos rurais é o planejamento por zonas de proximidade e intensidade, que chamamos abreviadamente de ‘zonas’. O planejamento por zonas é um modo de organização racional das atividades no espaço em que elementos e sistemas produtivos que requerem atenção constante são posicionados mais próximos à casa, ao longo dos caminhos mais utilizados e em locais de maior permanência do permacultor, enquanto sistemas mais extensivos e de baixa manutenção são posicionados progressivamente mais afastados. O planejamento por zonas decorre da aplicação do princívpio da efciência energética. Com ele, consegue-se uma grande economia de tempo e energia com dessocamento e transporte de materiais, além de um maior controle de sistemas mais delicados e intensivos. • • • • • •

Podemos dividir uma propriedade rural em até cinco zonas: Zona 0: a casa (habitação permacultural). Zona 1: o entorno imediato — horta, jardim e caminhos mais utilizados. Zona 2: pomar e plantações anuais. Zona 3: agroforesta manejada e criações de animais. Zona 4: agroforesta extensiva. Zona 5: preservação permanente (santuário ecológico).

Zona 0 A casa pode ser considerada o epicentro de um projeto permacultural, pois é normalmente o local de maior permanência e intensidade de atividade humana em qualquer propriedade. Além de sua função primordial (abrigo), ela também pode ser um ambiente de produção de alimentos, não importando se você mora na zona rural ou urbana. A casa é a nossa zona zero. 152

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Há várias razões para se produzirem alimentos dentro da casa. A grande proximidade (distância virtualmente zero, daív o nome desta zona) torna o manejo extremamente efciente, quase passivo. Por isso, aqui podemos empregar sistemas altamente intensivos. Além disso, a casa também é um local onde um elemento vital se encontra de modo altamente concentrado: a água, especialmente água fertilizada (águas cinzas), que invariavelmente são produzidas diariamente, fazendo desta uma zona com especial potencial produtivo. As paredes, varandas e beirais de telhados também oferecem enormes vantagens às plantas, por fornecerem abrigo contra o vento e sol excessivo. As construções também ajudam as plantas por manterem o solo ao seu redor sempre um pouco mais úmido, já que na área que elas ocupam a perda de umidade por evaporação é impedida. Pode-se fazer um paralelo com o que acontece num ambiente natural, onde o local ao redor de uma grande rocha é sempre mais propívcio para o crescimento de plantas, justamente por esses motivos. Claro que na zona rural, devido à grande disponibilidade de espaço, o maior potencial para produção de alimentos fca fora da casa, e isso faz com que muitas pessoas achem estranha a ideia de produzir alimentos dentro da própria casa, na zona rural. Porém, há vários motivos para isso! Por exemplo, pelo simples gosto de ter sempre lindas plantas produzindo alimentos dentro de sua própria casa, e nos canteiros de suas janelas, criando um ambiente interno bonito, rico e agradável. Isso tem tudo a ver com o estio de vida da permacultura! Além disso, talvez você ou alguém na casa tenha alguma limitação fívsica que difculte o trabalho ou mesmo o acesso ao exterior da casa e as outras zonas. Pessoas nessas condições podem fazer da zona zero seu domívnio, e se surpreenderão com quanta coisa se pode produzir, tanto em termos de alimentos como remédios naturais, aromas e beleza, dentro da própria casa, ao alcance de suas mãos, e com mívnimo esforço. Ainda assim, é justo reconhecer que o conceito de zona zero é mais essencial no contexto da permacultura urbana, devido à limitação de espaço externo caracterívstica de situações urbanas. Por isso, deixaremos para discutir a zona zero em mais detalhes no capívtulo 13, “Permacultura Urbana”.

Zona 1 Depois da casa, a zona um é aquela mais próxima de você: aquela parte do seu terreno por onde você passa todos os dias, o tempo todo — a área com a qual você tem máxima intimidade. Ela começa bem na porta da sua casa. É bom esclarecer que as zonas não são espaços circulares concêntricos, ou de outro modo geometricamente regulares ou fsicamente delimitados — pelo contrário, são conceitos bastante abstratos e com formas e tamanhos indefnidos, a não ser pelos critérios já citados, que são a proximidade e 153

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intensidade da presença humana, que deve se refetir também na intensidade da utilização e cuidado. Assim, não apenas a área ao redor da casa, mas também ao longo dos caminhos mais utilizados, constituem a zona um. Por exemplo, o caminho de acesso entre a casa e a estrada, ou entre a casa e o galpão de ordenha, ou aquela torneira no jardim, podem ser todos tratados como zona um. Por outro lado, talvez haja um ponto atrás da sua casa, bem embaixo daquela janela, um local onde você raramente vai, embora seja muito próximo. Esse local não será zona um. Devido à grande proximidade e sua presença constante, esta zona é ideal para a produção de alimentos que exigem maior atenção e cuidado, e também aquelas coisas que necessitamos o tempo todo. Por isso a zona um é o local ideal para a sua horta. Hortaliças exigem cuidados diários, muito frequentes. Elas têm que ser regadas todos os dias, às vezes duas vezes por dia, dependendo do sol, calor e umidade do ar. Também têm que ser replantadas a cada ciclo (no caso das espécies anuais), e receber cuidados de manejo, como controle de espécies indesejáveis, adubação, cobertura de solo, etc. Além do mais, hortas propiciam colheitas diárias, para as suas saladas, sopas, temperos, etc. Por isso tudo, é uma escolha extremamente irracional (e que muitas pessoas fazem o tempo todo) querer fazer uma horta a dezenas ou mesmo centenas de metros de distância da casa! Isso implica em várias coisas: um enorme desperdívcio de tempo e energia para ir e voltar da horta toda vez, e levar e trazer materiais, como composto, palha, sua colheita, etc. Além disso, faz com que sua horta não receba a devida atenção, simplesmente por não estar na sua vista. Num dia muito quente e seco, suas verduras podem murchar e secar antes que você se dê conta; ou então, quando houver um ataque de pragas como formigas cortadeiras, por exemplo, talvez você só perceba depois que um grande estrago já foi feito. Outra coisa que geralmente acaba acontecendo é que você muitas vezes simplesmente deixará de saborear uma deliciosa verdura fresquinha, ou de adicionar um tempero ao seu prato, como limão ou salsinha ou alecrim, simplesmente porque a horta está muito longe, e você está com pressa, ou com preguiça de ir até lá porque o sol está muito quente, ou está chovendo, etc. Por isso tudo, fazer a horta bem próximo à casa, na zona um, não apenas aumenta sua produção como ainda facilita e melhora a sua vida. Outra grande vantagem de se fazer a horta bem próximo à casa é que a casa é um local de consumo contívnuo de água — e produção contívnua de água cinza. Água em abundância é um fator crucial para a produção de hortaliças, e a água cinza é carregada de matéria orgânica e nutrientes, portanto ela pode e deve ser utilizada na ferti-irrigação da horta na zona um. Isso signifca alta produtividade aliada a economia de água, sem geração de resívduos. Infelizmente, em muitas propriedades rurais as pessoas consomem enorme quantidade de água limpa para a horta, enquanto lançam sua água servida no 154

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córrego ou ribeirão próximo, ou em um sumidouro, desperdiçando assim a água e os nutrientes e, ao mesmo tempo, causando poluição nos cursos d’água e lençol freático — tudo errado! Conforme discutiremos no capívtulo 11 (“Saneamento Ecológico”), a água cinza de pias, banho e lavagem de roupa e louça é segura para o solo e ecossistemas terrestres, onde funciona ao mesmo tempo como água e adubo, mas essa mesma água cinza é terrivelmente nociva para os ecossistemas aquáticos, onde representa poluição. Por isso, águas cinzas devem ser usadas em sistemas de ferti-irrigação superfcial ou subsuperfcial, garantindo máxima produtividade com segurança tanto do ponto de vista de saúde humana como ambiental, sem jamais ser lançada a corpos d'água. A zona um deve preferencialmente ser mantida livre de árvores grandes, pois além do risco de queda sobre a casa também fazem muita sobra que impede a produção efciente de hortaliças. Porém, é um ótimo local para pequenas árvores a arbustos, seja por sua beleza (valor ornamental, fores), ou por produzir alimentos. Limoeiros, mamoeiros, macieiras e parreiras, por exemplo, são bem-vindas na zona um. Plante também fores próximas ou misturadas às suas verduras, que darão beleza e ajudarão a confundir e afastar algumas pragas. Ao longo de seus caminhos diários, plante verduras, cercas vivas e arbustos de espécies comestívveis ou frutívferas, e que deem lindas fores — hibiscos e ora-pro-nobis, por exemplo. Não há nada mais agradável que colher a verdura do almoço sem sequer ter que sair do caminho, ou chegar em casa com a sacola cheia de frutas que você colheu enquanto caminhava! Há uma grande variedade de técnicas que podem ser empregadas em uma horta em pequena escala com alta efciência. Muitas pessoas gostam do sistema de canteiros elevados, que podem ser construívdos com troncos, pedras ou blocos, ou mesmo com paredes de cob, e preenchidos com terra adubada para plantio. Os canteiros devem ser feitos em nívvel, e as paredes do canteiro devem ser mais altas que a terra de plantio, pois isso facilita a irrigação, permitindo que a água se espalhe homogeneamente e penetre na terra sem escorrer para fora. Além disso, devem ser sempre cobertos com matéria vegetal morta, que preserva a umidade do solo, isso tudo resultando em maior efciência no uso de água. Outra opção são os canteiros rebaixados — trincheiras rasas, de cerca de 10 cm de profundidade e 60 cm de largura, onde são plantadas as verduras. Por serem mais baixas, mantêm-se úmidas por muito mais tempo, enquanto os caminhos, por serem elevados, estão sempre secos, mesmo após a irrigação ou chuvas. Porções do terreno relativamente ívngremes devem preferencialmente ser deixadas com uma cobertura vegetal permanente para prevenção da erosão. Porém, mesmo essas áreas podem ser usadas para produção, desde que empregadas técnicas adequadas, como o terraceamento. O terraceamento 155

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consiste em se construir plataformas em nívvel, que podem ser reforçadas com paredes de pedras, se necessário.

Miniterraços permitem o cultivo em porções íngremes do terreno Adaptado de: Bill Mollison. Permaculture in humid landscapes. In: Dan Hemenway (ed.). Permaculture design course series (3. a ed.). Yankee Permaculture. 2001.

Há várias formas de se utilizar a água cinza para irrigação, que podem ser aplicadas isoladamente ou em conjunto. Um sistema simples de ferti-irrigação passiva consiste em se fazer um dreno em desnívvel, com uma caívda de cerca de 2%, percorrendo o terreno abaixo da casa em zigue-zague. Você pode simplesmente plantar suas hortaliças em ambas as margens desse dreno — elas se manterão sempre irrigadas e fertilizadas pela água cinza, sem encharcar. O dreno deve ser limpo regularmente para remoção de excesso de matéria orgânica, e esse material pode ser compostado, retornando depois como adubo para a própria horta. Outra técnica é passar a água cinza por um fltro simples — um tambor cheio de serragem, por exemplo — e depois armazená-la em um tanque para uso em irrigação no momento desejado. O tanque deve ser esvaziado todos os dias (toda a água sendo usada na irrigação) e lavado regularmente, pois o acúmulo prolongado pode causar mau cheiro. A serragem do fltro, quando saturada de matéria orgânica, deve ser compostada e substituívda por serragem nova. Para evitar a proliferação de moscas, cubra a boca do fltro com uma tela de nylon (tipo “sombrite”). Informações sobre técnicas de produção de hortaliças são facilmente encontradas em livros de agricultura e horticultura orgânica. Porém, esses livros costumam ser “contaminados” com o paradigma da agricultura convencional, em que “um canteiro de alface é um canteiro de alface” e “um canteiro de tomates é um canteiro de tomates”. Esse tipo de abordagem, embora consagrado pela prática, signifca que você terá várias pequenas monoculturas, lado a lado, e que a cada ciclo o canteiro terá que ser totalmente reformado. Em 156

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permacultura, mesmo nas hortas, é comum aplicarmos uma abordagem semelhante à agroforesta, em que diversas espécies são plantadas juntas, formando um pequeno porém rico agroecossistema. Isso permite uma maior perenidade dos seus canteiros, já que os ciclos de crescimento entre diferentes espécies serão dessincronizados. Flores, verduras, legumes e temperos se misturam nos canteiros, formando verdadeiras miniforestas cheias de cores, sabores e aromas! Algumas ervas nativas também podem fazer parte do seu jardim-horta agroforestal, que certamente atrairá visitantes como abelhas e pássaros, etc. Aqui, pelos princívpios da valorização das espécies nativas e máxima biodiversidade, você deve sempre procurar incluir plantas alimentívcias não-convencionais (PANCs). Exemplos de PANCs úteis na horta incluem a taioba, ora-pro-nóbis, serralha, beldroega, capuchinha, fsális, entre outros. Procure explorar o conceito de plantas companheiras. Com o tempo e a experiência, você descobrirá quais espécies funcionam bem juntas e quais não, possibilitando a disposição mais efciente e harmoniosa de espécies, tanto em termos de espaço como ao longo do ano.

Zona 2 A zona dois é aquela que não está debaixo do seu nariz e ao alcance da sua mão o tempo todo — talvez você tenha que desviar do seu caminho algumas dezenas de passos para alcançá-la. Aqui, você terá basicamente o seu pomar, algumas plantações anuais mais exigentes e seus animais. Normalmente, a zona dois também estará próxima o sufciente para permitir o uso de água cinza para irrigação. Claro que o tamanho da zona um e da zona dois, e de fato todas as zonas, vai variar de acordo com as prioridades de cada permacultor, além de outros fatores, como o tamanho da área total, número de pessoas, objetivo principal, etc. Se seu foco for a produção de verduras, talvez não sobre água cinza para o pomar, pois ela será toda usada na zona um. O pomar, assim como a horta, deve ser feito em uma abordagem de “agroforesta”, ou seja, várias espécies misturadas, de forma integrada, potencializando as interações positivas entre as plantas, aumentando a densidade vegetal, aumentando portanto a biomassa e a biodiversidade. Posicione as espécies de forma que elas não se atrapalhem — não plante um arbusto que precisa de sol, como um pé de acerola, muito próximo e na sombra de uma árvore frondosa, como uma mangueira. Você deve conhecer as caracterívsticas e necessidades de cada espécie para ser capaz de posicioná-las de forma habilidosa e efciente, levando em consideração também a topografa do local, direção do sol, etc. Um pomar assim estabelecido tem alta produtividade devido ao adensamento, que se traduz em alta efciência no uso do espaço, e por sua diversidade e harmonia é algo lindo de se ver. Também é muito agradável de se trabalhar, pois sempre haverá uma sombra. 157

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Há ainda outras vantagens: pela maior densidade vegetal, as próprias árvores e arbustos dão conta de manter o solo bem protegido por uma camada de matéria vegetal morta (folhas caívdas); por haver bastante sombra no nívvel do solo, quase não há crescimento de plantas indesejáveis uma vez que o pomar esteja estabelecido. E a proximidade faz com que a irrigação seja muito mais fácil e efciente. Isso tudo contrasta enormemente com os pomares convencionais: chatos e monótonos com suas fleiras e espaçamento uniforme, e geralmente apenas uma ou poucas espécies; plantas distantes umas das outras, com aquele grande espaço no meio, onde se você não cuidar vira um matagal. E cuidar signifca fcar infndáveis horas capinando ou roçando, debaixo do sol quente, ou o que é pior, aplicação de herbicidas — um horror! Você pode irrigar seu pomar com água cinza ou, caso não tenha o sufciente, água de sua lagoa artifcial. Nesse caso, pode ser vantajoso fazer irrigação por gotejamento. Para uma rega efciente, mantenha sempre uma boa bacia ao redor de cada planta, com capacidade para uns 20 ou 30 litros pelo menos, sempre com uma boa camada de cobertura vegetal morta. Na fase de estabelecimento do pomar, quando suas plantas ainda forem apenas mudas, você terá muito espaço entre elas, com bastante sol. Aproveite para plantar verduras e legumes na bacia, ao redor de cada muda, aproveitando a terra adubada, a irrigação e cobertura de solo, e você terá uma produção de curto prazo, sem qualquer esforço adicional. A zona dois também é o local indicado para plantações anuais como milho, abóbora, mandioca, feijão, arroz, etc. Não se esqueça de valorizar as variedades tradicionais e crioulas mais adaptadas à sua região. No começo, você poderá ter alguma difculdade em encontrar sementes crioulas, mas conversando com as pessoas, especialmente moradores locais mais antigos, você conseguirá encontrar pessoas que ainda cultivam essas variedades. Adquira o hábito de cultivá-las, tornando-se não apenas um produtor, mas também um guardião dessas sementes, desse repositório genético, ajudando a preservá-lo e disseminá-lo, compartilhando-o com outros. Então, aqui você tem vários cenários possívveis, dependendo de seus interesses. Se você não tiver interesse na produção de anuais, pode fazer o pomar bem adensado, como descrito acima. Mas se quiser também plantar espécies anuais, então vai ter que plantar seu pomar de forma mais espaçada, para dar lugar para as anuais. Agora, se você quiser uma produção em maior escala das anuais, então deve plantar seu pomar em faixas densas, intercaladas por corredores, sempre em nível, amplos o sufciente para você usar um trator, onde você plantará suas anuais. As faixas de pomar servirão para espalhar e infltrar o escorrimento de água, e prevenir a erosão. Caso sua ideia seja focar mesmo na plantação de anuais nessa área, você pode abrir mão do pomar e deixar nas faixas apenas vegetação nativa. 158

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Se o terreno for bastante inclinado, você pode empregar a técnica do terraceamento. Nos taludes, você plantará seu pomar, da forma mais densa possívvel, o que contribuirá para a estabilização permanente dos terraços. Na verdade, a inclinação dos taludes favorece o adensamento, pois permite um melhor “encaixe” das copas das árvores, e isso se reverte em aumento na produtividade. Nos platôs, você plantará as anuais. Por serem planos, isso facilitará demais seus trabalhos, possibilitando inclusive a tratoragem, além de favorecer a penetração de água no solo e prevenir efetivamente a erosão. “Encaixe” das copas permite maior densidade

Arbustivas e arbóreas pequenas no talude

Anuais no platô

A criação de alguns animais também se dá na zona dois. Suas aves (galinhas, patos, gansos, codornas, etc.) devem fcar aqui. Também outras espécies animais, especialmente em fases crívticas como fnal de gestação e lactação, quando necessitam maior atenção e cuidados, benefciam-se dessa proximidade, devendo ser trazidos à zona dois. Outras fases, como recria e engorda, requerem menos atenção e podem ser feitas de forma mais extensiva, nas zonas 3 e 4. Além da facilidade e efciência de manejo, a proximidade dos animais do pomar e da zona um também é vantajosa pois o esterco produzido pode ser facilmente trazido para adubação da horta e pomar. Pequenas propriedades rurais, de talvez até uns 5.000 m 2, provavelmente não terão espaço para acomodar mais do que até uma modesta zona 3, o que não é necessariamente um problema, já que as zonas 1 e 2 são as de uso mais intensivo e consequentemente as de maior produtividade por área, sendo que delas provavelmente virá a maior parte dos seus alimentos. Se você tiver uma área pequena e quiser o máximo de produção possívvel, então você deve focar em produção intensiva, o que signifca expandir as suas zonas 1 e 2, em detrimento de zonas mais extensivas (zonas 3 em diante).

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Parte II – A Alternativa da Permacultura

9. Permacultura Rural

Zona 3 Aqui vai a sua verdadeira agroforesta! Mas, o que exatamente é uma agroforesta? A melhor forma de entender o que isso signifca é a seguinte: olhe para uma foresta natural, uma área de mata atlântica, por exemplo. Ela está lá há milhares, milhões de anos, se for mata virgem, ou talvez algumas décadas a poucos séculos, se for uma mata secundária. E lá está ela, verde, exuberante, maravilhosa. Quem a adubou? Ninguém. Tem alguém ali, regando? Não. Ela não precisa de nenhuma interferência humana, e ainda assim se mantém com uma altívssima produção de biomassa, eternamente. Em contraste, pomares e plantações em geral requerem cuidados e manutenção constante: adubação, irrigação, controle de pragas, etc. Mas, como isso é possívvel? A resposta está na máxima biomassa e máxima biodiversidade, e na perfeita integração. Numa foresta, você tem milhares de espécies de vegetais, animais, fungos e microrganismos trabalhando em conjunto. Você tem a reciclagem máxima de nutrientes — o resívduo de um é o alimento do outro, e nada é perdido. A fertilidade do solo é mantida e aumentada, e assim também a água no local. Nos diferentes extratos da foresta, formam-se microclimas ideais para o desenvolvimento de todas as formas de vida daquele ecossistema. O único problema é que em uma foresta natural normalmente tem muito pouca comida para gente. Basta você fcar perdido em uma mata para ver como é fácil morrer de fome lá dentro! Agora, imagine uma foresta semelhante a uma mata natural, mas onde boa parte das árvores sejam frutívferas — abacateiros, mangueiras, goiabeiras, jabuticabeiras, jambeiros, mamoeiros, jaqueiras... ingá, cacau, jenipapo, enfm, tudo que você puder imaginar. E não apenas comida, mas também outros materiais úteis para o homem, como madeiras, fbras, remédios, etc. Problema resolvido! Ou seja, é possívvel aplicar a sabedoria da natureza para obter sistemas produtivos altamente efcientes e harmoniosos para suprir nossas necessidades, ao invés dos sistemas artifciais e disfuncionais da agricultura convencional. Uma coisa que chama a atenção é que enquanto num pomar convencional é mantida uma densidade vegetal relativamente baixa, respeitando um espaçamento entre as árvores, em uma foresta natural você observa uma altívssima densidade de plantas de inúmeras espécies. A justifcativa para o espaçamento das árvores em um pomar é evitar a superlotação e competição por nutrientes e sol, o que comprometeria a produtividade. Mas então, por que isso não é um problema na foresta? Um dos motivos para isso é que, por terem necessidades diferentes, inclusive em relação a nutrientes mas também em relação a exposição ao sol, umidade, temperatura, etc., plantas de espécies diferentes (e fases de desenvolvimento diferentes) ocupam nichos diferentes dentro do mesmo espaço, podendo, portanto, várias plantas ocupar “o mesmo” espaço (concentração), muitas vezes até mesmo se benefciando dessa 160

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proximidade e interação com outras plantas. Aqui, vale lembrar o conceito das plantas companheiras — plantas que, quando postas em proximidade, ajudamse mutuamente, ou seja, têm uma interação benéfca, seja por fornecerem sombreamento parcial, ou por fxarem nitrogênio no solo (caso das leguminosas), ou por repelirem insetos ou atraívrem predadores de pragas, etc. Esses são mecanismos simples e conhecidos de interações positivas entre plantas, mas pode haver outras formas de interações benéfcas, como por exemplo interações hormonais ou através de substâncias do metabolismo secundário. Essas interações harmônicas são chave para a máxima biomassa e biodiversidade, e a perfeita integração observada em uma foresta. Portanto, para o estabelecimento de uma agroforesta, é fundamental aplicarmos os princívpios da permacultura, levando em consideração os tipos de relações entre os diversos elementos, favorecendo as relações benéfcas e evitando as relações negativas para obter o máximo de integração e autorregulação do sistema como um todo. Na zona 3 você terá sua agroforesta manejada — podas, adubação e talvez até irrigação para máxima produtividade. Aqui também fcarão alguns dos seus animais. Estabelecendo uma agrofloresta Há muitas formas de se plantar uma agroforesta, e a escolha da técnica ideal dependerá de vários fatores, especialmente o clima (regularidade de chuvas, duração da estação seca), condição do solo (fértil ou degradado), estado de regeneração natural/espontânea da vegetação na área, etc. No estabelecimento de uma agroforesta ou reforestamento, você normalmente tem que lidar com três empecilhos principais: defciências do solo, estresse hívdrico e ataque de pragas. Solo

Quanto às condições do solo, particularmente em relação à fertilidade, você tem basicamente dois cenários possívveis: área degradada e área fértil (claro que esse são os dois extremos, e seu caso pode estar em qualquer ponto intermediário). No caso de solo degradado, maltratado pela agricultura e sem fertilidade, ressecado e compactado, com baixívssima matéria orgânica, você terá que aplicar todas as técnicas já discutidas, e terá que trabalhar duro para que suas árvores cresçam. Já no caso de um terreno fértil, é praticamente só plantar que cresce, mas você terá que controlar a vegetação espontânea para que ela não abafe suas mudas. Portanto, procurar um terreno mais fértil pode ser muito tentador. Porém, o ideal é justamente o contrário: focar em terrenos degradados, de forma que você possa usar a permacultura para recuperá-los, efetivamente prestando uma relevante contribuição para o meio ambiente. 161

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Existe um nívtido contraste entre as duas situações: uma pessoa trabalhando em um terreno fértil investe boa parte de seu tempo e energias combatendo a natureza, seja a vegetação espontânea que ameaça seus pomares, ou mesmo animais silvestres que vêm atacar sua produção. Por outro lado, uma pessoa trabalhando em um terreno degradado investe seu tempo, esforço e recursos em recuperar aquela área, trazendo de volta a vida, aumentando a biomassa e a diversidade. Qual delas está trabalhando para a natureza? Terrenos férteis devem idealmente ser deixados em paz, para que se regenerem natural e espontaneamente, o que de fato ocorre rapidamente, desde que não haja humanos atrapalhando. Estresse hídrico

O estresse hívdrico decorre principalmente de dois fatores: as mudas de árvores são muito sensívveis à falta de umidade e morte por ressecamento, por terem raívzes pequenas que atingem apenas a camada mais superfcial do solo (diferentemente de árvores crescidas, que com suas grandes raívzes conseguem buscar água em nívveis profundos do solo). Além disso, o solo desmatado e compactado é naturalmente mais ressecado que o solo da foresta, pois você tem uma combinação de reduzida penetração de água e exacerbação das perdas de umidade por evaporação, já que o solo está exposto ao sol e vento. Quando sua foresta ou agroforesta estiver estabelecida, esses problemas estarão naturalmente resolvidos, mas para romper com essa barreira inicial, permitindo que suas mudas sobrevivam e se transformem em árvores, você terá que lançar mão de uma estratégia adequada, com a combinação de quatro técnicas: plantio na época certa (discutido mais adiante), construção de bacias, uso de cobertura do solo e irrigação. Pragas

É normalmente aceito o conceito que pragas são animais e plantas, nativos ou não, que, por um desequilívbrio ambiental, assumem um comportamento agressivo ou predatório sobre as nossas plantações. Esse é o caso tívpico das plantações convencionais ou monoculturas, onde você tem uma absurda concentração de plantas da mesma espécie em largas áreas (ou seja, um desequilívbrio ambiental); obviamente, qualquer inseto que goste de comer essa planta vai adorar, e se instalar e se reproduzir, e devorar tudo! Portanto, o primeiro e mais importante passo na prevenção de pragas é restaurar o equilívbrio ambiental, e a única forma de se fazer isso e ao mesmo tempo ter uma produção agrívcola é através de policulturas integradas, na forma de agroforestas. Assim, aquela planta preferida daquele inseto estará intercalada por várias outras espécies de plantas que o inseto não gosta e terá que atravessar, e talvez abriguem predadores, etc., ou seja, difcultando a vida do inseto — ele continuará lá, mas em uma situação de equilívbrio, não sendo tão destrutivo à sua plantação. 162

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Quando se fala de controle orgânico de pragas agrívcolas, muitas pessoas pensam logo em controle biológico: introduzir um predador “X” para controlar uma praga “Y”. Essa é uma ideia comum na cabeça de estudantes de biologia e agronomia, e mesmo permacultores. Porém, essa ideia é resultado de uma visão extremamente reducionista e não realista de como as interações funcionam na natureza, e por isso não funciona na prática, sendo ainda extremamente perigosa, tendo já causado desastres ambientais de sérias proporções. Um caso tívpico é o do caramujo predador Euglandina rosea, introduzido no Havaív na esperança de que ele controlaria a proliferação do também exótico caramujo gigante africano (Achatina fulica). No Havaív, assim como em muitos outros lugares incluindo o Brasil, foi introduzido o caramujo gigante africano que, ao encontrar condições favoráveis (clima, abundância de alimento, ausência de predador efetivo, etc.), proliferou-se assustadoramente. Numa tentativa de controlar o Achatina através do controle biológico, as autoridades havaianas, orientadas por técnicos, introduziram o caramujo predador. Porém, como em tantas outros programas fracassados de controle biológico, o predador introduzido simplesmente ignorou a espécie-alvo e, ao invés dela, passou a devorar as espécies de caracóis nativos, causando dezenas de extinções em pouco tempo. Situação semelhante ocorreu também nas Ilhas Maurívcio, na Polinésia Francesa e outras ilhas e arquipélagos. O controle biológico existe e acontece, sim, em sua melhor forma, na forma de sistemas bem diversos e integrados, refetindo ecossistemas naturais. “Pragas”, ou seja, animais que comem nossas plantas, sempre existirão e causarão perdas, mas geralmente serão perdas aceitáveis. Essas perdas podem ser reduzidas pela aplicação de diversas técnicas orgânicas, como repelentes e venenos naturais (e.g. plantar tagetes na horta, ou aplicar infusão de folhas de fumo, ou polvilhar cinzas, etc. para certas pragas), prevenção do acesso das pragas através de barreiras fívsicas, etc. Plantio por sementes ou mudas? Se você fzer uma pesquisa sobre técnicas para plantar uma agroforesta, fcará surpreso com a quantidade de informações diferentes e confitantes que encontrará. Há quem recomende o plantio direto por sementes, enquanto outros recomendam o plantio por mudas; mesmo assim, há divergências entre o que é melhor: mudas pequenas em tubetes, ou mudas maiores, em sacos de 600 ml, por exemplo. Também as recomendações em relação ao preparo do solo, ou o número e disposição das espécies, varia enormemente entre diferentes autores. A única conclusão que podemos tirar disso é que há várias abordagens possívveis, e que a melhor abordagem dependerá das suas condições especívfcas, devendo ser determinada, em cada caso particular, baseado em experimentação, ou seja, tentativa e erro com as diversas opções possívveis.

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O plantio direto por sementes teoricamente tem as vantagens de ser mais fácil e barato. Essa estratégia pode funcionar bem em algumas situações particularmente favoráveis, ou seja, quando o solo ainda não está tão degradado e você tem uma boa distribuição de chuvas ao longo do ano, e não tem muitos problemas com pragas em sua área. Porém, muitas vezes essa abordagem não traz bons resultados, sendo mais indicado o plantio por mudas. Isso porque quando você planta por sementes, mesmo que tenha uma boa germinação (o que nem sempre é o caso), ao fnal da estação chuvosa suas mudas ainda são muito jovens e pequenas, com mívnima reserva de energia e raívzes muito superfciais, ou seja, são frágeis demais para sobreviver à primeira estação seca (exceto espécies extremamente rústicas e adaptadas). Outro problema é que as mudinhas jovens são extremamente susceptívveis ao ataque por pragas, especialmente as formigas cortadeiras, as quais discutiremos em mais detalhes a seguir. Algumas técnicas alternativas têm sido propostas, como as “bolas de sementes” (seed balls), em que sementes são envoltas em um substrato nutritivo composto de terra, fertilizantes e às vezes outros aditivos (como repelentes de predadores, por exemplo), e lançadas com objetivos de reforestamento. A ideia é aumentar a taxa de germinação e sobrevivência dessas sementes, por fornecer condições mais favoráveis. Essa técnica ganhou muitos fãs, porque um grupo pequeno de pessoas pode facilmente em um fnal de semana lançar milhares de bolas, e o indivívduo volta para casa com aquela sensação que acabou de salvar o mundo. Porém, volte à área dali a alguns anos e procure alguma das árvores que você “plantou” naquele dia, e terá uma triste surpresa: elas simplesmente não estarão lá. Claro que você pode experimentar, não custa nada, mas provavelmente chegará à conclusão que trata-se de uma grande ilusão. Embora mais trabalhosa, em minha experiência a abordagem que traz melhores resultados é o plantio por mudas, e não mudinhas pequenas, mas sim mudas grandes, de 50 cm a um metro de altura. Aqui, temos um paradoxo, pois o Princívpio n.o 1 da permacultura nos ensina a imitar a natureza, e na natureza as árvores se reproduzem lançando sementes. Porém, há que se considerar que a taxa de sobrevivência das sementes na natureza, ou seja, a proporção das sementes produzidas que efetivamente germinam, crescem e atingem a idade adulta, é muito baixa, e para alimentarmos a população e reconstruirmos ecossistemas precisamos de mais que isso, em termos de efciência. Plantar uma semente, ou mesmo uma muda, é muito fácil, mas na maioria dos casos isso só não é sufciente. É preciso estar lá para defendê-la, cuidar dela para garantir que se torne árvore. É preciso abandonar a ilusão de soluções fáceis. Curar a Terra requer fxar o homem na terra — é preciso estar na terra, trabalhando com a terra, e pela Terra.

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Coletando sementes

Para estabelecer uma agroforesta, você precisará de muitas sementes e/ou mudas. Isso pode representar um custo substancial, mas também pode ter custo virtualmente zero. Para isso, basta você incorporar ao seu estilo de vida o lindo hábito de plantar as sementes das frutas que você consome, produzindo suas próprias mudas! Também para as espécies forestais, você pode coletar suas próprias sementes e produzir suas próprias mudas. Para isso, você precisa saber quais são as espécies de árvores da sua região, ser capaz de identifcá-las, e sair à caça de sementes. Pode parecer uma tarefa muito difívcil, mas há uma maneira de torná-la bem mais fácil. Siga os seguintes passos: 1. Faça uma boa pesquisa e elabore uma lista de espécies de árvores da sua região. Você deve consultar a internet, livros especializados (a série “Árvores Brasileiras”, de Harri Lorenzi, é um recurso excelente), e perguntar para moradores antigos da área. Pessoas mais antigas, especialmente as da zona rural, muitas vezes têm um conhecimento considerável sobre a fora e fauna locais. 2. Elabore um calendário com as épocas de foração e frutifcação das espécies da sua lista. 3. Cultive o hábito de andar sempre prestando atenção nas árvores, focando naquelas que estão com fores ou frutos. Procure identifcá-las, tomando por base o mês do ano em que elas estão foridas ou com frutos. Por exemplo, você encontrou uma árvore que está dando sementes, e você está no mês de outubro. Portanto, para identifcá-la, você não terá que consultar toda a sua lista de espécies, mas sim apenas aquelas que, conforme seu calendário, frutifcam em outubro. Isso facilita enormemente a identifcação, e favorece a construção de um bom conhecimento das espécies e seus ciclos — um aprendizado lindo e muito importante! Use esse conhecimento para atualizar sua lista de época de foração e frutifcação, pois pode haver variações regionais. Você não deve sair coletando sementes e plantando-as indistintamente em seu terreno, ou produzindo mudas adoidado. O mais recomendado é você estabelecer critérios de seleção das espécies a serem utilizadas, para maximizar a efciência do seu trabalho na consecução dos seus objetivos. Trataremos desses critérios mais adiante. Claro que você também pode reservar parte do seu esforço e tempo para um plantio aleatório, pois o fator acaso muitas vezes traz surpresas maravilhosas. Produzir suas próprias mudas a partir de sementes das frutas que você comeu, ou sementes que você mesmo coletou em suas expedições a matas ou bosques, ou mesmo nas praças, parques e ruas da cidade — isso representa muito mais do que economia de dinheiro. Trata-se de um aprendizado importantívssimo, e seu relacionamento com suas plantas terá um signifcado muito mais profundo. 165

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Produzindo mudas

Produzir mudas é a coisa mais simples do mundo: junte todas as caixinhas de leite e sacos plásticos resistentes, como os de feijão, arroz, açúcar, etc., que tenham capacidade entre 0,5 e 5 kg. Peça para amigos e parentes guardarem para você, também, pois você vai precisar de bastante. Com uma tesoura faça dois buracos de cerca de 1 cm no fundo dos sacos, encha-os de terra e plante as sementes próximo à superfívcie. Quanto à profundidade de plantio, como regra geral, plante a semente a uma profundidade de aproximadamente 1,5 vezes o tamanho da semente (por exemplo, uma semente de 1 cm deve ser plantada a cerca de 1,5 cm de profundidade). Mantenha os blocos (ou seja, seus sacos com terra e semente ou muda) em local parcialmente sombreado, e regue conforme necessário, para que permaneçam sempre úmidos, mas não encharcados. Logo, suas sementes germinarão, e você terá suas mudas! A taxa de germinação e o tempo para que ocorra variam muito entre as espécies e as condições do seu local, mas é preciso ter paciência, pois algumas sementes podem levar meses para germinar. Outra abordagem útil é fazer uma sementeira: um canto no seu jardim, ou uma caixa baixa feita de madeira e cheia de terra, onde você planta todas as sementes que quer, e vai regando e esperando germinarem. Então, você as retira cuidadosamente e transplanta para os saquinhos. Esta abordagem é mais indicada para espécies com taxa de germinação baixa, muito lenta ou desconhecida. Agora, a terra a ser usada para fazer seus blocos ou sementeiras pode ser preparada com solo superfcial do seu terreno, misturada a composto orgânico na proporção de 2:1, ou seja, duas partes de terra para uma de composto. Mudas requerem atenção diária, especialmente em locais e épocas de clima quente e seco, quando elas tem que ser regadas diariamente. Por isso, o viveiro deve ser feito na zona um, bem próximo à casa. Se você ainda mora na cidade, é melhor ter o viveiro lá, no quintal, garagem ou varanda, onde for melhor, desde que receba sol sufciente. Agora, há uma consideração a ser feita quando você prepara suas próprias mudas. Algumas espécies apresentam grande variabilidade da qualidade dos frutos, como laranjas e uvas, por exemplo: você planta a semente de uma fruta que gostou, mas a árvore que você obtém pode ter frutos de qualidade muito diferente. Isso é normalmente evitado pelo cultivo de plantas enxertadas. A técnica da enxertia consiste de se unir um galho (enxerto) de uma planta no tronco de outra planta (o porta-enxerto). Os tecidos do enxerto e porta-enxerto fundem-se, e o enxerto passa a crescer usando o porta-enxerto como base, suporte e fonte de nutrição. O galho usado para enxerto é proveniente de uma planta conhecida, e selecionada devido às qualidades desejáveis de seus frutos, enquanto o porta-enxerto é uma muda compatívvel (geralmente da mesma espécie ou gênero) que seja de fácil produção e alta rusticidade. A planta enxertada produzirá frutos semelhantes aos da árvore-mãe do enxerto. As 166

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mudas enxertadas apresentam ainda a vantagem da precocidade — começam a produzir muito mais rápido que mudas naturais, produzidas a partir de sementes. As desvantagens são seus custos ou o trabalho em prepará-las, e o fato de elas terem uma vida produtiva bem mais curta que a de uma planta natural, não enxertada. Outra desvantagem das plantas enxertadas, especialmente as variedades comerciais, é que elas apresentam uma grande uniformidade genética, enquanto mudas naturais têm maior variabilidade, o que confere maior rusticidade e preservação do patrimônio genético. Agora, você não tem que escolher apenas uma opção! Pode muito bem plantar das duas formas, mudas naturais e enxertadas, reunindo assim todas as vantagens: uma produção mais precoce e uniforme, e também plantas mais duradouras e produção mais variada. Mudas enxertadas podem ser obtidas em viveiros comerciais. Você também pode produzi-las você mesmo, devendo primeiro pesquisar as melhores técnicas para cada espécie de seu interesse. Também terá que encontrar boas plantas doadoras de enxertos (plantas cuja produção tenha qualidade reconhecida), o que nem sempre é fácil. Há ainda outras formas de propagação de mudas, como a estaquia, ou seja, a propagação por estacas. As diferentes espécies vegetais variam muito quanto às técnicas mais efcazes de propagação: a maioria se propaga mais facilmente ou exclusivamente por sementes; há as que podem ser propagadas efcientemente tanto por sementes como estacas (e.g. amoreira), enquanto outras se podem propagar quase exclusivamente por estacas (e.g. ciriguela, fgueira). Dentre as plantas que são mais comumente propagadas por estacas podemos citar os hibiscos, roseiras, amoreiras, primaveras, fgueiras, etc. A reprodução por estacas traz benefívcios semelhantes aos da enxertia, já que a planta flha terá as mesmas caracterívsticas da planta mãe, sendo na verdade um clone desta, ou seja, portando exatamente a mesma constituição genética. Você tanto pode produzir mudas em viveiros, usando sacos plásticos, como plantar as estacas diretamente no terreno, sendo que as taxas de sucesso variarão conforme o caso. Técnicas de plantio O plantio pode ser feito de inúmeras formas diferentes, desde um plantio à mão, bastante conservativo e econômico porém mais lento, até um preparo mecanizado do solo e plantio em larga escala, mais rápido mas também mais impactante ao ambiente. Aqui, devemos fazer uma consideração importante: pelos princívpios da permacultura, devemos preservar ao máximo as caracterívsticas da área em seu atual estágio de regeneração, ou seja, as espécies que já conseguiram ali se instalar e estão cumprindo seu papel regenerador do ecossistema, a 167

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biodiversidade e biomassa que já se desenvolveram, a estrutura do solo, etc., e atuar de forma a ajudar nesse processo de regeneração, ao introduzir mais espécies de plantas que crescerão enriquecendo o ambiente, protegendo o solo e a água, trazendo recursos para acelerar essa recuperação, além de alcançar uma produção que desejamos. Então, no começo de seu projeto, você tem dois cenários possívveis: se o terreno estava sendo usado até muito recentemente pela agricultura industrial, sendo tratorado continuamente, além de outras práticas destrutivas como adubação quívmica e aplicação de agrotóxicos, etc., então neste caso não há nada de biomassa e biodiversidade a ser preservado. Neste terreno, você pode fazer um preparo mecanizado do solo, com calagem, adubação e preparo das covas, por exemplo, uma última vez, para o estabelecimento de uma agroforesta, o que pode compensar pela facilidade, agilidade e custo-benefívcio. Ou seja, neste caso trata-se de uma opção que pode ser considerada uso apropriado de tecnologia. Porém, em outros casos em que a área está abandonada há alguns anos, e a natureza já vem fazendo seu dedicado trabalho de recuperação, pode ser considerado injustifcável causar destruição em larga escala a esse ecossistema que está se recuperando, sendo preferívvel uma abordagem conservativa, de preparo por covas e plantio manual. Algumas pessoas impacientes podem sentir-se tentadas a empregar preparo do solo e plantio mecanizado mesmo assim, por julgarem que os benefívcios ambientais a longo prazo compensarão esse impacto negativo inicial. Porém, isso é uma estratégia bastante arriscada. Para explicar isso, vou contar aqui um “causo”: Certa vez, um conhecido meu, que por sinal é agrônomo, resolveu fazer um reforestamento em um terreno que ganhou de sua famívlia. Ansioso por aplicar os conhecimentos adquiridos na faculdade, e impaciente em ver logo sua foresta formada, optou por uma abordagem “industrial” — tratamento mecanizado do terreno e plantio de sementes e mudas compradas de viveiros certifcados, tudo conforme havia aprendido na faculdade. Ele fez essa escolha apesar de o terreno já estar abandonado havia algum tempo e, portanto, já apresentar certo grau de recuperação espontânea, com fora e fauna lentamente se desenvolvendo, que seriam destruívdas no processo. Mas o impaciente agrônomo julgou que os benefívcios a longo prazo compensariam essa destruição, do ponto de vista ambiental. E pôs-se a tratorar todo o terreno, arar e gradear, e calar e adubar, e semear e plantar mudas. Mas ele não tinha dinheiro sufciente para trabalhar todo o terreno; por isso, resolveu cobrir apenas metade do terreno, deixando a outra metade para algum momento no futuro. Eis, porém, que tudo que podia dar errado, deu: veio a chuva forte e erodiu seu solo desprotegido; veio a estiagem, e secou muitas de suas mudas. 168

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Daív, vieram as formigas, deixadas sem opção de alimento devido à destruição da vegetação na área, e comeram as mudas que restaram. O rapaz, que tinha gasto todo seu dinheiro, teve que abandonar seu projeto e ir fazer outra coisa. Alguns anos mais tarde, quando segundo seus planos e cálculos iniciais ele já deveria ter ali uma linda foresta, a situação era a seguinte: na metade do terreno que ele não tocou, por falta de dinheiro, havia uma linda capoeira, uma matinha em estágio já bem mais avançado de regeneração, enquanto a metade em que ele trabalhou e gastou seu dinheiro ainda estava com um aspecto bem pior do que quando ele começou. Claro que nem sempre isso irá acontecer, certamente há pessoas que tentam esse tipo de abordagem e têm melhores resultados que os desta história que acabei de contar. Mas mesmo assim, trata-se de uma escolha arriscada, tanto para seu bolso como para o ambiente, sendo, portanto, geralmente uma má ideia. Portanto, nesses casos o melhor é usar uma abordagem conservativa, preservando a integridade do solo e a vegetação em seu estágio atual de regeneração, o que nos dá um ponto de vantagem. Agora, para plantar as sementes e mudas, você tem muitas opções de abordagens possívveis. Vamos discutir algumas delas • Simplesmente plantar. Isso é o que a maioria das pessoas fazem, quando são iniciantes e pensam em plantar uma muda ou semente. Abrem um buraco no chão, metem a semente ou muda, cobrem com terra, jogam um pouco de água, e pronto. Se o seu solo for bom e adequado à sua planta, e observados os cuidados posteriores (que discutiremos mais adiante), isso pode dar certo. Porém, em muitos casos isso não funcionará, pois seu solo necessitará de algum tratamento, como correção de acidez e adubação, para poder garantir o sucesso de sua planta. De qualquer forma, você sempre terá algumas sementes excedentes, ou mudas que você não sabe o que fazer com elas. Você deve experimentar simplesmente plantá-las, e ver o que acontece. Você tem que fazer esse tipo de coisa para conhecer as reais condições do seu terreno, seu potencial, suas necessidades. • Tratamento por covas. Esta é a técnica mais comumente recomendada por técnicos para plantio de mudas de árvores em pequena e média escala. Embora idealmente as quantidades dos insumos deva ser orientada por análise de solo, citarei valores médios que comumente são indicados: 1. Primeiramente, capine a área e comece a preparar a bacia, com um diâmetro de cerca de 70 cm, raspando uma camada de cerca de 5 cm do solo superfcial com um enxadão. Reserve esse solo, pois será usado no plantio. 2. Com uma cavadeira ou pá, cave um buraco de 50 cm de largura e 30 cm de profundidade (ou mais, dependendo da altura do seu bloco), sendo que 169

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a terra proveniente dos 20 cm mais superfciais é adicionada àquele solo superfcial raspado no passo no 1 acima, enquanto os últimos 10 cm do fundo do buraco são usados para elevar a parede da bacia, no lado mais baixo da mesma (conforme a declividade do terreno). Agora é hora de tratar o solo para plantio. Pegue a terra proveniente das camadas mais superfciais da bacia e da cova e adicione 100 a 150 g de calcário dolomívtico. Misture bem com uma enxada. Em seguida, adicione 200 g de superfosfato simples e 15 litros de esterco bovino de curral curtido, misturando novamente. Devolva a terra, agora adubada, à cova, compactando-a com os pés para que não fque excessivamente fofa. Plante sua muda no centro da cova tratada. O ideal é que a parte superior do bloco da muda fque uns 3 cm acima do nívvel da terra da cova, evitando o encharcamento do caule quando das chuvas e regas. Por fm, cubra toda a área da cova e bacia com uma camada generosa de matéria vegetal morta (e.g. palha ou serragem), e regue com 20 litros de água. Uma observação importante é que a terra, logo após preparada, tem a capacidade de reter umidade por perívodos mais longos. Portanto, você deve ter o cuidado de não regar excessivamente durante o primeiro mês, evitando o encharcamento e apodrecimento das raívzes da muda. Observe a muda e a umidade da terra do plantio, e regue só quando necessário. Como o plantio deve ser feito no perívodo das chuvas (conforme discutiremos abaixo), na verdade você provavelmente não terá que regar essa muda por meses, até a chegada da estação seca.

• Tratamento por covas simplifcado. Esta é uma técnica que é preferida por muitos permacultores, por frequentemente dar ótimos resultados além de ser mais simples, rápida e natural: 1. O primeiro passo é idêntico ao tratamento por covas descrito acima. 2. Agora, cave uma cova bem menor, uma cova circular com talvez uns 25 cm de diâmetro e 25 de profundidade, sufciente para caber o bloco da muda, com uma folga de uns 4 ou 5 cm em cada direção. 3. Encha o buraco (a cova e a bacia) com água (cerca de 20 litros), e molhe também aquele solo superfcial da escavação da bacia, que você reservou. Espere a água ser toda absorvida, o que pode levar algumas horas. 4. Agora, você pode plantar sua muda. Aplique uma camada do solo superfcial no fundo da cova, sufciente para que o bloco, uma vez ali posto, atinja a altura desejada de cerca de 3 cm acima do nívvel do solo no interior da bacia. Retire o saco plástico, deposite o bloco no centro da cova e preencha as laterais com a terra, compactando bem com os dedos ou um bastão de madeira (por exemplo, um pedaço de cabo de vassoura). 170

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Aplique uma fna camada de cinzas de madeira sobre o solo dentro e ao redor da bacia (cerca de 1 litro de cinzas é sufciente) e cubra com uma camada generosa de cobertura vegetal morta. Assim como descrito acima, evite regar excessivamente a muda no primeiro mês após o plantio. 5. Aguarde até que a muda dê sinais claros de que “pegou”, ou seja, comece a crescer. Agora, você deve adicionar os adubos que quiser ou achar necessários sobre o solo, dentro da bacia. Na maioria das vezes, apenas adubos orgânicos, como cinzas, esterco animal, composto orgânico, urina diluívda e ferti-irrigação com águas cinzas, são sufcientes para sua muda crescer feliz e saudável. 6. Observação: em locais onde o solo tem acidez elevada, é recomendável adicionar um outro passo: após encher a cova de água e esperar a água abaixar, ou seja, logo antes de plantar a muda, polvilhe cinzas de madeira dentro da cova, especialmente nas laterais, até que fquem cobertas por uma fna camada de cinza (alguma quantidade inevitavelmente cairá no fundo da cova, portanto não é necessário adicionar mais lá). Prossiga com o plantio conforme descrito. Isso geralmente é sufciente para neutralizar a acidez do solo ao redor do bloco, garantindo a pega e crescimento da muda, para que então você possa prosseguir com a adubação e demais cuidados. Então, você tem várias abordagens possívveis. O ideal é você tentar todas elas, para descobrir qual ou quais são mais úteis ou mais viáveis em sua situação particular. Você provavelmente descobrirá que a técnica ideal depende da espécie de planta. Talvez algumas espécies aceitem o plantio direto, outras se deem bem com o tratamento por covas simplifcado, enquanto outras ainda necessitem do tratamento completo. Com a experiência, você descobrirá essas coisas e poderá se ater à técnica mais simples que funciona para cada espécie em sua situação particular. • Tratamento mecanizado. Caso você opte por fazer um tratamento mecanizado, há uma forma de se fazer isso minimizando os danos causados. Essa forma consiste em se fazer o tratamento em faixas em nível. Ou seja, você não irá tratorar o terreno todo, e sim tratar faixas do terreno, seguindo curvas de nívvel, intercaladas com faixas que serão preservadas, mantidas intactas. Essa abordagem apresenta várias vantagens em relação ao tratamento mecanizado convencional, no estabelecimento de uma agroforesta: as faixas preservadas atuam como barreiras contra a erosão, espalhando e infltrando o fuxo de escorrimento superfcial da chuva; além disso, a vegetação nessa faixa atua como barreira contra o vento e fornece sombreamento parcial, criando um microclima mais ameno e um ambiente mais favorável ao desenvolvimento das suas mudas. Além disso, permanecem como refúgio da fora e fauna da área: os pássaros, insetos e outros animais não serão destruívdos, apenas migrarão para 171

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esses locais pois são extremamente próximos, e as plantas preservadas continuarão contribuindo com sementes para a recuperação da área tratorada, além de fornecerem biomassa, através de podas, que pode ser usada como cobertura vegetal morta para suas mudas. Uma vez restabelecido o processo de regeneração na área que você tratou (ou seja, uma vez que o solo esteja reestruturado e novamente coberto por uma camada efetiva de vegetação), você pode tratar as faixas que haviam sido poupadas no tratamento anterior. Ou então, para tentar duas abordagens diferentes ao mesmo tempo, você pode fazer um tratamento conservativo (por covas) nas faixas de preservação. Tratamento mecanizado do terreno, com correção, condicionamento e adubação do solo, deve ser feito sempre sob orientação técnica adequada. Época de plantio Sementes resistentes (ortodoxas) podem ser plantadas durante a estação seca para germinarem nas primeiras chuvas, mas sementes mais sensívveis ou recalcitrantes e mudas devem ser plantadas sempre no inívcio da estação chuvosa. Agora, para adiantar o serviço, você pode já ir começando a preparar as covas na estação seca, embora o solo duro e ressecado seja bem mais difívcil de trabalhar. Comece o plantio das suas mudas no começo da estação chuvosa, assim que o chão estiver bem molhado, e dependendo da espécie e do seu clima, talvez você nunca mais tenha que molhar essas mudas: elas darão uma arrancada de desenvolvimento nos meses chuvosos, ganhando porte e desenvolvendo suas raívzes, tornando-se capazes de obter umidade de camadas mais profundas do solo, garantindo sua sobrevivência até a próxima estação chuvosa. Normalmente, sofrerão estresse hívdrico em algum grau, mas geralmente não morrerão, e estarão lá, prontas para continuar seu desenvolvimento a partir do inívcio da próxima estação chuvosa. Porém, nem sempre isso funciona: para espécies mais sensívveis, ou em locais com estação seca particularmente longa e severa, pode ser necessário regar as mudas, pelo menos no primeiro ano, para garantir que sobrevivam em boa forma até a próxima estação chuvosa. Cuidados Uma ilusão comum na cabeça de muitas pessoas é pensar que se pode mudar o mundo apenas plantando algumas sementes, ou que plantar uma muda e plantar uma árvore são a mesma coisa. Pois são coisas bem diferentes — plantar uma árvore signifca plantar a muda e cuidar dela até que se torne árvore. Nesse processo, o plantio da muda é sem dúvida a parte mais rápida e fácil.

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Após o plantio, os principais cuidados com as mudas de sua agroforesta serão: • Manutenção das bacias e cobertura vegetal morta, para que elas continuem recebendo hidratação adequada. • Rega, sendo que, conforme já citado, ela pode ser dispensável em alguns casos, e essencial em outros. Agora, há espécies que necessitarão rega no primeiro, talvez até no segundo ano para se estabelecerem, a partir do que não necessitarão mais. Porém, talvez haja algumas espécies de árvores que necessitarão de irrigação por toda a vida, ou seja, mesmo depois de crescidas, não sobreviverão ou serão incapazes de produzir sem irrigação. Isso signifca que essas espécies não são adequadas ao seu ambiente. Pode parecer duro demais, mas o mais recomendado é você desistir delas, e focar nas espécies melhor adaptadas. • Adubação. A fase mais crívtica, em relação a nutrientes, é a fase de muda, onde a planta tem os maiores desafos de sobreviver e se desenvolver. Uma vez crescidas, as plantas têm uma capacidade muito maior de extrair nutrientes do solo, mesmo que degradado. Porém, adubação continua sendo benéfca para maior produtividade, até que a agroforesta já esteja bem estabelecida, a partir do que ela passa a ser autossufciente em nutrientes, pela sua reciclagem natural. Todas as fontes de nutrientes orgânicos de sua propriedade deverão ser utilizadas da forma mais racional possívvel, divididas entre os diferentes sistemas produtivos, nas diferentes zonas, e a importação de recursos deve ser feita de forma criteriosa, conforme já discutido. • Podas de formação. Muitas vezes, suas mudas começam a se ramifcar demasiadamente, a uma altura muito baixa, inferior a 1 metro. Nesses casos é conveniente fazer podas, limitando o número de galhos e dando à muda uma arquitetura desejável. Ao eliminarmos o excesso de galhos, a planta também direciona mais energia para o crescimento dos brotos vegetativos principais, ganhando altura mais rápido, o que torna mais fácil sua proteção contra as formigas cortadeiras. • Controle de pragas. Em qualquer lugar que você esteja, se quiser plantar alguma coisa, especialmente em situações rurais, provavelmente terá problemas com pragas. As pragas variam enormemente de acordo com o local e a espécie de planta, e também o sistema de manejo, etc. Você deve estar atento ao ataque de pragas, e adotar medidas adequadas de acordo com o caso. • Roçagem. Em muitos casos, a vegetação espontânea, altamente rústica e adaptada às condições locais, cresce muito mais vigorosamente que suas mudas, e acaba por inibir sua plantação, podendo fazê-lo de diversas 173

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formas: crescendo por sobre suas plantas, abafando-as e roubando-lhes a luz do sol; liberando substâncias inibidoras que interferem negativamente no crescimento de suas plantas (efeito alelopático); competindo diretamente por nutrientes, ou seja, consumindo-os mais efcientemente e fxando-os em sua própria biomassa, impedindo que suas plantas os utilizem, etc. Por isso, uma parte importante do trabalho de manutenção nas fases iniciais de estabelecimento de sua agroforesta é suprimir — cortar ou arrancar — as plantas espontâneas que estejam ameaçando suas mudas, e usar essa matéria vegetal morta como cobertura de solo. Quantas e quais espécies usar? Em relação a agroforestas, uma questão que frequentemente causa confusão é a respeito da escolha das espécies, e da proporção ideal entre árvores frutívferas e forestais ou nativas. Na verdade, isso não é importante — qualquer proporção serve, desde que os objetivos de suprir as necessidades humanas e prestar serviços ambientais sejam cumpridas. Se você tiver pouco espaço, pode plantar só frutívferas, sem problemas. Plante o maior número de espécies possívvel, e você terá sua agroforesta. Agora, se você tiver bastante espaço, é importante plantar espécies forestais também, especialmente as nativas e ameaçadas, contribuindo também para a restauração do ecossistema local e a preservação dessas espécies. Você pode optar, por exemplo, por fazer uma agroforesta só de frutívferas na zona 3, uma agroforesta mista na zona 4, e plantar só espécies forestais na zona 5. Ou pode fazer as três zonas mistas, variando apenas a intensidade do manejo. Todas essas abordagens são válidas. Na escolha das espécies frutívferas, um bom ponto de partida é ir plantando o que você mais come e mais gosta, e aquelas espécies que se dão bem em sua área, coisa que você pode facilmente se informar com seus vizinhos, moradores mais antigos do local. Agora, é claro que você não deve se limitar a isso. Pelo princívpio da máxima biodiversidade, quanto mais espécies, melhor. Isso não signifca que você deve ser paranoico quanto ao número de espécies, mas apenas buscar incorporar um grande número para ter um sistema bem diversifcado. A biodiversidade natural da sua área pode ser uma boa fonte de inspiração para responder a essa pergunta. Áreas com condições mais restritivas naturalmente têm um número menor de espécies, altamente adaptadas. Seu sistema deve imitar isso; caso contrário, se tentar incorporar ali um número muito maior de espécies, provavelmente vai falhar, ou vai conseguir a um custo energético, e de trabalho e de importação de recursos demasiadamente alto, o que pode ser insustentável. Já no que diz respeito a que espécies utilizar, é conveniente ter uma lista de critérios para guiar suas escolhas, e sua busca por sementes. Tendo em mente os 174

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objetivos e os princívpios da permacultura, podemos estabelecer os seguintes critérios: • Utilidade. Claro que todas as plantas têm alguma utilidade, mas indubitavelmente algumas têm mais utilidade prática que outras. Ao considerar uma espécie a ser incorporada ao seu projeto, pergunte-se: essa planta vai ser particularmente útil para você? Vai produzir alimentos que você possa consumir ou vender? Será uma boa fonte de madeira ou lenha, ou útil para adubação verde? Será particularmente útil ao ecossistema local, por exemplo, fomentando a fauna, trazendo pássaros, abelhas etc.? Ou, caso você tenha como foco a produção para venda, terá que considerar também, além da adaptabilidade às suas condições locais, questões mercadológicas, etc. • É espécie nativa? Você não deve ser extremista e excluir todas as espécies que não forem nativas da sua área, mas é sempre importante valorizar as nativas, ajudando a preservar e restaurar o ecossistema nativo da sua área. • É espécie ameaçada? Procure incluir o maior número de espécies ameaçadas em se projeto, atuando assim de forma efetiva na preservação dessas espécies. • Rusticidade/adaptabilidade. Principalmente nas fases iniciais de desenvolvimento de um projeto de permacultura, é importante focar em espécies mais rústicas ou altamente adaptadas às suas condições locais (agricultura de sequência natural), e de preferência de desenvolvimento rápido. Não adianta levar em consideração todos os critérios anteriores, mas acabar escolhendo apenas espécies sensívveis e que difcilmente sobreviverão às suas condições particulares — você pode acabar se desgastando muito, esgotando seus recursos, e morrer de velho sem ver seu projeto avançar! As plantas mais adaptadas cumprirão o papel de pioneiras, melhorando as condições para o estabelecimento de espécies cada vez mais sensívveis. Qualquer espécie que preencher algum desses critérios pode ser considerada em seu projeto, e quanto mais critérios ela satisfzer, maior sua prioridade. Por outro lado, você não deve desperdiçar seu tempo, energia e outros recursos com espécies que não preencham esses critérios. Algumas espécies preenchem vários ou mesmo todos esses critérios, e dentre essas, algumas são PANCs. Exemplos de PANCs frutívferas, arbustivas e arbóreas, incluem o cambuci, cambucá, grumixama, pitomba, guariroba, araçá, entre outras. Essas espécies devem ser sempre valorizadas, pois além de alimentívcias são também grandes fomentadoras da fauna silvestre. Agora, é impossívvel saber antecipadamente quais espécies terão sucesso em seu terreno, com as suas condições particulares. É comum as pessoas assumirem que espécies nativas da área terão grande vantagem, mas muitas 175

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vezes isso não ocorre na prática, e os motivos para essa aparente contradição são geralmente desconhecidos. Muitas vezes, espécies originárias de outros ecossistemas substancialmente longívnquos e diversos têm maior sucesso que as nativas da própria área. Por isso, o ideal é começar de forma bastante ampla, usando a maior variedade possívvel de espécies, e ir vendo quais dão mais certo, para depois focar nessas espécies. As espécies que não derem bom resultado, você pode abandonar, ou insistir de novo mais tarde, tentando abordagens diferentes, a seu critério. Mas, quanto maior a sua base (número de espécies tentadas), mais opções você terá, e maiores suas chances de sucesso. Fases de estabelecimento da agrofloresta Podemos dividir o estabelecimento da agroforesta grosseiramente em três fases: a inicial, a de crescimento e a de produção. A fase inicial é a fase de tratamento do solo e plantio de mudas, conforme descrito acima. Nessa fase, você concentrará seus esforços no plantio e manutenção inicial de suas plantas. Aqui, você terá que decidir que espécies usará, e como será sua disposição. Alguns técnicos orientam a plantação das diferentes espécies na forma de padrões geometricamente regulares, por exemplo, fleiras intercaladas; outros, recomendam a plantação de oligoculturas, ou seja, o emprego de apenas duas ou três espécies consorciadas, e chamam isso de agroforesta. Essas estratégias são, a meu ver, inapropriadas, e mostram claramente que seus propositores estão ainda em certa medida presos ao paradigma da agricultura convencional. Claro que cada um terá sua própria abordagem, na escolha de onde plantar suas mudas. O importante é ter sempre em mente o objetivo fnal, de se ter uma foresta semelhante a uma foresta natural, mas com uma proporção elevada de espécies úteis ao homem. Para isso, é fundamental conhecer as caracterívsticas e necessidades de cada espécie vegetal em relação a umidade, solo, espaço, exposição ao sol e interações com outras plantas e aspectos da topografa. Para obter esse conhecimento, é preciso estudar sobre cada espécie do seu sistema, mas também observá-las em seu contexto natural e em situações práticas reais. Conversar com pessoas antigas do meio rural sobre este assunto também pode ajudar bastante, pois eles têm uma enorme experiência, acumulada ao longo de gerações. De posse dessas informações e observações, você deverá ser capaz de olhar para o seu terreno, andar por ele, e visualizar locais que parecem adequados para cada uma das suas espécies. Agindo assim, você terá um resultado fnal que parecerá aleatório aos olhos dos outros, mas que na verdade foi cuidadosamente arquitetado. Claro que você cometerá erros, mas continuará aprendendo, pela observação dos seus resultados, por tentativa e erro, e por novas informações e conhecimentos que adquirir pelo caminho. Nesta fase de plantio, você pode colocar as plantas relativamente próximas, num plantio denso, sem pensar tanto em um espaçamento fnal, pois 176

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sempre haverá algumas perdas, ocorrendo então um certo raleamento. Conforme o seu sistema amadurece e as árvores fcam muito grandes, se necessário você pode fazer um desbaste, eliminando árvores improdutivas ou desnecessárias em função de outras, mais interessantes, julgando caso a caso. Na fase de crescimento, seu principal trabalho será de cuidado das mudas, conforme descrito acima. A manutenção das bacias, bem como da cobertura morta do solo, e especialmente a proteção contra formigas, são essenciais nessa fase, e a irrigação pode ser importante para garantir que suas árvores cresçam e entrem em produção o mais rápido possívvel. Nesta fase, você também poderá ter que repor mudas que por algum motivo morreram. A fase de produção é aquela por que tanto esperamos! Suas árvores começarão a produzir, e você terá seu Jardim do Éden. Agora, você começará a ter trabalho com colheita, além é claro de outros trabalhos de manutenção. Conforme o sistema amadurece (estamos falando de várias décadas), pode ocorrer uma queda na produtividade. Algumas árvores podem envelhecer e parar de produzir, enquanto outras podem crescer demasiadamente, inibindo espécies menores, etc. Portanto, para manutenção de uma alta produtividade, pode ser necessário imprimir uma certa taxa de renovação de sua agroforesta, com abate criterioso de algumas árvores e plantio de novas mudas. Formigas cortadeiras Quando você for fazer uma agroforesta, você terá que fazer algo a respeito das formigas cortadeiras — saúvas e quenquéns. Acredito que isso vale para qualquer parte do Brasil, e possivelmente qualquer parte da América tropical, exceto talvez em grandes altitudes. As formigas cortadeiras formam colônias imensas, com milhões de indivívduos. Seus ninhos são gigantescos, com até 200 m 2 de área, e atingindo profundidades de até 8 metros. Elas têm um apetite insaciável por plantas. Na verdade, elas não comem as plantas, e sim levam para a colônia, onde usam essa matéria vegetal para cultivar um fungo especívfco, do qual se alimentam. Quando saem para forragear, saem aos milhares. Por onde passam, formam caminhos que são verdadeiras estradas de formigas! Elas escolhem uma planta, e cobrem essa planta de formigas enormes e vorazes. Vão cortando e carregando os pedaços das folhas, e só param depois de desfolhar completamente a pobre vívtima. Você chega, e encontra só o talinho, todo roívdo. Seu efeito sobre hortaliças e mudas de árvores é simplesmente devastador. Em um viveiro, podem destruir dezenas de mudas da noite para o dia. Se você fzer uma pesquisa, encontrará várias propostas de técnicas para o controle natural das formigas cortadeiras. Porém, infelizmente, na prática todas deixam muito a deseja, em termos de efciência. Por isso, ao invés de tentar 177

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combater as formigas, o melhor é proteger suas mudas e árvores jovens do ataque através do uso de barreiras fívsicas que impeçam as formigas de atingirem as folhas. Uma técnica bastante simples, barata e efetiva para proteger suas mudas é a do cone protetor, também chamado sainha anti-formiga ou técnica do “chapéu chinês”. Trata-se de um cone que pode ser feito recortando-se caixinhas de leite longa vida ou garrafas plásticas e grampeado ao redor do caule da muda; na parte inferior, aplica-se vaselina sólida, que é totalmente atóxica e atua como um repelente efetivo contra as formigas. Devido ao formato e posição, o repelente fca protegido da chuva, garantindo sua permanência e efcácia por mais tempo. Porém, é necessária atenção, com vistorias regulares para verifcar a necessidade de reaplicação do repelente, ou substituição do cone devido ao crescimento da planta. É necessário também que se mantenha uma boa camada de cobertura vegetal morta sobre o solo ao redor da planta, pois caso contrário as gotas de chuva, ao atingirem o solo, respingam na parte inferior do cone, retirando o repelente ou impregnando-o com terra, fazendo com que perca a efcácia. 1

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Recorte

Aplique vaselina

4

3

Pronto!

Grampeie

Cone protetor contra formigas cortadeiras 178

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Animais na agrofloresta Animais desempenham papéis vitais em qualquer foresta, como polinização, disseminação de sementes, reciclagem de matéria orgânica, etc. Não existem forestas sem animais, por isso é incorreto dizer que os animais estão na foresta — na verdade, eles são a foresta, são parte integrante e inseparável dela. Os animais são a parte móvel da foresta. Por isso, eles também devem estar presentes em qualquer agroforesta. Claro que a existência de uma foresta luxuriante com abundância de alimentos, abrigo e água naturalmente atrairá animais de todas as espécies locais, que visitarão e provavelmente se instalarão ali, sendo portanto benefciados, e assim a agroforesta desempenha um importantívssimo papel de preservação da fauna silvestre local e fomento da biodiversidade. Também a agroforesta é benefciada pelos serviços ambientais prestados pelos animais, especialmente pelo vital serviço de polinização e por trazerem em suas fezes sementes de espécies vegetais silvestres que enriquecem ainda mais a diversidade do sistema. A abundância de alimentos na agroforesta também signifca que você pode introduzir animais domésticos de várias espécies como parte do sistema agroforestal. Esses animais ocuparão nichos diferenciados dentro do sistema, e além de produzirem alimentos, também atuarão na reciclagem da matéria orgânica pela produção de esterco animal. Galinhas, vacas, cabras, porcos, patos, abelhas... praticamente qualquer espécie de animal doméstico de produção pode ser incorporado em um sistema agroforestal, sendo que as espécies e raças mais indicadas variam de acordo com cada caso, fazendo necessárias experimentações e ajustes. Agora, não basta apenas criar animais — na permacultura, devemos buscar sempre uma criação eficiente de animais. Uma criação efciente é aquela em que mais recursos são produzidos do que consumidos pelos animais. A imensa maioria das criações de animais pelo mundo são terrivelmente inefcientes do ponto de vista de uso dos recursos, pois a quantidade de recursos consumidos é muito maior que os produzidos. Por exemplo, a quantidade de grãos consumida pelos animais daria para alimentar muito mais gente do que a carne, leite e ovos produzidos, ou seja, os animais criados na verdade estão competindo por alimentos com os humanos, e isso é um problema muito sério. Você muitas vezes vai encontrar um pecuarista gabando-se que suas vacas produzem 30 litros de leite por dia, por exemplo, mas isso não muda o fato que ele está de fato importando muito mais recursos (ração, energia) do que exportando na forma de leite, ou seja, sua fazenda é muito mais consumidora de alimentos do que produtora de alimentos. É justamente isso que devemos evitar. 179

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Na criação efciente, os animais utilizam predominantemente recursos que de outra forma seriam desperdiçados, como capim e outras ervas do subbosque, frutas caívdas, folhas de árvores, insetos, vermes, lesmas (para aves, suívnos e peixes), etc., convertendo efcientemente esses recursos em alimentos de alta qualidade para humanos. Observe que, na criação efciente de animais, eles são parte integrante do sistema agroforestal (por isso também chamado sistema agrossilvipastoril), habitando o espaço entre as árvores. Sendo assim, a criação de animais não ocupa espaço ela própria — ela ocupa o mesmo espaço da agroforesta, intercalando-se de forma móvel aos elementos vegetais (árvores). Agora, para que essa criação integrada tenha sucesso, é fundamental que a escala de sua criação de animais seja compatívvel com a capacidade de suporte de sua agroforesta. Claro que a criação de animais domésticos exige instalações adequadas (abrigo, piquetes, bebedouros), manejo adequado para evitar sofrimento, doenças e também danos ao sistema agrossilvipastoril e ao ambiente. Animais podem ter um potencial destrutivo considerável, se invadirem uma horta, por exemplo. Já animais grandes como porcos e vacas podem causar problemas de erosão, se não forem manejados adequadamente. A criação de animais em permacultura é um assunto que ainda necessita ser muito aprimorado e desenvolvido. Por isso mesmo, é difívcil obter informações detalhadas e especívfcas sobre o assunto, já que praticamente não há literatura disponívvel. Sendo assim, neste atual estágio, para projetar e estabelecer os seus sistemas de criação de animais, o melhor que você pode fazer é estudar aprofundadamente a literatura especializada na criação das espécies de seu interesse e fazer as adaptações necessárias à luz dos princívpios da permacultura, para que suas criações sejam efcientes, produtivas, saudáveis e sustentáveis, perfeitamente integradas com os seus demais sistemas produtivos e o meio ambiente em geral. Abelhas Abelhas merecem uma menção especial, pois além de produzirem produtos de alto valor, como mel e cera, ainda prestam um importantívssimo serviço ambiental na forma de polinização. As abelhas produzem seus produtos utilizando apenas recursos que de outra forma jamais seriam aproveitados para uso humano: o néctar e pólen das fores. E o melhor, fazem isso sem consumir as fores, e pelo contrário, ajudando-as, fazendo com que funcionem ainda melhor em sua função reprodutiva. Além do mel e cera, a apicultura pode render ainda outros produtos úteis a humanos e com bom valor comercial: geleia real, pólen (ambos usados como suplementos nutricionais) e própolis (usado com fns medicinais). 180

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Além das abelhas da espécie Apis mellifera, que são as mais comumente criadas ao redor do mundo, deve-se olhar também com carinho para a criação das inúmeras espécies de abelhas nativas do continente americano (e também África e Oceania), especialmente as da tribo Meliponini, conhecidas vulgarmente como abelhas sem ferrão, grupo que inclui as jataívs, mandaçaias, uruçus, jandaívras e manduris, entre outras. Embora a produção de mel seja substancialmente menor que das abelhas do gênero Apis, a criação dessas espécies de abelhas é revestida de um signifcado muito especial, pois representa um esforço de preservação dessas espécies tão lindas e tão ameaçadas pela destruição de seu habitat natural e poluição agrívcola por agrotóxicos. A preservação dessas espécies também representa a preservação de inúmeras espécies de plantas que são polinizadas efcientemente somente por elas, e portanto de todos os organismos que delas dependem, ou seja, uma enorme parte dos ecossistemas. Além disso, a criação de abelhas sem ferrão (ou meliponicultura) tem profundas raívzes históricas e culturais, sendo praticada há milênios pelos maias, por exemplo. Trata-se ainda de uma atividade extremamente recompensadora e prazerosa, que felizmente ganha adeptos apaixonados a cada dia. A criação de abelhas sem ferrão é considerada simples (o fato de elas não picarem também ajuda bastante) e acessívvel, e pode ser realizada praticamente em qualquer lugar, desde uma mata fechada até mesmo na varanda de sua casa, e mesmo nas cidades. E para melhorar ainda mais, há uma boa fartura de literatura e materiais didáticos e técnicos sobre o assunto disponívveis gratuitamente na internet. Aquacultura Em um projeto de permacultura, geralmente você terá grande quantidade de água armazenada na forma de lagoas artifciais. Além da função óbvia de suprimento de água para sua casa e sistemas produtivos entre outros, suas lagoas ainda desempenharão outras funções, como encorajar a fauna silvestre local, criar microclimas favoráveis ao ecossistema, paisagismo, etc. As lagoas têm ainda grande potencial na produção de alimentos, através da aquacultura. Pelos princívpios da permacultura, quanto mais funções um elemento do seu sistema desempenhar, melhor. Por isso, devemos sempre considerar a lagoa como local para abastecimento de água e produção ao mesmo tempo, ou seja, seu uso na aquacultura. A aquacultura na permacultura é radicalmente diferente da aquacultura comercial convencional. Isso porque na aquacultura convencional, de forma semelhante à agricultura e pecuária, você tem sistemas de altívssimo consumo de recursos, como água e rações, além de grande geração de poluição das águas por nutrientes, hormônios, drogas, etc. com grave impacto ambiental. Em contraste, na permacultura imitamos os sistemas naturais, ou seja, como a 181

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produção ocorre em ecossistemas aquáticos, especifcamente lagos e lagoas. Ou seja, a aquacultura na permacultura funciona como uma “agroforesta aquática”. Você terá que ter uma vegetação aquática variada, crescendo naturalmente na sua lagoa, para servir de alimento e abrigo aos peixes, ou seja, criando ali um habitat adequado. Também pode incluir diversas espécies em uma criação integrada. A escolha dessas espécies deverá ser orientada por técnicos das diversas áreas da aquacultura, mas também será necessário fazer experimentos para aprender por tentativa e erro as espécies e combinações que darão certo na sua situação particular. Você pode criar peixes, rãs, pitus (camarões de água doce), entre outros. Uma vez que suas lagoas estejam estabelecidas e cheias, com vegetação já instalada e estabilizada, e depois de passado pelo menos um ou dois anos, para você se certifcar que um bom nívvel de água é mantido o ano todo, entre em contato com empresas e laboratórios especializados em aquacultura (piscicultura, ranicultura, carcinicultura, etc.), bem como departamentos de universidades nessas áreas, para obter orientações especívfcas em relação a que espécies usar, e técnicas de criações integradas. Você terá que fazer análises da água de suas lagoas, o que orientará na escolha das espécies e correções necessárias às condições da lagoa para propiciar a criação. Explique aos técnicos e fornecedores de alevinos, girinos e larvas os seus objetivos. Muitos não entenderão ou aceitarão, por estarem presos ao paradigma dominante da monocultura. Porém, alguns se interessarão pela ideia, e aceitarão com prazer o desafo de fazer diferente. O conhecimento das combinações possívveis de espécies e ambientes deverá ser construívdo caso a caso, pois variam enormemente de acordo com as condições do ambiente local. Você pode focar em animais que vivem naturalmente em águas paradas, já que essencialmente é isso que você terá nas suas lagoas. Ou então, pode pensar em sistemas de agitação e aeração da água que tenham alta efciência energética, aumentando suas opções de espécies. Escolha espécies que possam ser alimentadas com produtos naturalmente disponívveis no seu terreno: espécies de peixes frugívvoros que possam ser alimentados com restos de frutas caívdas, e espécies herbívvoras que se alimentem de plantas aquáticas que crescem na própria lagoa, por exemplo. Você pode usar minhocas ou larvas de mosca soldado negra, criadas em suas composteiras, para alimentar peixes e rãs. Também pode alimentar seus peixes com larvas de insetos, especialmente moscas, produzidas em larvários. Larvários são equipamentos destinados à produção de larvas, consistindo de uma bandeja de bordas elevadas (15 a 25 cm de altura), uma cobertura e um recipiente coletor de chorume, no fundo. Na bandeja, depositam-se restos animais e vegetais (restos de açougue e carcaças de animais mortos, vívsceras, etc., e também restos de frutas, comida estragada e, talvez, estrumes animais).

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Os restos orgânicos atrairão moscas, que ali depositarão seus ovos. Em poucos dias, você terá uma infnidade de larvas, que podem ser lançadas à lagoa para alimentar os peixes (podendo ser fornecidas também a galinhas e outras aves). Após a colheita das larvas, os restos orgânicos e chorume devem ser adicionados à composteira, e o larvário lavado para ser novamente utilizado. Os larvários devem sempre contar com uma cobertura, para evitar entrada de água da chuva ou calor excessivo e desidratação pela ação do sol. A manutenção de umidade adequada é importante, pois permitirá o desenvolvimento máximo das larvas que consumirão a matéria orgânica rapidamente. A colheita de larvas normalmente se dá quatro dias após adição do material orgânico.

Zona 4 A zona quatro já é uma área onde você raramente vai. Ela pode ser uma agroforesta mais extensiva, sem podas, adubação ou irrigação, sendo mais viável portanto para espécies menos exigentes, mais rústicas ou adaptadas, além é claro das nativas espontâneas. É uma zona ideal também para plantar espécies madeireiras para uso no futuro. Por ser mais distante, menos manejada, o estabelecimento da zona quatro tende a ser mais demorado. Aqui, você pode focar nas técnicas de plantio mais simplifcadas; aplicará as técnicas adequadas de retenção de umidade, ou seja, bacia e cobertura vegetal, somente nas fases iniciais de estabelecimento. Geralmente, irrigação não é viável na zona quatro. Por isso, deve-se procurar plantar somente na primeira metade da estação chuvosa. Assim, você terá uma boa taxa de germinação de suas sementes, e com sorte a maioria de suas mudas conseguirão se desenvolver e enraizar sufcientemente para sobreviver ao perívodo seco subsequente. Devido ao fato de ser um sistema bastante extensivo, de baixo manejo, você pode esperar por uma taxa de perdas considerável. Por isso, não tenha medo de plantar em excesso, especialmente sementes, que têm baixo custo (sempre lembrando que sementes e mudas podem ter custo virtualmente zero, se você coletar suas próprias sementes e produzir suas próprias mudas). Na fase de estabelecimento de sua agroforesta, que levará alguns anos, você vai ter que fazer manutenção periódica: controle de plantas indesejáveis, especialmente capins, para que não abafem suas mudas; refazer as bacias e reaplicar cobertura vegetal conforme necessário, replantar para substituir as mudas que morreram e, muito importante, proteger suas mudas do ataque de formigas cortadeiras com o cone protetor. Depois que a muda atinge uns 3 metros de altura, geralmente já pode ser considerada fora de perigo, e você pode concentrar seus esforços somente nas menores.

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Após estabelecida sua agroforesta da zona quatro, você irá lá muito raramente — somente mesmo para colher as frutas da estação, colher lenha, colher sementes de suas espécies forestais para ajudar na recuperação de outras áreas (você pode doar e/ou vender sementes e mudas) e, no longo prazo, abater alguma árvore para utilização de sua madeira. Aliás, por falar em madeira, é importante tocar em um assunto: a humanidade se meteu em uma grave crise de abastecimento de madeira. A madeira é um material essencial à humanidade, e após milênios de exploração predatória, conseguimos praticamente acabar com esse recurso, sendo que as árvores de madeira nobre remanescentes devem ser preservadas a todo custo, pois correm sério risco de extinção. Por isso, quando planejamos e plantamos agroforestas, devemos sempre incluir árvores madeireiras de alta qualidade, especialmente as ameaçadas, visando ao mesmo tempo sua preservação e seu uso futuro. É importante não confundir isso com aquele discurso mentiroso dos madeireiros e grandes desmatadores, empreiteiras e corporações poluentes em geral, que prometem que “para cada árvore cortada, plantarão cem novas árvores”. Isso não passa de uma jogada de greenwashing*, ou seja, uma mentira contada por empresas para conseguirem destruir o quanto quiserem, e ainda posar de defensoras da natureza. Agora, vá você lá, peça para eles te mostrarem a foresta que estão plantando. Será que existe mesmo? Será que as mudinhas que plantaram realmente compensam pelas árvores destruívdas? O que devemos fazer é plantar muitas árvores, para que no futuro possamos, nós ou nossos flhos e netos, colher parte dessas árvores, e que nossos descendentes também plantem, para que os seus flhos e netos também possam consumir, e que isso se torne uma tradição em que todas as gerações plantem árvores, de modo que sempre haverá madeira de qualidade para ser colhida, e que a quantidade de árvores e madeiras disponívveis só aumente com o passar do tempo — exatamente o oposto do que a humanidade vem fazendo. Corredores ecológicos As zonas 3, 4 e 5, por serem mantidas cobertas por agroforestas e forestas, podem ser consideradas áreas de preservação ambiental permanente. No nosso planejamento por zonas de proximidade e intensidade, essas zonas mais extensivas são, naturalmente, dispostas de forma periférica no terreno, ou seja, mais afastadas da casa e cobrindo a área das margens, estendendo-se até os limites com as propriedades vizinhas, e isso traz um efeito benéfco de particular importância, pois essas zonas passam a cumprir o papel * Greenwashing ou “lavagem verde” é uma técnica ardilosa de marketing usada por empresas causadoras de grande impacto ambiental para iludir seus consumidores que seus produtos ou práticas são ecológicas, visando aumentar a aceitabilidade pública e, consequentemente, vender mais.

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de corredores ecológicos. Os ecossistemas ao redor do mundo estão sofrendo não apenas por sua destruição, mas também por sua fragmentação. Não basta que haja áreas com o ambiente preservado, sendo também de vital importância que essas áreas sejam conectadas, e não isoladas. Essa conexão é essencial para que haja o fuxo de animais e plantas (sementes), microrganismos, etc. de uma área para outra. Quando você tem áreas de natureza preservada mas essas estão isoladas umas das outras, por exemplo por áreas de pastagens ou estradas largas, ou grandes cidades, etc., isso traz vários problemas, pois a maioria dos animais são incapazes de atravessar esses obstáculos, fcando presos, “ilhados” em um desses bolsões de natureza. Animais que necessitam de vastas áreas, como grandes felinos, por exemplo, veem-se extremamente prejudicados nessa situação, pois a “ilha” de natureza onde se encontram talvez não contenha recursos (e.g. presas) sufcientes, mas teriam sua sobrevivência garantida se pudessem transitar entre as áreas preservadas, ou seja, se fossem conectadas. Assim, elas passariam a representar uma grande área que seria, sim, capaz de sustentar aquela espécie em questão. Outra questão vital é a do fuxo genético entre as diferentes áreas. Sabe-se que a diversidade genética é vital para a saúde das populações de animais e plantas. Quando poucos indivívduos são mantidos isolados dos demais da sua espécie, o que acaba ocorrendo é o endocruzamento, o que leva a uma alta taxa de homozigose, trazendo efeitos deletérios à saúde, que em casos extremos pode levar ao colapso populacional e extinções de espécies. É isso que comumente ocorre quando você tem áreas naturais isoladas umas das outras, impedindo o fuxo genético entre elas. Corredores ecológicos, também chamados corredores de biodiversidade, são faixas de vegetação preservada que ligam fragmentos forestais (ou de outros ecossistemas) remanescentes separados pelas atividades humanas (desmatamento, pastagens, agricultura, cidades, etc.), possibilitando o deslocamento da fauna entre esses fragmentos e, consequentemente, a dispersão de sementes, contribuindo portanto para a preservação da diversidade genética e do ecossistema como um todo. Perceba que não estamos falando de aumentar a área de preservação (embora isso também seja muito importante!), mas sim de conectar as diferentes áreas. Por exemplo, você pode ter 20% de natureza preservada em uma região, e ter uma redução progressiva na saúde genética desse ecossistema, e espécies irem desaparecendo ao longo do tempo, porque essas áreas de natureza preservada estão desconectadas, formando “ilhas”. Se esses mesmos 20% fossem conectados através de corredores ecológicos, você teria uma estabilidade muito maior do ecossistema, ou seja, um desempenho bem melhor da função de preservação ambiental.

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“A disposição de áreas de preservação nas margens das propriedades cria corredores de biodiversidade.”

Isso vale para qualquer região do mundo. Todas as áreas rurais deveriam contar com áreas de proteção ambiental, conectadas formando corredores ecológicos. Agora, isso é simples de se fazer: basta que todas as propriedades rurais disponham suas áreas de preservação nas margens do terreno, mantendo a vegetação preservada numa faixa ao longo das divisas com outras propriedades. Assim, essas áreas de preservação das diferentes propriedades se fundem, formando uma malha que permite o livre fuxo dos animais e da biodiversidade em geral. Isso acontece automaticamente na permacultura, pelo planejamento por zonas.

Zona 5 Este é o seu santuário natural, seu maior tributo à natureza. Aqui, faça um reforestamento com espécies nativas, visando a reconstituição do ecossistema local. Plante espécies ameaçadas do bioma da sua região. Também plante espécies frutívferas nativas, para nutrir e encorajar a fauna local. Quanto ao estabelecimento, é semelhante ao da zona quatro. Após estabelecida sua zona cinco, esse será um local onde você quase nunca vai — exceto para meditar quietamente, ou verifcar se não há algum problema. É importante não perturbar essa área, para não afugentar aquelas espécies muito sensívveis que simplesmente não toleram a presença humana. Não entre lá para apanhar lenha — deixe-a apodrecer ali mesmo, como sempre foi na natureza. Pense na sua zona 5 como uma espécie de “mata virgem do futuro”, que, com algum otimismo, daqui a alguns séculos ainda estará lá, com algumas das árvores que você mesmo plantou ainda vivendo lá, assim como descendentes de outras árvores que você plantou, e outras que vieram sozinhas, em meio a um ecossistema completo e perfeito, servindo de refúgio e expansão de vida natural para toda a área ao seu redor. 186

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Estabelecendo um projeto de permacultura rural Começar um projeto de permacultura rural é um grande empreendimento, que exige planejamento extenso e cuidadoso, recursos fnanceiros e muita determinação e paciência. Viver da terra e em harmonia com a natureza é o estilo de vida mais digno que pode existir; porém, para quem está acostumado a um estilo de vida urbano, isso representa uma mudança radical. Sem dúvida, trata-se de uma mudança que vale a pena, e de fato uma mudança necessária, mas ilude-se quem pensa que é uma mudança fácil. Muitas pessoas imaginam que a principal barreira a essa mudança de vida é a aquisição de um pedaço de terra onde possam desenvolver seus projetos. Porém, esse é na verdade apenas um de muitos obstáculos nessa corrida. Pode-se dizer que as coisas mais importantes são em primeiro lugar ter conhecimento da permacultura, e em segundo lugar ter um plano sólido, uma estratégia bem bolada para viabilizar a transição, a mudança do estilo de vida que se tem para o que se deseja alcançar. Só então se pode pensar em adquirir o terreno, passando necessariamente pelo obstáculo fnanceiro. E por último, mas não menos importante (de fato, absolutamente essencial), é necessário ter a coragem, a garra e a determinação para fazer seu projeto dar certo. A aquisição de conhecimentos sobre a permacultura será discutida em um capívtulo especívfco (capívtulo 16, “Aprendizado da Permacultura”). Estratégia de transição São muitos os pontos a considerar quando da elaboração do plano de transição para um projeto de permacultura rural. Entre eles, podemos destacar: • Objetivos • Atividades a serem desenvolvidas • Modelo de assentamento • Escala • Escolha da região • Escolha do terreno • Aquisição do terreno • Estratégia de implementação do projeto em si Os objetivos especívfcos de um projeto de permacultura podem variar enormemente de pessoa para pessoa. Claro que os objetivos gerais da permacultura, de prover as necessidades humanas enquanto preservando e restaurando o meio ambiente, devem ocupar uma posição central em qualquer projeto, mas isso ainda dá margem a uma imensa variação de objetivos especívfcos. 187

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O foco pode ser apenas uma moradia ecológica, feita com materiais e técnicas naturais, alta efciência energética, captação de água de chuva e tratamento sanitário de efuentes, com um limitado esforço em produção de alimentos; pode ser voltado para produção de alimentos para consumo próprio, em pequena escala, ou uma produção comercial de alimentos e outros produtos orgânicos. Um projeto de permacultura pode visar alcançar um estilo de vida altamente natural, integrado aos ciclos da natureza, autossufciente, ou mesmo primitivo! Pode ainda ser voltado para a pesquisa, promoção e divulgação da permacultura, ou seja, um centro de permacultura, etc. É bom que esses objetivos já estejam estipulados desde o inívcio do planejamento do projeto, para melhor guiar as estratégias e esforços em seu estabelecimento. Mas claro que nada impede uma mudança de foco no decorrer do desenvolvimento do projeto. Atividades a serem desenvolvidas no projeto. Aqui, as opções são inúmeras, sendo limitadas apenas pelas éticas da permacultura (ou seja, atividades que fram essas éticas não devem ser consideradas). Cultivo orgânico de alimentos, sejam hortaliças, grãos, frutas, etc., aliado a atividades de preservação e recuperação ambiental são essenciais a qualquer projeto de permacultura rural. Agora, você tem inúmeras outras opções de atividades que podem ser desenvolvidas, seja para suprir suas necessidades ou uma satisfação pessoal, ou para contribuir para a sociedade e o meio ambiente de diferentes formas, ou com a fnalidade de obter uma renda, etc. Por exemplo, a produção de outros produtos vegetais úteis, como madeiras, fbras, ervas medicinais; reforestamento e estabelecimento de agroforestas; criação de animais para fns alimentívcios e/ou conservação de espécies nativas e fomento da fauna; aquacultura, tanto para produtos animais como vegetais; apicultura e meliponicultura; produção de cogumelos comestívveis; reciclagem de materiais, hospedagem, educação ambiental, terapias holívsticas, atividades artívsticas e recreativas, etc. Essas atividades podem ser desenvolvidas de forma individual ou coletiva, de modo informal ou através de uma empresa privada, algum tipo de associação ou mesmo organização não governamental (ONG), etc. A escolha das atividades a serem desenvolvidas depende essencialmente dos interesses e aptidões do permacultor, mas sempre levando em consideração também os potenciais do terreno e da região (e.g. demandas do mercado). É preciso ter uma mente aberta e uma postura fexívvel, pois esses fatores infuenciam-se mutuamente, moldando o que será o projeto. Por exemplo, os interesses do permacultor infuirão na escolha do terreno e da região, de forma a possibilitar suas atividades; porém, o terreno em si também infuirá na decisão de que atividades serão desenvolvidas. Por exemplo, o permacultor poderia não estar pensando inicialmente em focar em aquacultura, mas caso o terreno escolhido seja muito favorável, isso pode e deve despertar tal interesse. Da mesma forma, uma demanda regional por turismo rural ou ecoturismo, ou seja, um turismo mesclado com educação ambiental, poderá estimular o permacultor a investir nessas atividades. Há que se ter em mente que não existem terrenos 188

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feitos sob medida, ou seja, na procura de um pedaço de terra, você jamais encontrará algum que se encaixe perfeitamente nas suas expectativas, e o mesmo pode ser dito da região em que se encontra. Então, você terá que escolher entre as opções reais disponívveis. Mas isso deve ser encarado de forma positiva, pois trará desafos interessantes, e oportunidades que você nem tinha imaginado. Modelo de assentamento. Um projeto de permacultura rural pode ser individual ou coletivo. Projetos individuais têm a vantagem de permitir ao permacultor maior liberdade em todas as escolhas envolvidas na elaboração do projeto, desde a escolha do local, do terreno, das atividades desenvolvidas, etc. Um assentamento permacultural coletivo é o que chamamos de ecovila. Isso oferece a grande vantagem de não se estar sozinho: claro que todos os trabalhos tendem a render mais se feitos a muitas mãos; muitas cabeças também pensam melhor que uma, então ao menos teoricamente a participação de várias pessoas ajudaria na elaboração de projetos mais efcientes. Além do mais, um assentamento coletivo possibilita um contexto social muito mais favorável, levando a uma qualidade de vida melhor. Porém, a opção de um assentamento coletivo também traz importantes desafos: formar um grupo é geralmente muito difívcil, pois embora sempre haja pessoas interessadas em formar uma ecovila, poucos estão de fato preparados para fazer essa mudança em seu estilo de vida, ou dispostos a deixar sua zona de conforto, seus empregos, etc. e se mudar para a zona rural, trabalhar a terra, etc. Além disso, quando todas as decisões devem ser tomadas por consenso, isso implica no tolhimento da liberdade de cada um tentar o que quer, experimentar coisas diferentes, etc., o que costuma levar a frustrações. Do mesmo modo, a obrigação de se fazer o que foi determinado pela maioria, mesmo que não se concorde com o que foi decidido, é muitas vezes desmotivante. Outro problema é que, geralmente, há membros que se empenham muito no estabelecimento e manutenção da ecovila, enquanto outros não, o que gera confitos e todo tipo de problemas de relacionamento. Ecovilas serão discutidas em maior detalhe no capívtulo 15, “Comunidades em Permacultura”. Escala. A permacultura é aplicável em qualquer escala, pois os princívpios e técnicas da permacultura funcionam tanto em um pequeno quintal como em centenas de hectares de terra. Nada impede o estabelecimento de uma agroforesta altamente produtiva e ambientalmente benéfca em uma grande fazenda, por exemplo. Porém, em relação à escala de projetos de permacultura, há alguns pontos que merecem consideração. Pela terceira ética da permacultura (partilha justa), não devemos possuir mais bens ou utilizar mais recursos que o necessário para a nossa vida. Sendo assim, pode-se dizer que a acumulação de terras fere essa ética, de modo que seria paradoxal pensar em um latifúndio permacultural. Por outro lado, a conversão de terras da agricultura convencional para a permacultura é extremamente benéfca para a natureza, e também para a sociedade, quer pelos 189

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serviços ambientais prestados, ou pelos alimentos naturais e saudáveis produzidos, etc. Porém, outro ponto importante é que a permacultura representa um estilo de vida simples e em contato e integração com a natureza e todos os seus elementos — uma vida de intimidade com a terra e todas as coisas que vivem nela. Agora, é impossívvel a qualquer pessoa ter intimidade com uma vasta área de terra. Um contato próximo, ívntimo com a natureza, no pleno e verdadeiro sentido de cuidar da terra limita o tamanho da área que cada um pode efetivamente ocupar, utilizar e cuidar a um pedaço relativamente pequeno. De qualquer forma, a despeito dessas que são considerações flosófcas, resta o fato que a grande maioria dos projetos de permacultura rural são desenvolvidos em áreas pequenas, chácaras de 1000 m 2 a até uns 10 hectares. Por esse motivo, focaremos nossa discussão sobre permacultura rural em projetos de pequena escala. Escolha da região. Na maioria das vezes, pessoas interessadas em iniciar um projeto de permacultura rural vêm de um contexto urbano, muitas vezes de grandes cidades. Isso implica na necessidade de se mudar para uma outra região, e diversos fatores devem ser considerados na escolha desse novo local. Se o permacultor já tiver um local conhecido com o qual sente grande afnidade, isso pode ser um bom ponto de partida. Já conhecer o local e gostar dele é uma grande vantagem, pois mudar-se para um local desconhecido traz sempre riscos muito maiores de não adaptação. Outro fator importante a ser levado em consideração é o contexto humano do local. Deve-se ter em mente que o estilo de vida da permacultura é muito diferente do da maioria das pessoas, tanto do meio urbano como rural. Você estará buscando recuperação ambiental e reintegração com os ciclos naturais, etc., enquanto a maioria das pessoas, inclusive na zona rural, buscam coisas bem diferentes. Inserir-se num meio qualquer pode signifcar isolamento e a não aceitação do permacultor pela comunidade local, pelas pessoas que já estão lá. Acontece que integração e bom relacionamento com a sociedade maior ao seu redor são essenciais para que um projeto de permacultura atinja o máximo de seu potencial transformador, sendo fundamental também para o bem-estar, felicidade e realização do permacultor, já que nenhum homem é uma ilha, e ninguém é feliz isolado. E não se trata apenas de bem-estar — uma situação dessas de isolamento e confito com a sociedade ao redor pode representar um empecilho imenso, reduzindo substancialmente as suas chances de sucesso no local, ou seja, a sobrevivência do seu projeto. E não espere que você vai ser capaz de mudar a cabeça das outras pessoas. Embora isso não seja impossívvel, é um processo demorado, e em muitos casos simplesmente não acontece; portanto, não se deve jamais contar com isso. Sendo assim, é muito importante que, ao se escolher o local para um projeto de permacultura, procure-se um lugar com uma certa pegada alternativa,

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onde estilos de vida não convencionais sejam comuns e bem aceitos, e de preferência onde já haja pessoas desenvolvendo alguma atividade afm, como agricultura orgânica, biodinâmica ou permacultura mesmo, pedagogias alternativas, onde haja alguma ONG ambientalista ativa, etc. Trazer um novo projeto de permacultura a uma região onde já haja iniciativas semelhantes fortalecerá a todos. Deve-se ter em mente que o isolamento enfraquece à mesma medida que a união fortalece, e estabelecer com sucesso um projeto de permacultura normalmente já é um desafo grande o sufciente — não se deve procurar por empecilhos extras! Claro que isso não quer dizer que jamais haverá projetos de permacultura em novos lugares. Porém, novos projetos de permacultura em locais onde ainda não há uma mentalidade alternativa devem ser iniciados preferencialmente por pessoas já estabelecidas na região, moradores já conhecidos por todos, por exemplo, ou por permacultores experientes, que terão o respaldo de sua reputação para conquistar o respeito e até despertar a curiosidade e interesse da comunidade local. A escolha da região também deve levar em consideração a estratégia de implementação (discutida mais adiante) do projeto, ou seja, o plano de transição. Por exemplo, no caso de um profssional de determinada área que planeje trabalhar meio perívodo em sua profssão enquanto investe na construção de seu projeto, a região escolhida deve possibilitar esse trabalho, ou seja, deve haver demanda e oportunidade para que esse plano dê certo. A escolha do terreno é outro ponto crívtico óbvio no estabelecimento de um novo projeto de permacultura rural. Na escolha do terreno, vários são os fatores a serem considerados: • Tamanho, a ser defnido de acordo com as atividades a serem desenvolvidas no projeto. • Preço. Tem que ser compatívvel com as condições fnanceiras do permacultor ou grupo. • Acesso e distância da cidade. Às vezes, a pessoa encontra um “terreno dos sonhos”, com muito verde, natureza, nascentes ou mesmo cachoeiras, etc., mas... a 30 km da cidade mais próxima, com acesso precário. É receita infalívvel para o sonho virar pesadelo! Aqui, é preciso ser realista: implementar um projeto de permacultura rural não é brincadeira, e uma distância excessiva da cidade mais próxima pode ser o fator fatal para tornar o sonho inviável. A implementação do projeto invariavelmente levará anos, e por todo esse perívodo você precisará conciliar a construção do projeto com um emprego ou fonte de renda, o que signifcará idas e vindas frequentes, provavelmente diárias à cidade, e uma grande distância signifcará altos custos de tempo e dinheiro, além de impacto ambiental (poluição do seu veívculo). Mesmo quando o projeto estiver maduro, quanto 191

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maior a distância, maior a difculdade de vender sua produção, por exemplo. E se o terreno não for servido por transporte escolar? Isso signifcará que jamais poderá haver crianças no projeto — detalhe muitas vezes esquecido na hora da escolha do terreno. Claro que sempre se pode criar uma escola dentro do próprio projeto ou ecovila; porém, isso levará anos para ser possívvel ou viável, e um projeto iniciado em um terreno muito remoto provavelmente não durará tanto, ou não atrairá um número sufciente de pessoas, justamente pela difculdade de se romperem todas as barreiras adicionais impostas pela distância e isolamento. Muitas vezes, de tão desgostosas com a sociedade e as cidades, os aspirantes a permacultores escolhem deliberadamente um terreno o mais isolado possívvel “da civilização”. Cometem assim um erro fatal, que via de regra leva ao fracasso de sua iniciativa, lançando-as de volta àquela mesma realidade da qual queriam se distanciar. • Vizinhança. O mesmo já exposto em relação à escolha da região vale também para a escolha do terreno em si, em relação ao contexto humano da vizinhança. A vizinhança imediata é como um “microclima” — serão as pessoas com quem você mais terá contato. É importante evitar terrenos com vizinhos indesejáveis, como aqueles que praticam uma agricultura predatória (desmatamento, pesticidas, queimadas), terrenos cortados por rios poluívdos, vizinhanças violentas, com altos ívndices de criminalidade, etc. • O terreno em si, deve ser um local agradável, atrativo, um local onde o permacultor deseje se instalar. Isso é muito subjetivo, mas muito importante. Você deve se sentir bem no local, e enxergar nele o potencial de criar ali o paraívso que deseja. Isso signifca uma afnidade, uma sensação de pertencimento — não que o local pertença ao homem, mas sim que o homem pertença ao local. Esse vívnculo é essencial para a motivação, o amor e o empenho que serão necessários na construção do projeto. • As condições do terreno. Muitas pessoas, sonhando em viver “em harmonia com a natureza”, procuram um terreno coberto de matas nativas e ecossistemas intactos. Mas isso na verdade é um grande erro, pois assim, normalmente o que essa pessoa estará fazendo na prática é justamente levar degradação e poluição a esse local, onde esses problemas não existiam. Claro que é sempre bom ter um pedaço de mata no seu terreno, para você usufruir e, acima de tudo, proteger; porém, é muito importante que o terreno escolhido para um projeto de permacultura rural possa ser de fato ele mesmo benefciado pelo projeto, ou seja, é na verdade preferívvel escolher um terreno degradado, para que o permacultor possa empenhar-se na recuperação do solo, da água e dos ecossistemas nesse pedaço de chão, de forma que seu papel em relação ao mundo natural seja um papel positivo. Porém, é preciso tomar cuidado com terrenos muito desafadores, 192

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que trarão difculdades excessivas para a implementação do projeto, pois isso signifcará que serão necessários muito mais tempo e recursos até que se consiga torná-lo habitável e obter algum retorno, o que pode, na prática, inviabilizar o projeto. É importante ressaltar que os critérios aplicados à escolha de um terreno para iniciar um projeto de permacultura rural são diferentes dos utilizados por agricultores convencionais. Isso porque os objetivos são radicalmente diferentes: o permacultor busca uma vida natural e sustentável, em harmonia com a natureza, enquanto o agricultor busca apenas sucesso fnanceiro para seu empreendimento rural, ou seja, está preocupado apenas com lucro. Assim, quando você estiver procurando terrenos para iniciar um projeto de permacultura, ouvirá muitas pessoas aconselhando a comprar terrenos com terras férteis e abundância de água. Para o permacultor, esses não são critérios prioritários, já que o permacultor está interessado em construir a fertilidade do solo e cultivar a água, ao invés de apenas explorá-los. Aquisição do terreno. Você pode ser a favor ou contra a ideia da propriedade privada de terra; porém, o fato é que essa é a situação vigente na nossa sociedade, e portanto a realidade a ser encontrada por praticamente todas as pessoas interessadas em iniciar um projeto de permacultura rural. Por mais esdrúxulo que possa ser considerado o conceito de propriedade privada de um pedaço do planeta que existe ali desde sempre sem que isso seja mérito de qualquer pessoa, especialmente nos casos tão comuns em que esse pedaço de terra está abandonado, mantido como propriedade ou posse de alguém apenas como forma de manutenção e acumulação de riqueza, e mesmo que você considere que esse sistema tem que ser revisto, é inútil ou pelo menos contraproducente tentar modifcar isso justo no momento de iniciar um projeto de permacultura, quando já se terá que enfrentar inúmeros desafos, sendo portanto um momento delicado. Portanto, é importante ser realista: para se iniciar um projeto de permacultura rural, você precisará de capital para comprar terras (a não ser, claro, que você já possua terra). Um projeto de permacultura é um projeto de longo prazo: construir a fertilidade do solo, plantar água e recuperar ecossistemas, tudo isso leva um certo tempo para se estabelecer e colher os benefívcios, que serão permanentes. Portanto, geralmente não é recomendável iniciar um projeto de permacultura em terrenos dos outros, alugados ou arrendados, etc. Certamente não é recomendável tentar iniciar o seu projeto de vida nessas condições! Talvez você encontre um parente, amigo ou vizinho que tenha terras ociosas e esteja disposto a emprestá-las para você, ao ouvir suas ideias. Não há nada de errado em aceitar, e começar a fazer algumas coisas nesse terreno, especialmente se você for um permacultor iniciante e não tiver condições de iniciar um projeto defnitivo, seja por não ter condições fnanceiras de comprar terras, ou por ainda estar preso a 193

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situações como estudo, trabalho etc. Esse tipo de oportunidade pode ser útil para pôr em prática os princívpios da permacultura, adquirir experiência, etc. Mas é importante ter em mente que se trata de um projeto provisório, e não fazer grandes investimentos ou criar expectativas de longo prazo, pois a qualquer momento o dono tomará o terreno de volta e destruirá tudo o que você estava fazendo ali. Isso é muito comum. Portanto, aceite a oportunidade, se quiser, mas não se apegue ao terreno que não é seu! Essa mesma recomendação se aplica também a projetos de permacultura urbana, como veremos mais adiante no capívtulo 13. Infelizmente, fnanciamentos ou empréstimos geralmente não são disponívveis a pessoas interessadas em iniciar projetos de permacultura. Financiamentos para comprar terras agrívcolas em geral são bastante restritos e não acessívveis a pessoas que ainda não tem terras nem são agricultores. Além disso, tais fnanciamentos, quando existentes, obrigam o contratante a seguir recomendações técnicas impostas pelo banco, que na prática impedem a aplicação dos princívpios da permacultura, pois são ditadas pela agricultura convencional. Além do mais, não é uma boa ideia se endividar para iniciar um projeto de permacultura. Não que a permacultura não possa dar lucro, mas por se tratar de um empreendimento de longo prazo e largamente experimental, especialmente no caso de permacultores iniciantes, não se deve contar com lucros a curto e médio prazo. A pressão de uma dívvida, e especialmente dos juros, pode signifcar um fm triste para um projeto que quer nascer. Por tudo isso, a forma mais segura e mais indicada de se aquirir terra para iniciar um projeto de permacultura é com recursos próprios. Eu sei que pode soar desanimador, mas caso ainda não se disponha dos recursos, vale a pena se segurar no emprego por mais um tempo, ou arrumar um emprego caso já não tenha um, e economizar ao máximo para poder juntar o dinheiro necessário, no mais curto prazo possívvel. Essa “espera” não é necessariamente uma coisa ruim: esse perívodo deve ser utilizado para que o aspirante a permacultor obtenha o máximo de informações possívvel sobre a permacultura, leia livros, veja vívdeos, participe de fóruns... adquira experiência prática realizando trabalhos voluntários aos fnais de semana e férias, procure cuidadosamente por um local, conhecendo todas as opções de regiões e terrenos, etc. Enquanto faz isso tudo, o permacultor deverá planejar cuidadosamente seu projeto, agregando os conceitos que são aprendidos, e as caracterívsticas dos terrenos visitados, etc. Tudo isso leva tempo para amadurecer! Sendo assim, não há qualquer lugar para imediatismo. Inclusive, caso o aspirante julgue que não tem condições de ter uma renda sufciente para levantar os recursos para aquisição de um terreno, por exemplo por não ter uma profssão, então ele deve focar inicialmente em adquirir uma qualifcação que o habilite a tal. Até porque, como veremos a seguir, a necessidade de recursos fnanceiros não cessa com a compra do terreno! É necessário ter paciência, o que é muito diferente de acomodação; toda conquista 194

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requer sacrifívcio. Essa é a receita para se alcançar qualquer coisa, e com um projeto de permacultura não é diferente. Estratégia de implementação do projeto. Conforme já citado, a aquisição do terreno é apenas um dos pontos que necessitará de recursos fnanceiros. Suponha que você ganhe um terreno, de graça, com escritura e tudo. E daív? você acha que simplesmente se mudará para o terreno, e viverá “em harmonia com a natureza”, feliz para sempre? Comendo capim e dormindo ao relento, no sol, no vento e na chuva? O estabelecimento de um projeto de permacultura inevitavelmente requer, além de preparo (conhecimento teórico e prático da permacultura) e doses consideráveis de dedicação e esforço, também recursos fnanceiros e um tempo considerável (alguns anos). Portanto, provavelmente o ponto mais importante no estabelecimento de um projeto de permacultura é a sua estratégia de implementação. É preciso elaborar um plano sólido que viabilize a transição, a passagem da situação em que se está, para a que se deseja alcançar. Essencialmente, é necessário encontrar uma forma de emprego ou renda que permita sua sobrevivência, morando no local (terreno) ou próximo o sufciente (por exemplo, a cidade mais próxima), e ainda permita tempo livre sufciente para você poder se dedicar à construção do projeto. Por exemplo, pode-se pensar em um emprego de meio perívodo, seja no setor público ou privado, ou mesmo no terceiro setor (ONGs); atuar como profssional autônomo em qualquer área; iniciar um empreendimento, na área de comércio ou hospedagem, etc. Uma opção excelente são trabalhos que possam ser feitos pela internet, como tradução, edição, design gráfco e web design, etc., pois permitem que se trabalhe praticamente de qualquer lugar, desde que tenha eletricidade e acesso à internet, com a vantagem adicional de uma grande fexibilidade de horários. Enfm, as opções são inúmeras, praticamente ilimitadas, dependendo basicamente das aptidões do permacultor, das demandas locais, mas especialmente da criatividade e capacidade de enxergar oportunidades, fexibilidade e determinação por parte do permacultor. Talvez seja necessário ou vantajoso investir na aquisição de uma nova aptidão profssional que seja mais viável como parte da estratégia de transição. Claro que é chato você ter que se manter preso a um tipo de emprego do qual você quer se ver livre para poder viabilizar sua transição para um estilo de vida que você deseja, ou seja, um estilo de vida mais natural, livre e independente através da permacultura. Assim, o ideal seria ter como fonte de renda um trabalho com permacultura para viabilizar essa transição. Isso é possívvel, como será apresentado no capívtulo 17, “Consultoria e Prestação de Serviços em Permacultura”. Porém, isso não é tão simples, pois a demanda por esse tipo de trabalho remunerado nem sempre é sufciente, e o permacultor iniciante via de regra tampouco tem experiência sufciente para prestar esse tipo de serviço de forma profssional. 195

Parte II – A Alternativa da Permacultura

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Na maioria dos casos, especialmente se você vai se mudar para outra área ou mudar de atividade econômica, é impossívvel ter certeza que seu plano funcionará. Talvez não haja demanda para o produto que você deseja vender ou serviço que pretende prestar, ou talvez os custos e difculdades sejam maiores que o esperado, etc. Por isso, é importante ter não apenas um plano, mas considerar várias opções, ou seja, uma opção principal ou plano A, e opções alternativas, planos B, C, etc., para te dar mais chances de sucesso. É vital que você tenha tudo isso pensado, planejado e preparado com antecedência, e não deixar para “se virar na hora”, caso seu plano dê errado! Isso é muito importante. Outra coisa que vale menção é que nem sempre você desejará abandonar defnitivamente sua profssão ou ocupação econômica e substituív-la totalmente pela produção de alimentos, por exemplo. Na maioria dos casos, é possívvel conciliar as duas coisas, ou seja, continuar desempenhando uma atividade que gosta e faz bem, paralelamente às atividades permaculturais, mesmo depois que seu projeto estiver pronto e maduro. Fases da implementação de um projeto de permacultura rural Pode-se dizer que o primeiro passo para alguém iniciar um projeto de permacultura inicia-se antes mesmo de conhecer a permacultura: trata-se de desejar intimamente uma mudança para um estilo de vida simples, natural e saudável, longe da artifcialização, competitividade exacerbada e falta de sentido da vida caracterívsticos do estilo de vida convencional na sociedade atual. Isso depende apenas de cada um (algumas pessoas parecem bem adaptadas a esse estilo de vida moderno convencional, o que é assustador!). O segundo passo é, sem dúvida, aprender sobre a permacultura, tanto na teoria como na prática, com o máximo de profundidade possívvel. Aqui, não se iluda: não vai ser um curso de duas semanas, ou a leitura de um único livro, que o deixarão preparado para essa mudança! Isso é apenas um começo. Esse assunto será discutido em detalhes no capívtulo 16, “Aprendizado da Permacultura”. Então, você decide, com conhecimento de causa, que está pronto para se lançar ao desafo de abraçar esse estilo de vida, para deixar de ser somente parte do problema da insustentabilidade de nossa civilização e passar a ser parte da solução, através da permacultura. E você passa a elaborar o seu projeto e um plano para sua transição. Determinará os objetivos, as atividades a serem desenvolvidas, o modelo de assentamento que você quer; determinará a escala do seu projeto, escolherá a região, procurará por terrenos onde iniciará o projeto de seus sonhos (que poderá ser o projeto de sua vida!) e traçará uma estratégia sólida para a implementação do projeto.

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Na elaboração do seu projeto você vai aplicar todos os princívpios da permacultura e levará em conta todas as informações e conhecimentos contidos neste livro, bem como em outros materiais que tenha estudado, incluindo outros livros sobre permacultura e assuntos relacionados, apostilas, vívdeos… discussões em fóruns, cursos que tenha participado, vivências e trabalhos voluntários em projetos de permacultura, conversas e exemplos práticos de outros permacultores que te inspirem, etc. Na verdade, a elaboração de um projeto normalmente se inicia naturalmente no começo da jornada: conforme você começa a aprender sobre a permacultura, ideias vão inevitavelmente se formando em sua cabeça, de como será seu projeto! Mas, claro que muitas dessas ideias mudarão ao longo do caminho, conforme você adquire mais conhecimentos e passa a ter a capacidade de julgar melhor. Agora, você já ticou todos os itens nesta lista, e está pronto para dar o “grande salto”. Então, você adquirirá o terreno escolhido, se mudará para o local, seja o próprio terreno ou local próximo, que permita deslocamento diário, e iniciará sua atividade (ou atividades) econômica de transição. Neste momento inicial, o mais importante é estabilizar-se fnanceiramente, certifcar-se que sua atividade econômica está funcionando, ou fazer os ajustes necessários para que ela passe a funcionar, o que signifca garantir uma renda média sufciente para sua manutenção, com sobra sufciente para investir no seu projeto. É essencial que essa estabilidade seja atingida antes de se iniciarem investimentos signifcativos no projeto em si. Muitas vezes as pessoas, na ânsia de ver o projeto andando logo, não dão a devida atenção a esse ponto. Não raro, têm que abandonar seu projeto logo nos primeiros meses ou anos, porque não conseguem sobreviver. Essa fase de estabilização leva vários meses, ou mesmo alguns anos. Nesse perívodo, paralelamente à sua atividade econômica de transição, você deve vivenciar o seu terreno o máximo que puder. Passe todo o seu tempo livre ali, vivenciando o local e os elementos. Observe e absorva-se nesse processo, sinta o passar das horas do dia e da noite, experimente o sol e a chuva, e o orvalho e até a geada. Acompanhe o passar das estações. Há uma velha regra da permacultura, que manda aguardar um ano, antes de se lançar a fazer grandes investimentos em seu projeto e grandes modifcações no terreno, seja na vegetação ou topografa, ou construções, etc. Claro que esse um ano é relativo, pode ser mais, pode ser menos. Mas o aspecto mais importante é que esse perívodo não deve ser um perívodo passivo, ou seja, não se trata apenas de esperar. Pelo contrário, deve ser ativo, de observação ativa, e também de experimentações. Plante várias coisas, plante mudas e sementes, veja o que acontece. Faça pequenas construções, um pequeno galpão para guardar suas ferramentas e se abrigar da chuva, faça uma pequena lagoa artifcial experimental, para você pegar prática e ter alguma água. Tudo isso servirá não apenas de treino e de “aquecimento” (muito importante!), mas também para você amadurecer suas ideias, o que ajuda 197

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a evitar erros grandes que poderiam ter consequências permanentes. Agora, você já decidiu onde será construívda sua casa, suas lagoas, seus sistemas produtivos em geral. Tem uma ideia de onde serão suas zonas, etc. Mas, por onde começar? Isso realmente vai depender de cada caso. Se você decidiu morar direto no local, então, caso ainda não haja uma casa no terreno, construir a casa será prioridade — você pode começar morando em uma barraca, ou construir um cômodo simples para ir morando enquanto constrói sua casa. Mas isso (começar pela casa) só será viável se você já tiver um suprimento de água fácil (por exemplo, uma nascente ou córrego no local). Caso contrário, você terá que começar pelos sistemas de água de chuva. Você pode começar com uma lagoa pequena, que fque pronta rápido e encha rápido, para você ter água logo, o que irá facilitar todo o mais que você vai fazer nessa fase inicial. Essa lagoa pode ser temporária ou permanente. Então, pode construir sua casa, e em seguida, passe para a construção de lagoas maiores, que serão permanentes. Em geral, começar pelos sistemas de água traz várias vantagens, pois eles facilitam e guiam a implementação de todos os outros sistemas (casa e construções, plantações e outros sistemas produtivos). Por último, neste caso (em que você começou pela casa), você deverá focar seus esforços nas plantações. Claro que, nesse momento, você já deverá ter muitas mudas, pois as terá cultivado desde o começo (veja o “Estilo de Vida da Permacultura”, no capívtulo 14), e elas já estarão prontas para ir para a terra! Num cenário diferente, em que você não se mudará de cara para o projeto, mas ao invés disso morará em uma casa na cidade enquanto trabalha na construção do mesmo, então a casa será a última a ser construívda. O que determina essa escolha, de se mudar para o projeto no começo ou mais tarde, na verdade é a sua estratégia de transição, ou seja, a atividade econômica escolhida para viabilizar a implementação do seu projeto. Se você é um aposentado, fará mais sentido pensar em se mudar logo para o projeto. Também, se você trabalha pela internet, desde que haja conectividade no seu terreno, não fará sentido fcar na cidade, sendo melhor mudar-se o mais rápido possívvel para o projeto, apressando assim a construção da casa. Agora, se você trabalhará na cidade, então talvez faça mais sentido você continuar morando lá enquanto constrói seu projeto. Comece então pelos seus sistemas de água, e em seguida sistemas produtivos. Quando sua agroforesta já estiver produzindo, e você sentir que poderá viver dessa produção, então construa sua casa e mude-se defnitivamente para o projeto. Quanto aos sistemas produtivos, é importante dividir os esforços de forma equilibrada entre estabelecer seu pomar e agroforesta, e trabalhar com plantas anuais, ou seja, de ciclo curto, como mandioca, milho, arroz, feijão, hortaliças, etc. Isso signifca buscar um retorno a curto prazo, sem descuidar do médio e longo prazo. 198

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A importância do planejamento Uma das principais falhas no estabelecimento de um projeto de permacultura é a falta de planejamento. A falta de seriedade a esse respeito é um dos principais fatores que garantem o fracasso de muitos projetos, antes mesmo de começarem. Um cenário tívpico é o seguinte: a pessoa toma contato com a permacultura e fca toda empolgada com a coisa toda, e decide que irá abraçar esse ideal e esse modo de vida. Porém, não se dá ao trabalho de planejar cuidadosamente, exatamente como viabilizará essa mudança. Para começar (mal), por preguiça ou excesso de ousadia, não se dá ao trabalho de estudar aprofundadamente a permacultura e obter o máximo de informações e conhecimento possívvel, tanto na teoria, estudando, como na prática, através de voluntariado, por exemplo. Então, quando da escolha da terra, não se preocupa em avaliar cuidadosamente as opções de local, de terreno, pensando em opções de atividades a serem desenvolvidas, quais serão mais viáveis, considerando o tipo de solo e clima, distâncias, condições de mercado, etc. Não estabelece um cronograma ou uma sequência racional de eventos na construção de seu projeto; tampouco se preocupa em manter uma fonte de renda confável que supra suas necessidades e ainda permita tempo livre sufciente para se dedicar ao desenvolvimento das atividades de construção do projeto; não se preocupa em prever múltiplos cenários possívveis, entender as variáveis, elaborar planos alternativos (plano B, C, D…) caso as coisas não saiam conforme previsto. Enfm, muitos acham muito cômodo simplesmente assumir que “o universo conspirará a seu favor”, e atiram-se à permacultura de forma aventureira, sem o devido preparo, fazendo conforme lhes dá na telha. Consequentemente, o indivívduo inicia seu processo de transição de forma desordenada, e logo no inívcio já vai dando tudo errado: as plantas não crescem, falta água, as formigas atacam… a construção demora muito mais, dá muito mais trabalho e custa muito mais dinheiro do que se esperava; acaba o dinheiro, começam confitos entre as pessoas... enfm, a pessoa quebra a cara e logo vê-se forçada a voltar para o estilo de vida anterior, com o rabo entre as pernas, falida e desmoralizada. Portanto, planejamento é essencial. O problema é que muitas pessoas não sabem disso, e talvez achem que a permacultura é fácil, o que é uma ilusão. Planejar dá trabalho! Exige um esforço intelectual grande, contívnuo e prolongado, mas é necessário para o sucesso em qualquer empreitada, e especialmente numa mudança radical de modo de vida, como é o caso da permacultura. Trabalho durol, paciêncial, persistência Conforme já citado, o estabelecimento de um projeto de permacultura invariavelmente leva anos até que alcance sua maturidade e o auge de sua

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produção. E não são anos de espera, mas sim anos de trabalho duro, esforço contívnuo. Portanto, para que você alcance esses resultados, serão necessários, além do planejamento e dedicação, também doses maciças de paciência e perseverança. Aqui, creio que vale a pena abrir um parênteses para elaborar um pouco sobre a diferença entre paciência e acomodação, pois muitas pessoas se confundem a esse respeito. Paciência e acomodação são coisas completamente diferentes. Na paciência, o indivívduo está se preparando, está caminhando ou construindo seu caminho para chegar à realidade que deseja, sem imediatismo e sem agir com precipitação. Já na acomodação, o indivívduo deixa de lutar ou se dedicar àquele fm, e fca apenas esperando que as coisas aconteçam sozinhas; consequentemente, acaba estagnado na realidade atual, sem transitar, sem progredir. Ou seja, paciência é bom e acomodação é ruim. Na verdade, paciência é essencial para qualquer transformação profunda e sólida, real. Pessoas que não entendem a importância disso tendem a agir de forma atirada, precipitada, e achar que isso é atitude. Porém, enganam-se. O indivívduo que age de forma precipitada, no começo vai parecer que está progredindo mais rapidamente — enquanto o amigo ainda está estudando, planejando ou levantando recursos, ele já vendeu seu carro, comprou um terreninho e já está até bioconstruindo! Porém, esse é o que morrerá na praia, como discutido acima. O amigo “devagar”, que não teve pressa, se preparou adequadamente e elaborou uma estratégia sólida, teve resiliência para lidar com imprevistos e coisas que deram errado, e tenacidade, frmeza em seguir tentando, reavaliando-se, adaptando-se, aperfeiçoando-se — esse é o que vai ter sucesso em sua mudança de vida, e colherá os frutos de sua paciência e perseverança. Prepare-ose para tempos difíceis Quando planejamos nosso projeto de permacultura, é importante não ter uma visão estática da realidade do mundo, achando que as coisas continuarão como estão hoje. É preciso ter sempre em mente o discutido na Parte I, e planejar de acordo com os possívveis cenários futuros que se insinuam. Especialmente, é importante levar em consideração os seguintes fatores: • Mudança climática. Considerando a perspectiva de um clima cada vez mais quente e seco na maioria das regiões do mundo, a prudência manda que projetemos sistemas de captação e armazenamento de água com capacidade de sobra, pois anos secos podem se tornar cada vez mais frequentes e prolongados. Outra implicação importante da mudança climática diz respeito à escolha das espécies a serem utilizadas em seu projeto. Certifque-se de incluir espécies rústicas e adaptadas a condições de falta de água, mesmo que você viva em uma área úmida, pois não se sabe como será o futuro. Pesquise espécies úteis nativas de desertos e regiões semiáridas, como cactos, tamareiras, etc., e inclua-as em 200

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seus projetos. Elas poderão ser a sua salvação no futuro, dependendo de como se derem as mudanças no clima. • Pico do petróleo. Devemos evitar o uso excessivo de tecnologias dependentes do petróleo hoje por questões de sustentabilidade ambiental, mas enquanto esse recurso ainda está ao nosso alcance, quase inevitavelmente acabamos por usá-lo em diversas situações, pensando no uso apropriado de tecnologias disponívveis. Porém, é necessário ter sempre em mente que o fm da era do petróleo deverá trazer grandes mudanças, e devemos estar preparados para elas. Talvez surjam novas tecnologias que substituam o petróleo, talvez não. Por isso, é vital que ao projetarmos nossos sistemas e fazer planos para nossas vidas no futuro, não contemos com o petróleo, e acima de tudo, não dependamos dele. Valorize e use todas as estratégias possívveis que não dependam de mecanização e transporte motorizado. • Crise econômica e colapso das estruturas sociais. Não quero soar apocalívptico aqui, mas conforme vimos na Parte I, é necessário estar preparado para o pior. No caso de um colapso da sociedade, quanto menos você depender da economia, do Estado, das instituições, das tecnologias, etc., melhor. Você pode estar super bem em seu emprego, ou sua situação de renda no momento, mas com o colapso econômico, isso poderá simplesmente desaparecer. Por isso, é sempre muito importante visar um alto grau de autossufciência em seu projeto. Aproveite a situação atual para fazer sua transição de forma sólida e segura, use os recursos sociais disponívveis. Mas procure estabelecer sistemas automantenedores e estáveis, que não necessitarão da importação de recursos e especialmente recursos tecnológicos no futuro, pois eles poderão não estar mais disponívveis.

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10. A Habitação Permacultural

10 A HABITAÇÃO PERMACULTURAL

Sob muitos aspectos, as casas convencionais modernas podem ser consideradas ótimas — confortáveis, seguras e duráveis, todas virtudes essenciais que as edifcações modernas, desde que adequadamente construívdas, inegavelmente possuem. Porém, elas também têm seus defeitos. Dentre eles, podemos destacar: • Alto impacto ambiental para sua construção e manutenção. Materiais convencionais, como cimento, tijolos e telhas, dependem para sua fabricação de alto consumo de energia, mineração com grande impacto ambiental, e geram poluição do ar na forma de gases do efeito estufa e matéria particulada, entre outros. Madeiras usadas em construção são geralmente provenientes de desmatamento. • Baixa efciência no uso de recursos. A imensa maioria das casas convencionais não captam água da chuva e não têm em seu design sistemas para reutilização de água. Têm baixa efciência energética, levando a consumo excessivo de energia para iluminação e aquecimento ou refrigeração. • São poluentes. Utilizam sistemas convencionais de saneamento, ou seja, produzem esgotos que contaminam o meio ambiente (lençóis freáticos e/ou cursos d’água). 202

Parte II – A Alternativa da Permacultura

10. A Habitação Permacultural

• Improdutividade. As casas atuais são concebidas totalmente dentro de um paradigma de total dependência (ou seja, o oposto de autossufciência). São para morar, e pronto. Áreas ajardinadas são cada vez mais raras, e quando existentes, cada vez menores. Por isso, não são particularmente favoráveis à produção de alimentos. • Alto preço. As maioria das pessoas comprometem uma grande parte de sua vida para conquistarem o chamado sonho da casa própria. Na maioria das vezes, passam 20 anos ou mais pagando por suas casas, sendo que muitas, especialmente entre a população de renda mais baixa, passam a vida toda sem chegar a conquistar esse sonho. O desafo da permacultura em relação às habitações é resolver ou minimizar esses defeitos, sem comprometer as conquistas das construções modernas, ou seja, seu conforto, segurança e durabilidade.

Design da casa permacultural A habitação permacultural tem alta efciência energética. Ela é feita de materiais e técnicas naturais (bioconstrução) que além de terem baixo impacto ambiental conferem alto conforto térmico naturalmente, reduzindo ou eliminando a necessidade de aquecimento e refrigeração. Também utiliza design passivo para energia solar e inclui sistemas para captar, armazenar, utilizar e reciclar água da chuva. Além disso, na permacultura a casa não é vista apenas como um lugar para você se esconder à noite e dormir, e guardar suas coisas, mas sim um lugar para você viver e também produzir alimentos, ao redor e até mesmo dentro da casa. Por empregarmos sistemas de saneamento ecológico (assunto discutido em detalhes no capívtulo 11), a casa permacultural não é fonte de poluição ambiental com esgotos. Por fm, o emprego de materiais e técnicas naturais em sua construção favorece que o permacultor construa a própria casa (autoconstrução), o que cria uma conexão, intimidade e familiaridade muito maior com a casa, possibilitando ainda que ela seja construívda a um preço reduzido.* Tamanho A casa permacultural não deve ser muito grande. Deve ser grande apenas o sufciente. Casas maiores que o necessário ocupam espaço demais — roubandoo das demais criaturas da Terra. Também consomem mais recursos para sua * O “Manual do Arquiteto Descalço”, de Johan Van Tengen, contém uma grande quantidade de informações, ideias de design e técnicas de construção úteis em permacultura.

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construção e manutenção, mais água, mais energia do que o necessário, etc — e isso é para sempre! Impermeabiliza um pedaço maior do solo. Também, dá mais trabalho para manter limpa, consumindo um recurso valiosívssimo: o tempo de nossas vidas! Ainda por cima, uma casa muito grande leva à tendência de acumular coisas inúteis. Uma casa grande é um sonho de consumo comum nos dias de hoje, um sívmbolo de status, um vívcio caracterívstico de nossa sociedade doente, megalomanívaca. Em resposta a essa tendência, há hoje um movimento pelas casas pequeninas (“tiny house movement”). Alguns entusiastas desse movimento advogam casas realmente minúsculas, algo como 20 m 2. Mas você não precisa ser extremista — basta usar o bom-senso. Posição Vários fatores devem ser levados em consideração na escolha do local para se construir uma casa, especialmente em uma situação rural. Dentre eles, podemos destacar questões práticas como a facilidade de acesso e fuxo de água e energia pelo terreno, questões de bem estar, como privacidade e harmonia estética, e questões éticas em relação ao impacto que essa casa terá sobre o meio ambiente e a paisagem. O posicionamento da casa em uma propriedade rural deve sempre ser feito aproximadamente à meia altura no terreno — nunca no topo, nem na parte mais baixa do terreno. Isso possibilita uma área sufciente acima do nívvel da casa para captação de água da chuva para uso doméstico e da zona um, conforme discutimos no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”), e uma área sufciente abaixo do nívvel da casa para lidar com os efuentes da casa (águas cinzas), através de ferti-irrigação, evitando que esses efuentes saiam do terreno, podendo contaminar cursos d'água ou incomodar vizinhos, por exemplo (falaremos mais sobre as águas cinzas no próximo capívtulo, “Saneamento Ecológico”). Outro aspecto importante é o posicionamento da casa em relação ao sol. Área de captação de água de chuva

Tagoa art. Casa

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Horta

Pomar

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Posicione a casa de modo a amplifcar os benefívcios da luz solar (veja o item “design passivo para energia solar”, mais adiante). Um erro comum é construir a casa no meio de uma foresta, ou próximo a grandes árvores, onde incêndios forestais e quedas de árvores podem ter consequências catastrófcas. Construa casas a uma distância segura de forestas e árvores altas. Impacto paisagístico Deve-se sempre levar em consideração a vista e o efeito que a casa terá na paisagem. Construa uma casa bonita e que se integre de forma harmoniosa com a paisagem na qual ela está inserida. A falta dessa preocupação é causa frequente de verdadeiros desastres paisagívsticos. Seja responsável pelo seu papel em relação à paisagem! Impacto na topografa Ao projetar e construir uma casa, deve-se ter a preocupação de interferir o mívnimo possívvel na topografa do local. Para isso, em um local de topografa inclinada, ao invés de se fazer uma grande operação de terraplanagem criando um platô grande o sufciente para acomodar toda a casa e suas imediações, é mais recomendável fazer um recorte mais sutil, em “degraus”, distribuindo os cômodos da casa nesses degraus, ligando-os por pequenos lances de escadas. O mesmo vale para a área externa, onde os “degraus” se estendem em pequenos terraços, onde serão feitos os canteiros para seus jardins e hortas. Com esse tipo de técnica, consegue-se uma enorme redução no consumo de energia utilizada na terraplanagem; reduzem-se também os impactos negativos na topografa do local (menos agressão ao ambiente), e tem-se como resultado fnal uma casa graciosa e interessante, de aspecto orgânico e harmonioso, integrada de forma charmosa e elegante com a paisagem ao seu redor.

Escadas

Aterro

Muro de arrimo

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Forma Vivemos em uma era de construções retangulares, ou formadas pela combinação de diversos retângulos, de tamanhos diferentes. Cada cômodo é sempre um retângulo. Agora, olhe para um prédio, e verá um retângulo; veja de outro ângulo — outro retângulo. Olhe de cima... retângulo! Porém, muitos permacultores e bioconstrutores têm uma preferência por formatos arredondados. A tendência a construir formatos retangulares não é uma moda recente. Veja as construções medievais da Europa, as ruívnas do Império Romano e as construções da China Antiga (e.g. Cidade Proibida), e verá que mostram quase sempre padrões retangulares. Até mesmo as pirâmides do Egito, Sudão e dos Maias e Astecas têm, em sua base, um quadrado, que nada mais é do que um tipo particular de retângulo! Por outro lado, praticamente todas as sociedades tribais, primitivas e nômades sempre construívram suas habitações em formatos circulares ou arredondados. Veja as ocas tradicionais dos ívndios brasileiros, os tipis dos nativos norte-americanos, os yurts dos mongóis, os iglus dos esquimós... O mesmo se aplica aos povos tribais da África e Oceania e até mesmo no continente europeu, as habitações da maioria dos povos “bárbaros” eram redondas. Não é intrigante que os bioconstrutores, mesmo sem sequer pensar nisso, tenham a tendência de rejeitar os formatos quadrados, caracterívsticos das civilizações megalomanívacas e insustentáveis (das quais a atual é o exemplo mais extremo), em favor de formatos arredondados, tívpicos das construções de sociedades mais primitivas, simples e sustentáveis? Coincidência ou não, quem dirá? A milenar tradição do feng shui ( 風水 ) pode trazer uma teoria diferente para favorecer formatos arredondados. Segundo essa “ciência”, formatos angulares causariam a estagnação do qi (氣), levando a ambientes carregados e insalubres, enquanto formas arredondadas favoreceriam o fuxo do qi, tornando o ambiente leve… Mas você não tem que concordar ou se preocupar com nada disso! Agora, tratando de considerações mais práticas: paredes curvas, por seu caráter tridimensional, são sempre muito mais fortes estruturalmente do que paredes planas, “bidimensionais”. Por isso, possibilitam estruturas mais frmes e seguras e/ou a economia de material. Por outro lado, é inegavelmente mais fácil acomodar a mobívlia em cômodos retangulares, e também mais fácil colocar um telhado. Claro que é perfeitamente possívvel construir casas bonitas, seguras e duráveis, tanto retangulares como arredondadas, ou outros formatos — desde que respeitadas as leis da fívsica e utilizados materiais e técnicas adequados na construção. No fnal das contas, em relação ao formato o que conta é a 206

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preferência de cada um, o bom gosto no design e capricho na construção. Uma casa bem caprichada com forma, tamanho e localização ideais, rodeada de jardins, paisagens naturais e caminhos graciosos e em plena harmonia — tudo isso depende de fazer as escolhas certas, e saber fazer, resultando em uma casa onde você vai realmente querer viver, um lugar para chamar de lar, e ser feliz. Efciência energética e design passivo para energia solar Há todo um conjunto de estratégias de design que podem ser usadas para potencializar os efeitos positivos da irradiação solar e ao mesmo tempo minimizar eventuais efeitos negativos, levando naturalmente a um bom conforto térmico na casa, reduzindo ou eliminando a necessidade de gasto de energia para aquecimento ou refrigeração. O item mais básico do design passivo para energia solar é o dimensionamento e disposição adequada de janelas favorecendo a iluminação e ventilação natural, pois não há nada pior que uma casa sem janelas, com lâmpadas acesas o dia todo! Isso se aplica praticamente a todas as casas, em qualquer parte do mundo. Em climas frios, há diversas técnicas que podem ser usadas para captar e armazenar a energia do sol, aumentando a temperatura média no interior da casa em vários graus, sem qualquer gasto de energia. Por exemplo: • Estufa acoplada à casa, no lado do sol predominante do inverno (ou seja, o lado voltado para o norte no caso do hemisfério sul, e vice-versa). Uma estufa nada mais é do que um cômodo ou “casinha” fechada, feita inteiramente de vidro em uma armação metálica. Estufas funcionam assim: a radiação solar penetra nelas através do vidro e boa parte fca ali retida na forma de calor, elevando a temperatura interna. Por isso elas são tão usadas para cultivar vegetais em regiões frias! Ao se fazer uma estufa acoplada à casa, esse calor pode ser aproveitado para aquecer a casa, bastando para isso abrir a porta ou janelas que dão acesso à estufa. Janelas grandes ou mesmo paredes de vidro voltadas para o lado do sol predominante do inverno também ajudam a captar e reter dentro da casa a energia solar, pelo mesmo princívpio. • Coletor-irradiador de energia solar. Uma estrutura de alta massa térmica e cor escura, por exemplo uma parede de pedra pintada de preto, um piso escuro, etc., posicionada próximo às janelas mencionadas acima, recebendo o sol durante o dia, capta a radiação solar convertendo-a em calor, que é liberado lentamente para o ar ambiente, aumentando a temperatura local signifcativamente, mesmo várias horas noite a dentro. • Isolamento é uma necessidade óbvia em climas frios, para evitar a fuga de calor da casa. Portas e janelas devem ser perfeitamente herméticas, e 207

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vidraças devem ser de vidro duplo, para minimizar a transferência de calor. • Plantar árvores caducifólias (que perdem as folhas no inverno) ao redor da casa, nas direções do sol predominante, também é uma técnica importante. No verão, essas árvores fornecem sombra, mantendo a casa fresca; e no inverno, perderão as folhas, permitindo a entrada do sol, que aquecerá a casa.

Verão (sombra)

Inverno (sol = aquecimento)

Já em climas quentes, a preocupação é o inverso: evitar o acúmulo de calor. Para isso, são úteis as seguintes técnicas: • Construir com pé-direito alto garante ambientes internos mais frescos. • Usar telhado verde (discutido mais adiante). • Pequenas janelas basculantes, posicionadas bem alto na parede, próximo ao teto, são úteis para deixar o ar quente sair (pois o ar quente é menos denso e, portanto, sobe). • Plantar árvores de boa sombra ao redor de toda a casa, evitando a incidência de sol nas paredes e no chão, ajuda a refrescar bastante o ambiente interno. Varandas amplas também ajudam, pelo mesmo motivo. Há certas regras gerais que são universais para o conforto térmico. Por exemplo, em relação a quando abrir ou fechar as janelas e portas, vale sempre a seguinte regra: se o ar externo estiver mais agradável que o interno, abra as janelas; agora, se o ar interno estiver melhor que o externo, feche as janelas. Isso vale tanto para o calor como para o frio. Certos materiais e técnicas de construção também conferem naturalmente conforto térmico. É o caso de paredes grossas de barro, como nas técnicas do cob, hiperadobe e terra pilada, que discutiremos mais adiante. O barro, quando sêco, contem quantidade substancial de ar preso entre as partívculas de areia e argila, fazendo com que seja um mau condutor de calor (ou em outras palavras, um bom isolante térmico). Além disso, as paredes grossas e pesadas têm uma massa térmica considerável. Em conjunto, esses fatores fazem com que as casas 208

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construívdas com essas técnicas sejam frescas no verão e quentinhas no inverno, sendo ótimas para todos os climas, sejam tropicais, temperados, áridos, etc. Explorando a inércia térmica do solo Durante o dia o sol aquece o solo e, à noite, o solo dissipa essa energia térmica transferindo-a para a atmosfera, enquanto se esfria. Essa futuação cívclica na temperatura do solo é máxima na superfívcie e vai diminuindo exponencialmente em sua amplitude de acordo com a profundidade, devido à grande inércia térmica do solo. A partir de uma certa profundidade, normalmente cerca de 2 metros abaixo da superfívcie, a temperatura torna-se praticamente estável, variando senão poucos graus em relação à temperatura média anual do local em questão. Por ser um ambiente protegido, a temperatura do ar dentro da casa normalmente varia menos que a temperatura externa, mas ainda assim futua substancialmente ao longo do dia. Agora, a constância da temperatura dos nívveis mais profundos (porém acessívveis) do solo cria uma ótima oportunidade, tanto para colher calor (aquecimento em momentos de frio intenso) como para dissipar calor (refrigeração em momentos de calor intenso).

Temperatura (°C)

30 25 Externa Interna A 2m de profundidade

20 15 10 5 0

2

4

6

8 10 12 14 16 18 20 22 24

Hora Gráfco: exemplo ilustrativo de variações na temperatura externa, interna (dentro da casa), e a 2 metros de profundidade no solo, ao longo do dia.

Para isso, diversos mecanismos e estratégias já foram desenvolvidos e estão sendo usados crescentemente ao redor do mundo, especialmente em locais de clima frio, incluindo bombas de calor que utilizam água e outros fuidos como condutores de energia térmica, tubos subterrâneos com ventilação forçada, entre outros. Porém, modos simples de uso da inércia térmica do solo já vêm sendo utilizados pela humanidade há milhares de anos. Um ótimo exemplo são as

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habitações de povos do deserto, escavadas em rochas — todos sabemos que nos desertos as variações de temperatura ao longo do dia são extremas, fazendo muito frio à noite e muito calor durante o dia. Ao fazerem suas casas escavadas em morros rochosos, povos antigos de desertos em várias partes do mundo na verdade valiam-se da inércia térmica do solo para terem em suas casas uma temperatura estável e agradável o tempo todo. Outra forma clássica de se benefciar da inércia térmica do solo é na forma dos tradicionais porões. Um porão é um cômodo situado abaixo de uma casa, sendo parcial ou totalmente subterrâneo. Por serem construívdos 2 a 3 metros abaixo do nívvel do solo, porões mantêm suas temperaturas praticamente constantes e sempre frescas. Tradicionalmente, porões têm sido usados para guardar alimentos como raívzes, tubérculos, abóboras, etc., permitindo seu armazenamento por meses a fo, mesmo antes de existir refrigeração elétrica. Também fornecem condições ideais para a produção e armazenamento de vinhos, por exemplo. Para maior efciência, deve-se construir o porão de forma adequada: suas paredes e piso devem ser feitos preferencialmente de pedra para permitir boa condução de calor entre o ar interno e o solo profundo ao redor. Devem contar com janelas ou escotilhas para permitir alguma iluminação natural e ventilação quando desejado, mas as mesmas devem permitir bom isolamento térmico, usando vidro duplo e permitindo boa vedação. Outro ponto importante é adotar medidas adequadas de drenagem e impermeabilização do piso e paredes quando da construção, para evitar problemas de infltração de umidade. Podemos usar esse mesmo princívpio para benefciar também outros cômodos da casa; para isso, você deve construív-los parcialmente subterrâneos, talvez até construir todo o andar térreo parcialmente enterrado. Isso é particularmente fácil quando se constrói em uma topografa bastante inclinada, bastando construir a casa em um recorte no terreno que avança morro a dentro, de forma que o muro de arrimo seja a própria parede da casa. Os cômodos que forem construívdos dentro desse recorte, portanto abaixo do nívvel original do terreno, se benefciarão da inércia térmica do solo ao redor, levando a uma grande estabilização de sua temperatura interna. Esses serão os cômodos mais frescos no verão e os mais quentinhos no inverno, naturalmente e sem qualquer gasto de energia. Seja seu quarto, sala ou escritório, nos dias de temperatura extrema você não vai querer sair de lá! Aquecimento solar de água Há uma grande variedade de aquecedores solares de água para residências disponívveis no mercado, mas há também uma variedade maior ainda de sistemas simples e altamente efcientes que podem ser feitos por você mesmo, a um baixívssimo custo. Por exemplo, um tubo de polietileno de alta densidade (mangueira preta) instalado formando uma espiral sobre o telhado da casa, no 210

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lado que pega o sol da tarde. A água vem da caixa d’água, passa pela espiral onde é aquecida pelo sol, indo então até o chuveiro e torneiras onde se queira água quente. Para maior efciência e durabilidade, instala-se uma caixa baixa, feita de chapa metálica e pintada de preto, cobrindo a espiral e ajustada perfeitamente às ondulações do telhado. Essa caixa ajudará a aquecer a água e a manterá aquecida por mais tempo noite a dentro. Além disso, evitará a deterioração da mangueira pela radiação solar.

Sistema simples de aquecimento solar de água

Bioconstrução Hoje, na construção civil, vivemos na era do concreto. O cimento está em todo lugar e, na cabeça das pessoas, engenheiros e construtores, é impossívvel construir qualquer coisa sem sua utilização. Porém, o cimento que usamos hoje só se popularizou a partir do inívcio do século XX, ou seja, até pouco mais de um século atrás a humanidade se virava muito bem sem ele. Como sabemos, a construção civil é uma indústria de imenso impacto ambiental, com toda a mineração, fabricação e transportes envolvidos, além da geração de enorme quantidade de resívduos e entulhos. Por isso, em permacultura, damos preferência a técnicas de construção natural, também chamadas de bioconstrução, de baixívssimo impacto ambiental e, portanto, muito mais sustentáveis. Em bioconstrução, utilizamos materiais naturais (terra, pedra, bambu, palha, etc.), muitas vezes presentes no próprio terreno ou nas imediações. Isso

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signifca que podem ser obtidos a custo reduzido ou virtualmente zero. Também são materiais ecológicos pois não são oriundos de mineração, dispensam a queima ou calcinação em altos-fornos, ou mesmo combustívvel para transportes a longas distâncias, etc. Muitas vezes também são utilizados resívduos da nossa civilização — materiais como pneus velhos, garrafas usadas, restos da construção civil convencional, etc., retirando esses materiais do ambiente, dando-lhes um destino útil. A bioconstrução utiliza técnicas de construção naturais e fexívveis, que podem ser realizadas praticamente por qualquer pessoa, dispensando maquinários ou mão de obra especializada. Isso permite ao permacultor construir sua própria casa, dando liberdade no design, um enorme senso de realização e conexão com a casa, além de economia de dinheiro. A maioria das técnicas utilizadas em bioconstrução são técnicas tradicionais, muitas vezes étnicas e até primitivas, usadas pela humanidade há séculos ou milênios. A bioconstrução representa assim um movimento de resgate desses conhecimentos de diferentes povos de toda parte do mundo. Também são comuns a fusão ou mesclagem de diferentes técnicas, adaptações e mesmo o desenvolvimento de técnicas inéditas em bioconstrução. Outra grande vantagem da bioconstrução é que ela praticamente não gera entulhos, e seus materiais são recicláveis. Tomemos como exemplo uma velha casa de pau-a-pique com telhado de sapé que se decide demolir. O sapé do telhado pode ser usado como cobertura morta de solo, ou como material de cobertura na composteira; as madeiras ainda boas podem ser reaproveitadas em novas construções; as defeituosas podem ser usadas como lenha, e as meio podres como cobertura de solo, ou para fazer composteiras, barreiras contra erosão, etc. Já o barro das paredes e pedras da base podem ser aproveitados para fazer novas bioconstruções. Ou seja, nenhum resívduo é produzido! E, mesmo que você não faça nada, simplesmente deixe a casa desmanchar naturalmente com o tempo, seus materiais se reintegrarão lentamente com o ambiente, sem causar qualquer impacto negativo. • • •



Resumidamente, os objetivos e vantagens da bioconstrução são: Construir com mívnimo impacto ambiental, poupando recursos naturais e não produzindo resívduos. Alcançar um resultado estético agradável, de simplicidade e rusticidade, em harmonia com o ambiente natural em volta. Favorecer a autoconstrução, ou a possibilidade de construir você mesmo, com mívnima necessidade de insumos externos ou mão de obra especializada. A possibilidade de construir a um custo muito reduzido, ou em situações onde materiais de construção convencionais modernos simplesmente não estejam disponívveis. 212

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• Coerência com o estilo de vida da permacultura, tanto em princívpios como em estética, reforçando a identidade do movimento da permacultura. • Resgate de conhecimentos tradicionais e ancestrais, levando a uma conexão com essas culturas, etc. As técnicas de bioconstrução e os materiais utilizados são inúmeros, e sua escolha depende de fatores como clima, a disponibilidade de materiais no local, gosto e habilidades do permacultor, cultura e história local, etc. É importante ressaltar que o uso de materiais abundantes no local deve ser priorizado, pois representa economia e redução do impacto ambiental decorrente da importação de outros materiais, resultando ainda em uma maior harmonia e identidade com o local. A valorização e resgate de técnicas de construção tradicionais da região também ajuda a reforçar essa identidade. Embora haja uma variedade imensa de materiais usados em bioconstrução, incluindo pedra, fardos de palha, couro animal (tipi), e até gelo (iglu), merecem destaque as construções de terra crua. São diversas as técnicas que utilizam a terra crua como seu principal material de construção. Segue uma discussão resumida sobre as principais dessas técnicas.

Considerações preliminares sobre construção com terra O barro cru não é tão rívgido como o concreto ou tijolos cerâmicos — o que não é necessariamente uma desvantagem. Para lidar com isso, normalmente deve-se fazer paredes mais grossas do que se faria normalmente com técnicas de alvenaria convencional. Assim, o resultado que se tem em bioconstrução são paredes mais espessas e porosas. Essas paredes apresentam maior massa térmica e maior isolamento térmico, resultando em melhor conforto térmico — as temperaturas internas são mais estáveis, variando menos em função das oscilações externas, comparativamente às casas de alvenaria convencional. Também apresentam maior respirabilidade. Isso mesmo, paredes que “respiram”! Por isso, possibilitam mais trocas gasosas, não são propensas à condensação e não retêm umidade como o concreto. Por tudo isso, essas paredes não têm a tendência de criar mofo ou ácaros, produzindo ambientes internos muito mais confortáveis e saudáveis. Proteção contra umidade Construções de terra crua necessitam de cuidados redobrados quanto a proteção contra umidade. Isso porque o barro, se molhar demais, perderá sua rigidez, podendo comprometer a segurança da construção. Há uma série de medidas que devem ser tomadas para prevenir problemas 213

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com excesso de umidade. Uma delas refere-se à escolha do local para a construção — deve-se escolher locais altos, ou seja, evitar baixadas e locais que acumulam água da chuva ou canalizam enxurradas. Um detalhe estrutural importantívssimo para evitar contato com a umidade do solo é fazer sempre uma boa base de pedra sobre a qual serão construívdas as paredes — nunca construir direto sobre o solo. Deve-se também construir um telhado com um bom beiral, de no mívnimo 80 cm, evitando a incidência excessiva de chuva nas paredes. Convém ainda instalar calhas em todos os telhados (o que será necessário também para a captação de água de chuva) para evitar o respingamento excessivo de água da chuva nas paredes, e fazer um revestimento impermeabilizante, que pode ser de pedra, ladrilhos ou mesmo um bom reboco na parte inferior das paredes para evitar seu desgaste com a chuva. Para se conseguir ainda mais proteção contra umidade, é recomendável na maioria das situações fazer um pequeno aterro no local onde será construívda a casa, elevando em alguns centívmetros sua altura. Fundação A fundação deve ser feita de algum material muito denso e resistente para suportar e distribuir o peso da casa, evitando rachaduras. Pedras, quando disponívveis, são o material mais indicado para a fundação, pois, além de preencherem os requisitos acima, são boas isolantes de umidade, ajudando a proteger as paredes de infltrações por capilaridade. Outra boa opção às vezes disponívvel é o reaproveitamento de grandes blocos de concreto provenientes de demolição (colunas e vigas, por exemplo), que podem ser utilizados como se fossem pedras. Ou então, pode-se fazer uma fundação de concreto convencional, mas nesse caso é importante utilizar uma barreira de umidade, caso contrário o concreto transmitirá umidade às paredes. A importância do acabamento Como em qualquer construção, é sempre importante dar um bom acabamento a construções de terra e bioconstruções em geral. Muitas vezes, por gostarem de bioconstrução e quererem mostrar, “ostentar” que suas casas foram feitas de barro, as pessoas deixam de fazer um acabamento adequado. Isso não é uma boa ideia, pois além de comprometer a estética, a falta de acabamento também compromete a durabilidade da construção, além de poder criar problemas, como fornecer frestas e espaços para a proliferação de criaturas indesejáveis, como escorpiões e barbeiros. Assim como a construção em si, também o acabamento pode e deve ser feito com materiais naturais e de baixo impacto ambiental.

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Técnicas de Bioconstrução Cob* O cob é provavelmente a mais rústica, primitiva, simples e natural técnica de bioconstrução — daív sua beleza! É também uma técnica incrivelmente fexívvel, e ao mesmo tempo robusta e segura, desde que bem feita. A técnica do cob consiste essencialmente em se esculpir a sua casa, ou pelo menos suas paredes, com barro, no melhor estilo joão-de-barro! Uma das vantagens do cob é sua extrema plasticidade, ou seja, a liberdade que ele oferece de construir em estilos e formatos variados. Você pode construir desde uma casa “normal”, quadradinha, retinha e lisinha que ninguém suspeitaria ser feita de barro (exceto talvez pela espessura das paredes), até habitações com os formatos mais alternativos e não convencionais (desde que respeitados os limites da fívsica, claro). Apesar de sua desconcertante simplicidade e primitividade, o cob é uma técnica extremamente segura e durável. Casas de cob podem durar muitos séculos, sem problema algum. Construindo com cob O barro

Uma das coisas legais sobre as construções de terra é poder fazer a casa usando a terra do próprio local onde ela será construívda. Devem ser usados solos areno-argilosos livres de matéria orgânica (ou seja, excluindo-se a camada de solo superfcial). A proporção ideal de areia:argila é algo em torno de 2:1 (duas partes de areia para uma de argila). Porém, essa proporção é bastante fexívvel, e solos com teor de argila entre 15 e 50% podem ser usados sem problemas. Na prática, isso signifca que a grande maioria dos solos areno-argilosos são adequados para construir com cob (assim como as outras técnicas descritas a seguir). Deve-se ter o cuidado de obter o barro de forma que não cause impacto ambiental ou paisagívstico, por exemplo por implicar em desmatamento, ou propiciar erosão, ou desfgurar a topografa ou a paisagem, etc. A fonte do barro também deve ser o mais próxima possívvel do local da construção, diminuindo assim os custos e impactos relativos ao transporte, já que a quantidade de material para qualquer construção é substancial. Uma opção inteligente é, ao escavar reservatórios de água, como lagoas, açudes e cisternas, utilizar a terra * O livro “The Cob Builders Handbook”, de Becky Bee, é leitura obrigatória para quem deseja se aprofundar nesta técnica de bioconstrução.

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removida para a construção. Outra fonte extremamente inteligente de barro para construção são as bacias de infltração de águas pluviais (aquelas que coletam o escorrimento superfcial de estradas de terra). Com a inevitável erosão da estrada, essas bacias coletam, além da água, terra. Assim, para que continuem funcionando, essas bacias têm que ser periodicamente “limpas”, o que signifca um suprimento de barro que pode perfeitamente ser utilizado para bioconstrução. Preparo do barro

Deve-se preparar um local plano e limpo para misturar e amassar o barro, o mais próximo possívvel do local da construção. Você traz o barro para esse local, quebra os torrões (se houver) usando uma enxada, adiciona a palha e outros aditivos (se for o caso) e água, e vai “virando” esse barro com a enxada. Em seguida, deve-se “amassar” bem o barro com os pés — para muitos, esta é a parte mais divertida da construção com barro! Pode-se amassar em grupos, e às vezes se mistura esta tarefa com música e danças improvisadas, tornando-se uma verdadeira festa! Misture e amasse o barro, ajustando o teor de água até fcar com uma consistência relativamente frme, porém plástica. Se estiver muito duro e esfarelando, é indicativo de falta de água; mas, se estiver muito mole, escorrendo, é sinal de excesso de água. Acertar no teor de umidade é muito importante, pois uma massa muito seca não dará boa aderência, e a parede fcará muito porosa e fraca. Por outro lado, excesso de umidade (consistência de lama) fará com que a parede, ao secar, rache excessivamente. Aditivos

Construções perfeitamente boas podem ser feitas apenas com a terra, conforme descrito acima. Porém, embora não seja estritamente necessário, a maioria dos bioconstrutores do presente e do passado, em todas as épocas e regiões do mundo, têm incluívdo aditivos à massa de barro para melhorar suas caracterívsticas e a qualidade da construção. Os principais aditivos são a palha e estrume bovino fresco. • Palha. A adição de palha pode aumentar a resistência da construção e reduzir sua tendência a rachaduras. Para isso, pode-se ceivar, roçar ou mesmo arrancar capim, deixá-lo secar ao sol por alguns dias, e depois picálo em pedaços de 3 a 5 cm, usando para isso um facão afado e um bloco de madeira (ou um triturado de capim, claro, se disponívvel). Adicione essa palha à massa de barro; você perceberá que a adição de palha deixa a massa mais seca, fazendo necessária também a adição de mais água para atingir a consistência ideal para construção. O ideal é usar capins de folhas fnas, e podem ser usados restos de culturas como arroz e trigo. Evite

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capins de folhas largas ou talo muito grosso (capim-elefante, por exemplo). A quantidade a ser usada varia, mas como ponto de partida pode-se usar uma proporção de aproximadamente 1:10, em volume (uma parte de palha para dez de barro). • Estrume bovino fresco pode ser adicionado, a uma proporção de 2 a 5% da massa de barro, para aumentar sua resistência mecânica e à erosão. Estrume é um aditivo extremamente tradicional em construções de terra. Acredita-se que o muco e fbras vegetais contidas nas fezes sejam os responsáveis por melhorar as caracterívsticas do barro. Embora o estrume de vaca seja o mais comum, por ser normalmente o mais abundante, você pode também usar estrume de outros grandes herbívvoros, o que estiver à sua disposição. Construindo a parede

Tome porções da massa de barro com ambas as mãos e aplique com um golpe ágil sobre a base de pedra, formando uma camada de cerca de 10 cm de altura, e da largura que se pretende dar à parede, por todo o contorno da casa e também as paredes internas. Estruturas acessórias como sofás, prateleiras, lareiras, etc. também podem ser construívdas de cob concomitantemente, em uma estrutura inteiriça com as paredes! Mas isso não é necessário, você também pode deixar para construir essas coisas depois que a casa estiver pronta. Ao se aplicar cada “mãozada” de barro, deve-se massagear ligeiramente, dando tapas, pancadas e pressionando com os dedos para moldar e obter uma melhor fusão entre os bolos de barro. Terminada a primeira camada, você pode iniciar uma nova camada sobre ela. Você pode fazer até umas 2 ou 3 camadas em um dia. Então, é necessário esperar que o cob seque e endureça o sufciente antes de aplicar mais camadas — geralmente 2 a 3 dias, dependendo da temperatura e umidade, ocorrência de chuvas, etc. É bom proteger o topo das paredes de com com uma lona plástica ou fardos de palha, etc. ao fnal do dia de trabalho, em caso de chuvas. No inívcio de um novo dia de trabalho, enquanto se prepara a masseira, deve-se molhar o topo da parede de cob algumas vezes, até que fque bem úmida para possibilitar melhor adesão com a nova camada de barro. Os batentes de portas e janelas devem ser instalados preferencialmente conforme a construção das paredes prossegue. Instalações para fações elétricas e tubulações de água também devem ser planejadas com antecedência e feitas concomitantemente à construção das paredes, para maior praticidade. A grossura da parede varia bastante, em função principalmente do peso a ser suportado, ou seja, a altura da construção, se terá um ou mais andares, peso do telhado, etc. Normalmente usa-se uma largura de no mívnimo 25 cm para construções bem simples e baixas; 40 cm para uma casa térrea, e mais larga para construções de mais de um andar. Geralmente constroem-se paredes mais 217

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grossas na base, afnando progressivamente conforme a parede vai subindo, diminuindo cerca de 2 a 3 cm de grossura a cada metro de altura. Vigas para o telhado repousam diretamente sobre o cob. Caso se julgue necessário, dependendo do tamanho e peso das estruturas do telhado, pode-se fazer as paredes mais grossas nos pontos de sustentação das vigas, formando uma estrutura de reforço (coluna de cob).

Na técnica do cob, as paredes de barro são literalmente esculpidas à mão. Acabamento

As paredes esculpidas à mão invariavelmente fcam com uma superfívcie bastante irregular e rugosa. Algumas pessoas podem gostar desse aspecto rústico, mas você pode deixá-las bem mais lisas e regulares desbastando-as com uma lâmina metálica, que pode ser um facão, por exemplo. Aív, ela estará pronta para receber o reboco e pintura. Existe um princívpio que diz que materiais semelhantes têm afnidade entre si. Por isso, não se deve nunca utilizar massa de cimento para rebocar construções de terra. Além de não aderir direito, as diferenças de rigidez e respirabilidade fazem com que rebocos de cimento rachem e descasquem das bioconstruções em pouco tempo. Por isso, deve-se sempre usar materiais naturais também para o acabamento. O reboco natural pode ser feito com uma massa de barro muito semelhante à do cob em si, mas com ingredientes mais fnos, peneirados. Inúmeras variações são possívveis, mas uma receita básica para reboco seria um barro com proporção areia fna:argila de cerca de 2:1, e estrume fresco de vaca peneirado numa proporção de 10 a 20% do total da massa. Além da função 218

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estética, o reboco reduz a poeira no interior da casa e protege as paredes externas da erosão. Variações na proporção de areia e argila, na granulometria da areia e aditivos como fbras vegetais e outras, assim como a técnica de aplicação com pincel, mãos, espátulas etc., podem ser usadas para dar texturas diferentes ao reboco. Para pintura, pode-se utilizar a cal para pintura, pois adere muito bem às paredes de barro e oferece ótima proteção contra as intempéries. Aplique várias demãos, formando uma camada grossa de cal. Outra ótima opção são as tintas de terra. Fazer tinta de terra é muito fácil: basta peneirar bem a terra e adicionar uma mistura de cola branca e água até dar uma consistência pastosa fna, e aplicar às paredes com brochas ou rolos, como qualquer outra tinta. Você pode usar praticamente qualquer tipo de terra, não importando muito o teor de areia e argila, desde que não seja areia pura. Existem terras de inúmeras cores diferentes: amarelas, vermelhas, pretas, brancas, cinzas... além é claro de todos os tons de marrom, o que te dá várias possibilidades na confecção da tinta. Você ainda pode adicionar pigmentos naturais, como urucum, ou corantes artifciais para atingir outras cores e tonalidades. A proporção de cola e água é bastante fexívvel, indo de 1:2 até 1:10, de acordo com o tipo de solo e a resistência que se quer dar à tinta. O acabamento com reboco e tinta de terra descrito acima serve não apenas para cob, podendo ser usado igualmente para todas as outras técnicas de construção com terra.

Adobe O adobe é uma das mais antigas e largamente distribuívdas técnicas de bioconstrução do mundo. Há inúmeras edifcações de adobe com séculos ou milênios de idade, ainda em excelente estado de conservação e ainda em uso! A própria palavra adobe tem cerca de 4.000 anos, vindo do egívpcio médio, passando para o árabe, sendo assimilado pelo espanhol quando da invasão moura da penívnsula ibérica, e daív espalhando-se para as demais lívnguas europeias. A técnica do adobe consiste essencialmente na confecção de blocos ou tijolos de barro crus, secos à sombra ou ao sol, que são usados na construção, assentados com uma massa de barro fresca. Fazendo blocos de adobe Os blocos de adobe podem ser feitos exatamente com a mesma “receita” de barro usada na técnica do cob, inclusive no que se refere aos aditivos. O barro é enformado em formas de madeira, formando os blocos que são então

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desenformados e deixados para secar ao sol. * Os blocos devem ser virados diariamente e mantidos protegidos da chuva até a secagem completa, quando estarão prontos para uso. O tamanho dos blocos pode variar bastante, mas uma medida comum é 10 × 20 × 40 cm.

Fazendo blocos de adobe

Assentando os blocos A massa de barro fresca para assentar os blocos de adobe tem a mesma composição do próprio bloco, exceto pelo fato de normalmente não se adicionar a palha. Já a técnica de construção das paredes é idêntica à da construção de alvenaria convencional de blocos de concreto ou tijolos cerâmicos e argamassa de cimento.

Pau-oa-opique O pau-a-pique foi, por muitos séculos e até recentemente, a técnica de construção mais comum em todo o Brasil rural. Porém, na maioria das vezes essas habitações eram construívdas de forma precária, o que lamentavelmente fez com que essa técnica fosse comumente associada à imagem de casebres e pobreza. Além disso, o pau-a-pique também é frequentemente associado à doença de Chagas. Isso porque casas mal construívdas, sem acabamento e manutenção adequada criam rachaduras que acabam servindo de abrigo e criadouro para os barbeiros, insetos transmissores da doença, além de outras criaturas indesejáveis. Porém, é preciso deixar claro que esses problemas não são decorrentes da técnica do pau-a-pique em si, mas de construções feitas de forma inadequada em geral. A técnica do pau-a-pique consiste basicamente em se fazer uma armação * Muitos bioconstrutores preferem pré-secar os blocos à sombra por alguns dias, antes de levá-los ao sol. Isso pode ser importante para evitar deformações ou rachaduras excessivas, dependendo das características do barro, tamanho dos blocos, clima local, etc.

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de madeira, paus ou bambus semelhante a uma treliça, que serve de estrutura interna sobre a qual se aplica o barro, formando as paredes. Construindo com pau-oa-opique Após o preparo do terreno no local da construção (aterramento, terraplanagem, compactação), instalam-se os esteios que darão sustentação à casa. Esses devem ser troncos de madeira resistente ao apodrecimento. No caso de eucalipto, esse deve ser tratado. Pode-se também evitar o apodrecimento pintando a base da tora que fcará enterrada com piche, ou protegendo-a com uma “bota” impermeável feita de saco plástico resistente. Em seguida, constróise uma boa base de pedra para as paredes. Nos esteios, prendem-se com pregos, arame ou cipós os paus horizontais da armação. Os paus verticais são presos aos horizontais, também com arame ou cipó, e repousam sobre a base de pedra. Agora, é hora de barrear! A massa de barro é idêntica à das outras técnicas descritas acima, e deve ser aplicada por duas pessoas simultaneamente, uma do lado de dentro e outra do lado de fora da parede. As mãozadas de barro são aplicadas em cada posição de forma sincronizada, como um “bofete” (daív essa técnica ser chamada também de “taipa-de-bofete”), de forma que o barro penetre na armação e a preencha sem deixar espaços, aderindo perfeitamente aos paus. E assim vai-se construindo a parede. O “certo e errado” do pau-oa-opique Certo

Errado

• Base de pedra ou concreto

• Paus

• Paus ou bambus bem maduros e

• Paus e bambus usados ainda

secos

verdes, ao secarem aderência com o barro

• Teor adequado de areia, argila e

• Excesso de argila, excesso de

umidade; aditivos (palha e esterco), se necessário ou desejado

água (barro muito mole), resultando em rachaduras ao secar

• Espessura

adequada das paredes, protegendo totalmente os paus

• Paredes

• Acabamento adequado (reboco,

• Falta

pintura); manutenção adequada

enfiados na terra, apodrecem precocemente; infiltração de umidade na parede

muito

finas,

perdem

paus

expostos de acabamento e manutenção, frestas abrigam pragas; deterioração precoce

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Vantagens e desvantagens do pau-oa-opique O pau-a-pique é uma técnica de construção mais rápida que as demais construções de barro. Isso se deve ao fato de as paredes serem mais fnas, e portanto necessitarem menos barro. Pelo mesmo motivo, são também mais leves. Por isso, tendem a ser menos resistentes que paredes mais grossas, como as de cob, adobe e taipa de pilão. Também oferecem menos isolamento térmico e acústico. Porém, por serem mais leves, são mais indicadas para pisos superiores de sobrados, por exemplo. Também, por serem mais delgadas, são ideais para paredes e divisórias internas, roubando menos espaço interno dos cômodos. Esteio Treliça

Barro

Base

Construindo com pau-a-pique

Taipa de pilão Nesta técnica, utilizam-se duas pranchas de madeira bem resistentes, que são presas por suportes externos ou longos parafusos, formando uma fôrma móvel, desmontável. Coloca-se a terra dentro dessa fôrma, em camadas de 10 a 20 cm, e soca-se com um soquete de madeira, compactando bem; a fôrma é então desmontada e movida mais adiante, repetindo-se o processo, prosseguindo-se assim com a construção da parede. As paredes devem ser grossas, 40 cm ou mais, dependendo da altura da casa. A mistura de terra pode ser essencialmente a mesma das outras técnicas de construção com terra, com um teor de argila entre 15 e 50%, e areia entre 50 e 85%. Porém, para uso na taipa de pilão, a mistura de terra tem que estar um pouco mais seca que nas técnicas descritas anteriormente. Além disso, aditivos 222

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como palha e estrume são menos importantes na taipa de pilão, sendo geralmente dispensados.

Terra ensacada Nesta técnica, muito popular entre bioconstrutores atualmente, sacos são enchidos com terra, empilhados e compactados com um soquete de madeira, formando assim as paredes. A preparação da terra é idêntica à da taipa de pilão. Tratam-se, na verdade, de técnicas muito semelhantes, exceto que na terra ensacada, ao invés de se usar uma fôrma de madeira, a terra é contida pelos sacos. Os sacos utilizados podem ser de fbras naturais, como a juta e algodão; porém, os mais comumente utilizados são de materiais sintéticos como o polipropileno (sacos de ráfa). Podem ser reaproveitados sacos usados de produtos como cebolas, laranjas, batatas, farinha, calcário agrívcola, etc. Porém, na prática esses sacos raramente estão disponívveis em quantidade sufciente, e por isso o mais comum é usar sacos novos. A opção mais popular são bobinas de malha tubular de ráfa, com largura entre 30 e 40 cm e comprimento de 500 ou 1000 metros. Esse material obviamente tem que ser comprado, e pode representar um custo substancial, o que representa uma desvantagem dessa técnica. Os sacos podem ser divididos grosseiramente em dois tipos: os de malha fechada, como os de farinha de trigo para uso industrial, calcário agrívcola, etc., e os de malha aberta, como os de cebola, batata e laranja. Por algum motivo, a construção com sacos de malha fechada foi batizada de superadobe, e a com malha aberta foi chamada de hiperadobe. Os sacos de malha aberta são mais vantajosos para construção, pois permitem boa aderência entre as camadas da parede, e também desta com o reboco, além de geralmente serem mais baratos e representarem menor quantidade de plástico. Utiliza-se um balde sem fundo como funil para encher os sacos de terra. Os sacos (ou a malha tubular) vão sendo enchidos de terra e deitados sobre o alicerce (ou as camadas já construívdas da parede), formando uma nova fada, que em seguida é compactada com o soquete. Antes que o barro seque, deve-se compactar também lateralmente, usando uma marreta de borracha ou madeira. O acabamento se faz de maneira idêntica à descrita para a técnica do cob. Porém, no caso de se usarem sacos de malha fechada (superadobe), é necessário queimar ou pelo menos chamuscar o plástico com um lança-chamas (tipo “vassoura de fogo”) após terminada a construção da parede, para permitir a aderência do reboco à parede de terra.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura

10. A Habitação Permacultural

Telhado O telhado é uma parte crívtica de qualquer construção, já que, se não for bem feito, pode levar a goteiras, infltrações e até risco de desabamento. Por isso, mesmo em bioconstruções, muitas pessoas acabam optando por construir telhados convencionais, como os de telhas de barro ou fbrocimento, pois além de serem consagrados pelo uso, são familiares a todos, sendo portanto geralmente muito fácil encontrar os materiais necessários e mão de obra devidamente capacitada para sua construção. Porém, as técnicas de bioconstrução oferecem opções de telhados e coberturas naturais, efetivas e seguras. Dentre elas, podemos destacar os telhados de palha, telhados verdes e domos. Telhados de palha Palha tem sido usada como material para cobertura de casas há milhares de anos, por povos desde os mais primitivos até os civilizados, em todos os continentes. Diversas espécies vegetais fornecem folhas adequadas à confecção de telhados, incluindo algumas gramívneas como o sapé, santa fé e o trigo; palmeiras (piaçava, carnaúba, coqueiro, etc.), plantas aquáticas como juncos, taboas, etc. Telhados de palha são bastante charmosos e podem ser bastante efetivos, desde que bem feitos. Com manutenção adequada, que deve ser feita a cada 3 a 5 anos em média, podem durar décadas. Além disso, por serem leves e fexívveis, permitem a utilização de materiais alternativos de baixo impacto ambiental para a estrutura do telhado, como o bambu, por exemplo, desde que devidamente tratado para maior durabilidade. Um detalhe técnico importantívssimo em telhados de palha diz respeito à caívda, que deve ser bem ívngreme, com pelo menos 45° (ideal entre 50 e 60°), para permitir que a água da chuva efetivamente escorra. Caso contrário, ou seja, se você não der ao telhado uma caívda adequada, a água penetrará na palha, fazendo com que você tenha problemas com goteiras. Além disso, a umidade acaba fcando retida na palha, fazendo com que ela apodreça rapidamente. Fazer um simples telhado de palha não é difívcil; porém, fazer um bom telhado de palha pode ser bastante complicado, dependendo de mão de obra especializada e experiente, que nem sempre é fácil de encontrar. Bioconstrutores amadores e iniciantes, quando se aventuram a fazer telhados de palha, normalmente têm problemas com goteiras. Portanto, se quiser experimentar, é aconselhável usar essa técnica em construções menos crívticas, como galpões, galinheiros, etc., antes de usá-la para cobrir a sua casa. Outra limitação dos telhados de palha é que na maioria dos locais, não há disponibilidade de palha adequada à construção de telhados em quantidade 224

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10. A Habitação Permacultural

sufciente, na prática impedindo que se use essa técnica. Deve-se ter em mente, ainda, que a palha é infamável, devendo-se portanto ter cuidado redobrado contra incêndios. Telhado verde Telhados verdes chamam atenção por seu aspecto inusitado, pitoresco e extraordinariamente natural. Além disso, dão excelente conforto acústico e térmico à casa. E não pára por aív — conforme mencionado no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”), telhados verdes ajudam a reter água da chuva e melhorar a qualidade do ar nas cidades, além de possibilitarem a produção de lindas fores, ervas e até comida. Por isso, não é surpreendente que despertem o interesse de tantos bioconstrutores. Telhados verdes podem ser construívdos de diversas maneiras, com técnicas diferentes. A técnica mais convencional consiste de uma laje de concreto com declividade de pelo menos 2%, fortemente impermeabilizada por manta asfáltica ou manta plástica grossa, sobre a qual se adiciona uma camada de argila expandida para propiciar drenagem, uma manta permeável e, por cima desta, uma camada de solo onde vão as plantas. Porém, telhados verdes também podem ser feitos de forma mais simples e barata, sem a necessidade de se ter uma laje. Em cima de um madeiramento convencional de telhado, ao invés das telhas você instala um “telhado” de chapas de compensado de obra tipo “madeirite” (existem hoje no mercado placas semelhantes feitas a partir de caixas de leite longa vida recicladas, que podem ser uma excelente alternativa). Sobre as chapas, você prega sarrafos de 5 cm de altura, em posição horizontal, em linhas espaçadas a cada 60 a 75 cm, por todo o telhado — esses sarrafos criarão barreiras que ajudarão a manter a terra no lugar. Deve-se instalar também uma tábua de madeira na posição vertical, que suba 10 cm acima do nívvel do compensado ao redor de todo o telhado, para conter a terra. Por sobre isso tudo, você instala uma camada de carpete de forração (de preferência carpetes velhos, que podem ser obtidos de graça em reformas de prédios), uma lona plástica impermeável e resistente, e mais uma camada de carpete — assim, a lona estará protegida do contato direto com a madeira ou a terra, evitando perfurações ou roturas. Por fm, cubra com uma camada de 10 cm de terra misturada com composto orgânico, e plante placas de grama. Está pronto! A grama deve ser plantada em dias chuvosos, para que pegue. Uma vez que a grama estiver estabelecida e a terra estabilizada sobre o telhado, você poderá plantar outras coisas, como fores, ervas e hortaliças, etc., diretamente sobre a grama. Agora, se você não quiser plantar grama, pode simplesmente cobrir a terra com uma boa camada de palha (cobertura vegetal morta), que evitará que a terra escorra em dias de chuva. Conforme a palha se degradar, haverá o 225

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crescimento natural e espontâneo de plantas que, com suas raívzes, estabilizarão a terra permanentemente. Alguns cuidados são necessários em relação ao telhado verde, e os principais pontos são estrutura, impermeabilização e manutenção. Deve-se ter em mente desde o inívcio que telhados verdes são substancialmente mais pesados que outros tipos de telhados, fcando ainda mais pesados em dias de chuva. Por isso, toda a casa, desde a fundação, paredes até a própria estrutura do telhado, deve ser feita com resistência sufciente para comportar esse peso. Além disso, ninguém quer um telhado que vaze! Além do incômodo das goteiras, vazamentos também levam ao apodrecimento do madeiramento, trazendo sérios riscos ao telhado e à construção. Por isso, as medidas citadas acima, ou outras equivalentes, devem ser observadas com a máxima seriedade, e quaisquer infltrações que venham a ocorrer devem ser prontamente sanadas. Deve-se ter em mente que telhados verdes são relativamente sazonais: na época das secas, as plantas secarão (e o telhado não parecerá tão verde), para na próxima estação chuvosa voltarem a forescer. Lembre-se: todas as lindas fotos que vemos de telhados verdes são tiradas na época das chuvas! Não espere que seu telhado se pareça com aquilo o ano todo. Teoricamente, você poderia manter seu telhado irrigado, mas na prática isso raramente é feito, até mesmo por representar um gasto excessivo e desnecessário de água, que pode anular ao menos em parte os benefívcios ambientais desse tipo de telhado. Então, creio que o melhor mesmo é aceitar a sazonalidade do telhado verde. Outro ponto que merece atenção é a manutenção, especialmente em relação ao crescimento de árvores. Deve-se fcar de olho, e cortar árvores que inventem de crescer no telhado, pois elas têm o potencial de perfurar a camada de impermeabilização e literalmente destruir o telhado. Mas não arranque as árvores, pois com isso você arrancará também uma grande porção de terra do telhado — ao invés disso, é melhor apenas cortá-las rente à camada de solo, deixando suas raívzes lá, que continuarão atuando na fxação do solo, sendo portanto até úteis. Domos Domos são cúpulas arredondadas, caracterívsticas de muitas culturas e antigas civilizações. O uso de domos como cobertura para casas é bastante raro no mundo ocidental moderno e, por isso, casas com domos têm um aspecto bastante exótico. Domos podem ser construívdos de adobe, cob ou terra ensacada, e mesmo construções de pedra — além de alvenaria convencional, claro. Podem ter um formato hemisférico ou de ogiva (mais “pontudos”), sendo que os mais pontudos são mais fáceis de construir. Também são mais estáveis e resistentes à ação da chuva. 226

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Coberturas feitas de barro necessitam de impermeabilização, por motivos óbvios. Técnicas tradicionais incluem o uso de estrume bovino fresco, e cal com sumo de cactos. Essas técnicas funcionam muito bem em climas desérticos, onde domos são tradicionalmente comuns. Porém, em locais mais úmidos, devido à grande incidência das chuvas, esses revestimentos naturais têm durabilidade muito limitada, necessitando manutenção e reaplicações constantes, o que os torna inviáveis na prática. Nesses casos, pode-se usar revestimentos cerâmicos (ladrilhos) ou de pedra, assentados com argamassa. Há também no mercado atualmente uma resina de poliuretano vegetal (“PUV”), produzida a partir da mamona, que pode ser usada para impermeabilizar domos de barro, sem a necessidade de usar cimento.

Construção com domos. Técnica usada: superadobe

Telhados convencionais Telhados comuns podem ser feitos com impacto ambiental reduzido, confuindo com a proposta geral da bioconstrução e da permacultura. Podem-se utilizar telhas de segunda mão, provenientes de reformas e demolições. Mesmo telhas de diferentes modelos, formatos e tamanhos podem ser habilmente combinadas em um telhado, em camadas diferentes, dando um aspecto inusitado e estiloso! Pode-se ainda utilizar madeiras de demolição, embora sua disponibilidade seja normalmente limitada, e o preço muitas vezes proibitivo. Outra boa opção são as madeiras roliças para a estrutura do telhado, como pontaletes de eucalipto tratado.* Embora eucalipto tenha lá seus problemas, por ser geralmente oriundo de monoculturas e tratados com venenos, ainda assim são alternativas mais sustentáveis que madeiras convencionais, já que essas são quase invariavelmente oriundas de desmatamento de forestas primárias, como a * Não é recomendado o uso de eucalipto bruto (não tratado) em bioconstrução, a não ser talvez em estruturas acessórias (andaimes, escoras, escadas, etc.) e temporárias (galpão temporário para ferramentas), pois tem durabilidade natural extremamente baixa.

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10. A Habitação Permacultural

amazônica, e transportadas por milhares de quilômetros, devendo portanto ser evitadas a todo custo.

Considerações em relação ao custo Na bioconstrução, damos preferência a materiais presentes no local ou imediações, sempre que possívvel. Assim, o custo com materiais tende a ser bem mais baixo. Porém, o processo é geralmente mais demorado e trabalhoso, pois você terá que colher esses materiais e transportá-los por sua conta; terá que fabricar seus próprios blocos (no caso da técnica do adobe), ao invés de comprálos prontos. Além disso, madeiras brutas e bambus são tortos, e portanto mais difívceis de trabalhar, ou seja, nada é tão conveniente como comprar materiais todos retinhos e regulares, e que o caminhão já descarrega prontos no seu terreno no mesmo dia que você comprou, como ocorre no caso das construções convencionais modernas. Por isso, é comum dizer que em bioconstrução o material é mais barato, mas o custo com mão de obra é maior, de modo que o custo fnal da construção pode ser equivalente ou mesmo mais caro que construções convencionais equivalentes. Isso é verdade, especialmente quando se contrata mão de obra para construir. A boa notívcia é que você pode optar por construir você mesmo, e com a ajuda de voluntários, amigos e parentes. Neste caso, a bioconstrução pode, sim, ter um custo bastante reduzido em relação a construções convencionais.

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11. Saneamento Ecológico

11 SANEAMENTO ECOLÓGICO

Para entendermos o que é saneamento ecológico, é necessário primeiro sabermos o que é saneamento. Saneamento pode ser defnido como o conjunto de infraestrutura e serviços operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário e limpeza urbana, visando a manutenção de condições higiênicas e a prevenção de doenças na população. Porém, focaremos esta nossa discussão na questão do esgotamento sanitário. Importância do saneamento Fezes são um veívculo potencial para a transmissão de inúmeras e graves doenças, incluindo doenças infecciosas bacterianas como a shigelose, cólera e febre tifoide; virais como hepatites, rotavirose e enteroviroses (incluindo a poliomielite), e parasitárias causadas por protozoários, como giardívase, amebívase e criptosporidiose, além de inúmeras verminoses (e.g. ascaridívase). As diarreias causadas por essas doenças foram uma das principais causas de mortalidade, especialmente mortalidade infantil, por toda a história da humanidade, e ainda continua sendo até hoje nos paívses menos desenvolvidos social e economicamente do mundo, como na maior parte da África subsaariana. Todas essas doenças (além de outras, como a leptospirose e doenças transmitidas por 229

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11. Saneamento Ecológico

mosquitos) só podem ser efetivamente prevenidas através do saneamento. É por isso que nos paívses mais desenvolvidos, a incidência dessas doenças é praticamente zero. Histórico do saneamento Na pré-história, obviamente não havia qualquer tipo de saneamento, e o relacionamento do homem com seus excrementos provavelmente se assemelhava ao das demais espécies animais. A rota fecal-oral é uma via de transmissão de doenças que ocorre em populações de todas as espécies animais, podendo estar associada a morbidade e mortalidade signifcativas. Porém, em condições naturais, o impacto dessa via de transmissão na saúde das populações muitas vezes é minimizado pelas densidades populacionais relativamente baixas, ou comportamento migratório, etc. E provavelmente essa também foi a situação da espécie humana ao longo das centenas de milhares de anos em que vagávamos pela Terra como caçadores-coletores. Porém, com o surgimento das primeiras civilizações, as populações humanas passaram a ser sedentárias e criar adensamentos, como grandes assentamentos e, posteriormente, cidades, que favoreceram enormemente a transmissão de doenças feco-orais. Na Antiguidade Clássica, a associação entre limpeza e bem-estar e saúde foi notada, e medidas especívfcas começaram a ser tomadas para a promoção da higiene pública. Merecem destaque a Civilização do Vale do Indo, Grécia e Roma Antiga, que já contavam com elaboradas redes de esgotos há até 4000 anos atrás. Essas tubulações e galerias levavam os esgotos domésticos para fora das cidades, onde eram despejados em corpos d’água — rios, lagos ou mares — enquanto suprimentos de água limpa eram trazidos de áreas remotas, através de aquedutos. Todavia, com a queda do Império Romano Ocidental, desapareceu também a ideia do saneamento em toda a Europa. Por isso, na Idade Média, a norma passou a ser… defecar em qualquer lugar. Defecar nas ruas, ou dentro de casa e depois jogar na rua. Quem morava perto de algum córrego ou rio, claro, não perdia a oportunidade de descarregar seus excrementos diretamente ali. Também o abastecimento de água passou a ser na base do “cada um por si”, buscando de rios poluívdos, ou escavando poços domésticos que se contaminavam facilmente. Isso levou a um recrudescimento das doenças de transmissão fecal-oral e hívdrica como cólera e febre tifoide, entre outras. Em muitos lugares onde esgotos eram coletados, descobriu-se o potencial de seu uso como fertilizante agrívcola. Esgotos brutos (não tratados) foram usados na agricultura em grande parte da Ásia por séculos, e o mesmo uso também foi registrado em locais como Escócia, França, Alemanha e Estados 230

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11. Saneamento Ecológico

Unidos no Perívodo Moderno. Na Ásia, essa prática continuou sendo comum até a metade do século XX. Essa situação geral só iria começar a mudar após a Revolução Industrial, e especialmente durante o século XIX, com as descobertas cientívfcas de Louis Pasteur e outros sobre a microbiologia, ou seja, a existência de microrganismos como agentes causadores de doenças, e as implicações disso para a higiene e saúde pública. Ao longo do século XX, sistemas de saneamento passaram a ser instituívdos em cidades por todo o mundo, mas de forma gritantemente desigual, de modo que ainda hoje têm-se exemplos de todos os estágios de saneamento acima citados, nas diferentes partes do mundo, indo desde a defecação ao ar livre, amplamente praticada na África, Índia, etc., passando por sistemas precários de saneamento como valas e canais de esgoto a céu aberto, fossas negras, coleta e disposição de esgotos brutos em corpos d’água, até estações de tratamento de esgotos, que são a norma em paívses economicamente desenvolvidos. O Brasil é um caso à parte, já que aqui você tem exemplos de todos esses estágios do saneamento dentro de um mesmo paívs! Muitas vezes, dentro de uma mesma cidade você tem uma área atendida por uma estação de tratamento de esgoto, outras áreas onde há coleta, mas não há tratamento (o esgoto é simplesmente lançado nos rios ou mar), e bairros na periferia onde não há qualquer saneamento, e os esgotos são lançados a canais a céu aberto que correm entre as casas, com crianças brincando ao redor, expostas a todo tipo de doenças… uma verdadeira tragédia. Saneamento convencional O modelo de saneamento convencional na atualidade consiste basicamente de sistemas de captação, tratamento e distribuição de água potável, e sistemas de coleta, tratamento e destinação fnal de esgotos sanitários. Com isso, consegue-se a segregação entre os seres humanos e seus excrementos, cortando assim o ciclo de transmissão das doenças de rota fecal-oral. Porém, esse óbvio benefívcio à saúde pública vem acompanhado de terrívveis efeitos ambientais, dos quais o mais óbvio é a poluição dos rios e mares. Para uma verifcação prática contundente e irrefutável desse fato, basta visitar os rios Tietê ou Pinheiros, ou de fato qualquer rio na cidade de São Paulo, ou a Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro, por exemplo, ou mesmo praticamente qualquer rio que corta qualquer cidade do Brasil, ou a água do mar nas grandes cidades costeiras. Claro que pode-se argumentar que esse dano ambiental todo é na verdade fruto não do modelo convencional de saneamento em si, mas sim da falta ou inadequação do tratamento do esgoto nas nossas cidades. Porém, isso é apenas parcialmente verdade, pois mesmo quando há tratamento do esgoto, o efuente 231

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11. Saneamento Ecológico

lançado aos corpos d’água também não é livre de poluentes! Claro que os teores de matéria orgânica e poluentes em geral são bem menores que no esgoto bruto. Porém, esses efluentes de estações de tratamento de esgoto ainda contêm uma carga bacteriana muito elevada, além de serem contaminados com produtos quívmicos de diversas fontes, inclusive do próprio processo de tratamento. Portanto, embora menos nocivos aos ambientes aquáticos que os esgotos brutos, os esgotos tratados continuam sendo fonte de poluição das águas. Você não ia querer nadar ali. Além da poluição ambiental, esse modelo de saneamento também traz dois outros grandes problemas: o uso excessivo de água e o desperdício dos nutrientes do solo. A composição básica dos esgotos domésticos é a seguinte: aproximadamente 1% são excrementos humanos, e 99% água, sendo que dessa água cerca de 30% foi usada para dar descarga na privada (pense nisso: água limpa, tratada, sendo misturada a fezes e urina), enquanto o restante foi usado para diversos fns, como banho, lavagem de roupas e louça, limpeza geral, etc. Agora, com relação aos excrementos, eles são obviamente resultado do processamento dos alimentos pelo nosso corpo. Então, o que acontece é o seguinte: os nutrientes do solo são utilizados pelas plantas, e assim são produzidos os alimentos, os quais consumimos e processamos biologicamente, e o resultado disso são os excrementos — fezes e urina. Quando esses excrementos são lançados na forma de esgotos aos rios e mares, isso signifca que os nutrientes neles contidos jamais retornarão ao solo, de onde vieram. Portanto, nesse sistema, você tem uma contívnua transferência dos nutrientes do solo, onde eles teriam a capacidade de criar vida e produzir alimentos, para os mares, onde se acumulam na forma de poluição. Com isso você tem de um lado o empobrecimento progressivo da fertilidade do solo, com redução na capacidade de produção de alimentos, e a destruição progressiva dos ecossistemas marinhos, também reduzindo a produção de alimentos ali. Agora, projete essa situação para o futuro, num mundo com cada vez mais pessoas, e cada vez menos capacidade para produzir comida, e você vai entender por que a sustentabilidade é importante, e por que o modelo de saneamento atual é um grave problema.

Saneamento ecológico Chamamos de saneamento ecológico a um conjunto de técnicas, infraestruturas e práticas higiênicas que permitem a interrupção do ciclo de transmissão de doenças de transmissão fecal-oral e veiculação hívdrica, cumprindo portanto a missão do saneamento, sem contudo consumir água em demasia, poluir o ambiente, desperdiçar nutrientes ou causar qualquer outro 232

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dano aos ecossistemas, sendo portanto sustentáveis. Há técnicas de saneamento ecológico adequadas a todas as escalas, desde a individual até grandes sistemas coletivos, para cidades inteiras, por exemplo. Porém, como a implementação de sistemas em larga escala depende da administração pública, e portanto vontade polívtica, e como aparentemente a sociedade em geral está satisfeita com o modelo atual de “jogar a merda toda no rio e deixar que a natureza se vire”, na prática os sistemas em pequena escala são a única opção viável para a maioria dos permacultores, pelo menos no curto e médio prazo.

Técnicas de saneamento ecológico Banheiro seco de compostagem* Pode-se dizer que o banheiro seco de compostagem, também chamado simplifcadamente apenas de banheiro seco, é o sistema de saneamento mais ecológico e sustentável que existe, sendo por isso mesmo o preferido na permacultura. Nesse sistema, os excrementos (fezes e urina) são depositados em um local devidamente contido, sem contaminar o meio ambiente, e cobertos com uma variedade de materiais naturais, chamados “materiais de cobertura”, formando camadas. Essa mistura é então mantida intocada por perívodos que podem ser de 6 meses em regiões de clima tropical, a 1 ano em regiões de clima temperado, chegando até a 2 anos nos climas muito frios. Nesse perívodo, que é crívtico, ocorre o fenômeno da compostagem, em que microrganismos naturalmente presentes nesses materiais se proliferam, digerindo essa matéria orgânica e transformando-a em húmus, um fertilizante agrívcola orgânico riquívssimo em nutrientes do solo. Durante o processo de compostagem, a intensa competição microbiana assegura a destruição total de quaisquer patógenos eventualmente presentes nos excrementos, garantindo a segurança do uso desse húmus na adubação do solo para a produção de alimentos, sem gerar riscos à saúde humana. A elevação da temperatura no processo de compostagem termofívlica ** e a presença de amônia, decorrente da degradação da ureia†, também contribuem para a destruição de eventuais patógenos. Além de microrganismos patogênicos, também resívduos de * O livro “Manual Humanure”, de Joe Jenkins, é a referência mais completa sobre este assunto, sendo geralmente considerado uma espécie de “bíblia do banheiro seco”. ** Germer, J. et al. Temperature and deactivation of microbial faecal indicators during small scale co-composting of faecal matter. Waste Management. 2010. † Jensen, P. K. et al. Survival of Ascaris eggs and hygienic quality of human excreta in Vietnamese composting latrines. Environmental Health. 2009.

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11. Saneamento Ecológico

produtos quívmicos e farmacêuticos são degradados pelas condições biológicas e quívmicas que ocorrem no processo de compostagem.* O banheiro seco de compostagem traz enormes vantagens: • Não utiliza água. Pense só, utilizar um banheiro por toda a sua vida sem jamais utilizar um litro de água sequer! • Não gera esgotos ou qualquer outro tipo de poluição. • Resulta em fertilizante de alta qualidade, permitindo a devolução dos nutrientes ao solo para a produção de mais alimentos, recuperação ambiental, etc. Ou seja, não há desperdívcio de nutrientes, e sim sua reciclagem completa.

Tipos de banheiro seco Existem basicamente dois tipos principais de banheiro seco: o tipo vertical e o horizontal. Se você pesquisar, encontrará uma infnidade de variações, e inclusive modelos comerciais disponívveis em muitos paívses, sendo que muitos são até bem caros, às vezes dependem de energia elétrica para funcionar, etc. mas que na verdade não oferecem qualquer vantagem efetiva sobre os modelos simples do tipo “faça você mesmo”. Por esse motivo, focaremos nossa discussão sobre banheiro seco nos modelos mais básicos, que também são os mais populares. Banheiro seco vertical O banheiro seco vertical, ou de composteira acoplada, consiste de uma estrutura onde o banheiro propriamente dito é construívdo diretamente acima de uma câmara de compostagem (composteira), que é bem vedada. Não se usa uma bacia sanitária comum (daquelas de descarga) — ao invés disso, o vaso sanitário consiste basicamente de uma caixa ou bancada que dê altura adequada para que o usuário possa sentar-se, com uma abertura guarnecida de assento e tampa, que podem ser aproveitados de privadas convencionais. Alternativamente, pode-se fazer a abertura no assoalho do banheiro, caso queira-se uma privada daquelas que se usa agachado (opção tradicional e bastante popular na Ásia, e que muitos afrmam ser mais natural e saudável). A câmara de compostagem deve ter um tubo para exaustão de gases gerados no processo da compostagem, e uma abertura independente, com porta, para esvaziamento periódico. * Kakimoto, T.; Funamizu, N. Factors afecting the degradation of amoxicillin in composting toilet. Chemosphere. 2007.

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11. Saneamento Ecológico

Ao usar o banheiro, os dejetos caem dentro da composteira. Após cada uso, ao invés de se “dar a descarga”, lança-se uma certa quantidade de material de cobertura dentro do vaso sanitário, sufciente para cobrir os dejetos. E pronto! o banheiro está pronto para uso novamente. Por material de cobertura entende-se uma variedade de materiais naturais, como serragem, palha de arroz, folhas mortas de árvores, capim, aparas de grama e outros restos vegetais (e.g. galhos e restos de podas) triturados, etc. Eventualmente outros materiais podem ser adicionados, como cinzas e terra, desde que não constituam uma porção principal do material de cobertura. Outros materiais orgânicos, como restos de cozinha, também podem ser adicionados. A principal e mais óbvia função do material de cobertura é bloquear odores provenientes dos dejetos e restos orgânicos durante a compostagem. Outras funções incluem: absorver o excesso de umidade do composto, manter a aeração proporcionando a decomposição aeróbica e termofívlica da matéria orgânica, proporcionar um substrato poroso ideal para a atividade microbiana, prover nutrientes ao composto pela decomposição do material de cobertura, etc. Quando a câmara de compostagem se enche, esse banheiro deve ser interditado por todo o perívodo de compostagem (6 meses a um ano, dependendo do clima local). Nesse perívodo, deve-se usar outro banheiro. Por isso, geralmente banheiros secos verticais são construívdos em módulos duplos: dois banheiros idênticos, lado a lado, com suas respectivas câmaras de compostagem, que são usadas alternadamente: seis meses uma, seis meses a outra. Ao fnal do perívodo de compostagem, abre-se a câmara por uma porta lateral ou traseira (acesso externo) para remoção do composto, que estará pronto para uso como adubo. O tamanho da câmara de compostagem varia conforme a intensidade de uso, mas em geral tem em torno de 1 a 2 metros cúbicos. Devido ao uso alternado, deve-se necessariamente construir no mívnimo dois banheiros (para uso individual ou uma famívlia pequena). Deve-se construir um número sufciente de unidades para sempre permitir o descanso por todo o perívodo de compostagem. A vantagem deste modelo de banheiro seco é sua praticidade de uso, já que é só usar e usar, por seis meses, sem ter que se preocupar com manutenção da composteira — esta é feita apenas uma vez ao fnal de cada ciclo. Porém, esse sistema também tem algumas desvantagens e limitações. Como o material fecal cai lá em baixo, mesmo que você capriche ao jogar o material de cobertura, difcilmente “acertará em cheio”. Portanto, a cobertura é menos efciente, comumente gerando algum problema com odores. Esse problema pode ser amenizado com boa ventilação do banheiro, boa ventilação da composteira (respiro adequado), e adição de mais material de cobertura. Ainda, a unidade toda deve ser bem vedada, tanto o assento como a tampa da

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câmara de compostagem e o respiro (com tela), para evitar o acesso de moscas, evitando sua proliferação na câmara. Outra desvantagem diz respeito à falta de fexibilidade desse sistema. Digamos que você constrói um banheiro para uma casa de 3 pessoas. Porém, por algum motivo você recebe um morador extra, ou talvez você tenha uma vida social bem ativa, e o banheiro é usado além do esperado. Pode acontecer da câmara de compostagem se encher antes de ter dado o tempo necessário para a compostagem completa da outra unidade do banheiro, gerando portanto um problema logívstico! Respiro

Porta Assento

Acesso externo

Câmara de compostagem

Esquema de banheiro seco vertical (módulo duplo, externo)

Uma limitação deste sistema é que geralmente não é possívvel fazer uma adaptação em um banheiro já existente. Às vezes é possívvel projetar e construir um banheiro seco vertical contívguo à casa, especialmente quando a topografa do terreno for favorável, já que o banheiro tem que fcar a uma altura no mívnimo cerca de 1,5 m acima do nívvel do solo do lado externo à casa, para permitir espaço vertical para a construção da câmara de compostagem, sendo necessário também uma área de circulação do lado de fora para permitir a retirada periódica do composto. Porém, na prática a grande maioria das pessoas que utilizam este sistema optam por construir o banheiro como uma estrutura independente e externa à casa, o que pode representar um custo substancial, além de requerer um espaço considerável, podendo ainda ser considerado bastante inconveniente (imagine ter que sair da sua casa para ir ao banheiro num dia de chuva!). Por fm, cabe ressaltar que há muitas pessoas que utilizam esse modelo de banheiro seco, e estão satisfeitas.

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Banheiro seco horizontal Já o banheiro seco horizontal, ou de composteira separada, é desconcertantemente simples: consiste basicamente de um balde plástico com tampa e capacidade para 15 a 25 litros, um assento de vaso sanitário comum e uma composteira que fca fora da casa. Para se usar o banheiro, basta abrir a tampa do balde, instalar o assento de privada e usar como se fosse uma privada comum. Após o uso, cobre-se com uma camada de material de cobertura. Antes que o balde se encha completamente, esse deve ser esvaziado: leve até a composteira, deposite lá o conteúdo do balde e cubra o material recémadicionado com uma nova camada de material de cobertura. O balde deve ser limpo internamente a cada esvaziamento — você pode lavá-lo com água e uma escova comum de vaso sanitário, e jogar a água na composteira, mesmo. Alternativamente, você pode apenas limpar o interior do balde com o próprio material de cobertura: ainda ao lado da composteira, adicione uma certa quantidade de serragem dentro do balde e mexa com uma espátula de madeira (feita com uma ripa ou bambu) de uso exclusivo para esse fm. Jogue essa serragem dentro da composteira. Cubra o fundo do balde com uma camada de material de cobertura, e ele já estará pronto para ser levado novamente ao banheiro para uso. Ou seja, nem mesmo para limpar o balde é necessário usar qualquer água! Caso deseje, você pode sanitizar o interior do balde aplicando uma fna camada de cinzas, mas isso não é necessário. Quando a composteira se enche, ela deve ser coberta com uma generosa camada de material de cobertura, ter a data marcada em local visívvel, e deixada intacta pelo perívodo adequado para compostagem (mívnimo de 6 meses, conforme já discutido), após o que ela pode ser esvaziada; então, o composto estará pronto para uso como adubo. Durante esse perívodo, usa-se outra composteira. Deve-se ter um número sufciente de composteiras para sempre permitir o descanso por todo o perívodo de compostagem — isso é vital. A cobertura fnal de palha ou serragem deve ser relativamente grossa, pois isso ajuda no isolamento térmico do composto, facilitando que esse atinja temperaturas altas (composto termofívlico). A maioria das pessoas prefere construir um pequeno gabinete, que pode ser madeira reaproveitada (de pallets usados, por exemplo), e instalar o balde dentro deste gabinete no banheiro, com o assento de privada sendo fxado ao gabinete. Isso pode dar um aspecto mais “civilizado” do que simplesmente defecar no balde, mas certamente não é necessário. Você não precisa esvaziar o balde assim que ele se enche. Pode ter alguns baldes a postos, para substituir conforme necessário, planejando para esvaziá-los uma vez por semana, por exemplo. Basta deixar os baldes cheios devidamente tampados, e não haverá problema algum — nem cheiro, nem moscas, nada.

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O tamanho da composteira pode variar, mas um tamanho de 1 metro cúbico é geralmente adequado. Elas podem ser construívdas de tábuas de reuso, como tábuas de construção ou de pallets. As composteiras devem Banheiro seco horizontal ser bem feitas, para que resistam por todo o perívodo de enchimento e compostagem (cerca de um ano, ao todo). Como geralmente usamos madeiras reaproveitadas, na maioria das vezes de pinus, que apodrecem facilmente, geralmente as tábuas não podem ser usadas mais do que uma ou duas vezes, tendo que ser substituívdas. Se você usar madeiras mais resistentes ou tratadas, talvez possam ser usadas por vários anos. As composteiras devem ser construívdas fora da casa, mas não muito longe, para facilitar o manejo. Convém provê-las com uma cobertura, para evitar o ressecamento excessivo na estação seca, e encharcamento na estação chuvosa. Você pode construir composteiras isoladas, ou um módulo duplo com compartimento para armazenar serragem no centro (veja ilustração abaixo). O telhado é provido de calhas e tanque para armazenamento de água de chuva, que pode ser usada na lavagem dos baldes. As composteiras são usadas alternadamente: enquanto você vai enchendo uma, a outra, já cheia, permanece intocada, repousando por todo o perívodo necessário para a compostagem. Caso a composteira em uso se encha antes do perívodo mívnimo para abertura da outra, devem ser construívdas composteiras adicionais.

Serragem

Modelo de composteira em módulo duplo Adaptado de: Joseph Jenkins. The Humanure Handbook (3. a ed.). 2005.

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Ao contrário do banheiro seco vertical, o sistema horizontal é extremamente fácil de adaptar em sua casa — basta tirar a privada do banheiro e colocar um balde no lugar, e construir uma composteira no quintal, trazer alguns sacos de serragem da madeireira ou marcenaria mais próxima, e pronto, já pode começar a usar o seu banheiro seco! Uma das coisas que fazem este sistema muito interessante e atrativo é o seu baixívssimo custo, já que pode ser feito inteiramente com materiais reaproveitados. Você não precisa e nem deve comprar um balde novo. Há diversos produtos que são comercializados em baldes de tamanho adequado (15 a 25 litros), como margarina para uso industrial, impermeabilizante para concreto, cloro para tratamento de água, graxa, etc. Em geral, são produtos de uso industrial ou para construção, então você vai ter que ir aos lugares certos para obtê-los, como construções em andamento, indústrias, grandes postos de serviços, etc. Muitas vezes, esses baldes podem ser encontrados em depósitos de sucatas e materiais recicláveis. Em minha cidade, a opção mais fácil são os baldes de margarina (15 kg), usados pelas padarias. Esses baldes costumam ser de excelente qualidade, muito fortes e duráveis, e com tampas realmente herméticas, e em geral podem ser obtidos a custos muito baixos — com sorte, até de graça! O mesmo pode-se dizer dos demais materiais necessários ao uso deste modelo de banheiro seco: as madeiras para construir as composteiras podem ser obtidas a custo virtualmente zero, se você usar tábuas de construção descartadas, ou madeiras de pallets quebrados, e a serragem também, geralmente, você pode obter de graça (ou quase) em madeireiras e marcenarias. QUESTÕES FREQUENTES EM RELAÇÃO AO BANHEIRO SECO O que fazer com o papel higiênico?

O papel higiênico deve ir para a composteira. Papel higiênico é constituívdo de celulose, que nada mais é que matéria vegetal. Ele se decompõe de forma assustadoramente rápida, contribuindo para o teor de matéria orgânica do seu composto. Ainda presta uma contribuição modesta na absorção de umidade e aeração da pilha de composto. Portanto, papel higiênico deve ser adicionado junto com as fezes, no banheiro seco. Pode jogar sem medo, não vai entupir nada! Urina junto ou separado?

Este é um assunto que divide opiniões, mas a verdade é que as duas opções existem e são válidas, cada uma com suas vantagens e desvantagens. Por ser um assunto que merece uma discussão mais detalhada, trataremos dele num tópico à parte, mais adiante.

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Virar ou não virar?

Existe um costume bastante arraigado entre as pessoas que praticam a compostagem, especialmente agricultores orgânicos, de virar (ou seja, remisturar) o composto periodicamente, durante o perívodo da compostagem. Essa prática traria as seguintes vantagens: aerar a massa sendo compostada, favorecendo a decomposição aeróbica; fragmentação e homogeneização do composto, e também a redistribuição da umidade, permitindo uma decomposição mais completa e rápida, rendendo ainda um produto fnal com melhor aspecto. Porém, embora tudo isso seja verdade, a prática tem comprovado que a viragem do composto não é necessária — talvez o processo leve um pouco mais de tempo, e você tenha um produto fnal menos homogêneo, mas ainda assim terá o seu composto, bom e seguro. O processo de viragem traz duas desvantagens. A primeira e mais óbvia é o trabalho que dá virar o composto, especialmente se for um volume grande. Outro problema diz respeito a um risco à saúde: durante o processo de decomposição, há uma intensa proliferação de fungos no composto, e a viragem põe em suspensão no ar uma grande quantidade de esporos, o que pode representar um risco de alergias e mesmo infecções respiratórias. Considerando tudo isso, e ainda o risco de contaminação ambiental com fezes (ou seja, material fecal antes da completa degradação), conclui-se que não se deve virar o composto contendo material do banheiro seco. Deixe-o ali, intocado por todo o perívodo de compostagem recomendado, e você terá o seu composto. Vale ressaltar que os trabalhos cientívfcos que comprovaram a efcácia da compostagem na eliminação de patógenos foram realizados sem viragem do composto, o que confrma que ela é desnecessária. Não vai feder?

A resposta curta para essa pergunta é: não. Um banheiro seco não deve cheirar mal, tampouco a composteira deve ter qualquer cheiro desagradável. Agora, há apenas dois breves momentos em que você inevitavelmente sentirá maus odores. Um deles, obviamente, na hora de usar o banheiro, especifcamente no caso da defecação. Não apenas porque isso fede em qualquer banheiro, mas há também outro pequeno fator: em privadas convencionais, as fezes, uma vez liberadas, são imediatamente submersas em água, o que ajuda a minimizar a liberação de odores. No banheiro seco, por outro lado, as fezes cairão… no seco. Portanto, até que você termine o serviço e cubra com o material de cobertura, haverá uma liberação de odores fecais superior ao que ocorreria em um banheiro convencional. Mas, na verdade, a diferença não é muito grande. O outro momento em que haverá liberação de odores é na hora de esvaziar o balde na composteira, no caso do banheiro seco horizontal. Esse momento durará cerca de cinco minutos, entre você esvaziar o balde, limpá-lo e adicionar 240

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material de cobertura à pilha de composto. Cinco minutos, uma vez por semana — não é pedir muito, é? Certamente um pequeno sacrifívcio que vale a pena, considerando os enormes benefívcios oferecidos pelo banheiro seco. Se, ainda assim, você se deixar desencorajar por isso, ainda tem a opção do banheiro seco vertical. Exceto nos momentos acima citados, um banheiro seco e uma composteira bem manejada não devem jamais emitir qualquer odor. O único motivo para maus odores é aplicação insufciente ou inadequada de material de cobertura. Alguns materiais de cobertura são menos efcientes em bloquear odores; por exemplo, serragem muito grossa, ou palha. Prefra serragem média, ou uma mistura de serragem de diferentes granulometrias, para melhores resultados. Palha, folhas mortas e outros restos vegetais devem ser, preferencialmente, triturados para uso como material de cobertura. Cinzas de fogão e forno a lenha, churrasqueiras, fogueiras, etc., que usualmente contêm algum resto de carvão, também podem ser adicionadas como material de cobertura e são úteis na eliminação de odores. Uso de aditivos

Muitos manuais de compostagem citam ou recomendam a aplicação de calcário agrívcola às pilhas de composto, para neutralizar acidez, desinfetar o composto, fornecer nutrientes (cálcio e magnésio), etc. O mesmo pode-se dizer das cinzas de madeira, que têm constituição semelhante e os mesmos efeitos. Você pode aplicar cinzas ou calcário em pequenas quantidades no composto, seja no balde, misturado ao material de cobertura, ou sobre a pilha de composto na composteira, mas isso não é necessário. A adição de grandes quantidades não é recomendada, pois interferirá negativamente na degradação microbiana da matéria orgânica e desbalanceará demasiadamente a composição quívmica e de nutrientes do composto. Conforme já citado, a adição de cinzas de fogão a lenha ao composto pode ajudar a bloquear odores (embora geralmente não seja necessário). Problemas com pragas

Esta é uma preocupação que atinge muitas pessoas interessadas em começar a usar um banheiro seco, ou fazer compostagem em geral: “não vai atrair bichos? moscas? ratos? baratas?” Trata-se de uma questão pertinente, já que você terá ali concentrada uma grande quantidade e variedade de materiais orgânicos que são sabidamente atrativos a essas pragas. Porém, o fato é que, assim como em relação aos odores, na prática nada disso deve constituir problema, devido à “magia” do material de cobertura. Basta você aplicar material de cobertura adequado, em quantidades adequadas, e estará livre de odores e pragas. É conveniente ressaltarmos uma coisa: nem só de microrganismos é feita uma compostagem — macrorganismos, sejam eles fungos, insetos, larvas, 241

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vermes, anelívdeos, etc., também são parte importante da compostagem. Todos sabemos que as minhocas são comuns e benéfcas em qualquer processo de compostagem, não é? Muitas vezes, são adicionadas intencionalmente (vermicompostagem), embora isso não seja necessário. Minhocas nativas também costumam colonizar pilhas de composto. Outros animais que costumam aparecer no composto são besouros (depositam seus ovos na matéria orgânica, onde se desenvolvem em larvas que podem ser até bem grandes!), e larvas de moscas. Aqui, devemos fazer uma distinção. Existem inúmeras espécies de moscas, e nem todas elas são pragas. Claro que ninguém quer moscas domésticas ou varejeiras crescendo em sua composteira. Caso isso ocorra, você pode adicionar alguma quantidade de cinzas, fazendo uma camada sobre a composteira, pois isso inibe essas larvas. Por outro lado, é comum aparecerem em composteiras larvas da mosca soldado negra (Hermetia illucens). Essas moscas não são pragas — não atacam nossa comida, nem transmitem doenças. Nem sequer gostam de chegar perto de humanos. Suas larvas são extremamente benéfcas na composteira, auxiliando na decomposição da matéria orgânica. Além disso, elas trazem ainda outras grandes vantagens: inibem totalmente o desenvolvimento de larvas de outras espécies de moscas (essas sim, pragas); foi demonstrado que elas reduzem microrganismos patogênicos (Escherichia coli 0157:H7 e Salmonella enterica) e várias substâncias tóxicas, e também atuam na redução ou eliminação de odores.* Também são ótimas fontes de alimento com alto teor proteico para peixes, aves, répteis, anfívbios, etc., sendo comumente criadas e comercializadas para esse fm. Larvas da mosca soldado negra são mais comuns em composteiras mais úmidas e alcalinas, e a adição de cinzas parece favorecê-las (ao Tarva, pupa e adulto da mosca soldado negra contrário do que ocorre com larvas de outras espécies de moscas). É realmente seguro?

A compostagem de excrementos humanos e seu uso como fertilizante agrívcola, embora desconhecidas de muitas pessoas, são práticas estabelecidas e consolidadas mundialmente, e sua segurança e efcácia têm sido comprovadas por inúmeros trabalhos cientívfcos. Essas práticas são particularmente disseminadas em paívses asiáticos, sendo inclusive encorajadas por governos. Um * Newton, G. T. et al. Research Briefs: Black soldier fly prepupae – a compelling alternative to fish meal and fish oil. Annual meeting of the regional research committee, S-1032 “Animal Manure and Waste Utilization, Treatment and Nuisance Avoidance for a Sustainable Agriculture”. 2008.

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caso exemplar é o Vietnã, onde mais de 90% dos agricultores usam banheiro seco de compostagem e empregam esses nutrientes rotineiramente em suas lavouras, orientados por normas técnicas do governo daquele paívs, as quais são devidamente embasadas em pesquisas cientívfcas.* Claro que essa segurança depende do cumprimento das recomendações descritas acima, respeitando sobretudo o tempo de compostagem. Também é necessário ressaltar que nada substitui as boas práticas de higiene alimentar, especialmente a prática de lavar bem as frutas e verduras, enfm alimentos consumidos crus, antes de comê-los. Pode-ose compostar também fezes de cães e gatos?

Esta é uma dúvida que muitos compostadores têm e, por falta de conhecimento, muitas pessoas acabam incluindo excrementos de animais de estimação em uma lista de itens proibidos da compostagem. É fato que, assim como as fezes humanas, fezes de cães e gatos também têm o potencial de nos transmitir doenças (zoonoses), especifcamente a larva migrans visceral, causada pelo Toxocara canis, e a toxoplasmose, causada pelo Toxoplasma gondii — o primeiro, um verme nematoide que parasita o intestino de cães, e o segundo, um protozoário coccívdeo que tem como hospedeiro defnitivo os gatos. Porém, já foi demonstrado cientifcamente que o processo de compostagem é efcaz na eliminação de ovos e oocistos de vermes e protozoários parasitas.** Portanto, para efeitos de compostagem, fezes de cães e gatos podem e devem ser compostadas, da mesma forma e com o mesmo rigor que fezes humanas, podendo o composto resultante ser usado como fertilizante, igualmente. Considerações adicionais sobre a compostagem Todo tipo de material orgânico, ou seja, tudo que veio da terra, deve voltar à terra, e isso pode ser feito de diversas maneiras. Uma delas é a compostagem. Outras são depositar diretamente sobre o solo (e.g. usar restos vegetais como cobertura morta do solo) e enterrar, por exemplo. Você pode escolher. A maioria das coisas orgânicas pode ir para a composteira, sem qualquer problema. Agora, muitas vezes você verá pessoas dizendo que não se deve adicionar restos de comida como carnes, peixes e laticívnios à composteira, pois isso atrairá animais como ratos e cães, que causarão problemas. De fato, restos de comida — arroz, feijão, macarrão, carnes, peixes, queijos, pães, bolos, pizzas, etc., adicionados sistematicamente e em altas quantidades à sua composteira, provavelmente atrairão mesmo não apenas ratos e cães, mas também gatos, * Jensen, P. K. et al. Hygiene versus fertiliser: the use of human excreta in agriculture – a Vietnamese example. International Journal of Hygiene and Environmental Health. 2008. ** Amorós, I. et al. Prevalence of Cryptosporidium oocysts and Giardia cysts in raw and treated sewage sludges. Environmental Technology. 2016.

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urubus, carcarás, corvos, guaxinins, ursos, etc. (dependendo de onde você mora). Mas isso não é um problema da compostagem, e sim um sintoma de um problema anterior e muito mais grave, que é o seu péssimo hábito de desperdiçar comida! Alimentos devem ser consumidos, e não jogados fora ou compostados. Então, por restos de cozinha entendemos apenas cascas e restos não comestívveis. Esses devem ir para a composteira, e não se preocupe, pois geralmente não atrairão visitantes indesejáveis. Agora, algum pequeno desperdívcio de comida que eventualmente, acidentalmente aconteça, por exemplo quando por descuido você deixou estragar alguma coisa, também pode ir para a composteira, que não causará problemas. O problema surge, conforme já explicado, do hábito de jogar comida fora, que infelizmente muita gente acha normal. É importante ressaltar que, para que haja uma compostagem efciente e perfeita, deve haver um equilíbrio nos materiais compostados — devem ser adicionados materiais variados e em proporções balanceadas. Quanto maior a variedade de ingredientes, melhor será o seu composto, pois terá todos os nutrientes, o que é importante tanto para a qualidade do composto fnal, em termos de nutrientes para as plantas, como para o processo de compostagem em si (os organismos responsáveis pela compostagem também precisam dos nutrientes). Por isso, se você compostar o material do banheiro seco juntamente com restos da cozinha, aparas de grama e podas, mais outros materiais de cobertura (dos quais o mais comum é a serragem), cinzas do fogão a lenha, etc. sua compostagem certamente será um sucesso. Lembrando também que deve-se tratar de manter um teor de umidade adequado no material durante a compostagem, ou seja, sempre úmido, mas não encharcado, além de respeitar o perívodo mívnimo para que ocorra a compostagem completa, especialmente quando são adicionados excrementos humanos e animais. Desafos do banheiro seco Conforme já citado, o banheiro seco é a técnica mais perfeita de saneamento que existe, com total preservação da saúde humana, dos recursos naturais (e.g. água, nutrientes do solo) e dos ecossistemas. Porém, sua adoção em larga escala enfrenta dois problemas culturais: preguiça e fecofobia. • Preguiça. O fato é que estamos acostumados a dar descarga, e esquecer. É sem dúvida muito mais cômodo. Porém, esse hábito está causando todos os problemas que já discutimos. Portanto, temos que mudar. Infelizmente, mudanças no estilo de vida, em práticas arraigadas, são sempre um desafo. • Fecofobia. A fecofobia pode ser defnida como uma aversão exagerada, um medo irracional das fezes. Criou-se uma cultura em que as pessoas se acham boas demais para lidar com seus próprios excrementos. Até falar em fezes é tabu! 244

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A fecofobia não é uma coisa tão antiga — conforme já mencionado, até menos de 200 anos atrás, ninguém estava nem aív para fezes e higiene. Foi o conhecimento cientívfco da natureza e forma de transmissão de doenças, passando também pelas polívticas de saneamento, ou seja, de combate às condições de transmissão de doenças que mudou isso. Então, foi incutido no consciente e inconsciente coletivo a noção verdadeira que fezes são perigosas, veívculos potenciais de transmissão de doenças graves. O fato é que as tecnologias de saneamento que surgiram e se estabeleceram (e que temos até hoje) têm dado certo para a saúde pública, mas não para o meio ambiente. Felizmente foi criada a tecnologia do banheiro seco de compostagem, que promete conciliar o melhor dos dois mundos. Embora desconcertantemente simples, essa tecnologia é muito recente — a compostagem só foi desenvolvida a partir dos anos 1940, com o surgimento do movimento de agricultura orgânica, e a compostagem de excrementos humanos somente a partir da década de 1970, sendo que o banheiro seco de compostagem só começou a se popularizar com a publicação dos primeiros livros sobre o assunto nos anos 90 — meros 20 anos atrás! Constipação de fundo moral: “Quando percebi que estava literalmente cagando em água limpa, tratada, potável, fiquei constipado por anos. Felizmente, conheci a tecnologia do banheiro seco, e agora meus intestinos funcionam regularmente.” — Brad Lancaster, autor de “Rainwater Harvesting for Drylands and Beyond”

Agora, ninguém quer voltar a uma situação em que cólera, amebívase, giardívase, verminoses, febre tifoide, etc. são parte do dia a dia, matando pessoas, especialmente nossas crianças. Portanto, é importante, sim, combatermos a fecofobia através de informação baseada em ciência, e através de nossos exemplos, mostrando que é uma alternativa viável, ética, segura e saudável, tanto em relação à saúde humana como do meio ambiente. Mas, acima de tudo, é imprescindívvel que adotemos o banheiro seco com a máxima seriedade em relação às boas práticas de compostagem descritas acima, especialmente no que se refere a contenção (evitar contaminação ambiental por excrementos ainda não totalmente compostados) e tempo de compostagem que, vale sempre lembrar, deve ser de no mívnimo 6 meses em climas tropicais e um ano em climas temperados, para garantir o saneamento total do composto. Caso contrário, corremos o risco de trazer de volta doenças há muito controladas, causando ainda um descrédito em relação a essa tecnologia maravilhosa do banheiro seco de compostagem — um retrocesso terrívvel na nossa luta pela sustentabilidade.

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Urina Conforme já citado, uma questão que frequentemente causa confusão quando o assunto é banheiro seco diz respeito à urina: ela deve ir junto ou separada das fezes? Você descobrirá que há pessoas que recomendam a prática de separar a urina, enquanto outros defendem a ideia que a urina deve ser sempre adicionada junto com as fezes, no banheiro seco. Para entendermos melhor esse assunto, vamos discutir as vantagens e desvantagens de cada abordagem. A grande vantagem de adicionar a urina juntamente com as fezes é a suposta praticidade — você usará o banheiro seco da mesma forma que usa a privada de descarga convencional, ou seja, tanto para defecar como para urinar. Os defensores dessa abordagem afrmam ainda que a urina ajudará a manter a umidade da pilha de composto, além de adicionar importantes nutrientes, especialmente o nitrogênio (nutriente do solo mais abundante na urina), gerando portanto um composto fnal mais rico em seu valor como fertilizante. Outra vantagem é o fato que a ureia presente na urina se converte em amônia, contribuindo para a destruição de patógenos durante a compostagem, aumentando a segurança do composto, conforme já citado. Porém, adicionar toda a urina junto com as fezes no banheiro seco traz também importantes desvantagens. Uma delas diz respeito ao volume: a urina é produzida diariamente em um volume muito maior (10 vezes maior, em média) que o volume de fezes produzido no mesmo perívodo. Por isso, adicionar toda a urina juntamente com as fezes faz com que os baldes (no caso do sistema horizontal) e as composteiras se encham muito mais rapidamente, o que se refete em uma carga de trabalho muito maior com manutenção do seu sistema, ou seja, você terá que esvaziar os baldes, e manejar composteiras com mais frequência, o que lhe tomará mais tempo de sua vida. Além disso, mais volume signifca mais composteiras, ou composteiras maiores, que consequentemente ocuparão mais espaço. Você também precisará coletar material de cobertura com mais frequência, pois será usado em maior quantidade, especialmente para absorver todo aquele excesso de umidade representado pela urina. Outra grande desvantagem desse sistema (toda a urina junto com as fezes na composteira) diz respeito à perda de nutrientes, especialmente o nitrogênio. Conforme já mencionado, o nitrogênio está presenta na urina predominantemente na forma de ureia; porém, durante a compostagem essa uréia se converte em amônia, a qual se perde por volatilização — uma perda que pode ser superior a 90% desse que é um dos mais vitais nutrientes para as plantas.* * Zavala, M. A. et al. Biological activity in the composting reactor of the bio-toilet system. Bioresource Technology. 2005.

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A abordagem alternativa é separar a urina das fezes — as fezes são tratadas conforme descrito acima, enquanto a urina é coletada em um recipiente à parte. Com isso, reduz-se enormemente o volume a ser compostado, reduzindo portanto o trabalho de manutenção do sistema, a necessidade de material de cobertura e o espaço ocupado pelas composteiras. Deve-se ressaltar que quem precisa ser compostado são as fezes, pois conforme discutido acima, elas têm um grande potencial de transmitir doenças. Em contraste, a urina é, em condições normais, praticamente estéril (na verdade, hoje sabe-se que a urina e o sistema urinário não são estéreis, e sim contêm uma microbiota especívfca que pode desempenhar papéis importantes na manutenção da saúde*). A urina é mais rica em nutrientes do solo que as fezes: das nossas excreções diárias, 90% do nitrogênio, 50 a 65% do fósforo e 50 a 80% do potássio estão contidos na urina. A fração sólida da urina é composta em média de 16% de N, 3,7% de P e 3,7% de K. ** Essa informação torna óbvio seu potencial como fertilizante. Separar a urina das fezes signifca que você terá recipientes separados, ou seja, baldes ou galões para urina (modelos de privadas que fazem a separação da urina têm sido criados, mas não são necessários). Isso pode ser visto como menos prático, mas as vantagens compensam. Agora, aqui temos que deixar uma coisa bem clara. Muitas pessoas, quando se fala em separar a urina, fcam paranoicas por causa daquele xixizinho que normalmente sai na hora do “número dois”. Mas isso é besteira! Não é para se preocupar com isso. Urina separada não signifca que qualquer quantidade de urina será prejudicial ao processo de compostagem; signifca apenas que não é para usar aquele banheiro ou balde para fazer xixi. Então, aquele xixizinho eventual, não precisa se preocupar, pode fazer sem medo! Na verdade, uma certa quantidade de urina é sempre benéfca à compostagem de material do banheiro seco, mesmo quando se opta por um sistema de urina separada, pois, como já discutimos, ela auxilia na manutenção da umidade na composteira e na destruição de eventuais patógenos. Então, embora as duas abordagens (urina junto vs. separada) sejam válidas e tenham adeptos, creio que o melhor é: separar a maior parte da urina e usar diretamente como fertilizante (conforme discutiremos a seguir), mas adicionar também um pouco de urina junto com as fezes — aquela da hora do “número * Whiteside, S. A. et al. The microbiome of the urinary tract – a role beyond infection. Nature reviews. Urology. 2015. ** Rose, C. et al. The characterization of feces and urine: a review of the literature to inform advanced treatment technology. Critical Reviews in Environmental Science and Technology. 2015.

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dois”, mais umas urinadas ocasionais, quantidade sufciente para manter a umidade da pilha de composto. Assim, você combina todas as vantagens das duas abordagens. Utilização da urina como fertilizante* A urina pode ser usada imediatamente ou após armazenamento por qualquer perívodo de tempo, na forma lívquida, como fertilizante. Seu uso direto permite a utilização imediata dos nutrientes ali contidos, ao invés de ter que esperar por vários meses pelo processo de compostagem, além de prevenir as perdas de nitrogênio, conforme já discutido. Além disso, o uso lívquido permite que esses nutrientes atinjam as partes absortivas da planta muito mais rapidamente do que quando se aplica um composto orgânico à superfívcie do solo. Isso é particularmente útil no caso de tratamento de plantas com defciências de nutrientes. Você verá que aquelas suas plantas que andam meio amareladas, tristes, voltam a fcar verdinhas e lindas, e retomam o crescimento rapidamente — uma diferença perceptívvel em poucos dias a algumas semanas. O emprego da urina como fertilizante lívquido pode se dar basicamente de duas formas: pela aplicação no solo ou aplicação foliar. Em ambos os casos é necessário que se dilua a urina, pois da forma como deixa o nosso corpo, ela tem uma concentração elevada de sais que pode danifcar a maioria das plantas. Aplicação no solo

Urina humana diluívda pode ser aplicada no solo como uma forma de fertilização ou ferti-irrigação. A diluição mívnima deve ser de 1:10, ou seja, uma parte de urina para dez partes de água. Essas preparações relativamente “fortes” (concentradas) podem ser usadas principalmente na estação chuvosa, com uma frequência de uma a duas vezes por semana, a um volume de 5 a 10 litros por muda, podendo aumentar proporcionalmente conforme a planta cresce, e conforme a necessidade de suplementação. Aplique a preparação de urina diretamente dentro da bacia, por cima ou debaixo da cobertura vegetal morta. A mesma preparação de urina pode ser usada para fertilização de hortas, podendo ser aplicada na razão de 5 a 10 litros por metro quadrado de solo (porém, para aplicação em hortaliças, é preferívvel a aplicação subsuperfcial, que será discutida mais adiante). Agora, na estação seca, a urina deve ser usada mais diluívda, algo entre 1:40 até 1:100. Desta forma, sua aplicação passa a ter uma função dupla: de fornecer umidade e nutrientes ao mesmo tempo, ou seja, ferti-irrigação. Nessa época, é essencial que o solo ao redor das plantas esteja sempre muito bem protegido com * Este assunto é discutido em profundidade no livro “Liquid gold: the lore and logic of using urine to grow plants”, de Carol Steinfeld.

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uma generosa camada de matéria vegetal morta, para evitar o excesso de perda de umidade por evaporação. Essas duas medidas (maior diluição e cobertura do solo) são muito importantes também para prevenir o acúmulo de sais da urina no solo superfcial, o que poderia causar problemas de toxicidade às plantas. Adubação foliar

As plantas são capazes de absorver nutrientes não apenas pelas das raívzes, mas também através da superfívcie das folhas (e mesmo do caule). Isso permite a suplementação de nutrientes às plantas por essa via, na chamada adubação foliar. A adubação foliar é uma prática disseminada tanto na agricultura convencional como orgânica, e praticada tanto por agricultores profssionais como amadores. Sua principal vantagem diz respeito à velocidade de absorção, que é praticamente imediata, ao contrário da adubação do solo, já que nesse caso leva um tempo até que os nutrientes se difundam e/ou as raívzes cresçam, permitindo o contato e portanto a utilização pela planta. Outra coisa legal sobre a adubação foliar é que ela também é, ao mesmo tempo, uma adubação do solo, pois o excesso de adubo foliar inevitavelmente escorre indo parar no solo. A urina é um excelente adubo foliar, pois contém quantidades balanceadas dos principais nutrientes requeridos pelas plantas, tanto macro como micronutrientes. A maioria das espécies de plantas podem se benefciar da adubação foliar com urina diluívda a 1:10. Porém, há algumas espécies que têm folhas particularmente sensívveis a queimaduras pela urina. Isso na verdade não é tão comum, e também, mesmo que aconteça, não signifca que sua planta irá morrer — poderá fcar com um aspecto um pouco prejudicado, mas basta parar a aplicação que ela se recuperará rapidamente, então você não precisa ter receio de fazer experimentações para saber como a adubação foliar com urina funcionará com as suas plantas. Claro que você pode pesquisar sobre quais plantas podem e quais não devem receber adubação foliar com urina, mas as informações obtidas não necessariamente corresponderão à sua realidade. Vou citar o meu exemplo pessoal: encontrei em um artigo a informação que tomateiros são sensívveis e não devem receber adubação foliar com urina; porém, em minha experiência prática, tomateiros benefciam-se dessa adubação sem exibir qualquer efeito negativo. De todas as espécies que tenho testado (dezenas delas), a única que foi prejudicada foram as jabuticabeiras, que exibem queimaduras nas folhas após aplicação de urina diluívda a 1:20, que é a diluição que normalmente uso. Porém, se benefciam da aplicação no solo, sem qualquer problema. Portanto, o mais recomendado é que você faça seus próprios experimentos, pois essa é a única forma confável de saber como suas plantas reagirão à adubação foliar. Caso alguma espécie de planta apresente queimaduras pela urina, você pode testar preparações mais diluívdas, ou optar pela aplicação somente no solo.

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Cheiro de urina

Uma preocupação comum e totalmente pertinente em relação ao uso de urina como fertilizante diz respeito ao cheiro. Afnal, ninguém quer seu jardim ou horta fedendo! Infelizmente, existe, sim, a questão do cheiro. Todos sabemos que urina não é inodora, e sua aplicação no ambiente tende a produzir… cheiro de mijo velho. Esse cheiro pode ser maior ou menor, dependendo de vários fatores. Quanto mais diluívda a urina, menor a tendência a problemas com odores. Também, a aplicação direta no solo tende a feder menos que a aplicação foliar. Se você adicionar a urina cuidadosamente dentro da bacia ao redor de sua planta, sob uma boa camada de cobertura de solo, o odor será praticamente imperceptívvel. De qualquer forma, o cheiro de urina tende a desaparecer dentro de algumas horas, então muitas pessoas julgam que este é um inconveniente tolerável. Porém, isso pode não ser aceitável em todas as situações. Nesses casos, é melhor desistir da adubação foliar, e você pode optar pela aplicação na forma de ferti-irrigação subsuperfcial (logo chegaremos lá). Cinzas + urina

Uma combinação que tem ganhado destaque na agricultura orgânica e permacultura é o uso de cinzas de madeira associado à urina na correção e fertilização do solo. Conforme já mencionado no capívtulo 9 (“Permacultura Rural”), cinzas de madeira têm grande valor na correção da acidez do solo e fornecimento de importantes nutrientes. Sua associação com a urina tem-se mostrado muito efetiva no incremento da produção vegetal. * Agora, o ideal é você usar aquele velho princívpio: “tudo que veio da terra deve voltar à terra”, e aplicar em conjunto seu composto orgânico, estrumes animais, se disponívveis, cinzas e urina — aív sim suas plantas terão uma nutrição completa e perfeita! Agora, a combinação de cinzas e urina tem ainda outra grande utilidade: aplicadas nas folhas ou no solo tem a propriedade de combater pulgões, larvas, lesmas e caracóis, entre outras pragas e doenças. Você pode usá-las de diversas formas: só urina diluívda; só a cinza, polvilhando; ou as duas em conjunto. Você pode molhar as plantas com urina diluívda, e polvilhar com cinzas em seguida, fazendo com que adiram às folhas, ou você pode optar por fazer uma calda de cinzas em água ou em urina diluívda, e aplicar sobre as plantas, etc. A combinação de urina e cinzas atua por diversos mecanismos no combate e prevenção de pragas e doenças: alteram o pH e condições quívmicas em geral na superfívcie da planta, tornando-as desfavoráveis ao desenvolvimento da praga; a * Pradhan, S. K. et al. Stored human urine supplemented with wood ash as fertilizer in tomato (Solanum lycopersicum) cultivation and its impacts on fruit yield and quality. Journal of Agricultural and Food Chemistry. 2009.

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amônia resultante da degradação da ureia é tóxica para muitas pragas e microrganismos patogênicos, combatendo-os; os nutrientes concentrados na urina e cinza fortalecem a planta e atuam como fertiprotetores, etc. E, o melhor de tudo: são 100% naturais, seguros e duplamente benéfcos às plantas, pois além do controle de pragas você estará fazendo uma adubação foliar.

Águas cinzas Águas cinzas são todas as águas residuais de uma casa que não contêm fezes (ou seja, excluindo-se apenas o esgoto proveniente de vasos sanitários). Portanto, águas cinzas são aquelas originadas no banho, pias, lavagem de roupa e louça, limpeza da casa, etc. Cada pessoa produz em média cerca de 100 litros de água cinza por dia, correspondendo à maior parte das águas residuais produzidas. Águas cinzas são muito diferentes de esgotos, tendo valores de sólidos totais, matéria orgânica e bactérias muito inferiores. Ainda assim, podem ter teores signifcativos de matéria orgânica e nutrientes do solo. Trata-se, portanto, de um recurso valioso que não deve ser desperdiçado. O destino fnal mais apropriado das águas cinzas é o solo superfcial, na forma de irrigação. Sua composição é quase totalmente água (> 99,9%); além disso, a matéria orgânica e nutrientes ali presentes são benéfcos ao ecossistema do solo e às plantas. Ainda, seu pH geralmente alcalino auxilia na correção da acidez do solo, problema extremamente comum na maior parte do Brasil. Embora exista o risco de contaminação da água cinza com patógenos, seu uso em irrigação não constitui uma via signifcativa de contaminação ambiental ou transmissão de doenças, sendo portanto considerada uma prática segura do ponto de vista sanitário.*’ ** Uma preocupação frequente que as pessoas têm em relação ao uso de água cinza na irrigação diz respeito à contaminação quívmica pelos diversos produtos usados na higiene pessoal e doméstica. Trata-se de uma preocupação pertinente, especialmente considerando o caráter desconhecido da composição quívmica de muitos produtos de uso doméstico. Porém, pesquisas cientívfcas têm comprovado que mesmo o uso intenso e prolongado da água cinza para irrigação não causa qualquer problema à saúde e produção das plantas, sendo seguro para o meio ambiente.† Sendo assim, a preocupação com contaminação quívmica deve se reverter de forma positiva, ou seja, não desestimulando o reuso de água cinza na * Busgang, A. et al. Epidemiological study for the assessment of health risks associated with greywater reuse for irrigation in arid regions. Science of the Total Environment. 2015. ** Water Research Australia fact sheet – health risks of greywater use. 2013. † Alfiya, Y. et al. Potential impacts of on-site greywater reuse in landscape irrigation. Water Science and Technology. 2012.

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irrigação, mas ao invés disso estimulando o permacultor a optar por produtos de higiene mais naturais (por exemplo, sabões feitos em casa), evitando o uso excessivo de produtos quívmicos — ainda mais considerando que a maioria deles são simplesmente desnecessários! Em contraste, a água cinza quando lançada a corpos d’água naturais causa problemas ambientais e sanitários. Os danos aos ecossistemas aquáticos se dão principalmente de duas formas: pela alteração da composição quívmica da água, e poluição por nutrientes, que leva à eutrofzação (proliferação explosiva de algas) que consome o oxigênio, matando a maioria das formas de vida por anóxia. Também quando depositadas de forma concentrada no solo profundo, por exemplo em sumidouros, a água cinza penetra profundamente indo contaminar o lençol freático com nitratos e nitritos, entre outros poluentes (que no solo superfcial poderiam ter sido prontamente utilizados pelas plantas, aumentando a produção vegetal). Além disso, o aumento da carga microbiana pela descarga de águas cinzas em corpos d’água como rios, lagos e mares pode aumentar o risco de doenças gastroentéricas, respiratórias, oftálmicas e dermatológicas em banhistas e outras pessoas que entrem em contato com essa água. Águas cinzas podem ser usadas com segurança para irrigação superfcial (métodos para essa aplicação foram discutidos no capívtulo 9, “Permacultura Rural”). Essa forma de aplicação tem como vantagens sua simplicidade, efetividade e facilidade de controle e manutenção. Porém, não é a única opção — outra abordagem possívvel é a irrigação subsuperfcial. Irrigação subsuperfcial Aqui, a água cinza será aplicada ao solo superfcial através de tubos perfurados, enterrados a uma profundidade pequena, talvez 10 ou 15 cm abaixo do nívvel do solo, ao longo dos canteiros de sua horta, ou dentro da bacia ao redor de suas árvores. Você pode usar tubos de polietileno de 1,5 ou 2 polegadas, e fazer furos de 5 a 8 mm de diâmetro com uma furadeira. Em sua horta, escave trincheiras rasas, de 15 cm de profundidade, no local onde irá construir seus canteiros. Umedeça e compacte bem o solo dentro da trincheira, para reduzir a penetração de água. Construa as paredes de seus canteiros, usando blocos, toras, cob, etc. Então, comece a preencher o canteiro com terra preparada para plantio, instalando a mangueira perfurada bem no centro do canteiro, envolta por uma camada de alguns centívmetros de cascalho grosso. Termine de encher o canteiro com terra adubada, e já estará pronto para plantio. A entrada do tubo pode ser conectada diretamente à sua tubulação de esgotamento das águas cinzas provenientes da casa, ou você pode passar essa água primeiramente por um fltro de serragem e um tanque de distribuição. Já a extremidade fnal do tubo perfurado deve ser tampada, forçando a saívda da água somente pelas perfurações, e através do cascalho, passando então à terra. 252

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11. Saneamento Ecológico

É conveniente fazer uma renovação periódica de sua horta, mudando a localização dos canteiros para evitar a saturação do solo naqueles locais com umidade e matéria orgânica. Essa precaução é sufciente, evitando a necessidade de se impermeabilizar o solo sob o sistema de drenagem de água cinza para prevenir penetração a camadas profundas. Quando da reforma de seus canteiros, você poderá reaproveitar todos os materiais — blocos, tubos e cascalho — e perceberá que a terra estará riquívssima em matéria orgânica, cheia de minhocas.

Dissecção de um canteiro com irrigação subsuperficial

Você pode fazer um esquema semelhante, enterrando um tubo perfurado, envolvido por uma camada de cascalho, ao redor de suas árvores ou mudas, mas isso não é necessário — basta colocar o tubo perfurado dentro da bacia e cobrilo com uma camada generosa de matéria vegetal morta. Esses mesmos sistemas podem ser utilizados para ferti-irrigação subsuperfcial com urina, conforme citado anteriormente.

Soluções ecológicas para o saneamento urbano Há que se reconhecer que as técnicas de saneamento ecológico descritas acima, embora perfeitamente viáveis para situações rurais, são quase sempre impraticáveis em um contexto urbano, devido principalmente à limitação de espaço. Isso é especialmente verdadeiro para pessoas que moram em apartamentos, ou casas sem quintal. A impossibilidade de ter um sistema individual de saneamento ecológico é apenas uma das limitações impostas pela vida urbana, no tocante a um estilo de vida sustentável. Outras limitações incluem a impraticabilidade de produzir alimentos em quantidade substancial e realizar atividades de recuperação ambiental em larga escala (e.g. reforestamentos). Ainda assim, é impossívvel negligenciar o fato que a maioria das pessoas atualmente vivem em cidades (54% no mundo, e 85% no Brasil, dados de 2016).

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11. Saneamento Ecológico

Conforme já citado, os sistemas atuais de saneamento urbano são apenas parcialmente efetivos, já que de fato protegem a saúde humana, mas o fazem às custas de graves danos ambientais. Porém, é perfeitamente possívvel empregar as éticas e princívpios da permacultura no aperfeiçoamento das técnicas de saneamento urbano, criando metodologias e sistemas mais ecológicos. Além disso, qualidade do saneamento depende não somente da infraestrutura, mas também dos hábitos e atitudes diárias das pessoas. Portanto, nossa discussão aqui abordará esses dois nívveis: as atitudes individuais e sistemas de saneamento ecológico em escala municipal.

Atitudes individuais para o saneamento ecológico urbano Economize água Este é o ponto mais elementar de nossos hábitos diários que deve ser mudado, visando a sustentabilidade. A água é um recurso valiosívssimo que está em declívnio devido a um conjunto de fatores que inclui desperdívcio, destruição ambiental (de forestas, mananciais), mudanças climáticas, etc. Águas municipais, tratadas e seguras, são muito baratas para o consumidor e isso, embora seja bom por torná-las acessívveis, infelizmente não estimula as pessoas a economizarem, o que leva a uma enorme taxa de desperdívcio. Porém, embora não pese no bolso, essa água vem a enormes custos ambientais, no represamento e desvio de cursos d’água, custos de tratamento e distribuição, e também no custo do tratamento dos esgotos, cujo volume gerado é proporcional ao consumo de água. O consumo médio de água doméstica é de cerca de 150 litros por pessoa por dia. Porém, é perfeitamente possívvel viver com uma pequena fração desse volume diário, sem prejudicar o conforto ou higiene — apenas cortando os desperdívcios! Reduzir o consumo signifca reduzir o volume de esgotos gerados, e quanto menor o volume de esgotos, mais fácil, barato e efciente será o seu tratamento, com benefívcios portanto à economia e ao meio ambiente. Reuse, recicle as suas águas cinzas: colete água do chuveiro para dar descarga, e diminua o número de descargas por dia. Reuse sua água cinza também na limpeza da casa e rega de suas plantas, reduzindo ainda mais o volume de esgoto gerado. Instalações sanitárias domésticas Um problema muito grave e extremamente comum em todo o mundo são instalações sanitárias que misturam esgotos com água da chuva — os chamados esgotos combinados (um nome “chique” para instalações inadequadas). Água de chuva e esgotos são duas coisas completamente diferentes, e misturá-las é um 254

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tremendo absurdo, que causa um grande aumento no volume de esgoto e também futuações brutais nesse volume (pense num dia de chuva forte), fazendo com que o tratamento se torne muito mais caro, difívcil e inefciente, levando a consequências nefastas para o ambiente, e não raro também para a saúde pública. Esse problema ocorre em todos os nívveis, desde o individual (instalações domiciliares) até o coletivo (redes de esgotos municipais). No nívvel individual, cabe a cada um adequar as instalações sanitárias de sua casa para impedir que água da chuva entre nas tubulações de esgotos. Evite produtos tóxicos As prateleiras dos supermercados estão sempre abarrotadas com uma infnidade de produtos para higiene e cuidado pessoal e limpeza doméstica. Isso pode dar às pessoas a impressão que esses produtos são úteis, importantes ou mesmo necessários à vida contemporânea. Porém, na maioria dos casos, isso não é verdade — a maior parte desses produtos poderia simplesmente desaparecer, que o mundo não sentiria a menor falta. São soluções para problemas que não existem, consumidas compulsivamente devido a uma paranoia criada na cabeça das pessoas pela própria indústria quívmica, através da propaganda. O problema é que esses produtos normalmente contêm substâncias quívmicas sintéticas com efeitos negativos no meio ambiente, como triclosan, surfactantes, etc. Portanto, restrinja seu consumo de produtos de higiene e cuidado pessoal e limpeza doméstica ao básico. Sempre que possívvel, substitua mesmo esses produtos básicos por alternativas naturais (sabões caseiros, dentifrívcio natural, etc.) Reduza o consumo de produtos industrializados A água de uso doméstico representa apenas uma parte do total de água que de fato consumimos, e esgotos que geramos. Não podemos nos esquecer que todos os produtos industrializados têm um consumo de água embutido, que pode ser muito grande, e que os esgotos industriais também são nossa responsabilidade, à medida que consumimos esses produtos. Portanto, abandonar o consumismo é chave para a melhoria da sustentabilidade também no que diz respeito ao saneamento.

Saneamento ecológico em escala municipal — tratamento de esgoto e destinação fnal de seus subprodutos Sistemas de tratamento de esgotos vêm sendo desenvolvidos há cerca de um século, e melhorias nos sistemas de saneamento para alcançar um alto grau de sustentabilidade nas cidades devem ser feitas com base nos sistemas existentes e em operação. 255

Parte II – A Alternativa da Permacultura

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Um sistema tívpico de tratamento de esgotos se divide em duas fases, a lívquida e a sólida, compreendendo resumidamente as seguintes etapas: Fase líquida: • Remoção fívsica de detritos (lixo) por gradagem, e de areia por sedimentação. • Decantação primária, em que o esgoto passa por tanques onde é retido por um perívodo de tempo, permitindo a sedimentação de sólidos, formando assim o lodo de esgoto primário. • Aeração em tanques onde o esgoto é retido e agitado por um certo tempo. Isso causa a proliferação de bactérias aeróbicas, que consomem a matéria orgânica do esgoto, transformando-a em biomassa bacteriana. • Decantação secundária, onde matéria sólida constituívda primariamente de biomassa bacteriana e outros resívduos orgânicos se sedimenta, formando o lodo de esgoto secundário, com separação do efuente. • Destinação do efuente — geralmente lançamento a corpos d’água (rios, lagos, mar), às vezes após tratamento quívmico com cloro. Fase sólida: • Digestão: após remoção parcial de umidade (adensamento), o lodo de esgoto total (ou seja, lodo primário e secundário juntos) passa para os digestores, onde sofre ação de bactérias anaeróbias, com destruição parcial de patógenos e produção de gás metano (que deve ser reaproveitado para produção de energia na própria estação de tratamento). • Prensagem, para remoção de mais umidade. • Agora, o lodo de esgoto pode seguir um de diversos caminhos: ━ Destinação a aterro sanitário. ━ Desidratação por calor e incineração para produção de energia termelétrica. ━ Tratamento térmico, quívmico ou compostagem para sua sanitização, possibilitando seu uso como fertilizante agrívcola. A análise do processo geral de tratamento de esgotos permite facilmente identifcar os pontos principais em que o meio ambiente é agredido, ou seja, a destinação dos produtos fnais das fases lívquida e sólida. Tratemos primeiro da fase sólida. No Brasil, a maior parte do lodo de esgoto é destinado a aterros sanitários, prática comum também em outros paívses, infelizmente. Essa é a solução tívpica de quem não quer lidar com seus problemas e prefere, então, simplesmente escondê-los, tirá-los da vista. É como varrer a sujeira para debaixo do tapete. 256

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11. Saneamento Ecológico

Sepultar esse material rico em nutrientes do solo em aterros sanitários é uma afronta, uma indignidade. É de causar assombro pensar que no futuro, populações empobrecidas e desesperadas — nossos descendentes — talvez tenham que escavar esses antigos aterros, num tipo miserável de mineração para recuperar os nutrientes que nós hoje desperdiçamos, para conseguirem produzir alguma comida, em uma luta atroz pela sobrevivência. Em muitos lugares, o lodo de esgoto é totalmente desidratado e então usado como combustívvel em usinas termelétricas, para produzir energia. Essa já é uma forma bem mais racional de lidar com esse resívduo, já que há um aproveitamento da energia ali contida, e também de muitos nutrientes, que permanecem na forma de cinzas, podendo ser usados na agricultura. Porém, essa prática também tem seus problemas, pois gera poluição do ar e agravamento do efeito estufa, além da perda de alguns nutrientes importantes e destruição da matéria orgânica do lodo de esgoto. O uso do lodo de esgoto tratado, também chamado biossólidos, como fertilizante agrívcola é a forma mais racional e ecológica de destinação desse resívduo. Trata-se da aplicação daquele velho princívpio: “o que veio da terra, deve retornar à terra”. Felizmente, essa prática já é comum em várias partes do mundo — mais da metade dos biossólidos produzidos nos Estados Unidos, e cerca de 70% dos produzidos na França e Reino Unido são devolvidos ao solo, seja na agricultura ou em projetos de recuperação ambiental.* Os biossólidos são riquívssimos em matéria orgânica e contêm quantidades expressivas de todos os nutrientes do solo necessários às plantas. Sustentabilidade requer que esse material seja visto como um recurso valioso a ser utilizado, e não um inconveniente a ser descartado ou escondido. Para que possa ser utilizado com segurança, é preciso que se tomem precauções adequadas, incluindo a monitoração e controle de contaminantes quívmicos e biológicos. O controle de contaminantes quívmicos se dá através da ação combinada de prevenção de contaminação na fonte (por exemplo, regulamentações legais e monitoramento das fontes poluidoras, especialmente indústrias) e aplicação de técnicas de descontaminação durante o tratamento do esgoto. Já a descontaminação microbiológica pode ser obtida através de diversos métodos, dentre os quais se destaca a compostagem. A co-compostagem termofívlica de lodo de esgoto com outros resívduos orgânicos municipais, ou seja, lixo orgânico doméstico e industrial, usando ainda restos de poda triturados como material estruturante (equivalente ao nosso velho conhecido material de cobertura) é uma forma reconhecida de produzir composto de excelente

* Tyberatos, G. et al. Sewage biosolids management in EU countries: challenges and prospective. Fresenius Environmental Bulletin. 2011.

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11. Saneamento Ecológico

qualidade, com efetiva eliminação de patógenos *’ ** e também a neutralização de outros contaminantes como metais pesados.† Agora, quanto à fase lívquida, lançá-la a corpos d’água é claramente uma destinação inadequada. Isso porque o efuente de esgoto ainda retém uma carga substancial de matéria orgânica, nutrientes e bactérias, inclusive patógenos. ‡ Quando, na tentativa de eliminar os patógenos, empregam-se métodos mais agressivos de desinfecção, isso gera outro problema, que é a poluição quívmica das águas por desinfetantes. Para que um sistema de saneamento possa ser considerado ecológico, é fundamental que em todas as suas fases ele jamais entre em contato com cursos d’água naturais. Portanto, o destino fnal dos efuentes de esgotos deve ser o mesmo que o dos biossólidos: o solo. Isso porque o solo tem as melhores condições para eliminar os contaminantes do efuente e seus possívveis riscos, e o faz através de diversos mecanismos: adsorção, degradação microbiana, fotodegradação pela radiação solar, etc. Esse efuente deve ser levado, por gravidade se possívvel, ou bombeado se necessário, a locais onde possa ser usado na irrigação de plantações arbóreas, como pomares, agroforestas, plantações de madeiras e projetos de recuperação ambiental (reforestamentos), etc. Assim, mantendo toda a cadeia do saneamento segregada dos cursos d’água naturais e ecossistemas aquáticos, tratando de forma adequada e devolvendo ao solo os produtos das fases lívquida e sólida do tratamento de esgotos de maneira a fomentar a produção agrívcola e recuperação ambiental, poder-se-á dizer que temos um verdadeiro saneamento ecológico em grande escala. Claro que isso envolve também a expansão e adequação da rede coletora de esgotos, para que sirva toda a cidade, e a resolução de problemas como os já citados esgotos combinados, e vazamentos nos sistemas coletores, que são causa comum de contaminação ambiental. O impacto da aplicação dos conceitos e técnicas descritas acima será profundo, especialmente se adotadas em conjunto com as medidas descritas no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”), levando a uma grande transformação do ambiente urbano. Pense numa cidade com nascentes, riachos, córregos e rios cristalinos, com peixes, aves, todo tipo de fauna, matas ciliares (na forma de parques lineares), etc. Pois é disso que estamos falando. * Teite, T. A. Compostagem termofílica de lodo de esgoto: higienização e produção de biossólido para uso agrícola. Dissertação (mestrado). Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. 2015. ** Water Environment Federation. Tand application and composting of biosolids – Q&A/fact sheet. 2010. † Smith, S. R. A critical review of the bioavailability and impacts of heavy metals in municipal solid waste composts compared to sewage sludge. Environment International. 2009. ‡ Silva, M. C. de A. et al. Avaliação da qualidade microbiológica de efluentes sanitários tratados por sistemas de lodos ativados. Revista Caderno Pedagógico, Tajeado. 2017.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura

11. Saneamento Ecológico

Pesando os riscos Muitas pessoas, organizações e governos são relutantes em aceitar a aplicação de biossólidos e efuentes de estações de tratamento de esgoto no solo, considerando os potenciais riscos ao meio ambiente e saúde humana associados aos inúmeros contaminantes biológicos e quívmicos comumente presentes nos esgotos, tais como patógenos, resívduos de produtos farmacêuticos, produtos quívmicos domésticos e poluentes industriais como metais pesados, poluentes orgânicos persistentes, etc. Sem dúvida, trata-se de uma preocupação pertinente. Porém, será que o banimento da reciclagem dos resívduos de nossas próprias casas, e de nossa civilização em geral, é o melhor caminho? Em qualquer paívs ou região razoavelmente desenvolvida, há regulamentações legais e mecanismos de controle sufcientes que mantêm os nívveis desses contaminantes presentes nos biossólidos e efuentes dentro de limites aceitáveis, seguros tanto para o meio ambiente como para a saúde humana, de acordo com instruções técnicas guiadas por pesquisas cientívfcas especívfcas, sendo que também o modo, a quantidade e frequência de aplicação desses produtos no solo são alvo de regulamentações técnicas, visando garantir tanto a efcácia quanto a segurança dessa aplicação. Já em paívses e regiões atrasadas econômica e socialmente, esse controle inexiste; porém, tampouco há tratamento de esgoto! Portanto, nesses casos, a erradicação da pobreza seria a prioridade. Claro que não se pode confar totalmente nas regulamentações, controle e pesquisas citadas acima. Mas, por outro lado, histeria em relação aos riscos ambientais e sanitários do uso de resívduos como recursos é contraproducente em múltiplos nívveis. Ao deixar de usar efuentes e biossólidos em um projeto de recuperação ambiental, você perde a chance de recuperar a fertilidade daquele local e aumentar a biomassa e biodiversidade, ou seja, você está deixando de recuperar e ao invés disso mantendo degradado justamente o ambiente que você tinha intenção de proteger. Da mesma forma, ao deixar de usar esses recursos de forma responsável e segura na agricultura, você força a um aumento no uso de fertilizantes quívmicos, que além de também terem suas contaminações quívmicas, ainda são insustentáveis e não renováveis, causando, pois, danos ambientais muito maiores, além de sua exaustão, comprometendo a segurança alimentar das gerações futuras. As preocupações existem e são válidas, mas elas não devem nos levar à vilanização e banimento dos subprodutos do tratamento de esgotos, e sim a boas práticas que os tornem seguros. Os riscos devem ser cuidadosamente monitorados. Pesquisas cientívfcas devem investigar as caracterívsticas e riscos de compostos novos e antigos, para orientar medidas de controle e segurança adequadas (leis, fscalização, etc.), e isso deve ser acompanhado de perto pela 259

Parte II – A Alternativa da Permacultura

11. Saneamento Ecológico

sociedade civil, já que o controle de substâncias vai contra interesses de grupos infuentes, como a indústria quívmica e corporações em geral. Tecnologias adequadas devem ser aplicadas e desenvolvidas para evitar a poluição na sua fonte (por exemplo, recuperação de metais pesados nos esgotos industriais dentro da própria indústria, permitindo sua reciclagem efetiva e reduzindo seus nívveis no esgoto). Onde não for possívvel um processo não poluidor, a atividade em questão deve ser banida ou restringida até que se desenvolva um processo ecologicamente correto. O mesmo tipo de controle deve ser feito em relação a produtos de uso doméstico: se contiverem poluentes que sejam motivo de preocupação, eles devem ter seu teor restringido por lei e/ou taxados de forma que eles próprios fnanciem os custos de remoção dos seus resívduos no tratamento de esgotos, desencorajando ainda tanto a indústria como os consumidores, devido à elevação do custo, etc. Há que se ter a clareza que resívduos de tratamento de esgoto são uma realidade inevitável de nossa civilização, e nós não podemos mandar os poluentes para o espaço sideral, assim como não podemos trazer do espaço nutrientes do solo para produzir alimentos. Nós vivemos em um sistema fechado — a Terra — e é aqui que temos que resolver nossos problemas. E a melhor solução para os subprodutos do tratamento de esgotos é, sem dúvida, a devolução ao solo de forma produtiva, fechando o ciclo dos nutrientes.

Comentário fnal sobre o saneamento ecológico É um verdadeiro escândalo que deveria ser causa de grande indignação e perplexidade geral que nossa sociedade atual, com tamanha modernidade e altas tecnologias, ainda adote o “jogar a merda no rio e deixar que a natureza se vire” como estratégia de “saneamento”. A transformação desse quadro, com a substituição generalizada desse modelo arcaico por sistemas ecológicos e sustentáveis é necessária e urgente, e é a missão dos permacultores liderar essa luta, dando o exemplo, empregando as técnicas de saneamento ecológico, e também através da disseminação de informações, trabalhos de conscientização e mobilização pública, pressão polívtica, etc., e até contribuindo com consultoria técnica para viabilizar essa transformação em grandes escalas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura

12. Energia

12 ENERGIA

O vívcio por energia é uma das principais caracterívsticas de nossa civilização. Conforme discutimos na Parte I, a total dependência de enormes quantidades de energias para cada um dos aspectos do estilo de vida moderno traz terrívveis consequências para o meio ambiente e a sustentabilidade. Por isso, na permacultura devemos buscar com máxima seriedade uma redução tanto no consumo de energia como na dependência de recursos energéticos, especialmente os não renováveis, ou seja, a permacultura deve pôr-se na vanguarda de um movimento para um estilo de vida de baixa energia, e de preparação para um cenário futuro de escassez de recursos energéticos. Muitas pessoas, preocupadas com a crise energética que se insinua no futuro próximo, bem como as consequências ambientais de curto, médio e longo prazo das tecnologias e fontes de energia dominantes no cenário atual (e.g. mudança climática pelo uso de combustívveis fósseis), focam suas esperanças na adoção de fontes alternativas de energia, de menor impacto ambiental, tais como solar e eólica, e também no desenvolvimento de novas tecnologias, como a geotérmica, maremotriz, etc., para substituir as matrizes energéticas atuais, como forma de resolver ou minimizar esses problemas. Mas, embora essas abordagens sejam sem dúvida úteis, nada conhecido pela humanidade até hoje, nem mesmo todas as tecnologias alternativas combinadas chegam sequer perto de substituir a utilidade do petróleo, tanto como fonte de energia como matériaprima para a indústria, para a manutenção dos nossos estilos de vida atuais. 261

Parte II – A Alternativa da Permacultura

12. Energia

Dentre seus principais atributos exclusivos, podemos citar a altívssima densidade energética, facilidade de armazenamento e transporte, versatilidade (produção de diversos tipos diferentes de combustívveis, com mívnimas perdas de energia, como gasolina, diesel, GLP, etc.; matéria-prima para milhares de produtos essenciais para o estilo de vida moderno). Portanto, não será possívvel, mesmo com o desenvolvimento de energias renováveis e novas tecnologias, manter o estilo de vida atual — isso é uma ilusão. Nossa civilização, como a conhecemos hoje, só passou a existir por causa do petróleo, e sua manutenção depende inexoravelmente de um suprimento abundante e contívnuo de petróleo barato — o que sabemos que não vai continuar por muito tempo. A não ser, é claro, que surja um novo e totalmente revolucionário recurso que seja capaz de subsituir o petróleo, o que teoricamente talvez seja possívvel, mas certamente extremamente improvável. Contar com isso é o mesmo que se agarrar à esperança de um milagre, por pura preguiça de fazer o que realmente deve ser feito, o que está ao nosso alcance. Claro que a adoção de fontes energéticas renováveis e desenvolvimento de novas tecnologias são passos na direção certa. Porém, o que é necessário, acima de tudo, é uma mudança radical da forma como vivemos, ou seja, adotar um estilo de vida de baixa energia, para alcançar alguma sustentabilidade. Para isso, todas as estratégias disponívveis devem ser empregadas: “localização” (em oposição à “globalização”), ou seja, focar na produção e circulação local de bens e serviços, reduzindo o gasto de energia para transporte e locomoção; um empenho para a conservação de recursos em geral, através da adoção de uma cultura do permanente, em oposição à atual cultura do descartável, ou seja, abandonar o consumismo e eliminar os desperdívcios; “desartifcialização” da vida, ou seja, o resgate de um estilo de vida mais simples e natural; autoprodução (autossufciência em vários nívveis), etc. Além da redução no uso de energia, devemos também tomar todos os cuidados para evitar as perdas de energia, através da aplicação do princívpio da efciência energética (nosso Princívpio n.o 6), e todas as técnicas relacionadas, conforme vimos discutindo. Outra forma extremamente importante de reduzirmos nosso consumo e dependência de recursos energéticos é através da aplicação do princívpio da tecnologia apropriada ( Princívpio n.o 13), que nos ajuda a deixar de usar formas mais impactantes e insustentáveis de energia (geralmente associadas a altas tecnologias) e usar formas mais naturais, sustentáveis, e por vezes até primitivas de energia. Seguem alguns exemplos: • Geralmente não se deve usar eletricidade para aquecimento, e sim energia solar — não painéis fotovoltaicos, mas sim aquecedores solares de água, podendo inclusive ser fabricados por você mesmo, a baixo custo econômico e ambiental, como já discutimos no capívtulo 10. 262

Parte II – A Alternativa da Permacultura

12. Energia

• Em situações rurais, pode-se evitar a dependência do uso de combustívvel fóssil (GLP) para cozinhar, dando-se preferência à lenha, produzida no próprio local de forma sustentável (plantio com essa fnalidade, podas), como já discutido. Deve-se dar preferência a modelos de fogão de alta efciência (baixo consumo de lenha e baixa produção de fumaça). Também pode-se usar o fogão a lenha para aquecer água, através de um sistema de serpentina. • Evitar o transporte motorizado, usando energia humana (bicicleta), o que signifca converter “arroz e feijão” em energia cinética e locomoção, sem gerar poluentes, e ainda fazendo um bem danado para a saúde. O uso de tecnologia apropriada requer atenção e bom senso, pois caso contrário corre-se o risco de causar ainda mais impacto ambiental que no uso das fontes convencionais de energia. Por exemplo, o uso de lenha para aquecimento de casas e cocção de alimentos, embora útil em situações rurais, nas cidades é totalmente desvantajoso, pois o recurso não pode ser produzido localmente, tendo que ser importado; você não terá como saber se a origem da lenha é sustentável (provavelmente não será); lenha é volumosa (baixa densidade energética), trazendo grandes custos econômicos e ambientais pelo transporte; se todos usassem lenha nas cidades, isso certamente agravaria enormemente o problema de poluição do ar, devido à alta concentração demográfca, etc. Eletricidade Muitas pessoas sonham em viver totalmente desconectadas de serviços públicos como abastecimento de água e energia (sistemas “of-grid”). Há várias razões para isso: talvez desejem reduzir seu impacto ambiental, ou creiam que economizarão dinheiro; em muitos casos, o desejo de se desconectar de serviços públicos é refexo de uma rejeição à sociedade em geral, representando uma intenção de afastamento da cultura dominante, etc. Viver desconectado da rede pública é geralmente viável para água, usando a água da chuva, como já discutido no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”). Já em relação a energia elétrica, a estória é bem diferente, e a situação deve ser analisada caso a caso. Isso porque, no caso da água, pode-se dizer que a construção e operação de sistemas de água de chuva têm impactos negativos mívnimos (pode-se citar o uso de materiais para sua construção como tendo impacto negativo inicial), facilmente compensados pelos benefívcios ambientais da fxação da água no local e evitamento do uso de fontes menos sustentáveis de água. Já no caso da energia elétrica, inevitavelmente há maiores custos ambientais envolvidos, já que se requer quantidades expressivas de materiais e tecnologias, e geralmente não há impactos positivos ao ambiente. O ambiente não se benefcia de lâmpadas acesas e eletrodomésticos em geral. Esses são 263

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12. Energia

apenas para nosso conforto e conveniência. Há, porém, exceções, como maquinários úteis aos trabalhos que benefciarão a natureza (por exemplo, se você usa um triturador elétrico para produzir material de cobertura de qualidade para sua composteira), podendo, em alguns casos, levar a um efeito global positivo, embora isso seja muito difívcil de avaliar com exatidão. Porém, o fato mais relevante é que, ao contrário do que muitos pensam, e diferentemente dos sistemas de água, sistemas individuais de energia elétrica na verdade tendem a ter tanto custos econômicos como impactos ambientais mais elevados que sistemas coletivos, em larga escala. Isso é um ponto que causa confusão; a pessoa pensa: “como meu gerador eólico, ou minhas placas solares, ou minha pequena turbina de hidroeletricidade pode causar mais dano ao ambiente que uma grande usina?” Para entender isso, temos que olhar para todos os elementos do sistema, e projetar em escalas adequadas. Por exemplo, quando se fala em energia fotovoltaica, pensa-se logo no uso da fonte “infnita” e sustentável de energia solar sendo convertida em eletricidade, o que sem dúvida é ótimo. Porém, raramente as pessoas levam em consideração o custo ambiental da produção dos painéis, que envolvem operações industriais e altívssimas tecnologias, mineração de elementos raros, etc. que ocorrem em partes remotas do globo como China e África, envolvendo custos ambientais e sociais desconhecidos por nós (sendo que a maioria das pessoas nem sequer pensa nessas consequências). Também de grande importância é a questão das baterias, que são indispensáveis, afnal, sem elas você não poderia acender lâmpadas à noite, independentemente de quanta energia solar tenha convertido durante o dia. Essas baterias não são coisa que você compra uma vez, e usa a vida toda — elas são caras, e contêm substâncias quívmicas tóxicas, sendo que ainda não existe tecnologia para sua reciclagem completa, levando a contaminações ambientais. Além disso, as futuações tanto na produção como no consumo de eletricidade no nívvel individual são bem maiores que no nívvel coletivo, e portanto para que você tenha um suprimento garantido, isso requer que você tenha um sistema relativamente superdimensionado, implicando em impactos proporcionalmente maiores. O mesmo se aplica a outras formas de energia renováveis em escala individual. Por exemplo, você pode instalar um sistema hidrelétrico se tiver uma queda d’água no seu terreno, mas isso terá impacto nesse curso d’água. Claro que o impacto por uma usina hidrelétrica é muito maior, mas a responsabilidade por esse impacto é dividida por milhões de pessoas. Além disso, ao usar um sistema individual, o dano da usina continuará igual, mas a cachoeira próxima à sua casa, não. Outra forma de olhar para essa situação é a seguinte: se todas as pessoas inventassem de fazer sistemas individuais e independentes de energia, a quantidade de materiais usados, de resívduos gerados e impactos em geral seriam

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12. Energia

muito maiores do que nos sistemas atuais, centralizados e coletivos. Coisa semelhante pode-se dizer a respeito da suposta economia de dinheiro. Quando você investe em um sistema individual de energia elétrica com capacidade para manter o consumo normal de sua casa, o montante é sempre muito substancial. Normalmente, a pessoa faz as contas, e chega à conclusão que o investimento será pago em cerca de 10 anos, por exemplo. Conclui que valerá a pena. Porém, essa decisão é baseada na ilusão que bastará comprar e instalar o sistema, uma única vez, e depois disso será só usar, para sempre, energia “de graça”. Só que não é bem assim: daív vem o custo com manutenção, reparos, adequações, substituição de baterias… e o indivívduo refaz as contas, e conclui que o investimento só será pago em 20 anos. Só que antes disso, seu sistema já fcou obsoleto, ou chegou ao fm de sua vida útil, tendo que ser substituívdo! Ou seja, no fnal das contas, geralmente conclui-se que não houve economia alguma. Outro engano comum é a pessoa achar que vai conseguir construir seu próprio sistema alternativo de eletricidade, utilizando materiais reaproveitados de sucatas, como um alternador ou bateria velha de automóvel conseguido em um ferro velho qualquer, ou um dívnamo, ou motor elétrico, fazendo adaptações, etc. Invariavelmente, o que se consegue é produzir geringonças totalmente disfuncionais, francamente inúteis. Você pode até conseguir fazer uma pequena lâmpada acender precariamente, ou algum eletrodoméstico funcionar por alguns minutos, e sentir nisso como uma espécie de vitória; mas entre isso e ter um sistema efetivo, que substitua na prática em qualquer grau a eletricidade da rede para realização de trabalho útil, há uma diferença muito grande. Portanto, sistemas individuais de energia desconectados da rede pública em geral são uma ilusão, tanto no que diz respeito à independência, pois são produtos tecnológicos, que não se pode desenvolver, construir e manter sem depender de indústrias, como no que diz respeito à economia de dinheiro ou proteção ao ambiente. Claro que há casos em que sistemas individuais são os mais atrativos, por exemplo em localidades remotas, não servidas pelos sistemas convencionais, ou quando justamente pela distância e difculdade de acesso a conexão à rede pública seja particularmente cara, ou consuma recursos em demasia (e.g. linhas de transmissão excessivamente longas), sendo que uma coisa geralmente acompanha a outra. Agora, na maioria dos outros casos, geralmente é mais vantajoso usar a energia da rede, ou seja, geralmente não vale a pena, nem do ponto de vista econômico, nem do ambiental, deixar de usar uma eletricidade que já está instalada no seu terreno ou sua casa para passar para um sistema individual. Agora, em todos os casos, seja qual for sua fonte de energia elétrica, uma regra é sempre válida: economizar energia, pois com isso, sim, inevitavelmente você estará poupando a natureza (e dinheiro, é claro). 265

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12. Energia

Soll, Lual, estrelas

A discussão acima é válida especialmente tendo como referência um consumo de eletricidade nos nívveis comumente observados, de acordo com o estilo de vida moderno. Porém, essa não é a única opção! Em algumas situações, especialmente situações rurais, pode ser também uma boa ideia deixar de lado totalmente o uso de eletricidade, e viver de forma mais natural, simples e rústica, como o homem viveu por praticamente a totalidade de sua história. Isso pode ser uma ótima forma de se reintegrar com os ciclos naturais, e também desenvolver um estilo de vida menos dependente de insumos tecnológicos, resgatando formas tradicionais de fazer coisas e resolver problemas, à moda antiga. Ou então, podese optar por um consumo extremamente minimalista de eletricidade, e neste caso, o uso de sistemas individuais, especialmente energia fotovoltaica, pode passar a ser uma opção válida. Essa é uma forma de unir o melhor dos dois mundos. Se sua necessidade de eletricidade é muito baixa, como por exemplo apenas para poder usar um computador, acender uma lâmpada à noite ou carregar uma lanterna, basta um pequeno sistema de energia solar, e você terá uma ótima relação custo/benefívcio, tanto do ponto de vista econômico como ambiental.

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13. Permacultura Urbana

13 PERMACULTURA URBANA

Conforme já citado, é na zona rural que a permacultura pode alcançar ao máximo seu potencial, devido ao espaço que você terá, que lhe possibilitará captar e fxar grandes volumes de água, plantar milhares de árvores e recuperar ecossistemas em larga escala, produzir alimentos orgânicos em grande quantidade, além de permitir um grau de reintegração e conexão muito maior com a terra e os demais elementos, e os ciclos naturais, etc. No entanto, a maioria das pessoas hoje vivem em cidades. Especialmente as pessoas interessadas em permacultura, quase sempre vêm de um contexto urbano. Não é difívcil de entender o porquê disso, já que são os moradores da cidade quem mais sofrem com o distanciamento do que é natural, e também tendem a ter uma consciência mais aguda da gravidade da crise ambiental global. Para que possam alcançar o objetivo de uma vida mais natural e saudável, em contato e harmonia com a natureza, com uma reintegração com os ciclos naturais, contribuindo efetivamente na preservação e restauração do meio ambiente, produção natural de alimentos, etc., o ideal é, sem dúvida, que essas pessoas mudem-se para a zona rural. Há que se reconhecer que essa mudança não é simples, como temos visto ao longo dos capívtulos anteriores, exigindo grande preparo, planejamento, seriedade e coragem. Mas o ideal seria que, com o avanço e a propagação da permacultura, nós observássemos um verdadeiro êxodo urbano, ou seja, um grande número de pessoas abandonando as cidades e indo fxar-se na terra, para trabalhar ativamente na sua recuperação e preservação. 267

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13. Permacultura Urbana

Porém, muitos dos apaixonados pela permacultura que vivem hoje em cidades, por uma infnidade de motivos possívveis, talvez não possam ou desejem abandonar a cidade e começar uma nova vida no campo, pelo menos num futuro próximo. Mas ainda assim, desejam fazer tudo que estiver ao seu alcance para ter uma vida mais natural e sustentável, dentro de suas possibilidades. E claro que sempre é possívvel fazer alguma coisa. É aív que entra a permacultura urbana. A incorporação e aplicação das éticas e princívpios da permacultura nas nossas escolhas diárias, desde as atitudes mais corriqueiras do dia a dia até as grandes opções de vida e planos para o futuro, inevitavelmente levam ao desenvolvimento de um estilo de vida consciente e muito mais sustentável. Esse estilo de vida está ao alcance de todos que despertam para a gravidade do momento atual da humanidade, e uma vez adquirido conhecimento sobre as éticas e princívpios, sendo um elemento central da permacultura. Isso será discutido em detalhes no próximo capívtulo (“Estilo de Vida da Permacultura”). Outras questões importantes à permacultura urbana, relativas ao design da casa e sistemas de água, já foram discutidos em capívtulos anteriores. No presente capívtulo, focaremos nossa discussão nos sistemas produtivos aplicáveis à permacultura urbana. Recursos Em situações urbanas, os recursos mais limitantes são espaço e terra. Terra pode ser muito escassa, especialmente em áreas altamente urbanizadas, onde, para todo lado que você olha, só há construções e pavimentação. As poucas áreas com terra são parques, praças e jardins, de onde você não pode tirar terra. Portanto, muitas vezes as pessoas que querem plantar alguma coisa se veem forçadas a comprar terra (!!). Já nas áreas mais periféricas e suburbanas, é geralmente possívvel obter terra de áreas ainda não construívdas, Porém, talvez o recurso mais limitante seja mesmo o espaço. Ele será discutido em detalhes mais adiante. Por outro lado, a maioria dos outros recursos são mais fáceis e abundantes na zona urbana, por vezes mais fáceis até que na zona rural. Serragem pode ser obtida com facilidade em madeireiras e marcenarias; outros materiais de cobertura de solo, como folhas caívdas, restos de poda, etc. são encontrados com facilidade em praças e parques. Muitas vezes, o serviço de manutenção da prefeitura varre ou rastela essas áreas, juntando as folhas e ensacando-as para enviar para o aterro sanitário (uma prática lamentável). Geralmente, basta você pedir, que poderá levar esse material, já ensacado, para sua casa ou outro local onde esteja desenvolvendo suas atividades (compostagem, plantio). Cinzas podem ser obtidas em pizzarias de forno a lenha, por exemplo. A compostagem é prática obrigatória a permacultores urbanos. Você deverá compostar todos os seus resívduos orgânicos domésticos, tanto como modo de destinação ecológica desses resívduos como para obtenção de 268

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13. Permacultura Urbana

fertilizante, que será necessário para sua produção de alimentos. Caso possa, queira ou necessite, pode também pedir aos seus vizinhos que separem e doem seus resívduos orgânicos, de forma que você possa contar com uma quantidade maior de composto orgânico para suas atividades. Agora, se você tiver bastante espaço, uma boa adesão da sua vizinhança e facilidade de obtenção dos demais recursos necessários, também pode pensar em fazer compostagem em mais larga escala, para venda do composto orgânico como forma de atividade econômica, além do cunho ambiental. Essa ideia será discutida no capívtulo 17 (“Consultoria e Prestação de Serviços em Permacultura”). Em geral, água não deverá ser um problema na zona urbana, pois você tem uma relação de área de telhado/área de plantio enorme. Deve-se enfatizar que devemos sempre focar no uso de água de chuva para irrigação (e águas cinzas, também), e evitar o uso de águas tratadas municipais para esse fm, pois isso caracteriza uma prática insustentável. Espaço A principal e mais óbvia limitação imposta ao permacultor urbano diz respeito ao espaço, já que muitas pessoas moram em apartamentos, e mesmo as que moram em casas muitas vezes não têm um quintal onde possam plantar coisas, ou os têm muito reduzidos. Também os espaços públicos são geralmente altamente restritos em relação à produção vegetal ou recuperação ambiental, já que encontram-se predominantemente ocupados por edifcações e pavimentação. Por isso, a permacultura urbana é marcada por uma busca incessante por espaços disponívveis e formas de ocupação altamente racionais e produtivas desses espaços, muitas vezes requerendo altas doses de criatividade em técnicas de utilização não convencionais. Vamos explorar esses espaços, começando com o que está mais próximo: o interior da casa, nossa zona zero. Zona zero Conforme já citado no capívtulo 9 (“Permacultura Rural”), o interior da casa é um espaço com potencial para produção de alimentos. No caso de quem mora em apartamento, muitas vezes esse será o único espaço disponívvel para plantar qualquer coisa. Por sorte, o interior da casa tem vários fatores que favorecem a produção vegetal, de forma que uma produção intensiva é possívvel. Esses fatores são a proximidade, que possibilita um alto grau de controle; temperatura e umidade relativamente controladas, já que as futuações são bem menores que no ambiente externo, minimizando problemas como estresse hívdrico e congelamento (em locais onde há geadas), ou seja, para a planta, a casa funciona mais ou menos como se fosse uma estufa. Outra grande vantagem da zona zero é a abundância de água, já que a água captada pelo telhado será 269

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13. Permacultura Urbana

armazenada logo ali, do lado de fora; também é no interior da casa que se produz quase toda a água cinza, que deve ser recolhida e usada para irrigação. Algumas pessoas pensam em elaborar sistemas sofsticados de reciclagem de água cinza e uso automatizado em irrigação, mas nada disso é necessário — basta colocar uma bacia dentro da pia da cozinha, outra no box do banheiro, e baldes grandes (60 litros) na lavanderia, coletando a água da máquina de lavar. Lembrando que a água da máquina de lavar e banho pode ser usada também para limpeza da casa e dar descarga no vaso sanitário, além de irrigação. Claro que todas as plantas necessitam de luz solar, então janelas e o lado interno de portas de vidro são os locais ideais para se colocarem vasos dentro da casa. Os conceitos de design sustentável da casa discutidos no capívtulo 10 (“A Habitação Permacultural”) também devem ser empregados na situação urbana. Para um design passivo para energia solar e alta efciência energética, também na cidade você deverá ter janelas amplas, exceto em locais de clima muito quente e árido, onde janelas menores conferem maior efciência energética e conforto térmico. Janelas amplas oferecem também a vantagem de mais espaço para cultivo de plantas, seja do lado de dentro, no peitoril da janela, ou em foreiras suspensas no lado externo. Varandas também são locais com alto potencial produtivo, desde que tenham exposição solar sufciente. Varandas que pegam bastante sol tendem a ter uma temperatura mais elevada que outros locais, pois acumulam a energia solar enquanto evitam a ação dissipadora do vento. Isso pode aumentar o potencial produtivo, mas também faz com que seja necessário mais cuidado com o estresse hívdrico, ou seja, deve-se manter uma vigilância constante e regas mais frequentes para evitar que a terra dos vasos e foreiras seque. Por outro lado, varandas que fcam voltadas para o lado sombreado (face sul no hemisfério sul, e norte no hemisfério norte), ou estão sempre na sombra de outros edifívcios, terão um potencial produtivo bem menor, mas ainda assim deve-se tentar plantar diversas coisas, pois muitas vezes o rendimento pode superar suas expectativas. Estufas acopladas à casa também têm grande aplicação em situações urbanas, em regiões de clima frio. Elas são difívceis de categorizar: são dentro ou fora da casa? Zona zero ou zona um? Você decide. Essas estufas são uma ideia maravilhosa, pois servem não apenas para produzir fores, ervas, hortaliças e mudas de árvores, mas também para você ler um livro ou receber visitas para uma gostosa xívcara de chá ou café, aproveitando o calorzinho do sol numa fria tarde de inverno. Zona 1 Passemos agora ao lado externo da casa, ou seja, o quintal, corredores, garagem, jardim da frente, etc. 270

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13. Permacultura Urbana

Quintal

Suponhamos que você tenha um quintal com tamanho razoável em sua casa, o que infelizmente pode ser considerado um luxo, quase uma extravagância para a maioria das pessoas que moram em cidades hoje em dia. Esse quintal tem um óbvio potencial para produção de comida, exceto nos casos (infelizmente não raros) em que você tem seu quintal na sombra o dia inteiro, devido ao fato de sua casa ser cercada por prédios. Agora, num cenário mais favorável, em que você tem um bom quintal em sua casa, e ele recebe uma quantidade razoável de sol, certamente você deverá usar esse quintal para plantar comida e outras coisas, como fores, ervas, temperos, remédios, etc. O quintal será sua zona um, e tudo o que discutimos a respeito disso no capívtulo 9 (“Permacultura Rural”) pode e deve também ser aplicado na zona urbana. Curvas de nívvel, terraços, cobertura vegetal morta, irrigação com água cinza… tudo. Também, no seu quintal, arbustos e pequenas árvores frutívferas são muito bem-vindos. Agora, muitos permacultores costumam discorrer apaixonadamente por ideias mirabolantes de design de jardins e hortas urbanas, com termos modernos que soam sofsticados, e podem impressionar amadores e novatos na permacultura. Porém, o fato é que nada disso é essencial ou sequer importante, pois na prática quase sempre não se refete em uma maior produtividade. Como em praticamente tudo na vida, o importante está na simplicidade. Minhas avós, e acredito que as avós da maioria das pessoas, especialmente as mais antigas e com raívzes no interior ou no campo, morreriam de rir se vissem as hortas urbanas da maioria dos permacultores atuais, com suas espirais de ervas, mandalas e outras ideias recorrentes nos cívrculos da permacultura. Isso porque as hortas que elas sempre tiveram em seus quintais, nos moldes simples de antigamente, sempre tiveram uma produção muito maior e muito diversifcada, e ninguém fcava dando palestras ou cursos, ou se gabando por causa disso! Por este motivo, costumo dar uma dica que considero muito importante: sempre que possívvel, procure em sua área pessoas antigas que cultivam hortas e jardins em seus quintais, e procure aprender algo com elas. Converse sobre a terra, as plantas, espécies e variedades, sua utilidade, como cultivar, épocas de plantio, enfm, tudo. Geralmente, elas se sentem valorizadas e contribuem de muito bom grado, e daív podem nascer relacionamentos bastante enriquecedores. As pessoas antigas, especialmente as do interior, muitas vezes têm um conhecimento prático profundo sobre como ter uma zona um linda, rica, altamente produtiva (claro que elas não chamam de zona um!) — um conhecimento tradicional, passado de geração a geração, e que infelizmente está se extinguindo rapidamente, à medida que as novas gerações se mudam para apartamentos e cidades grandes, ou simplesmente cimentam seus quintais, pois não sabem como cultivar, nem têm tal interesse. É bom ressaltar que o cultivo não deve se restringir ao quintal dos fundos. Sempre que houver um jardim na frente da casa, esse também deve ser um 271

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13. Permacultura Urbana

espaço aproveitado para a produção de alimentos. Mas atenção, prepare-se para ser admirado por toda a vizinhança! Esta é uma ótima forma de despertar a curiosidade, fazer com que as pessoas, interessadas, puxem assunto com você sobre o cultivo de alimentos, dando ensejo para que você abra-lhes as portas para o universo da permacultura, o que fatalmente inspirará outros a seguirem seu exemplo e potencialmente transformará a vida de muitas pessoas. Além do plantio de espécies de porte herbáceo, como fores e hortaliças em geral, é sempre interessante plantar espécies de porte arbustivo ou pequenas árvores de forma estratégica ao redor da casa. Isso pode trazer inúmeros benefívcios, incluindo a produção de alimentos, beleza, privacidade, conforto solar (sombra), térmico (frescor) e acústico, etc. Também tendem a atrair pássaros, tornando sua vida muito mais alegre. Jardins verticais

Há muitas maneiras de se fazer um jardim vertical. Ele pode ser feito em qualquer muro ou parede externa, e às vezes também interna, desde que haja sufciente exposição solar. Você pode fazê-los com potes de qualquer formato, pendurando-os em série com correntes ou cordas; pode fazer suas próprias foreiras de parede usando tábuas de pallets usados, ou mesmo usar garrafas plásticas cortadas, pendurando-as em cascata, umas sobre as outras, suspensas por cordas ou arame galvanizado. Pode-se construir um muro verde em uma única tarde, utilizando blocos de construção, bastando fazer furos no fundo para permitir que a água escoe, enchê-los de terra e empilhá-los, canto com canto, deixando vãos entre eles onde as plantas crescerão. Em várias situações, você também pode substituir cortinas por “cortinas de vasos”, pendurados em série com correntes ou cordas, etc. As opções de materiais e design são praticamente ilimitadas! Paredes de corredores, muros e divisórias entre terrenos, as paredes externas da sua casa, todos são ótimos locais para se fazer um jardim vertical. As vantagens desse tipo de jardim são inúmeras: eles praticamente não ocupam espaço, e transformam os muros e paredes em locais de produção vegetal. Conferem conforto acústico, pois absorvem ruívdos, e também conforto solar e térmico: sabe aquele refexo desagradável do sol em paredes e pisos claros? imagine isso sendo absorvido por plantas, transformado em fotossívntese e produção! São também muito práticos de regar e econômicos em água: você rega as plantas de cima, e o excesso de água vai drenando, e regando as de baixo automaticamente. Instale reservatórios, que podem ser feitos de chapa metálica (daquelas usadas para fazer calhas) ou travessas de plástico, em baixo do jardim vertical para coletar o excesso de água, e use essa água novamente para regar as plantas no dia seguinte. Assim, você não terá nenhum desperdívcio de água, e nenhuma molhaceira no chão. Voltando um pouco agora à nossa zona zero, também dentro da casa, 272

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paredes de banheiros, cozinha e sala também podem ser cobertas com vasos, pendurados individualmente ou em “colunas”, sustentados por cordas ou correntes, além da já citada ideia das “cortinas de vasos”. Claro que, ainda que os jardins verticais não ocupem muito espaço, em locais realmente apertados isso pode se tornar inviável. Horta no telhado

No capívtulo 8, “Água em Permacultura”, já falamos sobre o telhado verde, e como essa técnica pode ajudar a resolver ou amenizar muitos dos problemas das cidades. Os telhados verdes também são uma excelente forma de produzir comida nas cidades! Esta é sem dúvida a forma mais inteligente de usar esse espaço, geralmente abandonado, para um fm extremamente produtivo. E aqui você difcilmente terá problemas com falta de sol! Porém, quando a fnalidade é produção, não dá muito certo aquele esquema de telhado verde por cima das telhas, ou chapa de compensado, e sim em cima de lajes. Isso porque para uma produção substancial e perene, você precisará de uma boa quantidade de terra, e uma boa profundidade, o que só é viável sobre as lajes, já que são muito mais fortes e quase planas. Você pode fazer canteiros de horta diretamente por sobre a laje, mas é recomendável fazê-lo por sobre uma camada de material impermeabilizante (e.g. lona plástica), para garantir que isso não causará infltração de umidade na casa. Ou então, pode fazer canteiros suspensos, ou seja, grandes foreiras, que podem ser feitas de tábuas, ou tonéis ou bombonas plásticas cortadas (transversal ou longitudinalmente) e instaladas sobre blocos de construção. Desta forma, você pode plantar qualquer tipo de fores, ervas, verduras, etc., e até mesmo arbustos e pequenas árvores em grandes vasos. Pode manter árvores frutívferas em tamanho pequeno usando a técnica do bonsai, possibilitando uma produção no seu telhado, assim como em outros locais onde normalmente não caberia uma árvore. Mesmo com a horta no telhado, sua laje continuará sendo um local de captação de água. Você pode usar a estratégia descrita no capívtulo 8, de construir seu reservatório de água de chuva no nívvel do solo ou subterrâneo, e usar uma bomba elétrica acionada por um painel solar para mandar essa água para uma caixa instalada sobre a laje, possibilitando o uso na casa e também na sua horta do telhado, para irrigação. Áreas públicas e outros espaços Quando você começa a praticar a permacultura urbana, isso invariavelmente transforma o modo como você olha para as coisas e para os lugares. Você passa a enxergar espaços subaproveitados com potenciais de produção em todo lado — espaço para aumento da arborização das ruas, também com árvores frutívferas (por que não?), praças, parques e canteiros maltratados, abandonados... terrenos baldios, gramados inúteis e até aquele 273

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jardim da frente da casa do seu vizinho, que não produz nada, etc. Inevitavelmente, você passa a “cobiçar” esses espaços, não no sentido de propriedade ou posse, mas no sentido de ter a oportunidade de aplicar os conceitos da permacultura e seus esforços naqueles locais, prestando serviços à natureza e às pessoas (pela melhoria estética e potencial de inspiração), além, é claro, de benefciar a si mesmo e a outros, pela produção de alimentos e outros produtos úteis. Naturalmente, essa vontade será tão mais forte quanto maior for a restrição de espaço para produção dentro da sua casa ou do seu terreno. Ou seja, se você tem uma casa com um quintal bem grande, talvez isso nem passe pela sua cabeça, mas se você morar num apartamento pequeno, com outras pessoas, talvez esses espaços externos e públicos sejam sua única opção de tentar plantar alguma coisa. Vamos discutir alguns locais e abordagens que podem ser tentadas, para aumentar o espaço disponívvel para você produzir. Calçadas

Em muitos locais, o projeto da rua contemplava arborização e paisagismo urbano, e por isso, quando da construção da calçada, foi deixado aquele espaço aberto, com terra, para possibilitar o plantio. Porém, muitas vezes as árvores nunca chegam a ser plantadas, ou até o são, mas por falta de cuidados morrem e não são substituívdas, de forma que aquele espaço, quadrado ou retangular, passa a abrigar apenas capim e, não raro, lixo. Você pode resolver “fazer justiça com as próprias mãos”, e assumir para si a tarefa de colocar uma árvore ali. Idealmente, você deverá pedir autorização à prefeitura e também contar com a permissão do morador em frente ao local em questão. Em cidades pequenas, será fácil falar com o encarregado da prefeitura, e quase invariavelmente, você contará com uma permissão informal imediata. Já em cidades grandes, você geralmente terá bem mais difculdade de ter acesso à pessoa encarregada do cuidado das ruas e arborização pública, e enfrentará mais burocracias, que lhe tomarão tempo. Mesmo que consiga falar com a pessoa “certa”, ela provavelmente nem sequer sabe da existência da sua rua. Por esses e outros motivos, talvez faça mais sentido você simplesmente plantar sua árvore e ver o que acontece. É importante plantar árvores que sejam adequadas à arborização urbana, levando em consideração implicações futuras em relação à fação elétrica acima, e impacto no calçamento e tubulações de água e esgoto abaixo, etc. Muitos municívpios contam com manuais de arborização urbana, com recomendações especívfcas de espécies adequadas àquela área em questão; nesses casos, é conveniente se ater às espécies e recomendações da prefeitura, para evitar problemas futuros. Nós, permacultores, sempre queremos plantar árvores frutívferas, pois achamos maravilhosa a ideia de produzir alimentos na cidade, então você pode tentar fazer isso. Mas, se a prefeitura tiver recomendações expressas contra árvores frutívferas na arborização urbana, ou se seu vizinho for 274

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contra a ideia, é melhor não fazer isso. Caso você insista, o que pode acontecer é o seguinte: você vai plantar, e cuidar por anos; enquanto a árvore é jovem, não incomodará a prefeitura ou o vizinho. Porém, assim que começar a produzir, eles provavelmente decidirão cortar a árvore, trazendo-lhe grande decepção, frustração e revolta. Daív, você poderá reclamar, criticar e chorar, mas isso adiantará em nada. Portanto, é melhor evitar esses problemas logo de cara, na escolha da espécie a ser plantada. Mas não basta plantar uma muda e cuidar dela — você deverá providenciar uma proteção bastante sólida, preferencialmente feita de metal, de forma profssional em uma serralheria, e pintada, seguindo o padrão do seu municívpio (não vale apenas enfar pedaços de pau ou estacas de bambu!). Embora isso implique em custo, é essencial para dar visibilidade e respeitabilidade para sua atitude. Caso contrário, infelizmente muitas pessoas falharão em ver a diferença entre uma muda de árvore plantada e cuidada, e um mato qualquer que ali nasceu, sendo comum transeuntes pisarem e quebrarem, ou mesmo o pessoal da manutenção das ruas vir capinar e acabar cortando ou arrancando sua muda, acidental ou intencionalmente. Sempre que o espaço em questão não for estritamente em frente à sua própria casa, conversar com o vizinho e contar com seu consentimento e cooperação também é muito importante. Muitas vezes, pessoas simplesmente não querem uma árvore em frente à sua casa, alegando uma variedade de motivos, um mais esdrúxulo que outro. Exemplos desses motivos alegados incluem: “faz muita sujeira” (referindo-se às folhas caívdas), “atrai vagabundos e maconheiros” (sem comentários...), ou simplesmente “não gosto”. A verdade é, infelizmente, que muitas pessoas têm preconceito ou simplesmente odeiam árvores. Então, se vem a prefeitura e planta uma árvore em frente às suas casas, talvez aceitem, pois se trata de uma autoridade; mas se for você, apenas uma pessoa, talvez não aceitem. Talvez, com uma conversa amigável, elas concordem e cooperem, talvez não. Por isso, é sempre melhor começar conversando com as pessoas. Se elas não se mostrarem receptivas, procure outro local. Agora, não se trata apenas de árvores: na bacia ao redor da árvore, você pode plantar fores, ervas, etc., deixando tudo bem lindo. O mesmo em relação a canteiros e foreiras que às vezes existem em calçadas. Você pode até plantar verduras, mas isso talvez não seja uma boa ideia. Isso porque muitas pessoas não respeitam, e suas verduras estarão sujeitas a todo tipo de “ataques”: pessoas jogarão lixo e pisarão em suas verduras; outras, as colherão antes do tempo, não lhe dando a oportunidade de colher o que você mesmo plantou. Em alguns locais, o próprio poder público (prefeitura) pode destruir sua verdura, por considerar que “ali não é lugar”. Plantar verduras na beira da calçada e rua é uma receita já comprovada inúmeras vezes de colher desentendimentos e desilusões. Mas, nada te impede de tentar. Talvez tenha sorte em sua vizinhança em particular. Agora, uma alternativa muito mais segura é plantar PANCs, pois não serão reconhecidas como verduras pela imensa maioria das pessoas, a não 275

Parte II – A Alternativa da Permacultura

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ser pessoas conhecedoras de PANCs que são, geralmente, pessoas com muito mais consciência. Portanto, você terá mais chances de sucesso, e de colher o que plantou, se plantar alimentos não convencionais. O jardim do seu vizinho

Talvez você tenha vizinhos bem próximos à sua casa que têm uma boa área de jardim em frente às suas casas, mas que não cuidam, seja porque não sabem, ou porque não ligam, ou não têm tempo, etc., então o jardim está sempre horroroso, parecendo um matagal. Você pode tentar conversar com eles, para ver se deixam você plantar em seus jardins. Você pode fazê-lo basicamente de duas formas: cobrando ou de graça. O primeiro caso confgura-se como prestação de serviços em permacultura, e será discutido no capívtulo 17. Agora, você pode oferecer para cuidar do jardim do seu vizinho de graça, apenas em troca de parte da produção que você terá. Assim, todos saem ganhando: seu vizinho não terá mais trabalho de cuidar do jardim, e terá um lindo jardim-horta em frente à sua casa, ao invés do costumeiro matagal. E ainda ganhará fores, ervas e verduras! E você, terá acesso a um espaço a mais para produção. Agora, para que você possa convencer qualquer pessoa a te deixar usar o espaço de seu jardim, você deve primeiro mostrar serviço em seu próprio jardim. Transforme a área em frente à sua casa (se você tiver uma, claro) em um verdadeiro Jardim do Éden, chamando a atenção e conquistando a admiração dos vizinhos, e não terá difculdade em convencer outras pessoas a te deixar fazer o mesmo em suas casas. Claro que você terá que vencer também o empecilho da privacidade — nem todo mundo aceita de primeira ter alguém entrando e saindo de seu jardim ou quintal; isso provavelmente envolverá ainda fazer uma cópia da chave do portão para você usar, e esse tipo de questão pode desestimular muitas pessoas. Por outro lado, esse tipo de contato e convivência pode aproximar as pessoas, resgatando um senso de comunidade que as vizinhanças urbanas vêm perdendo ao longo das últimas décadas, podendo portanto ser muito enriquecedor e positivo para todos envolvidos. Terrenos baldios

Nem todos os bairros têm terrenos baldios — eles costumam ser raros em regiões centrais da cidade, e comuns em áreas mais periféricas. Se eles existirem em sua área, são geralmente ótimas oportunidades para a permacultura urbana. Seu potencial produtivo é óbvio. Além disso, costumam causar dor de cabeça para os proprietários, pois eles têm que fcar de olho e cuidar do terreno, mantendo-o roçado (controlando o crescimento de mato) e evitando que se transformem em depósitos clandestinos de lixo e entulho, etc. Procure saber quem é o proprietário do terreno baldio de seu interesse, e proponha um acordo informal, um comodato: ele te deixa usar o terreno para plantar, por um perívodo de tempo preestipulado, que pode ser de 6 meses ou um

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ano, de forma que ele não se sinta privado da autonomia e direito sobre seu imóvel. E você se compromete a manter o terreno limpo, livre de mato, lixo ou entulho, e talvez a compartilhar a produção com o proprietário, de forma que todos saem ganhando! Inclusive a vizinhança, que deixará de ter um terreno abandonado para ter um lindo jardim-horta que embeleza o local e traz boas inspirações. Você pode combinar que o proprietário fca livre para colher o que quiser da produção, pois na maioria dos casos, ele colherá nada ou quase nada, mas o acordo que lhe preserva a liberdade para entrar e colher o que é produzido em seu próprio terreno remove qualquer insegurança que ele possa ter em relação à cessão parcial de direitos sobre seu imóvel. Talvez, isso o inspire a também participar, envolver-se, ajudar com os trabalhos, o que signifcará não apenas ajuda para você, mas também um fortalecimento do movimento da permacultura! Praticamente todas as técnicas descritas a respeito da zona um no capívtulo 9 podem ser aplicadas aqui, igualmente. Agora, uma coisa muito importante de se pensar é a fonte de água para sua plantação. Terrenos baldios muitas vezes não contam com instalação de água municipal, e mesmo que contem, esse não é um uso adequado dessa água. A melhor opção é você pedir aos moradores vizinhos a permissão para colher a água da chuva de seus telhados, ligando suas calhas a uma tubulação que traga essa água até o terreno que você utilizará. Para armazenar essa água, você pode comprar uma caixa d’água plástica ou cisterna de polietileno, de 2.000 a 5.000 litros, e instalá-la no terreno, mas isso representará um custo substancial, e não é realmente necessário. Uma opção válida e extremamente barata é você construir uma cisterna temporária subterrânea: escave um buraco quadrado no chão, com 2 m de largura por 2 m de comprimento, e 1,25 m de profundidade. Use essa terra para fazer suas curvas de nívvel no terreno. Agora, revista esse buraco internamente com uma lona plástica de polietileno de alta densidade (PEAD) de boa qualidade, sendo que a melhor opção são as lonas dupla face (branca e preta) usadas para cobrir silos. Cubra as bordas da lona, que fcaram para fora do buraco, com uma camada de terra, formando uma borda elevada para sua cisterna. Para tampar a cisterna, você pode usar uma tela de sombreamento de PEAD tipo “sombrite”, armada em um quadro de madeira, de forma a impedir o acesso de mosquitos, e para proteção extra, cubra tudo com uma tampa de madeira (podem ser tábuas de construção usadas). Pronto, você tem uma cisterna com capacidade para 5.000 litros, discreta (quase invisívvel!), por uma fração do custo de uma caixa d’água do mesmo volume. Os únicos materiais novos que você precisará comprar são um pedaço de lona plástica de 5 × 5 m, um pedaço de sombrite de 2,5 × 2,5 m, e 8 m de ripas de madeira para a tampa. Para tirar a água da cisterna, você pode instalar uma bomba do tipo “puxaempurra”, que você mesmo pode fazer usando tubos e conexões de PVC, a um baixo custo. 277

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Caso o terreno não seja murado, você terá que providenciar um muro ou cerca para lhe dar privacidade e proteger seu jardim-horta de invasores animais e humanos. Você pode fazer uma bonita cerquinha de madeira, usando pallets usados — na maioria dos casos, isso será sufciente. Caso deseje, pode plantar uma cerca viva, podendo usar hibiscos, por exemplo, que são propagados por estacas e crescem rapidamente. Hibiscos são excelentes pois, além das vantagens já citadas, não têm espinhos e ainda dão lindas fores! Você deverá manter aparada sua cerca viva, o que lhe dará um bom suprimento de matéria vegetal morta para cobertura de solo em sua horta. Você pode ainda optar por espécies de hibisco comestívveis, e plantar mais de uma espécie, dando um aspecto particularmente lindo à sua cerca viva, e fornecendo fores para suas saladas, conservas e chás. Parques e praças

Em muitas áreas, as praças e parques públicos existem, mas, devido à falta de adequada manutenção, caem em decadência, o que se torna visívvel pelo crescimento desordenado de vegetação, especialmente capins, acúmulo de lixo e deterioração progressiva de infraestruturas como calçamento, iluminação, cercas, lixeiras, bancos, brinquedos infantis e aparelhos de lazer em geral. Cobrar das autoridades competentes do poder público providências para a manutenção adequada desses espaços é geralmente inútil. Essas áreas também podem ser vistas como locais com potencial produtivo que podem estar disponívveis a quem tiver disposição para trabalhar nelas. Num trabalho onde se assume combinadamente as responsabilidades de limpeza, paisagismo, talvez alguma manutenção de infraestruturas, associado a trabalhos de cunho mais estritamente ambiental, como fxação de água de chuva, aumento de biomassa e biodiversidade, aliado ainda à produção de alimentos, sem dúvida todos saem ganhando! Isso de fato acontece em muitos lugares, felizmente. Do ponto de vista do planejamento da utilização da área, aqui você poderá aplicar os conceitos discutidos no capívtulo 9, referentes às zonas um, dois e três, talvez até a quatro, dependendo do tamanho da área. Ou seja, você poderá ter canteiros de fores e verduras (sendo sempre uma boa ideia focar nas PANCs), agroforestas arbustivas e arbóreas, e também áreas com um reforestamento mais nativo. Porém, diferentemente dos casos que vimos discutindo até agora, esse não é o tipo de trabalho que normalmente possa ser feito por uma pessoa individualmente. O motivo para isso é que se trata de áreas públicas, destinadas a uso público; portanto, se você pedir autorização às autoridades competentes (na verdade, incompetentes), difcilmente será autorizado a utilizar a área para um fm diferente daquele a que o local se destina. Mesmo que conseguisse tal autorização e fzesse ali um bonito trabalho, muito provavelmente você não teria um amplo apoio da população local, pois muitos sentiriam que você está usurpando um espaço que não é seu. 278

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Agora, nada disso signifca que seja impossívvel ou inviável fazer um trabalho de recuperação, revitalização dessas áreas, associado à produção de alimentos — signifca apenas que há uma forma correta de se fazer isso, e essa forma é justamente através da comunidade. Ou seja, você terá que iniciar um movimento, uma organização comunitária (caso ela ainda não exista), para conquistar a legitimidade para fazer seu projeto nessas áreas. Isso é muito mais simples do que parece, pelo menos neste caso em questão. Basta você seguir os seguintes passos: ✔ Elabore um projeto. Faça uma planta do espaço (praça ou parque) em que você deseja atuar, indicando os principais pontos de referência (ruas, infraestruturas, etc.). Use fotos aéreas (e.g. obtidas pelo Google Earth) para elaborar uma planta bem decente. ✔ Sobre o esboço geral da planta do local, indique as atividades e melhorias que você propõe: terraços, canteiros, mudas de árvores, etc. Você pode procurar fazer uma representação artívstica de como você espera que esses elementos e sistemas se pareçam, quando estabelecidos e maduros. ✔ Além dos elementos e atividades produtivas, indique também outras atividades de recuperação a serem feitas, como limpeza e remoção de lixo e entulho, pintura de paredes e cercas, conserto de brinquedos infantis, etc. ✔ Estabeleça um cronograma de atividades. ✔ Anexe fotos atuais do local, enfatizando sua decadência: mato, lixo, entulho, pintura velha, coisas quebradas, etc. ✔ Anexe também folhas de assinaturas, constando nome, endereço e assinatura dos moradores da vizinhança que têm intenção de participar das atividades, ou pelo menos apoiam a iniciativa. ✔ Agora, visite todas as casas da vizinhança, expondo sua ideia para os moradores, convidando-os a participar e pedindo seu apoio expresso, na forma de adesão e assinatura da folha de assinaturas. ✔ Isso tudo feito, você está pronto para levar seu projeto à prefeitura. Entre em contato e marque um encontro com a pessoa responsável pela manutenção da área em questão. De preferência, não vá sozinho ao encontro — leve junto consigo pelo menos dois outros participantes do movimento. Isso aumenta muito as chances de seu projeto ser aceito, e seu trabalho autorizado. Quando você começa esse tipo de movimento, especialmente se for a primeira vez que você inicia ou se envolve com uma associação comunitária, é comum fcar superexcitado, com aquela impressão que você está iniciando um movimento revolucionário que poderá transformar o mundo. E, realmente, pode até vir a ser; porém, é importante que você modere suas expectativas. Associações comunitárias são feitas de pessoas, e esteja preparado para 279

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descobrir que nem todo mundo que apoia e parece adorar a ideia num primeiro momento terá a mesma disposição e perseverança que você. Você deve fazer todo esse procedimento de mobilização da comunidade, e realmente desejar esse trabalho em conjunto. Isso poderá ter um grande efeito transformador em sua vizinhança, em múltiplos nívveis: na melhoria estética da rua, na devolução de uma área de lazer a todos, no resgate do senso de comunidade, aumento e melhoria das relações sociais, inspiração para a mudança em toda a vizinhança, envolvendo pessoas de todas as idades, etc. Porém, você deve também estar totalmente preparado para fazer tudo sozinho! Muitas vezes, as pessoas aderem no inívcio, mas desanimam rapidamente, e a adesão às atividades pode cair progressivamente, até que só reste você. Mesmo que isso aconteça, é importante que você não se deixe desanimar. Pelo menos, você fez sua parte, e, além disso, conseguiu o que de inívcio pretendia, que era o acesso, de forma legívtima, àquela área para uso em produção e recuperação ambiental. Feito desta forma, você difcilmente perderá esse direito, porque você começou do modo correto. Agora, claro que há casos em que a mobilização conta com uma grande adesão da comunidade, e se transforma em um movimento que cresce, toma corpo e seriedade. Quando isso acontece, você, juntamente com os demais membros, podem optar por formalizar a associação como uma organização nãogovernamental legalmente instituívda. Isso permitirá à sua associação lançar-se a projetos mais ambiciosos, e poderá também dar acesso a recursos fnanceiros públicos e privados. Porém, é preciso ter em mente que esse maior alcance vem acompanhado de uma grande carga de burocracia e novas responsabilidades. Mas você não deve se preocupar com nada disso no começo. O melhor é você começar pequeno e simples, focando no que pode ser feito com mívnimos recursos, e ir se adequando conforme a coisa fui. Outra coisa muito importante que deve ser dita: quando se trata de atuar na revitalização de uma área, ou qualquer projeto de plantio, seja para produção ou recuperação ambiental ou ambos, o mais fácil é sempre começar — o mais difívcil, porém essencial, é continuar trabalhando. Isso, na verdade, se aplica a qualquer empreendimento permacultural, seja na zona rural ou urbana, em seu próprio terreno ou de outrem, e também a outras atividades socioambientais em geral. Conforme já mencionado, a maioria das pessoas que aderem a essas iniciativas o fazem na base do “fogo de palha”, ou seja, com grande empolgação no inívcio, mas que não se sustenta ao longo do tempo. É vital que você garanta que esse não será também o seu caso! Repito aqui o que disse no capívtulo 9 (“Permacultura Rural”): plantar uma muda é a coisa mais fácil; cuidar dela até que se torne árvore é que é difívcil! Sei por experiência própria, e também por relatos de inúmeras pessoas, que se você plantar uma árvore, seja onde for, mas especialmente numa área pública, e simplesmente virar as costas achando que já fez o seu trabalho, quando você voltar lá, depois de algum tempo, difcilmente encontrará sua muda, muito menos uma árvore. Ou seja, embora possa te dar 280

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uma sensação de grande satisfação na hora, aquele sentimento que você é um herói e acabou de salvar o mundo, a verdade é que plantar uma árvore e não cuidar dela é praticamente o mesmo que não plantar nada. E é preciso cuidar de verdade, o que signifca visitas frequentes, e intervenções frequentes, como cuidar da cerca de proteção da muda, refazer a bacia, aplicar cobertura de solo, adubação, regas, proteção contra pragas, etc. por um perívodo de alguns anos. Aív sim, você poderá dizer que fez alguma coisa. Recomendação importante: não se apegue ao que não é seu. Muitas vezes, quando queremos plantar mas não temos espaço, começamos a observar os espaços públicos e privados, como ruas, praças e parques, quintais subaproveitados dos vizinhos e terrenos baldios, etc. Embora muitas vezes seja possívvel utilizar esses espaços, conforme discutido acima, você tem que ter sempre em mente que as pessoas em geral muitas vezes não compartilham dos seus pontos de vista, até por falta de conhecimento e consciência ambiental. Por isso, o que muitas vezes acontece é que, embora você consiga autorização para uso de espaços que não são de sua propriedade, ao iniciar atividades que não são comuns na área, muitas vezes isso gera insatisfação em outras pessoas, o que cria tensões que podem lhe causar problemas. Há vários motivos prováveis para isso, incluindo: • Questões culturais arraigadas, em relação a um senso estético estabelecido em que a aridez e monotonia são valorizadas sobre a vida e a produtividade. • Questões relativas ao ego: a atitude medívocre caracterívstica de pessoas ineptas que nada de produtivo fazem, e sentem terrívvel tensão psicológica ao verem outras pessoas fazerem coisas boas e belas, e se sobressaívrem — trocando em miúdos, inveja. • Medo da perda do controle: se alguém é dono, detém a posse ou de alguma forma um controle sobre uma área qualquer, essa pessoa muitas vezes terá medo que você, ao cuidar daquela área e torná-la produtiva, lhe roube a autoridade ou controle sobre o local, etc. Por esses e outros motivos, infelizmente é muito comum que, embora você tenha obtido consentimento para uso de uma área, a qualquer momento no desenvolvimento do seu projeto esse consentimento seja retirado, seja por insatisfação do próprio dono, ou devido a pressões por parte de outros. Sendo assim, você tem que ter sempre em mente que, não importa o quão lindas estejam suas plantas, seus canteiros, enfm, tudo o que você fez e o amor que você depositou ali, alguém poderá vir e simplesmente destruir tudo, a qualquer momento, talvez antes mesmo que você consiga colher qualquer coisa. Isso não deve te desanimar ou impedir de ao menos tentar usar esses espaços com fnalidades produtivas, contanto que você não crie grandes 281

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expectativas, não faça planos de longo prazo, e não se apegue àqueles pedaços de chão e aquelas plantas que você plantou, pois, caso o faça, estará plantando desilusão. Preocupações quanto a contaminação do solo A utilização de solos urbanos para produção de alimentos levanta uma questão importante a respeito da segurança para a saúde humana do consumo dos alimentos produzidos no tocante à contaminação quívmica por poluentes do solo decorrentes da atividade humana, particularmente metais pesados. Trata-se de uma preocupação pertinente, pois é sabido que os nívveis de metais pesados são comumente aumentados no ar, poeira e solos das cidades. As fontes principais desses metais são o tráfego de veívculos automotores, devido a metais pesados presentes em combustívveis fósseis, e atividades industriais, presentes e passadas, na área. Porém, embora haja de fato uma elevação nos nívveis desses elementos nas cidades, na grande maioria dos casos eles se mantêm dentro de limites permitidos para solos agrívcolas, e não representam riscos signifcativos à saúde. * Mesmo quando presentes em nívveis elevados, o maior risco à saúde humana reside no consumo inadvertido de solo, e não de plantas, já que a absorção desses metais pelas plantas é baixo. Portanto, medidas básicas de higiene alimentar, ou seja, lavar as frutas e verduras antes de consumir, são normalmente sufcientes para eliminar riscos de contaminação humana. Ainda assim, é importante adotar outras práticas de descontaminação do solo, sempre que se pratica a agricultura urbana. Uma prática essencial é a correção da acidez do solo, ou seja, a elevação do pH para a faixa de 6,5 a 7 pela adição de calcário ou cinzas, pois isso causa a imobilização dos metais reduzindo sua biodisponibilidade para as plantas. Outra prática que pode ser usada com efcácia para remediação com solos contaminados por metais pesados é a compostagem — tanto a adição e incorporação de composto maduro ao solo como a co-compostagem do solo juntamente com resívduos orgânicos foram demonstradas como efetivas na imobilização de metais na biomassa do solo, eliminando riscos à saúde.** Os riscos de contaminação são maiores em locais altamente poluívdos, ou seja, ao lado de vias de tráfego intenso e as proximidades de áreas industriais contaminadoras com metais pesados, como indústrias metalúrgicas, fundições, áreas de mineração ou próximas a usinas termelétricas, etc. Nesses casos, é recomendável fazer uma análise do solo para determinação de metais pesados * Hough, R. T. et al. Assessing potential risk of heavy metal exposure from consumption of home-produced vegetables by urban populations. Environmental Health Perspectives. 2004. ** Barker A. V.; Bryson, G. M. Bioremediation of heavy metals and organic toxicants by composting. The Scientific World Journal. 2002.

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antes de começar a plantar, e avaliar opções de remediação em caso de nívveis aumentados. Porém, talvez seja melhor você pensar em se mudar dessa área, já que essa contaminação traz riscos à sua saúde de outras formas, como pela ingestão, contato com a pele e inalação de ar e poeira com altos nívveis de metais pesados. Esses riscos são substancialmente maiores para crianças.* Deve-se ressaltar, porém, que não há estudos epidemiológicos indicando ligação da agricultura urbana e consumo de seus produtos com aumento na incidência de quaisquer doenças causadas por metais pesados ou outros poluentes urbanos.

Atuação na esfera pública Até aqui, vimos discutindo coisas que você pode fazer sozinho ou num nívvel comunitário, em permacultura urbana — o que você pode fazer com a sua casa para torná-la mais sustentável, ou como produzir alimentos na sua casa e suas imediações. Mas a permacultura urbana certamente não pára por aív! As cidades são uma realidade concreta e inescapável da nossa civilização. E em geral elas são extremamente insustentáveis. Agora, há uma porção de coisas que podem ser feitas para tornar as cidades mais sustentáveis e mais produtivas, através da aplicação dos princívpios da permacultura. Cabe, portanto, ao permacultor urbano atuar também nesse nívvel coletivo mais amplo, como uma força transformadora para melhorar a cidade e a vida das pessoas no tocante à sustentabilidade, qualidade de vida, qualidade ambiental, etc. Isso pode ser feito de diversas maneiras, seja de forma individual e voluntária, ou através de prestação de serviços e consultoria, atuando na conscientização e mobilização social, talvez através de organizações não-governamentais; atuando em áreas técnicas dentro da esfera pública, em órgãos do governo, ou junto ao poder legislativo, etc. Alguns dos principais problemas das cidades no tocante à sustentabilidade já foram discutidos, e propostas de soluções apresentadas, nos capívtulos anteriores. Por exemplo, a destruição do ciclo das águas nas cidades e formas de revertê-la, conforme discutimos no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”), ou o gravívssimo problema da poluição das águas e desperdívcio de nutrientes pelos esgotos, tratados no capívtulo 11 (“Saneamento Ecológico”). Agora, há ainda muitas outras coisas que podem e devem ser feitas para que as cidades sejam mais sustentáveis, e também mais saudáveis, humanas e agradáveis. Por exemplo, aumentar a efciência da reciclagem de resívduos sólidos urbanos, ou reduzir a dependência do transporte motorizado individual, melhorando o transporte público e estimulando o uso da bicicleta como meio de locomoção, ou * Sun, G. et al. Metal exposure and associated health risk to human beings by street dust in a heavily industrialized city of Hunan province, central China. International Journal of Environmental Research and Public Health. 2017.

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ainda estimulando a instalação de sistemas solares fotovoltaicos ligados à rede (“on grid”), avançando assim na transição para uma matriz energética renovável, etc. Agora, você pode contribuir para que essas e outras propostas se realizem, de diversas maneiras. Você pode levar propostas e cobranças às autoridades competentes — prefeitos e vereadores, por exemplo. Claro que tentar fazer isso de forma individual será extremamente precário, com baixívssimas (na verdade, nulas) chances de sucesso; porém, se o fzer através de alguma associação comunitária, ou algum outro tipo de mobilização social, como por exemplo através de petições públicas, suas chances talvez sejam bem melhores. Isso passa necessariamente por um trabalho de divulgação de informações e conscientização pública, que é sem dúvida uma atuação importantívssima, imprescindívvel do permacultor. Outra forma de tentar intervir nas polívticas públicas é tornando-se você mesmo uma autoridade pública, seja como um profssional em algum cargo público com algum poder de decisão, ou mesmo candidatando-se a um cargo eletivo, levantando a bandeira da sustentabilidade, buscando apoio da população para esses projetos, de forma que possa, caso eleito, instituir polívticas públicas adequadas contemplando essas soluções para os problemas ambientais da cidade. Agora, claro que deve-se ter sempre em mente que isso tudo é muito fácil de falar, mas difívcil de conseguir realizar, até porque depende das outras pessoas, que na sua grande maioria não estão sensibilizadas ou sequer cientes da severidade da crise ambiental atual, e seus papéis nessa história, tendo portanto outras prioridades, muitas vezes bastante individualistas, egoívstas. Ainda assim, é nosso dever tentar, pois se nós, permacultores, não o fzermos, quem o fará? Só não se pode exagerar nas expectativas, e vincular a sua noção de sucesso, realização e felicidade a essas conquistas coletivas. A boa notívcia é que, mesmo se nada disso der certo, ou seja, mesmo que você não consiga infuenciar as polívticas públicas e resolver os grandes problemas de sustentabilidade de sua cidade, ou obter avanços signifcativos no curto e médio prazo, ainda há muitas coisas que você pode fazer pela sua comunidade ou vizinhança sozinho, ou através de pequenas associações, muitas vezes informais. Além dos exemplos já citados nas páginas anteriores, você ainda pode fazer trabalhos em escolas, por exemplo, coordenando atividades com os alunos, como horta orgânica e compostagem, incluindo captação de água dos telhados para irrigação; também pode dar palestras sobre meio ambiente e sustentabilidade em escolas, igrejas, associações de bairro, etc. Ou mesmo formar um grupo ou cívrculo de permacultura, ou até um centro de permacultura, desempenhando essas e outras atividades de forma coletiva, além de divulgar e difundir a permacultura. Isso tudo representa um trabalho de base fundamental, pois você estará preparando o terreno para possibilitar uma evolução da sociedade, possibilitando um engajamento e uma adesão às causas da sustentabilidade no futuro. 284

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14. Estilo de Vida da Permacultura

14 ESTILO DE VIDA DA PERMACULTURA

Conforme já mencionado, a aplicação diligente dos princívpios da permacultura às nossas escolhas e atitudes diárias invariavelmente faz com que tenhamos um estilo de vida mais natural, saudável e sustentável. A adoção do estilo de vida da permacultura é condição indispensável para alcançarmos a sustentabilidade. Se a humanidade como um todo adotasse esse estilo de vida, jamais terívamos nos metido na arapuca em que hoje estamos; do mesmo modo, se todos passarmos a adotar esse estilo de vida, talvez possamos reverter nosso curso de colisão com o ambiente natural. Talvez essa seja nossa única chance de sobrevivência, como espécie, a longo prazo, bem como a única chance de preservação da biodiversidade na Terra. O estilo de vida da permacultura é caracterizado por: • Vida simples, frugal, e natural, valorizando o essencial enquanto rejeitando o consumismo e a artifcialização da vida, etc. • Uma preocupação constante e medidas para evitar o consumo desnecessário ou excessivo de recursos (água, energia, alimentos, materiais em geral), evitando o desperdívcio e a geração de resívduos (lixo, poluição do ar e da água, etc.), fazendo ainda tudo o que estiver a seu alcance para que seus resívduos sejam efetivamente reciclados.

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14. Estilo de Vida da Permacultura

• Uma busca contívnua pela reintegração com a natureza e seus ciclos. • Trabalhar com a terra, visando a produção saudável de alimentos e recuperação ambiental. • Foco nas relações cooperativas, ao invés de competição. • Proatividade e engajamento, agindo na sociedade maior ao seu redor para amplifcar o alcance e os efeitos positivos de suas ações e levar conhecimento, consciência e inspiração a mais pessoas, fortalecendo o movimento da permacultura. A adoção do estilo de vida da permacultura é o ponto mais básico e essencial a qualquer permacultor, seja ele urbano ou rural, que deve ser sempre observado, com grande seriedade. É também a porta de entrada à prática da permacultura, pois consiste de hábitos e práticas que estão ao acesso de todos que aprendem os conceitos da permacultura — muito antes que tenham condições de produzir grandes quantidades de alimentos ou praticar recuperação ambiental em larga escala, etc. — servindo como um ponto de partida para uma transição a um modo de vida realmente sustentável. Passo a passo Há uma série de medidas importantívssimas que estão ao alcance de praticamente qualquer pessoa, e a transição para um estilo de vida, e uma sociedade sustentável, deve necessariamente começar por esses pontos — não adianta nada você querer mudar o mundo, sem primeiro mudar a si mesmo. Por exemplo, no primeiro dia você já pode começar a separar seu lixo em orgânico, recicláveis e não recicláveis (não é difívcil!). Reduzir seu consumo: não compre nada que não seja essencial. Não compre mais um par de sapatos, ou uma bolsa nova (com certeza você não está precisando!). Não compre um novo eletrodoméstico porque o antigo quebrou — leve-o para consertar. Observe se há lâmpadas acesas desnecessariamente, e apague-as. Tome um banho mais curto, e feche a água enquanto se ensaboa. Dê menos descargas durante o dia (certamente não é necessário dar a descarga a cada mero xixi!), etc. No segundo dia, que tal tirar a poeira e encher o pneu da sua bicicleta... e botá-la pra funcionar? Deixe o carro em casa, e vá ao supermercado pedalando, ou mesmo a pé — experimente, não vai machucar. Ao comprar alimentos, fuja dos que tem excesso de embalagem; melhor ainda, dê uma passada numa feira ou mercadão próximo à sua casa e experimente comprar tudo a granel — sem embalagens! Arrume umas sacolas de compras de pano (pode ser de plástico, também, ou outros materiais), e leve-as sempre que for fazer compras. Não pegue sacolinhas de supermercado descartáveis! Negue-se a pegá-las, e nunca esqueça de levar sua própria sacola reutilizável. Faça disso uma questão de honra. Mas, caso tenha que pegar (esqueceu a sacola de compras, ou surgiu uma 286

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compra emergencial), sem crise: use-a, dobre-a e guarde-a na bolsa ou mochila. Da próxima vez, não pegue outra — reutilize a mesma! e assim por diante, enquanto ela durar. E vai durar muitas vezes, pode ter certeza. Isso também vale para o saco de pão: após comer os pães, não jogue o saquinho fora — leve-o de novo à padaria ou mercado, e ponha os pães novos no mesmo saquinho. Faça isso todos os dias, até que rasgue e não mais seja possívvel. Você se surpreenderá com quantas vezes vai conseguir reusar o saquinho — normalmente, cerca de um mês inteiro. E você fcará pensando: “e eu vim jogando fora todos esses saquinhos perfeitamente bons, esses anos todos!” Aliás, abandone completamente a cultura do descartável. Ao comprar qualquer coisa, pense e assuma a responsabilidade por todo o impacto ambiental envolvido, desde a extração das matérias primas, passando pela manufatura, transporte e comercialização, até o destino do bem no fnal de sua vida útil, a energia que foi gasta, poluição que foi gerada, etc. Pense em tudo isso, e só compre o que for essencial. No terceiro dia, não consuma alimentos processados. Faz parte do estilo de vida da permacultura procurar ter uma alimentação saudável, baseada em produtos naturais, locais e, sempre que possívvel, orgânicos; consumir muitas frutas, verduras, legumes e grãos integrais, e menos carnes, leite e derivados e produtos refnados, como açúcar e farinha branca, por exemplo. Permacultores em geral não têm o hábito de consumir alimentos processados e ultraprocessados, como biscoitos, salgadinhos, refrigerantes e quaisquer tipos de “fast food”, por saberem que não são bons para a saúde humana ou do planeta. “Acredite no poder transformador de um conjunto de atitudes pequenas e simples” Faça de todas essas mudanças hábitos. É justamente aív que está a força transformadora dessas pequenas atitudes. Você se sentirá muito bem com seus novos hábitos. Você provavelmente notará uma reação de confusão e perplexidade de algumas pessoas ao seu redor, ao verem suas atitudes, mas não deixe isso te incomodar ou desencorajar! Mais cedo que você imagina, você verá algumas delas seguindo o seu exemplo, e isso fará você se sentir melhor ainda. É você fazendo as pessoas pensarem, ajudando o movimento a crescer. Aliás, aqui vale um parêntese: não fque se gabando de sua consciência ou seus hábitos sustentáveis; não tente impor isso às outras pessoas ao seu redor, pois essa é uma atitude arrogante, tívpica de pessoas imaturas e inseguras que querem chamar a atenção e parecer superiores aos demais — é assim que as pessoas lerão seu comportamento, e isso só servirá para fechar portas, ou seja, fazer com que não te levem a sério, o que consequentemente as impedirá de se sentirem inspiradas por seu exemplo, sendo portanto totalmente contraproducente. Apenas faça a sua parte, e deixe que seu exemplo (e não 287

Parte II – A Alternativa da Permacultura

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palavras) faça o resto. Assimiladas essas mudanças, comece uma composteira em casa e passe a compostar todos os seus próprios restos orgânicos! E que tal plantar algumas verduras e fores no seu quintal, no próximo fm de semana? Ou mesmo naquele canteirinho esquecido na entrada do prédio, ou em vasos em sua própria janela... Plante em caixinhas de leite vazias as sementes das frutas que consumir. Acompanhe a germinação e crescimento de suas mudas (seus bebês!), e depois plante-as em algum lugar. Que tal revitalizar uma praça abandonada no seu bairro? Convide amigos, limpe a praça, apare a grama, plante as mudas, ponha uma plaquinha com o nome da espécie. Volte para regar, umas 2 vezes por semana (esse assunto já foi discutido no capívtulo anterior, “Permacultura Urbana”). Outra coisa muito legal de se fazer é estudar sobre as espécies da fora da sua região. Tenha o hábito de prestar atenção nas árvores, inclusive as usadas na arborização urbana e parques da sua cidade, aprendendo a identifcá-las. Pesquise, e organize um calendário da época de foração e frutifcação das árvores nativas da sua região, isso ajudará muito a reconhecê-las. Colete sementes, produza mudas para usá-las em seus projetos. Participe de grupos de compartilhamento de sementes e mudas, se engaje em projetos de reforestamento, se existentes na sua área, participando com trabalho voluntário e também contribuindo com suas próprias mudas! Pense em captar e armazenar água de chuva na sua casa, na medida do possívvel. Comece pequeno, com uma bombona colocada em baixo da calha, e vá planejando sistemas mais efetivos. Voltemos agora à questão da separação do lixo na sua casa. Agora, você já se acostumou a separar os orgânicos (que vão para sua composteira) e os secos, e já viu que não machuca, não é mesmo? Agora, que tal melhorar isso ainda mais? Não se limite a separar o lixo seco do orgânico — separe por material: papel, plástico, vidro, metal e, por fm, o que não pode ser reciclado. Aliás, analise bem esses itens (que não podem ser reciclados) — será que não dá para substituir, ou mesmo simplesmente deixar de consumi-los? Com seus novos hábitos, verá que a quantidade de lixo sendo produzida foi reduzida dramaticamente. Então, você pode ir mais além, e separar ainda melhor seu lixo: papéis brancos separados do papelão; vidros também, separados por cor; aço separado do alumívnio, etc. Eles serão reciclados separadamente, então, quem melhor para separa que você mesmo, a fonte geradora desses resívduos? Caso você gaste muito tempo no trânsito indo ao trabalho (ou faculdade, etc.), pense em se mudar para perto do emprego, ou arrumar um emprego perto de onde mora, de forma que possa ir a pé ou de bicicleta, evitando assim o gasto excessivo de energia e tempo com locomoção, evitando também toda a poluição e outros impactos negativos envolvidos. Não tenha pressa em fazer mudanças, 288

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mas vá pensando, avaliando opções. Caso seu emprego ou área de estudo seja em um ramo ou função que seja contra seus princívpios, por exemplo por ser intrinsecamente insustentável, considere mudar de ramo. Mas mantenha a prudência, não faça movimentos bruscos; só não se deixe cair em estagnação. Olhe em novas direções. Há diversas formas de ter a permacultura como seu estilo de vida, mas a melhor forma de começar é assim, com o que é fácil e está imediatamente ao seu alcance, e avançando passo a passo. A partir daív, há diversos caminhos possívveis: permacultura rural ou urbana, educação, prestação de serviços e consultoria, projetos ambientais ou socioambientais através de ONGs, etc. Examine as opções, entre em contato com grupos já existentes, converse com as pessoas. Comece a bolar sua própria estratégia para passar da situação em que você está para a que deseja estar. Esse processo de transição, é normal que leve anos, mas é muito melhor do que se atirar em algo precipitadamente, só para depois morrer na praia. Ninguém vira um “herói da sustentabilidade” da noite para o dia! É preciso jogar fora o imediatismo, domar a ansiedade. Toda transformação profunda leva tempo. O importante é não confundir paciência com comodismo: a primeira é uma virtude necessária, enquanto a última é um vívcio mortal. Cada passo pequeno na direção certa é uma vitória. O importante é a direção, e não a velocidade. Precisamos de mais pessoas que fazem da permacultura seu estilo de vida, que consumam menos e poluam menos, que em suas pequenas atividades do dia a dia preservem e ajudem a recuperar os ecossistemas, e que inspirem outros, fortalecendo assim o movimento — ao invés de um monte de gente apenas falando de sustentabilidade, sem mudar em nada seus hábitos, como muitas vezes vemos por aív. Trabalhar a terra Muitas vezes encontramos pessoas com um discurso super-empolgado sobre a permacultura, e muitas vezes até aderem a muitas das práticas descritas acima, porém sem praticamente nenhum trabalho com a terra, e portanto nenhum esforço para alcançar uma produção relevante, ou trabalhos de recuperação ambiental (e.g. reforestamento). Embora possa-se argumentar que isso ainda é bem melhor que nada, deve-se ressaltar que esse tipo de adesão “pela metade” à permacultura jamais será sufciente para resolver nenhum dos graves problemas que afigem a humanidade. É preciso lembrar que, no inívcio, a permacultura signifcava “agricultura permanente”, e embora o sentido tenha sido expandido para “cultura permanente”, o trabalho com a terra para produzir alimentos e restaurar ecossistemas continua sendo um ponto central, indispensável à permacultura. Sendo assim, o estilo de vida do verdadeiro permacultor é de trabalhar com a 289

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terra, mão na terra e pé na terra. E trabalhar pesado, pois só assim se alcançará qualquer resultado. Caso contrário, não se pode dizer que a pessoa leva a permacultura a sério. Um pé lál, outro cá Agora, é claro que não se pode sugerir que todas as pessoas evacuem as cidades e mudem-se para o campo para viverem totalmente autossufcientes. Isso seria não apenas impossívvel ou inviável, como também, sob a maioria dos aspectos, indesejável. Se todos largassem seus empregos urbanos (claro que isso jamais aconteceria, mas apenas como suposição), isso signifcaria a perda de todas as tecnologias e um retorno à idade da pedra! Um retorno do qual poucos sobreviveriam, diga-se de passagem. Então, não se está sugerindo de forma alguma o abandono da civilização, e sim uma reinvenção da mesma. O que quero dizer é que todas as profssões (tá legal, nem todas, mas a maioria) continuarão sempre sendo importantes ou necessárias. Portanto, não faz parte da proposta da permacultura abandonar essas atividades. O problema é quando a norma é a pessoa dedicar-se integralmente a um emprego urbano qualquer, dependendo de seu salário para comprar todas as coisas de que precisa, para suprir todas as suas necessidades (e também seus excessos e superfuidades), enquanto a natureza é massacrada sem que ninguém se enxergue como responsável. Ou seja, o que se está propondo é um equilívbrio entre atividades para a provisão direta ou indireta das necessidades humanas de forma sustentável, preservando e restaurando a terra e os ecossistemas, e as atividades convencionais necessárias aos aspectos positivos da vida civilizada. Conforme discutido no Capívtulo 9 (“Permacultura Rural”), a manutenção de uma profssão convencional é desejável e muitas vezes mesmo necessária na fase de preparação e também por toda fase de estabelecimento de seu projeto de permacultura, e sua transição para esse estilo de vida, sendo que, uma vez completo seu processo de transição e amadurecido seu projeto, você pode optar por continuar se dedicando a esse emprego, ofívcio ou atividade, em caráter de tempo parcial, conciliando com o trabalho com a terra e outras atividades permaculturais, ou deixar de vez a vida antiga e dedicar-se inteiramente à permacultura. Deve-se ressaltar que algumas profssões e atividades são particularmente compatívveis com a proposta da permacultura por poderem contribuir para a solução de problemas relativos à atual crise ambiental e civilizacional. Isso depende muito da maneira que você trabalha. Por exemplo, você pode ser um engenheiro que desenvolve tecnologias de reciclagem, ou desenvolver mais produtos com obsolescência programada, reforçando o consumismo e desperdívcio; você pode ser um professor que traz informações relevantes aos seus alunos e estimula o pensamento crívtico, ou apenas forçá-los a decorar um monte de informações inúteis ou mesmo falsas para passar nas provas; pode ser 290

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um arquiteto dedicado às construções sustentáveis ou envolvido na construção de arranha-céus luxuosos para corporações bilionárias; pode ser um polívtico ou gestor público consciente a respeito de questões ambientais e sociais, ou apenas praticar demagogia, populismo e atos corruptos para se manter o poder e enriquecer ilicitamente, etc. Outras profssões talvez não tenham contribuição a dar especifcamente em relação à crise ambiental (por exemplo, médico, contador, mecânico, dentista, eletricista, bancário, etc.); porém, são úteis à sociedade e podem ser úteis também para viabilizar a sua transição para uma vida na permacultura, o que é ótimo. Infelizmente, há também atividades que são inerentemente nocivas ao meio ambiente, ou não contribuem de qualquer forma positiva para a sociedade, ou são francamente degradantes, etc. Atividades assim, que ferem as éticas da permacultura e a moral em geral, não podem ter qualquer lugar no movimento da permacultura. Proatividade e engajamento Nós, permacultores, não fcamos parados, esperando as coisas acontecerem para só então nos adaptarmos; tampouco fcamos apenas observando e criticando, e reclamando dos caminhos da humanidade — nós assumimos a responsabilidade de fazer acontecer, de sermos nós mesmos a mudança que queremos ver no mundo. Proatividade faz parte do estilo de vida da permacultura. Agora, como sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, é importante que sonhemos juntos, para que esse sonho possa se tornar realidade! Ou seja, temos que nos unir, buscar a cooperação, tanto entre permacultores como entre esses e a sociedade em geral. Você até pode trabalhar sozinho, isoladamente, mas é muito melhor que você estabeleça redes de trabalho com outras pessoas que têm interesses afns. Estabeleça contatos com outros permacultores para favorecer um fuxo de ideias, informações, intercâmbio de trabalhos, trocas de sementes, etc. Busque também um engajamento recívproco com a sociedade maior que o cerca; procure participar de associações ou organizações não governamentais, formais ou informais, ou mesmo entidades governamentais, se possívvel, criando ou participando de projetos socioambientais, como educação ambiental, projetos de reforestamento e recuperação de mananciais; fazendo atividades em escolas e outros espaços comunitários, como hortas orgânicas, compostagem, etc.; organize ou participe de mutirões de revitalização de parques e praças, mobilize a comunidade. Dê palestras, escreva matérias e reportagens para jornais, revistas e rádios locais, fale sobre a crise ambiental e a permacultura, mostrando resultados de seu próprio trabalho, buscando inspirar, engajar a comunidade e contribuir para o fortalecimento do movimento.

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Recomendação aos jovens: não larguem os estudosl, não desistam da faculdade! Muitas pessoas desenvolvem uma consciência aguda da atual crise ambiental e civilizacional e tomam contato com a permacultura enquanto cursam uma faculdade, ou estão se preparando para tal. Isso pode se dar por vários motivos: nessa época, o jovem já atingiu maturidade suficiente e contato com o mundo para perceber que algo está muito errado, e muitas vezes o próprio curso, ou seja, as coisas que lhe são ensinadas, causam grande decepção e o ajudam a ver isso. Nesses casos é muito comum a pessoa se sentir desestimulada e mesmo arrependida de estar naquele curso, e ter vontade de abandonar os estudos e aquela carreira, por descobrir que aquela não é a vida que deseja para si. Porém, embora possa ser realmente desestimulante aprender tantas coisas aparentemente inúteis e formas insustentáveis de se viver a vida e fazer as coisas, nada disso significa que você terá que fazer as coisas daquela maneira. Na verdade é importante, útil aprender essas coisas justamente para entender mais profundamente como as pessoas em geral fazem, como a sociedade funciona e às vezes até mesmo justamente para aprender o que não fazer. Mas, no futuro, você provavelmente ficará surpreso com quantas vezes informações aprendidas na faculdade serão úteis em sua vida, inclusive em suas atividades permaculturais. Muito provavelmente será também muito importante no começo de sua trajetória como permacultor, por aumentar suas chances de emprego e renda que possibilitarão levantar capital para comprar terra e fazer as benfeitorias em seu próprio projeto de permacultura rural ou urbana (sem dinheiro, tudo fica muito mais difícil, senão impossível). Conhecimento e capacitação técnica formal são vitais também para realizar atividades permaculturais em áreas técnicas específicas e legalmente regulamentadas que exigem nível de bacharelado, como engenharia, arquitetura, biologia ou ecologia, gestão ambiental, etc. Por isso, faço esta recomendação, e de fato este apelo aos jovens: não desistam dos estudos, embora seja uma boa ideia direcioná-los para áreas particularmente aplicáveis à permacultura. A firmeza em não esmorecer frente a uma situação transitória desconfortável, porque isso te abrirá portas e ampliará suas possibilidades de sucesso, na verdade faz parte daquele pacote essencial de virtudes necessárias à permacultura — seriedade, tenacidade, persistência, etc. Essa atitude de firmeza é essencial não apenas para o seu sucesso pessoal na permacultura (de fato qualquer coisa na vida), mas também para o sucesso do próprio movimento da permacultura, em cumprir sua nobilíssima missão. Como disse Bill Mollison, “Precisamos de especialistas de todas as áreas na permacultura.”

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As pessoas que abraçam a permacultura o fazem porque desejam alcançar um estilo de vida natural, simples e saudável, em contato e harmonia com a natureza e outros seres humanos, preservando e recuperando ecossistemas. Esses objetivos de vida são radicalmente diferentes, senão mesmo opostos aos da imensa maioria das pessoas, consideradas “normais” pela sociedade em que estão inseridas, que são voltados para para o crescimento material, competição, consumo, manutenção de aparências e muitas vezes hedonismo — objetivos que evidenciam uma visão de mundo marcada pelo individualismo. Pessoas que compartilham dos objetivos da permacultura existem, espalhadas pelo mundo. Se considerarmos, apenas para efeitos ilustrativos, já não há dados disponívveis, que somos 0,1% da população mundial, dada uma população total de mais de 7 bilhões, isso signifca que somos mais de 7 milhões de pessoas que desejamos uma vida em harmonia com a natureza! O que certamente não é pouco. Agora, o problema é que estamos diluívdos no meio de uma enorme massa de pessoas ignorantes e inconscientes em relação à atual crise ambiental e civilizacional e suas terrívveis consequências. E é justamente isso que nos enfraquece — estamos isolados uns dos outros e cercados de pessoas que não nos entendem, que estão o tempo todo tentando nos convencer que somos “malucos”, idealistas, que nossas 293

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preocupações são infundadas, nossas expectativas não são realistas, que o que queremos fazer nunca vai dar certo, etc. Podemos muitas vezes passar a vida toda sem jamais encontrar ou conhecer alguém que compartilhe de nossas ideias, valores e visões, o que certamente é extremamente desanimador. Existe uma enorme pressão por parte das pessoas — familiares, amigos, colegas, patrões, enfm, da sociedade em geral para que você se adeque à norma — a forma como você se veste, o carro que você tem, seus papos, suas ideias, etc., tudo tem que estar dentro de um conjunto de opções pré-defnidas, consideradas “normais”, dentre as quais você tem “liberdade” para escolher. Se pisar fora da linha, te olham torto; e se “pisar muito na bola”, você é perseguido, ou simplesmente excluívdo. Todos que não se adequam às normas implívcitas impostas pela sociedade sentem o peso dessa pressão. Frente a isso, há basicamente dois caminhos possívveis: ceder, ou não ceder à pressão, ou, em outras palavras, o caminho da submissão e o da “rebeldia”. Muitos acabam cedendo às pressões da sociedade para se conformarem aos seus ditames de normalidade, e por isso acabam padecendo de uma sívndrome chamada de normose, caracterizada por depressão, baixa suto-estima, etc., levando muitas vezes a tendências destrutivas, como a misantropia e mesmo tendências suicidas. Por outro lado, os que não cedem à pressão e se mantém féis às suas próprias essências muitas vezes acabam se isolando (ou sendo isolados), o que fatalmente resulta em infelicidade crônica, já que ninguém pode ser feliz sozinho. Porém, basta você encontrar alguém, ou de preferência um grupo de pessoas que compartilham de seus pontos de vista e ideais para que você melhore instantaneamente! Naquele momento, toda a pressão da sociedade torna-se algo distante, irrelevante, e você se sente imensamente fortalecido, passando a olhar com esperança para a possibilidade de um futuro empolgante, e um caminho excitante para chegar até ele. Se é o isolamento que nos enfraquece, então somente através da união podemos nos fortalecer. A união possibilita o fuxo de ideias, que leva ao amadurecimento; a troca de experiências, que ensina e encoraja; o compartilhamento de trabalho, que o torna mais leve e produtivo, e o convívvio saudável e respeitoso, que possibilita uma vida feliz. Daív decorre a importância do conceito de comunidades em permacultura. Existem muitas formas de você se inserir em algum tipo de grupo que de alguma forma represente uma comunidade de pessoas; todas essas formas são válidas, e se complementam. Comunidades virtuais A forma mais fácil e acessívvel são comunidades virtuais, através da internet. Por exemplo, redes sociais têm inúmeros grupos abertos de 294

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permacultura, com milhares de membros. Outro exemplo são fóruns de permacultura na internet, sendo que alguns deles são ligados a centros e institutos de permacultura bastante reconhecidos. Quando falamos de comunidades virtuais de permacultura, muitos torcem o nariz, julgando que isso não conta, pois não é “real”. E de fato, se a única permacultura que você faz é através da internet, isso certamente não fará diferença nenhuma em sua vida, e muito menos no mundo. Assim mesmo, é importante não subestimar a utilidade dessa ferramenta. Para muitas pessoas, essa será a única forma de romper a barreira inicial de isolamento, e entrar em contato com outras pessoas envolvidas com a permacultura, especialmente nos casos, infelizmente muitívssimo comuns, em que todas as pessoas do seu convívvio social, as pessoas ao seu redor, não conhecem ou sequer ouviram falar da permacultura. Agora, basta entrar em algum grupo ou fórum, e você estará instantaneamente em contato com uma infnidade de pessoas que praticam a permacultura em diversas partes do mundo, e poderá também descobrir pessoas na sua região, ou mesmo na sua própria cidade. A partir daív, você pode passar para encontros fívsicos, reais. Essa ferramenta ainda abre inúmeras outras portas: trocas de ideias, fuxo de informações, inclusive publicações e outros materiais de estudo, divulgação de eventos como cursos, palestras, mutirões, etc., e também vivências e oportunidades de voluntariado para aprendizado prático. Há que se fazer uma ressalva: dos milhares de membros que participam dessas comunidades virtuais, apenas uma minoria efetivamente pratica a permacultura de fato em qualquer grau, enquanto a maioria são apenas pessoas interessadas ou simpatizantes pela permacultura. É importante ressaltar que o mundo não precisa de mais permacultores virtuais, ou qualquer outro tipo de “guerreiros dos teclados”. Ler, publicar e comentar compulsivamente em redes sociais é uma forma tívpica dos dias atuais de não fazer nada e sair com a impressão que faz muito, e é vital que você evite esse vívcio! Mas insisto que os meios virtuais são ferramentas úteis, desde que usados de forma adequada. Associações No capívtulo 13 (“Permacultura Urbana”), discutimos formas de engajar a comunidade local em atividades permaculturais, ou seja, projetos ambientais e socioambientais tais como revitalização de parques e praças, talvez inclusive com produção de alimentos; hortas em escolas ou em áreas subaproveitadas, atividades de educação ambiental, etc., que podem ser feitas através de associações informais ou formais (ONGs). Trabalhos em conjunto, voltados para o bem comum e da natureza, geralmente conquistam a simpatia de todos. Isso faz com que as pessoas refitam e passem não só a entender e respeitar, como também admirar seu trabalho, suas motivações, enfm, seus pontos de vista. Muitas pessoas aderirão às suas causas e 295

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às suas atividades, inspiradas pelas suas ações, muito mais que pelas suas palavras Esses trabalhos de mobilização da sociedade local são muito importantes pois aproximam as pessoas, formando um verdadeiro senso de comunidade.

Ecovilas Quando se fala em comunidades de permacultura, normalmente a ideia que vem à cabeça são grupos de pessoas, permacultores, vivendo em assentamentos, geralmente na zona rural, onde buscam uma vida autossufciente e realmente integrada à natureza, pela aplicação maciça dos princívpios e técnicas da permacultura — ou seja, uma ecovila. Uma ecovila é uma comunidade intencional de pessoas que buscam uma vida simples, natural e saudável, em contato e harmonia com a natureza e outros seres humanos. A “cola” da ecovila Chama-se de “cola” um componente ideológico em comum que serve de elo, de ligação entre os membros de uma comunidade intencional, e que de certa forma a defne. Pode ser uma linha espiritual ou religiosa (e.g. Amish, Hare Krishna, Santo Daime, mosteiros de diversas denominações religiosas, etc.), ideológica (e.g. anarquismo, comunalismo, naturismo, liberação animal/veganismo, etc.), entre outras visões de mundo. A cola das ecovilas é a permacultura. Nada impede que uma comunidade intencional tenha mais de uma cola. O que tem em uma ecovila? Uma ecovila é essencialmente uma vila, um assentamento humano coletivo, e portanto terá pessoas, habitações e sistemas produtivos. Agora, basicamente tudo relacionado à permacultura pode e deve estar presente em uma ecovila. Pode-se dizer que quanto mais princívpios da permacultura estiverem em uso, e com maior intensidade e efciência, mais “eco” será a vila. São exemplos: bioconstrução, saneamento ecológico, produção orgânica de alimentos, captação e uso de água de chuva, minimização da geração de lixo e poluição em geral, minimização do consumo de energia através do uso consciente (efciente) e possivelmente uso de fontes alternativas, conservação e recuperação ambiental, como reforestamento, agroforestas e recuperação de nascentes, economia solidária, etc. Outras coisas, como atividades comerciais discutidas mais adiante, também podem estar presentes. Dependendo do tamanho e maturidade de uma ecovila, 296

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ela pode também contar com uma escola própria para servir primariamente às crianças da própria comunidade. Nessas escolas, normalmente se adotam pedagogias alternativas e conteúdos diferenciados, em certo grau, da educação formal convencional, em concordância com as visões de mundo dos membros da ecovila. Do que vive uma ecovila? A viabilidade econômica é um dos pontos principais para o sucesso de qualquer projeto de ecovila. Alguns permacultores têm como foco principal a autossufciência, mas nem todos. Também há os que prefram manter-se integrados à economia de mercados, ou seja, produção, venda e consumo de bens e serviços, mas com compromisso real com a sustentabilidade e preservação da natureza, e ética no trato com as pessoas. O mesmo pode-se dizer das ecovilas. Mesmo que você tenha como foco a autossufciência, é necessário ter em mente algumas coisas: • Autossufciência total, à la “Famívlia Robinson”, não é um objetivo realista. Portanto, quando falamos de autossufciência estamos falando em níveis de autossuficiência, ou seja, suprir tanto quanto possível suas próprias necessidades, portanto dependendo o mínimo possível de bens e serviços externos. • Independentemente do nívvel de autossufciência desejado, levará tempo para alcançá-lo, e estamos falando de vários anos. Portanto, nesse perívodo você vai necessitar de outras atividades econômicas, fontes de renda, etc., para garantir sua sobrevivência. Essas atividades podem ser gradativamente reduzidas ou abandonadas, conforme você aumenta seu nívvel de autossufciência. • Para efeitos práticos, pode ser considerado autossufciente o permacultor que vive exclusivamente de sua produção de alimentos e outros produtos, pelo consumo de sua própria produção e venda ou troca de excedentes, sem necessidade de quaisquer outras atividades remuneradas ou fontes de renda, e consumindo minimamente produtos externos. Sendo assim, não importa se você ou sua ecovila têm um foco em autossufciência ou não, será sempre necessária uma ou mais fontes de renda, pelo menos na fase de estabelecimento, que poderão ser mantidas, alteradas ou descontinuadas com o desenvolver do projeto, conforme discutimos no capívtulo 9 (“Permacultura Rural”, no item “Estabelecendo um projeto de permacultura rural”). As opções de atividades econômicas que podem ser desenvolvidas são praticamente ilimitadas, mas podem não ser nada óbvias, e saber escolher (ou inventar) e desenvolvê-las economicamente é questão crucial para a 297

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sobrevivência da ecovila e seus membros. Claro que as atividades ideais ou viáveis variarão de acordo com uma série de fatores, como: as potencialidades do terreno, mercados disponívveis, talentos, conhecimentos e interesses dos membros, capital disponívvel, etc. Porém, há alguns ramos de atividade que são notoriamente comuns em ecovilas. Dentre eles, podemos citar: hospedagem ecológica e educação ambiental, eventos como cursos e palestras, terapias holívsticas, artes e ofívcios em geral, além de empregos externos em ramos convencionais. É muito importante que a fonte de renda tenha compatibilidade com as propostas da permacultura, por simples questão de coerência. Por exemplo, não adianta nada você morar em uma ecovila e sair todo dia para trabalhar numa corporação ou banco praticando capitalismo predatório, ou com venda de agrotóxicos, desenvolvimento de transgênicos, marketing de alimentos infantis ultraprocessados, setor energético promovendo uso de combustívveis fósseis, etc.

Como são organizadas ecovilas? Embora os detalhes possam variar muito, existem basicamente três formas de organização de ecovilas, em relação à propriedade da terra e tomadas de decisões: propriedade compartilhada, propriedade centralizada e propriedade individual. Propriedade compartilhada Neste modelo, que é semelhante a um condomívnio, um grupo de pessoas adquire em conjunto um imóvel para nele estabelecer uma comunidade. Normalmente, as regras são pré-defnidas em um estatuto, que prevê a realização de assembleias para a defnição de pontos mais importantes, e também a forma de resolução de confitos, adesão e saívda de membros, etc. Via de regra, decisões que afetem o conjunto da comunidade são tomadas por consenso entre os membros, nas assembleias. Este modelo pode ser descrito como um sistema onde “nada é de ninguém e tudo é de todo mundo”, pelo menos em relação à terra e edifcações, e as decisões são tomadas pela vontade da maioria. Este modo de organização atrai muitas pessoas adeptas ou simpatizantes do comunalismo. Vantagens da propriedade compartilhada:

• Muitos identifcam este modelo com um forte senso de vida em comunidade. • A compra compartilhada da terra pode tornar o ingresso em uma ecovila mais acessívvel (barato) para cada um dos membros, comparativamente à

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Parte II – A Alternativa da Permacultura

15. Comunidades em Permacultura

propriedade individual. Desvantagens da propriedade compartilhada:

• A formação deste tipo de ecovila encontra um obstáculo inicial muito grande: a difculdade de se formar um grupo e chegar a um acordo para formar a ecovila, já que há muitos pontos a serem defnidos, como: onde será a ecovila? qual será o tamanho do terreno? qual o valor máximo por pessoa? quantas pessoas? quais atividades serão desenvolvidas? etc. • Tendência de ocorrerem muitos confitos. Decisões por consenso signifcam o cerceamento da liberdade individual, pois muitas vezes a pessoa deseja fazer algo, mas é vetado na assembleia, enquanto é obrigada a fazer outras coisas contra sua vontade, pois assim foi decidido pela maioria, etc., levando a frustrações que tendem a acumular-se ao longo do tempo, enfraquecendo a comunidade. Além disso, frequentemente ocorrem vários tipos de parasitismo, por exemplo pessoas que nunca aparecem para plantar ou cuidar, ou pegar no trabalho pesado, mas estão sempre lá para colher, comer e usufruir; ou ainda, pessoas que trazem visitas indesejáveis, que se instalam nas áreas de uso comum causando desarmonia no grupo, etc. Esses fatores muitas vezes contribuem para uma certa instabilidade da ecovila, causando uma rotatividade elevada de seus membros, e muitas vezes levam a um fm precoce da comunidade. Propriedade centralizada O cenário é mais ou menos assim: uma pessoa possui um sívtio ou fazenda, talvez uma herança, e decide ali fazer uma ecovila. Ela elabora um estatuto, com direitos e obrigações de cada membro, forma de ingresso e saívda, etc., e começa a aceitar membros, mediante algum tipo de seleção, talvez envolvendo um perívodo de experiência, e geralmente também o pagamento de um depósito, chamado de cota, que pode ser retornável ou transferívvel sob determinadas condições previstas no estatuto, etc. Do ponto de vista de funcionamento em geral, este modelo é basicamente semelhante ao anterior (de propriedade compartilhada), pelo menos em teoria. Vantagens da propriedade centralizada:

• É mais fácil de começar, já que depende essencialmente de apenas uma pessoa, o membro fundador, proprietário do terreno, pulando portanto dois grandes obstáculos iniciais do modelo anterior, que são os recursos fnanceiros para aquisição de terra e a difculdade de escolha do local. • Pode ser mais acessívvel a novos membros, dependendo do valor da cota, que às vezes pode ser até de graça.

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Desvantagens da propriedade centralizada:

• Neste modelo, não existe uma situação de igualdade, pois no fnal das contas, a despeito de qualquer estatuto, quem manda na terra é o dono da terra. Essa desigualdade é muitas vezes associada metaforicamente a uma relação de casa grande e senzala, ou senhor feudal e vassalos, etc. • Os demais membros fcam em uma situação de grande fragilidade. Muitas vezes, após construívrem, plantarem, investirem dinheiro, sonhos, expectativas, anos de suas vidas, etc., algo acontece: o dono do terreno por algum motivo muda de ideia, ou se casa ou morre, e o cônjuge ou herdeiros pensam diferentemente, etc. e, de repente, os membros da ecovila subitamente têm o tapete puxado sob seus pés, e têm muita difculdade de fazer valer quaisquer direitos, a despeito de qualquer estatuto, dada a precariedade de sua situação frente à propriedade legívtima do imóvel (ou seja, escritura registrada), por parte do fundador da ecovila. Propriedade individual Neste modelo, a ecovila consiste de uma vizinhança onde cada membro é dono do seu próprio terreno e ali desenvolve seus projetos, sobre os quais é o único responsável. Os membros ajudam-se mutuamente na medida do possívvel e desejável, considerando sua afnidade de propostas, ideias e trabalhos, auxiliados pela proximidade, e considerando o fortalecimento mútuo e o espívrito de comunidade, abraçado por todos. A adesão de novos membros se dá através da compra de terrenos vizinhos, resultando no crescimento da área da ecovila por agregação, ou desmembramentos de terrenos que já fazem parte da ecovila. Vantagens da propriedade individual:

• Preservação da liberdade individual, já que cada membro mantém o direito de desenvolver seus projetos, pôr em prática suas ideias, fazer experimentos, etc., sem depender da anuência de outros, tampouco sendo obrigado a se submeter a obrigações com as quais não concorde, levando inclusive à prevenção de confitos. • Segurança jurívdica, já que cada membro é proprietário legívtimo de seu “pedaço”. • Tende a atrair pessoas mais maduras, preparadas e responsáveis, levando a uma chance maior de sobrevivência a longo prazo da ecovila. Desantagens da propriedade individual:

• O custo inicial para cada membro pode ser mais alto, pela aquisição da terra, construção de benfeitorias como casa, sistemas produtivos, etc. • Menor senso de vida comunitária, com maior tendência ao individualismo. 300

Parte II – A Alternativa da Permacultura

15. Comunidades em Permacultura

Considerações gerais sobre ecovilas e vida em comunidade Viver em uma comunidade baseada na permacultura é uma ideia linda que atrai muitas pessoas. Porém, é preciso ter muito cuidado com expectativas não realistas, pois elas costumam resultar em desilusões que podem ferir algumas pessoas a ponto de afastá-las defnitivamente da ideia da vida em ecovila. A seguir, vamos abordar e procurar desmistifcar algumas das principais ilusões que comumente se criam em torno da ideia de ecovilas e da vida em comunidade: • Achar que vai ser fácil. Muitas vezes, ao ter um primeiro contato com livros e outros materiais de permacultura, tudo parece fazer tanto sentido que o neófto acaba tendo a impressão que os princívpios da permacultura funcionarão como palavras mágicas, que possibilitarão a construção de casas lindas e confortáveis, e sistemas altamente produtivos e harmônicos, em pouco tempo e com pouco esforço. Infelizmente, na prática não é bem assim. A construção de uma ecovila requer, além de um bom preparo teórico e prático, enormes doses de esforço por todos os membros envolvidos, ou seja trabalho pesado por um longo tempo, e também recursos fnanceiros. • Ilusão do tapete vermelho. Consiste de achar que encontrará uma ecovila pronta, já formada, com várias famívlias vivendo tranquilamente em harmonia com a natureza, onde você simplesmente chegará, sem qualquer dinheiro sequer para comprar uma cota ou terreno, e será aceito como membro, e que os moradores farão um mutirão para construir uma casa para você morar, etc. Isso pode ser em sonho, ou um trecho de um flme, mas não tem nada a ver com a vida real. • Ilusão de controle. Muitas pessoas sentem-se oprimidas pela sociedade, que lhes impõe normas com as quais não concordam, e veem na ideia de uma ecovila uma forma de escapar dessa situação, o que é bom. Muitas vezes, porém, o indivívduo acaba vendo na ecovila uma forma de ele próprio se tornar o opressor, impondo aos demais membros suas próprias normas, valores, pontos de vista, etc. Assim, o idealizador da ecovila elabora um estatuto com normas rívgidas e arbitrárias, que defnem seus próprios pontos de vista, e sanções aos que se desviarem dessas normas. Por exemplo, “aqui, todos têm que ser veganos”, ou “ninguém pode ter carro”, ou “todos têm que praticar meditação transcendental”, etc. Não que essas ideias sejam más ou erradas; o problema é que essas imposições e proibições ferem injustifcadamente a individualidade e liberdade dos demais. Isso mostra um tipo de atitude egocêntrica, controladora, e difculdade de lidar com diferenças por parte dos idealizadores da ecovila, o que certamente não é bom. É preciso ser fel ao objetivo real de qualquer ecovila, que é o estilo 301

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de vida natural, saudável e sustentável em harmonia com a natureza, e reconhecer que não existe receita universal; estamos todos aprendendo, e cada um passará por um processo diferente para alcançar esse objetivo. • O mito da divisão diferenciada de funções. É comum ver em grupos que visam formar uma ecovila a ideia que cada um contribuirá apenas com suas aptidões, e que assim se formará uma comunidade funcional e harmoniosa. Aív, você para para analisar e vê que um membro quer fazer mapa astral e tarô; outro, metido a xamã, quer contribuir com terapias holívsticas; outro ainda, gosta de cozinhar, e pretende cuidar só dessa parte, enquanto o último será o artista, e contribuirá com sua arte... Então, você pergunta: “e quem é que vai fazer o trabalho pesado? Construir, plantar...” e todo mundo se esconde! Em outro cenário tívpico, um membro endinheirado resolve entrar com a grana, e portanto não terá que fazer mais nada; outro, que “leu um livro”, quer ser o consultor técnico da ecovila, enquanto outro, que tem bastante disposição mas não tem dinheiro nem leu o livro, e quer muito entrar na ecovila, contribuirá com o trabalho braçal. Depois de algum tempo, o terceiro membro percebe que está recebendo ordens do segundo, e trabalhando para o primeiro; construindo para os outros em uma terra que não é e nunca será sua, e resolve ir embora, cuidar da sua vida. O segundo e o primeiro então também logo desistem, e a terra fca lá, abandonada, e esse é o fm da ecovila. Conforme já mencionado, a construção, funcionamento e permanência de uma ecovila requerem empenho e dedicação de todos os envolvidos. • Ecovila de fm de semana. É quando as pessoas trabalham a semana toda em alguma atividade nada sustentável em um grande centro urbano, e nos fnais de semana dirigem 100 ou 200 km até sua “ecovila”, onde fngem viver em harmonia com a natureza por um ou dois dias, e “recarregam suas baterias” para na segunda-feira estarem de volta aos seus empregos de sempre, e o estilo de vida de sempre, sem terem a intenção real de mudarem seu estilo de vida permanentemente para algo mais sustentável. Claro que estão enganando a si próprias, e isso não é ecovila, e sim meramente uma casa de campo. • O erro do isolamento. Algumas pessoas idealizam uma ecovila como uma “bolha”, isolada da sociedade maior que tanto reprovam — o que, muitas vezes, tem a ver com a ilusão de controle já mencionada. Muitas vezes, criam até um isolamento geográfco considerável, formando a ecovila em local distante e de difívcil acesso, para reforçar esse distanciamento. Essa é uma abordagem equivocada que acaba de cara com qualquer chance de sucesso de uma ecovila, por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, pelas difculdades óbvias de estabelecimento da ecovila, pois tudo que já é difívcil será ainda mais difívcil, pelas idas e vindas, transporte de materiais, manutenção de uma fonte de renda especialmente na fase de formação, etc. 302

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Além disso, o que na verdade ocorre é que, quando se busca essa utopia, de uma comunidade “pura”, isso na verdade cria o cenário ideal para a criação de uma distopia. Os inevitáveis confitos internos, agravados pelo isolamento e as enormes difculdades práticas de sobrevivência podem criar um verdadeiro inferno, que acaba com a dissolução da ecovila, e muitos corações partidos. Para que uma ecovila seja saudável e duradoura, deve estar sempre integrada à sociedade maior que a cerca, para que seus membros possam usufruir de seus benefívcios, manter-se em contato com famívlia e amigos, e até para que a ecovila possa cumprir sua missão de ter um papel transformador nessa sociedade. A vida em uma comunidade, uma ecovila, é como a permacultura em geral: um ideal possívvel e cheio de signifcado, mas também cheio de desafos. A discussão acima é extremamente simplifcada — há na verdade uma infnidade de modelos possívveis, formas de concretizar esse sonho, tanto em situações rurais como urbanas. Não existe um modelo ideal; na verdade, o ideal é que todos os modelos possívveis sejam testados, por quem neles acreditar, para que o tempo e a experiência prática diga o que funciona melhor ou pior, nas diferentes situações e para os diferentes tipos de pessoas. O melhor é que todos os modelos possívveis existam, e coexistam, para que se complementem e atendam ao maior número de pessoas possívvel, com suas necessidades e potenciais diferenciados. Só assim as ecovilas poderão forescer e crescer, nem tanto em tamanho mas em número, surgindo como uma opção viável de estilo de vida para cada vez mais pessoas, permitindo, quem sabe, em determinado momento, um esvaziamento dos grandes centros urbanos e uma transição em escala global para um modo de organização social e estilo de vida sustentável, à luz da permacultura. (discutiremos mais sobre isso no capívtulo 18, “Proposta de uma Transição Global”). Trata-se de uma mudança radical de estilo de vida, e uma realidade que tem que ser construívda. Deve-se ter em mente que os resultados fnais (quando se pensa em uma comunidade formada, com casas construívdas e famívlias morando, produzindo alimentos e forestas, uma escola para as crianças dentro da ecovila, etc.) só serão alcançados no longo prazo, e para que se tenha sucesso são necessárias não apenas doses maciças de amor, mas também muito preparo, planejamento, seriedade, dedicação, perseverança. Como já citado para projetos de permacultura em geral, deve-se traçar uma sólida estratégia de transição, que consistirá dos passos a serem tomados no curto e médio prazo, para possibilitar alcançar os objetivos fnais. Tendo dito isso tudo, é preciso ressaltar que, embora não seja fácil, essa mudança é cheia de sentido, e é uma mudança necessária para alcançarmos o ideal de uma sociedade sustentável.

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Economia solidária Economia solidária é um conjunto de atividades econômicas — de produção, distribuição e consumo de bens e serviços — organizadas de forma livre e voluntária, independente do sistema fnanceiro monetário. Compreende uma variedade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, fnanças solidárias, trocas, comércio justo, etc. Trata-se de uma forma de economia centrada na valorização do ser humano e não do capital, caracterizada pela igualdade; uma organização alternativa de trabalho, produção e distribuição de riqueza que integra quem produz, quem vende, quem troca e quem compra. Seus princívpios são autogestão, democracia, solidariedade, cooperação, respeito à natureza e comércio justo. Lembrando, sob vários aspectos, a organização econômica de sociedades primitivas, tribais e pré-capitalistas, por ser baseada na troca e compartilhamento direto de trabalho, produção e serviços, a economia solidária é geralmente vista como uma alternativa mais humana ao sistema econômico fnanceiro moderno, com suas caracterívsticas de alienação em seus diversos nívveis, individualismo e em geral descaso pelas pessoas e natureza. A economia solidária é baseada num espívrito de coletividade, de comunidade. Por isso, ela é um componente essencial a todas as comunidades permaculturais. Dentro do contexto de economia solidária, merece destaque o trabalho voluntário — aquele em que o indivívduo dedica parte de seu tempo e esforços em prol de uma causa, geralmente de cunho social ou ambiental, sem uma contrapartida fnanceira, ou seja, sem remuneração. A motivação para engajarse em trabalho voluntário normalmente vem do desejo de contribuir com causas nas quais se acredita, buscando contribuir para um mundo mais justo e solidário, ou seja, uma motivação moral. Trabalho voluntário frequentemente se dá em ações de cunho assistencial e humanitário (educação, assistência social e à saúde, apoio a órfãos, idosos, pessoas com defciências, vívtimas de desastres, proteção animal, etc.), ambientais (recuperação ambiental, reforestamento, agricultura orgânica, coleta de lixo, reciclagem, educação ambiental, etc.), e outras, como eventos esportivos, culturais, recreativos, etc. Outra importante fonte de motivação para o trabalho voluntário são os benefívcios pessoais, seja pela aquisição de conhecimentos e experiência, formação de contatos, interação social, fortalecimento do espívrito de equipe, expansão de visão e compreensão do mundo, etc. A maioria dos projetos de permacultura e ecovilas aceitam voluntários regularmente para ajudar em trabalhos os mais variados, como construções, 304

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plantio, colheitas, manutenção em geral etc. Os hospedeiros benefciam-se imensamente, não apenas pelas contribuições com força de trabalho, mas também, de forma semelhante ao que ocorre com os próprios voluntários, pelo contato com novas ideias, informações, diferentes visões de mundo, etc. Voluntários são muito necessários em todas as etapas do trabalho permacultural. Realizar trabalho voluntário em projetos de permacultura ainda é uma das melhores formas de se adquirir experiência prática com as técnicas da permacultura antes de iniciar seu próprio projeto, além de contribuir para o avanço dos projetos existentes e, assim, da própria permacultura. Ao praticar o voluntariado em ecovilas e projetos de permacultura, estamos formando redes de trabalho e contatos, compartilhando e transmitindo conhecimentos, divulgando a permacultura e inspirando futuros permacultores, dando a oportunidade de uma experiência realmente transformadora. É claro que é uma situação em que todos os lados são benefciados, e o movimento da permacultura é fortalecido.

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16. Aprendizado da Permacultura

16 APRENDIZADO DA PERMACULTURA

Quando a permacultura foi criada nos anos 70 por Bill Mollison e David Holmbren, logicamente não havia ainda nenhum livro ou material didático de permacultura propriamente dita. Mas claro que tampouco foi a permacultura criada “do nada”. O que havia era um grande acervo de conhecimentos e informações registradas na forma de literatura técnica e cientívfca, conhecimentos tradicionais e étnicos, experiência pessoal e visões de mundo dos criadores do movimento, que catalisaram a aglutinação desses elementos na criação do que passou a ser chamado de permacultura. Talvez a criação da permacultura não represente a invenção de um estilo de vida sustentável, mas um caminho viável para pessoas que nasceram e foram criadas em um modelo insustentável alcançarem um modo de vida sustentável — um caminho, vale ressaltar, que ainda está em construção. Naqueles anos iniciais do movimento da permacultura, a natureza escassa, difusa e incompleta da literatura e recursos didáticos disponívveis sobre os assuntos pertinentes à crise ambiental e o viver sustentável representavam um grande obstáculo ao seu ensino e disseminação. Foi nesse contexto que nasceram os Cursos de Design em Permacultura, ou “PDC” (do inglês “Permaculture Design Certificate”) como principal modelo de ensino da permacultura à época, e que existem até os dias de hoje.

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O PDC é um curso em formato desenvolvido e ministrado inicialmente por Bill Mollison e, posteriormente, seus discívpulos, e eventualmente centenas ou milhares de professores, conforme a permacultura se disseminou pelo mundo. Trata-se de um curso intensivo e de curta duração, normalmente 72 a 90 horas, cobrindo os principais tópicos pertinentes à permacultura. Nas primeiras décadas de vida da permacultura (leia-se, na era préinternet), esse foi um modelo fantástico e, realmente, necessário para a disseminação da permacultura. Numa época em que as informações eram escassas e difívceis de obter, um PDC era realmente uma experiência profundamente transformadora para todos seus participantes, pois era geralmente a primeira vez que eles tinham contato com aquelas informações — tanto as estarrecedoras sobre o caminho sendo trilhado pela humanidade, quanto as alentadoras representadas pelas propostas de soluções da permacultura. Além disso, o contato próximo com um grupo de pessoas que compartilham dos mesmos ideais, preocupações em relação ao futuro do mundo (humanidade e natureza) e a intenção de mudança, era certamente uma experiência extremamente inspiradora e motivadora aos participantes desses cursos. Porém, hoje, quatro décadas depois do nascimento da permacultura, a realidade é bem diferente, com uma abundância de informações e recursos didáticos cobrindo todos os aspectos e elementos essenciais à permacultura, dos mais básicos aos mais avançados, incluindo livros e apostilas, artigos técnicos e cientívfcos, vívdeos, etc. Além disso, com a internet, a maioria desses materiais estão livremente disponívveis, praticamente a qualquer pessoa interessada, em diversas lívnguas, havendo apenas dois fatores limitantes: que a pessoa tenha acesso à internet livre, e que saiba como procurar. Claro que PDCs continuam existindo, e motivando e inspirando milhares de pessoas todos os anos e, portanto, continuam sendo úteis e importantes. Porém, já não se pode dizer que sejam necessários ao ensino e aprendizado da permacultura. Deve-se ressaltar que a carga de informação e conhecimentos teóricos que se pode transmitir em um curso de 72 horas é muito limitada e, portanto, esses cursos são necessariamente superfciais. Isso contrasta com a enorme quantidade e profundidade de informações que se pode obter estudando materiais disponívveis na internet. Não podemos esquecer também do ensino e aprendizagem da parte prática da permacultura; afnal, de nada vale teoria sem prática, e aqui também a situação é semelhante: enquanto num PDC tívpico a parte prática é limitadívssima em função até da curta duração do curso, qualquer interessado tem a opção de obter um aprendizado prático muito mais abrangente e profundo através da realização de estágios de trabalho voluntário em projetos de permacultura, conforme discutiremos mais adiante.

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Finalmente, há que se considerar a questão fnanceira: PDCs são cursos pagos, e embora geralmente sejam oferecidas bolsas ou formas alternativas de pagamento, o custo desses cursos continua sendo um fator restritivo a muitos interessados, o que contrasta com o caráter gratuito das informações e materiais didáticos disponívveis através da internet, e também do aprendizado prático através de trabalho voluntário.

Cursos de Permacultura Apesar de haver outras alternativas ao ensino e aprendizagem da permacultura, cursos de permacultura deverão sempre existir, pelos seguintes motivos: • Pessoas diferentes aprendem de formas diferentes, e por mecanismos diferentes, e isso não quer dizer que um seja mais esperto ou inteligente que outro. Por isso, enquanto algumas pessoas têm facilidade em aprender sozinhas pelo estudo de materiais didáticos, outras necessitam de cursos presenciais e interativos para um aprendizado efciente. • A imersão no mundo da permacultura, em contato próximo e o espívrito de compartilhamento de ideias para um mundo melhor, numa espécie de “retiro permacultural” que os cursos normalmente representam, é uma experiência transformadora, fonte de inspiração e motivação para mudança que não tem paralelo no estudo solitário da permacultura. • Um curso é um evento social e, como tal, atinge pessoas que talvez não se interessariam pela leitura de um livro, por exemplo. Muitos podem se inscrever em um curso só porque seus amigos ou namorado(a) irão participar, e acabar sendo completamente arrebatados pelos conceitos apresentados no decorrer do curso — talvez tornando-se ainda mais entusiásticos que aqueles que os convidaram. • Nenhuma forma de transmissão da permacultura deve ser negligenciada ou abandonada. Quanto mais formatos houver, melhor para sua disseminação.

Tipos de curso de permacultura Existem inúmeros tipos de cursos de permacultura e assuntos correlatos, indo desde palestras de uma hora de duração até cursos que levam semanas ou mesmo meses; de cursos introdutórios até os de especialização, gerais e especívfcos, etc., e é natural que seja assim, desde que haja público para todos esses tipos de cursos — cursos especívfcos para públicos com interesses e necessidades especívfcas.

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16. Aprendizado da Permacultura

Palestras introdutórias Este é o tipo de “curso” mais simples, rápido, fácil e barato de organizar e, provavelmente, o mais importante. Praticamente qualquer pessoa que tenha uma razoável noção do que é a permacultura e a venha aplicando em algum grau em sua vida pode falar sobre a permacultura, na forma de uma apresentação relativamente simples, ou seja, uma palestra. Pode-se dizer que palestras introdutórias são as mais importantes por serem mais acessívveis, tanto para quem ministra quanto para o público em geral. Assim, esse tipo de curso é o que pode atingir o maior número de pessoas, pegando muitas “de surpresa”, e despertando-as para a gravívssima realidade da crise ambiental, sobre a qual estão completamente inconscientes e até anestesiadas pela forma distorcida e entorpecente como o assunto é passado pelo sistema educacional e pela mívdia. Essas palestras também são vitais para dar projeção, visibilidade ao nome permacultura e sua proposta, despertando o interesse das pessoas para que possam, a partir daív, pesquisar por si próprias, ou interessar-se por cursos mais aprofundados, potencialmente iniciando aív uma jornada de mudanças positivas em suas vidas. Palestras geralmente têm duração de 1 a 4 horas, e podem ser feitas em qualquer espaço disponívvel, seja em uma escola ou faculdade, ONGs e associações em geral, e mesmo em sua própria casa. Apresentações sobre a permacultura também podem servir como trabalhos escolares individuais ou em grupo, ou serem inseridas em eventos como feiras de ciências, etc. Devido ao tempo restrito e ao caráter introdutório, o conteúdo deve ser selecionado e focado, reduzido aos pontos mais essenciais: • A crise ambiental global, suas origens e consequências, abordando: - Agricultura industrial - Cidades - Tecnologia, indústria e consumo - Desmatamento - Poluição - Cenários futuros • A Proposta da Permacultura: - Éticas e princívpios - Produção orgânica e agroforestas - Bioconstrução e saneamento ecológico - Estilo de vida da permacultura - Recuperação ambiental, reforestamento, despoluição de águas, etc.

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Cursos de Introdução à Permacultura O universo da permacultura abrange uma grande variedade de assuntos complexos que se inter-relacionam de forma intricada; portanto, é claro que uma simples palestra não permite mais do que uma “pincelada” geral, que possa informar e despertar o interesse das pessoas para que busquem um aprofundamento maior de outras formas. Daív a utilidade de cursos introdutórios mais longos e aprofundados, sendo que o preferido continua sendo o modelo PDC, proposto por Bill Mollison (embora o nome PDC seja obsoleto e deva ser abandonado, conforme discutiremos mais adiante). Cursos de introdução à permacultura variam muito quanto aos detalhes, mas não em sua essência. Podem ser ministrados em praticamente qualquer espaço e até na forma de ensino à distância, mas tipicamente são cursos presenciais, realizados em estações e centros de permacultura, associações e centros comunitários, faculdades ou em propriedades privadas onde se pretende estabelecer um projeto de permacultura, etc. Os tópicos tipicamente abrangidos em um curso introdutório de permacultura são: • Introdução (retrato de nosso tempo e justifcativa para a necessidade de mudança): - Crise ambiental global ° Perspectiva histórica ° Realidade atual: ━ Agricultura industrial ━ Cidades ━ Superpopulação ━ Tecnologia, indústria e consumo ━ Desmatamento ━ Poluição ━ Destruição de ecossistemas e extinções em massa ° Cenários futuros: ━ Exaustão de recursos ━ Pico do petróleo ━ Mudança climática • Permacultura: - Histórico - Éticas - Princívpios - O estilo de vida da permacultura - A habitação permacultural 310

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° Bioconstrução ° Efciência energética e hívdrica ° Saneamento ecológico Ecossistemas ° Solos ° Florestas ° Semiáridos ° Desertos Água e Energia Permacultura rural ° Sistemas de água ° Planejamento por zonas ° Agroforestas ° Animais em permacultura ° Aquacultura ° Permacultura nos trópicos úmidos ° Permacultura nos trópicos secos ° Permacultura em climas temperados Permacultura urbana Comunidades em permacultura Ensino da Permacultura Consultoria em Permacultura Proposta de uma transição global Conclusão

Além das exposições teóricas, os cursos ainda devem incluir: • Saívdas a campo para demonstração de exemplos negativos, como monoculturas, erosão, desmatamento, poluição de rios, lixões, etc., bem como exemplos positivos, como agroforestas e policulturas, bioconstruções, sistemas de água de chuva, aquaculturas, forestas em diferentes estágios de regeneração, sistemas de saneamento ecológico, etc. • Demonstrações e atividades práticas, como técnicas de bioconstrução, plantio de mudas e hortaliças, compostagem, etc. • Atividades em grupo, com a elaboração de projetos de permacultura. • Atividades sociais e recreativas de confraternização. Claro que não há dois cursos de permacultura que sejam idênticos — o exposto acima é apenas uma ideia geral do conteúdo de um curso introdutório tívpico, mas tópicos podem ser fundidos, expandidos, ter suas ordem alterada e 311

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novos tópicos podem ser criados, a critério do professor, a estrutura exata do curso variando, inclusive, de acordo com a realidade especívfca do local e do público-alvo do curso. Cursos de tópicos específcos relacionados à permacultura. Além dos cursos introdutórios gerais sobre permacultura, há uma variedade crescente de cursos de tópicos relacionados à permacultura, em que um ou alguns dos assuntos e técnicas pertinentes ou úteis à permacultura são objeto de um curso especívfco e mais detalhado. Esses cursos podem atender a um público com interesses especívfcos, como por exemplo bioconstrução em geral ou alguma técnica em particular (e.g. cob, cobertura de sapé, estruturas de bambu, etc.), ou então saneamento ecológico (e.g. banheiro seco), ou ainda agroforestas, captação de água de chuva, etc. Cursos de tópicos especívfcos podem servir para um aprofundamento em alguma determinada área ou técnica, mesmo para pessoas que já conhecem e vêm aplicando a permacultura. Também podem servir de “porta de entrada” para pessoas que têm um interesse prático em particular, e descobrem através do curso um mundo muito maior de possibilidades através da permacultura. Dois tipos de curso merecem menção especial aqui: cursos de consultoria em permacultura e cursos de formação de professores. Cursos de consultoria em permacultura devem ter como público-alvo apenas permacultores experientes que necessitem de ajuda especívfca sobre como iniciar ou melhorar seu negócio de consultoria, de forma profssional — quando existe uma demanda e o permacultor acredita que pode suprir essa demanda, mas encontra difculdades pois não tem familiaridade com a gestão de um negócio de consultoria. Profssionais da educação técnica e de administração de empresas podem participar na preparação e apresentação do curso, tratando de assuntos gerais relacionados a consultoria. Os tópicos abordados devem incluir análise de mercados, divulgação do trabalho (marketing), elaboração de projetos técnicos, orçamento, contratação de mão de obra, elaboração de contratos, contabilidade, abertura e gerenciamento de uma empresa de consultoria, etc. Curso de formação de professores de permacultura. Todos sabemos que “há pessoas que sabem fazer mas não sabem ensinar”, e cursos de formação de professores devem ser voltados para esse público especívfco: permacultores experientes que têm interesse em ensinar, mas têm difculdade em transmitir seus conhecimentos, ou organizar cursos, etc. Cursos de formação de professores de permacultura devem ser ministrados por professores experientes e consagrados tanto na prática permacultural como em seu ensino. Pedagogos e outros profssionais da educação, sejam permacultores ou não, podem e devem participar na preparação e apresentação do curso, contribuindo para o 312

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aprimoramento do ensino da permacultura. É preciso ter a clareza que o foco desses cursos jamais deve ser o ensino da permacultura em si — isso já deve ser dominado previamente pelos alunos. Tópicos abordados em cursos de formação de professores incluem: como organizar o evento (o local, recursos didáticos, alojamento, alimentação, divulgação, etc.), a estrutura do curso (o conteúdo e sua organização), técnicas didáticas, atividades complementares, sociais, etc. É importante frisar que cursos de consultoria e formação de professores devem ter como público-alvo exclusivamente permacultores experientes, e não iniciantes — e isso inclui aqueles entusiasmados neóftos que participaram de cursos e ostentam orgulhosamente seus certifcados, e estão ávidos por mais, mas ainda não têm experiência prática e muitas vezes nem sequer aplicam a permacultura em suas vidas diárias. A indústria do certifcado É comum vermos em anúncios de cursos e vivências de permacultura e assuntos correlatos os organizadores declararem enfaticamente: “com certificado”. Claro que não há nada errado em se imprimir um certifcado dizendo que a pessoa participou de um evento; porém, o fato de isso ser anunciado ostensivamente diz algo sobre as pessoas, tanto os organizadores como pelo menos parte do público: que eles estão presos à ilusão do certificado. Esse negócio de “certifcado” e “currívculo” é trazido desta nossa sociedade baseada em aparências, imagens, ilusões. Cultivam esse pedaço de papel como se ele dissesse algo real sobre você, ou como se abrisse portas. Porém, é claro que o certifcado não diz absolutamente nada sobre a pessoa — seu caráter, suas motivações, talentos, competências, enfm, coisa alguma! Tampouco lhe abrirá portas; não ajudará no estabelecimento e produtividade de seus sistemas, ou lhe garantirá um emprego. Pelo contrário: nessa indústria do certifcado, muitas vezes a única coisa que esse pedaço de papel lhe dará “direito” será de fazer mais cursos: “permacultura avançada”, “educador em permacultura”, etc., progressivamente mais caros e também, por sua vez, fornecendo mais certifcados, todos igualmente inúteis. É lamentável que as pessoas ainda façam questão desses pedaços de papel (certifcados e currívculos), que insistam nessa cultura de imagens, de ilusões, uma cultura do insignificante. Igualmente é reprovável que educadores de permacultura reforcem e utilizem essa ilusória cultura do certifcado para tentar convencer seus potenciais alunos que o dinheiro pago pelo curso valerá a pena. Justamente por isso tudo, o nome PDC, que signifca “Certifcado de Design em Permacultura”, é inadequado e deve ser abandonado — porque 313

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mantém e reforça essa ilusão do certifcado. Um nome como “Curso de Introdução à Permacultura” seria muito mais adequado e muito mais honesto até, pois, dada a dimensão da permacultura, qualquer curso de poucas semanas de duração jamais poderá representar mais do que uma breve introdução, por mais caprichado que seja.

Aprendizado independente da permacultura Hoje, graças à internet, é muito fácil estudar a permacultura sozinho, onde quer que você esteja. Basta pesquisar, em um bom site de busca, pela palavra “permacultura”, e você terá milhões de resultados, uma amostra do universo permacultural, com uma infnidade de informações úteis. Cheque todos os links que aparecerem, navegue por eles em busca de informações sobre a permacultura, projetos em andamento, materiais didáticos, etc. Agora, se você incluir na sua busca a palavra “PDF”, encontrará inúmeros materiais didáticos, entre livros, apostilas, artigos, etc. Baixe todos os materiais que aparecerem, e estude-os, procurando focar, é claro, nos de melhor qualidade. Pesquise também sobre a permacultura em sites de vívdeos (e.g. Youtube, Vimeo, etc.), e assista a todos os vívdeos relacionados: vívdeos explicativos sobre a permacultura, apresentação de projetos, entrevistas com permacultores, etc. Participe de fóruns de permacultura na internet. Há discussões interessantes e boas fontes de informação. Aliás, muitos materiais para estudo da permacultura que não aparecem em resultados de sites de busca podem ser encontrados através de fóruns de permacultura. Dicas para o estudo da permacultura na internet: • Pesquise em outras línguas. Compreender outras lívnguas, especialmente o inglês, confere uma grande vantagem no estudo da permacultura, pois infelizmente alguns dos melhores materiais, como livros, e vívdeos, são disponívveis apenas nessa lívngua. Também, os melhores fóruns de permacultura são em inglês. • Não basta baixar, tem que estudar! Com o desenvolvimento das mívdias digitais, as pessoas têm desenvolvido uma espécie de mania de acumular aquivos digitais. Fazendo aqui um paralelo com a música, antigamente, comprar ou ganhar um disco de sua banda favorita era uma grande coisa — as músicas eram ouvidas exaustivamente, o encarte lido e relido, as letras decoradas, e construir sua coleção era motivo de orgulho. Em contraste, hoje você pergunta a alguém: “você conhece o Led Zeppelin?”, e a pessoa responde: “ah sim, tenho toda a discografa deles num pendrive”, mas na

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verdade muitas vezes não sabe sequer citar o nome de uma música, e talvez esteja até confundindo com outra banda! O mesmo vale para livros em formato digital: muitas pessoas têm a mania de acumular arquivos em PDF; não raro, têm centenas de livros armazenados em seu computador, sem jamais tê-los lido. Não obstante, continuam a baixar mais arquivos — e a não lê-los. A explicação psicológica para esse fenômeno é simples: baixar um arquivo é simples e rápido, e dá uma sensação de satisfação imediata, e até uma sensação de “poder”, pois você pode ler aquilo tudo, e portanto tem o potencial de um grande conhecimento. Por outro lado, ler os livros é demorado e trabalhoso. Numa sociedade crescentemente caracterizada por imediatismo e superfcialidade, a ilusão do “tenho milhares de livros (em PDF), portanto manjo muito do assunto” é sedutora e parece até natural para muitas pessoas. Porém, é preciso ter a clareza que é melhor ter apenas um livro e lê-lo, do que ter mil livros e não ler nenhum! Portanto, para aprender sobre a permacultura (e qualquer assunto), é necessário ter disciplina e seriedade, e realmente ler, reler, estudar, devorar os materiais disponívveis! • Nem tudo o que foi escrito merece ser lido. Claro que, dentro do universo de materiais que você vai encontrar, alguns serão ótimos; outros, bons, e outros ainda, ruins mesmo. Use o bom senso para fltrar os materiais que você encontrar. Avalie: faz sentido aquilo que você está lendo? Desconfe de tudo o que parecer muito “milagroso” (bom demais para ser verdade) ou baseado em pseudociência. Dê prioridade aos materiais de maior qualidade e reputação, e faça bom uso do seu tempo de estudo. • Tenha perseverança. A permacultura compreende um mundo novo para ser descoberto, aprendido; um universo de informações, conhecimentos e habilidades necessárias para se viver em harmonia com a natureza, sendo que nada disso nos foi ensinado na escola ou pela mívdia e a sociedade em geral — estas só nos ensinam conhecimentos que nos permitam um convívvio social, ter um emprego, pagar impostos, consumir e poluir. Aprender qualquer profssão, ou mesmo a tocar um instrumento musical, falar uma lívngua estrangeira ou se tornar bom em um esporte ou qualquer arte requer anos de estudos dedicados e prática. É claro que com a permacultura não poderia ser diferente! É preciso jogar fora o imediatismo e a preguiça, e ter a coragem e determinação para se dedicar intensamente e por muito tempo ao estudo teórico e também prático da permacultura, para se atingir o grau necessário de compreensão e habilidade necessários para ter sucesso nessa mudança de vida.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura

16. Aprendizado da Permacultura

Aprendizado prático da permacultura A melhor forma de se aprender a fazer uma coisa é fazendo — na verdade, esta é a única forma de se aprender. Você só construirá um sólido conhecimento prático da permacultura praticando-a intensamente, por anos, ou seja, desenvolvendo seus próprios projetos. Porém, você não deve tentar “reinventar a roda” a cada novo projeto ou atividade que for começar! Deve-se sempre procurar obter o máximo de conhecimentos teóricos e práticos, absorvendo-os de quem já vem praticando há tempos, e no caso de habilidades manuais e conhecimentos práticos, isso signifca ser aprendiz de alguém. Felizmente, muitos permacultores, talvez a maioria deles, aceitam voluntários para ajudar nos trabalhos de construção e manutenção de seus sistemas, em seus projetos de permacultura. Conforme citado no capívtulo anterior, o trabalho voluntário benefcia ambos os lados — tanto o voluntário como o hospedeiro. O voluntário tem a oportunidade de aprender na prática diversas habilidades necessárias ou úteis para a vida com a natureza, como plantar, colher, manutenção em geral, construção, sistemas de saneamento ecológico, estabelecimento de agroforestas, criação de animais, manejo de resívduos, compostagem, etc. Claro que difcilmente terá tudo isso em apenas um projeto, em um curto perívodo, e por isso é interessante realizar vários estágios de trabalho voluntário em diferentes projetos. Além desse aprendizado prático, o voluntário pode aprofundar também seus conhecimentos teóricos através de discussões produtivas com os hospedeiros e outros voluntários. Além disso, o voluntariado é normalmente uma rica experiência cultural, muitas vezes internacional, que pode contribuir muito para a expansão de visões de mundo de todos os envolvidos. Para muitos voluntários, as vivências em permacultura são experiências profundamente transformadoras e motivadoras, que encorajam a trilhar o caminho da permacultura e iniciar seus próprios projetos. Para o hospedeiro, a vantagem mais óbvia é a ajuda recebida dos voluntários nos trabalhos, nas atividades do projeto. Porém, receber voluntários também traz grande aprendizado, com a aquisição de novos conhecimentos e técnicas trazidas pelos voluntários, que muitas vezes têm uma considerável bagagem de vida. Além disso, também o hospedeiro se benefcia do intercâmbio cultural propiciado pelo voluntariado. A maioria dos permacultores que aceitam voluntários estão legitimamente interessados em contribuir para o avanço da permacultura e oferecer oportunidade a quem deseja praticar, e a presença de pessoas imbuívdas do mesmo espívrito de compartilhamento e ajuda mútua torna seu dia a dia muito mais leve e agradável, sendo bastante encorajador.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura

16. Aprendizado da Permacultura

Vivência ou voluntariado? Embora sejam usados muitas vezes como termos equivalentes, normalmente prefere-se reservar o termo vivência para eventos programados em que um determinado conteúdo prático é passado a interessados, em um perívodo preestabelecido de poucos dias. Normalmente é cobrada uma taxa de participação, e podem ser oferecidos hospedagem e alimentação. É como um “curso prático”, onde o hospedeiro se dispõe a transmitir um conhecimento ou habilidade que supostamente tem, por exemplo uma determinada técnica de bioconstrução, na construção de uma determinada estrutura, por exemplo uma casa, e oferece a oportunidade a pessoas interessadas em aprender essa técnica na prática participando da construção. Nesses casos, em geral o hospedeiro está mais interessado na contrapartida fnanceira do que na ajuda prática oferecida pelos participantes. Já a palavra voluntariado é usada normalmente para a ajuda com trabalho voluntário nas atividades que estiverem sendo desenvolvidas naquele momento naquele determinado projeto, desde as mais rotineiras até as mais excepcionais. Normalmente, nada é cobrado dos voluntários, tampouco se oferece qualquer remuneração pelo seu trabalho; porém, na maioria das vezes, o hospedeiro oferece hospedagem e alimentação aos voluntários. Essas condições podem variar, dependendo das condições particulares de cada caso e acordos prévios entre as partes. Existem vários websites dedicados a facilitar ou mediar o contato entre hospedeiros e voluntários em potencial, entre eles WWOOF, Workaway, HelpX, etc. Ali, o hospedeiro cria um perfl onde são descritos seu projeto, localização, tipo de trabalho, acomodações, etc., e pessoas interessadas em participar como voluntários podem contactá-lo para combinar um estágio. Esses sites costumam ter regras preestabelecidas; por exemplo, sobre a obrigatoriedade ou não de oferecer hospedagem e alimentação, limitações de carga horária para o trabalho voluntário, etc. Outra opção para encontrar locais para fazer voluntariado, ou conseguir voluntários para os seus projetos através da internet, são grupos especívfcos nas redes sociais e fóruns virtuais de permacultura. Considerações sobre o custo de cursosl, vivências e materiais de permacultura É perfeitamente legívtimo que cursos e materiais de permacultura sejam cobrados, afnal, dão trabalho, tomam tempo e custam dinheiro para fazer. Porém, acredito que eles devem ser oferecidos sempre ao menor preço possívvel, por dois motivos: 1. O objetivo principal de quem oferece o curso ou material deve ser a divulgação e fortalecimento da permacultura, e não o lucro. A cobrança 317

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pode ser necessária justamente para viabilizar essa atividade, esse serviço, para garantir que continue sendo feito e atingindo cada vez mais pessoas. Agora, restringir o acesso à informação em função do poder econômico é no mívnimo questionável, ainda mais em se tratando de informações que são para o bem da humanidade e do planeta. Além disso, o objetivo de lucro tende a corromper e desvirtuar, esvaziar qualquer coisa de sua essência ao transformá-la em mercadoria. Se permitirmos que o ensino da permacultura se transforme em mera mercadoria, fatalmente ocorrerá o mesmo que ocorre no jornalismo, por exemplo, onde o que se transmite não é necessariamente o que é mais verdadeiro, mas sim aquilo que vende melhor. 2. Quem oferece cursos de permacultura teoricamente não precisa de muito dinheiro, justamente por ser permacultor. Se alguém se oferece para ensinar a permacultura (e cobrar por isso), subentende-se que se trata de um permacultor experiente e competente, certo? Ora, quanto melhor for o permacultor, menor sua necessidade de dinheiro, pois mais autossufciente ele será, ou maior sua renda pela venda de excedentes de produção agrívcola. É comum encontrar permacultores que alegam depender do ensino da permacultura como fonte de renda, para sua sobrevivência. Porém, o indivívduo que o faz comete na verdade um tipo de charlatanismo, pois, considerando que uma das principais promessas da permacultura é a produção de alimentos em abundância, permitindo a autossufciência e até alimentar o mundo, ele está de fato “ensinando” algo que nunca conseguiu ele próprio fazer. Portanto, desconfe de cursos, vivências e materiais de permacultura excessivamente caros. Procure conhecer pessoalmente os méritos e resultados práticos do professor antes de comprar um curso — e não basear-se na imagem que ele conseguiu vender de si mesmo. Tenha sempre em mente que a construção de uma imagem glamourosa depende muito mais de habilidade em marketing do que de méritos reais da pessoa associada àquela imagem. Faculdade de permacultura Há um debate antigo sobre se deveria ou não haver um curso de graduação em permacultura, em nívvel universitário. A ideia é defendida por muitos permacultores, com base no argumento que a permacultura é uma ciência extremamente complexa e ampla, abrangendo elementos dos mais variados campos do conhecimento humano, incluindo ciências agrárias (agronomia, zootecnia e engenharia forestal), ecologia, arquitetura, urbanismo e saneamento, ciências sociais (antropologia, sociologia), flosofa, etc. Pode-se dizer que a permacultura é tão ou mais complexa e ampla que qualquer profssão de nívvel superior, justifcando, pois, um curso de nívvel superior com carga horária e duração igual ou superior a qualquer curso de graduação existente. Pode-se 318

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16. Aprendizado da Permacultura

argumentar, ainda que a permacultura é mais importante que qualquer profssão convencional, já que é a única com condições de salvar a humanidade da autodestruição. Certamente, um curso de 72 ou 90 horas não é sufciente para preparar ninguém para coisa alguma. Não se aprende a fazer nada em tão curto tempo! Não se aprende a ser borracheiro ou ajudante de pedreiro, padeiro, cabeleireira, etc. (para efeito de comparação: cursos do SENAI para essas profssões variam de 160 a 400 horas-aula). Seria bom para a permacultura, os permacultores e a sociedade ter pessoas bem preparadas para guiar e contribuir na transição a um modelo sustentável — pessoas que entendem dos problemas atuais e desafos à nossa frente, e sabem o que deve ser feito, e como fazê-lo. Simplesmente não há nenhuma categoria profssional que preencha essas necessidades. A criação de um curso universitário em permacultura, e inclusive cursos de pós-graduação, poderia contribuir muito nesse sentido. Porém, há também os que condenam a ideia, a começar pelo próprio Bill Mollison, que temia que, se caívsse nas garras dos que controlam o sistema educacional formal, a permacultura seria inevitavelmente destruívda. A permacultura é uma ferramenta para mudar o mundo, enquanto as universidades e o sistema educacional formal em geral nada mais são que um braço do sistema, sendo portanto um instrumento de manutenção do status quo. A academia não aceita nada que desafe o paradigma dominante da sociedade. Por isso, ela provavelmente jamais aceitará a criação de um curso universitário de permacultura, ou, pior que isso, o criará justamente para desvirtuá-la, precisamente para neutralizá-la como ameaça ao status quo. Confar às universidades a missão de transformar o mundo, com a criação um curso superior de permacultura, seria como colocar um lobo para cuidar das ovelhas. Isso tudo é especialmente válido para as universidades públicas, já que são controladas pelos governos. Agora, claro que nada impede que universidades privadas criem um curso de graduação em permacultura, bastando para isso que haja mercado, ou seja, uma demanda sufciente que o justifque. Porém, é preciso ter cuidado para evitar uma elitização da permacultura, que trairia sua própria essência, ou sua transformação em mera mercadoria e consequente deturpação. Se vai haver faculdade de permacultura ou não, somente o futuro dirá. Porém, independentemente de a criação de uma faculdade de permacultura tornar-se realidade ou não, o mais importante é que cuidemos para não deixar que a permacultura se desvirtue, e que a permacultura sempre possa ser aprendida de forma independente e por meios próprios, e que seja acessívvel a todas as pessoas através da liberdade de informação, geração de conteúdo de qualidade, oportunidade de contato e práticas permaculturais, compartilhamento de trabalho e experiências, etc. Idealmente, todos os permacultores devem estar empenhados na disseminação, avanço e universalização da permacultura. 319

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16. Aprendizado da Permacultura

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17. Consultoria e Prestação de Serviços

17 CONSULTORIA E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EM PERMACULTURA

A partir do momento que alguém conhece, internaliza, passa a dominar os princívpios da permacultura e adquire experiência e habilidade sufciente em sua aplicação prática, na elaboração e execução de projetos de permacultura, isso abre a possibilidade de prestação de serviços e consultoria a pessoas, grupos e instituições. Exemplos de clientes em potencial para um permacultor são: • Indivívduos não permacultores que desejam um trabalho especívfco, como por exemplo um jardim, horta ou pomar bonito, produtivo e de baixa manutenção, ou orientação técnica no estabelecimento de uma agroforesta ou projeto de reforestamento, a instalação de um sistema de captação de água de chuva, um banheiro seco, uma composteira, plantio de mudas, alguma bioconstrução, etc. • Permacultores que desejam ajuda de alguém mais experiente na elaboração de um projeto ou serviços especívfcos como os citados acima; • Produtores rurais que desejam incorporar conceitos da permacultura visando sistemas produtivos mais naturais, reduzindo ou eliminando o uso

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de agrotóxicos ou fertilizantes quívmicos, reduzindo o consumo de energia e água, prevenindo poluição, atuando na recuperação ambiental, etc. • Grupos ou instituições que desejam incorporar conceitos de sustentabilidade em suas instalações ou atividades. Por exemplo, uma incorporadora que planeja construir um condomívnio mais sustentável; empresas que querem reduzir seu impacto ou fazer compensação ambiental, ou tornar-se mais sustentáveis, captando água da chuva, melhorando a efciência energética, reduzindo resívduos; governos interessados na construção ou adequação de praças, parques e campi universitários para que tenham alta efciência ecológica, etc. É perfeitamente possívvel conseguir contratos para serviços de consultoria em permacultura, desde os mais simples e humildes, até os mais complexos e ambiciosos. A chave para conseguir se envolver com projetos cada vez mais vultosos chama-se reputação. Isso não é algo que se pode comprar, ou ganhar de presente. A reputação deve ser construívda passo a passo, ou seja, começando com projetos pequenos, procurando sempre fazer o melhor possívvel, acumulando experiência prática, estudando muito pelo caminho, aprendendo com acertos e erros. Tornando-ose um prestador de serviços ou consultor Para se tornar um consultor ou prestador de serviços em permacultura, obviamente o primeiro passo é tornar-se um permacultor. Segue abaixo uma sugestão de “passo a passo” geral para você se tornar um consultor em permacultura. 1. Adquira conhecimentos teóricos e práticos da permacultura (consulte o Capívtulo 16, “Aprendizado da Permacultura”). 2. Pratique a permacultura no seu dia a dia, com a incorporação e aplicação prática dos princívpios da permacultura à sua vida diária, conforme discutido no Capívtulo 14, “Estilo de Vida da Permacultura”. 3. Comece pela sua própria casa, e então passe também a aplicar a permacultura em outros espaços disponívveis: praças, terrenos baldios, casas de amigos e parentes, na sua escola, etc. Você pode começar de graça, como trabalho comunitário voluntário, talvez junto com alguma ONG, etc., ou no caso de terrenos de outras pessoas, repartindo a produção com os donos, por exemplo. Revitalize voluntariamente, por sua própria conta, alguma praça abandonada (isso tudo foi discutido no capívtulo 13, “Permacultura Urbana”). Ofereça serviços de instalação de sistemas simples de água de chuva (calhas e cisternas), serviços de jardinagem, ensine e convença as pessoas a fazerem compostagem, (que tal construir e vender composteiras?). Tire fotos de seus sistemas, faça um portfólio. 322

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4. Apareça. Comece a falar sobre a permacultura. Dê palestras, escreva artigos e reportagens para o jornal local, revistas, rádio, etc., escreva um blog, use as redes sociais. Mostre os resultados do seu trabalho. 5. Ao ganhar visibilidade, você passará a ser requisitado como palestrante e, logo, começará a ser procurado para serviços e consultorias. No começo pode ser um pouco intimidador, mas não tenha medo! Comece devagar, com trabalhos mais simples e coisas que você já tem prática. Seja honesto: ao aceitar um desafo de um trabalho de natureza ou escala nova para você, deixe o cliente ciente disso. Procure auxívlio e mão de obra especializados se necessário. Não aceite o trabalho se achar que não tem condições de realizá-lo. 6. Com a prática, você poderá ir aceitando trabalhos cada vez maiores e mais complexos. Você pode optar por ser um especialista em determinada(s) área(s), ou ser um generalista e contar com especialistas quando necessário. Claro que quanto maior o projeto, maiores os custos e maior a responsabilidade. Ao contrário de serviços pequenos para pessoas fívsicas, para se conseguir contratos com empresas e governos para serviços e projetos grandes é necessário apresentar projetos bem estruturados, de forma profssional, além de ter uma empresa formalizada. Importantívssimo também é cumprir orçamentos e prazos. A habilidade com isso virá com a prática, e por isso é importante começar com projetos pequenos e simples, adquirindo a experiência prática e aumentando a complexidade gradualmente. Ou seja, comece pequeno e, com dedicação e seriedade, construa sua experiência e reputação. Agindo assim, o céu é o limite; talvez um dia você se veja desenvolvendo projetos de permacultura internacionais com orçamentos milionários, a exemplo de permacultores famosos como Geof Lawton e Sepp Holzer. Prestação de Serviços O cenário é simples: alguém está interessado em um determinado serviço, como estabelecer um jardim ou horta permacultural, ou construir uma casa ou outra estrutura com técnicas e materiais naturais, por exemplo. Claro que chamar um jardineiro ou construtor qualquer não vai dar certo; então, a pessoa te procura, pois você é o mais indicado para fazer o serviço na área, já que é permacultor. Isso não só é perfeitamente possívvel, como de fato acontece o tempo todo, sendo que os serviços mais procurados são os de bioconstrução, fazendo desse um dos ramos mais atrativos para quem quer trabalhar com permacultura, atualmente. Em qualquer caso, você pode optar por fazer o serviço você mesmo, ou apenas elaborar um projeto, com descrições detalhadas, ou ainda acompanhar o trabalho, dando as devidas orientações e supervisão a outros profssionais, como jardineiros, construtores, etc., que farão o serviço. Mas há inúmeras outras formas de prestar serviços à sociedade como 323

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permacultor. Por exemplo, você pode abrir sua própria empresa em qualquer um dos ramos em que possa contribuir para uma sociedade mais sustentável, como uma empresa de reciclagem de materiais, ou uma operação de compostagem em larga escala, utilizando os resívduos orgânicos municipais e talvez lodo de esgoto, produzindo e vendendo composto orgânico de alta qualidade; você pode abrir uma fora, um viveiro de mudas, contribuindo para pessoas que desejam praticar a jardinagem, horticultura, reforestamentos, etc. Como já discutido no capívtulo 13, você pode atuar também no setor público ou no terceiro setor (ONGs), atuando para melhorar a gestão dos resívduos sólidos em sua cidade, enfm, as opções são praticamente ilimitadas. Agora, em muitos casos é útil, importante ou necessário que você também tenha uma qualifcação profssional formal para dar condições técnicas, credibilidade e amparo legal para seus serviços permaculturais. Por exemplo, se você for um arquiteto ou engenheiro civil, poderá atuar na elaboração de projetos arquitetônicos e responsabilidade técnica sobre edifcações sustentáveis em qualquer jurisdição; se for um urbanista, pode elaborar projetos de assentamentos sustentáveis, como condomívnios, bairros e cidades planejadas; se for agrônomo, poderá ser responsável técnico de empresas do ramo de produção e benefciamento de alimentos, e se for engenheiro forestal, poderá coordenar projetos de reforestamento em larga escala para clientes corporativos e governamentais, etc. Por isso, é essencial que tenhamos na permacultura pessoas com qualifcação formal em todas as áreas relevantes do conhecimento. Consultoria A consultoria é um serviço diferenciado onde o permacultor elabora um projeto técnico detalhado para atender às necessidades do cliente. O serviço de consultoria pode ir desde um trabalho pontual, como por exemplo o projeto de um sistema de captação de água de chuva, ou um jardim-horta, ou uma bioconstrução, etc., até um projeto inteiro de uma fazenda, um módulo de autossufciência rural, um condomívnio ecológico, etc. Claro que não há receita universal, já que cada projeto é único e podem ser completamente diferentes, de naturezas diferentes, mas o padrão de procedimento em sua elaboração costuma ser mais ou menos o mesmo. A seguir daremos uma visão geral dos principais aspectos de um trabalho de consultoria em permacultura. O trabalho de consultoria começa com uma conversa detalhada com o cliente, onde ele explicará o que deseja que seja feito. Na maioria das vezes, ele não estará bem certo — terá apenas uma ideia vaga, e muitas vezes fará propostas que são bastante fantasiosas ou inviáveis; portanto, essa conversa deve ser bem interativa: o consultor deve dar orientação, ajudando o cliente a decidir o que exatamente ele deseja, dentro de limites realistas. Não raro, o cliente, embora bem intencionado, terá ideias que prejudicariam o meio ambiente. Nesse 324

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caso, o permacultor deve intervir, explicando por que aquilo não é uma boa ideia, e propor alternativas. Caso o cliente se mostre intransigente, o consultor deverá recusar o serviço. Em seguida, o permacultor deverá fazer uma pesquisa aprofundada para conhecer as condições e recursos disponívveis para o projeto: reconhecimento da propriedade e da área, utilizando inclusive plantas e cartas topográfcas, quando disponívveis; caracterívsticas do local, como altitude, clima, pluviosidade, tipo de solo, bioma nativo, etc.; atividades agrívcolas e outras, atuais e recentes; condições ambientais do local, como grau de deterioração ambiental (degradação do solo, erosão, contaminação quívmica, etc.) ou estágio de regeneração atual; recursos disponívveis no local e na região, incluindo materiais disponívveis, mão de obra, condições de mercado, etc. Conhecimentos e aptidões especívfcas do cliente também devem ser conhecidas e levadas em consideração na elaboração do projeto. Então, o permacultor passará à elaboração do projeto em si, e fornecerá ao cliente um relatório de recomendações técnicas detalhado, bem como seu orçamento. O relatório muitas vezes inclui um memorial descritivo que pode ser feito a partir de uma imagem aérea obtida através da internet (e.g. Google Earth) sobre a qual é plotada uma planta da propriedade onde são representados os elementos constantes do projeto. Inclui ainda plantas baixas e desenhos técnicos conforme necessário, descrição das técnicas a serem utilizadas, listas de espécies de plantas recomendadas e informações como quantidade, disposição, técnicas de plantio e manejo, etc. Listas de materiais que serão necessários, e talvez uma cotação de preços, também vão aqui. No relatório, devem ser dadas ainda instruções especívfcas a respeito das fases de estabelecimento do projeto. Ou seja, não se pode simplesmente dar um apanhado de recomendações, e deixar que o cliente decida por onde vai começar — ele deve ser orientado quanto à sequência mais racional e efciente possívvel (as fases de estabelecimento de um projeto de permacultura rural foram abordadas no capívtulo 9, “Permacultura Rural”). No próprio relatório você pode recomendar profssionais especívfcos para desempenhar cada parte do projeto, como arquitetos, bioconstrutores, jardineiros, etc. Por isso, é importante formar uma malha de relações, uma rede de trabalho com outros permacultores e profssionais competentes. Geralmente, o trabalho do consultor não acaba no relatório. O mais comum é continuar prestando serviços ao cliente, seja na execução dos trabalhos ou na coordenação e supervisão das atividades. Agora, há uma consideração importante a se fazer em relação a consultoria na elaboração de projetos de permacultura completos, ou seja, módulos de autossufciência ou viver sustentável à luz da permacultura, sejam rurais ou urbanos. Embora esse tipo de consultoria possa parecer bastante atrativo tanto a 325

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consultores como a clientes, deve-se ter em mente que isso só faz sentido se o cliente for permacultor. É importante ressaltar que a permacultura é, acima de tudo, uma cultura, ou seja, um estilo de vida; portanto, ninguém se tornará um permacultor somente por contratar um serviço de consultoria. Do que adianta você elaborar todo um projeto, implementar um conjunto de sistemas, se a pessoa que vai viver e trabalhar ali não tem ideia do que fazer, e provavelmente tenderá a viver exatamente como sempre o fez? Claro que isso não tem como dar certo. Ou seja, o relatório de consultoria servirá como uma orientação, uma base de ideias que, por mais completo que seja, de maneira nenhuma elimina a necessidade de o cliente possuir ou adquirir uma base sólida de conhecimentos de permacultura (o aprendizado da permacultura foi discutido no capívtulo 16). Cobrando por serviços e consultoria O preço cobrado por um serviço de consultoria deve ser condizente com a dimensão e complexidade do serviço, ou seja, o tempo e esforço necessários à sua execução. Use o bom senso. Claro que a reputação e experiência do permacultor também tendem a infuenciar no preço, assim como o poder econômico do cliente, e a lei geral da oferta e procura, etc. Além disso, caso você esteja atuando em uma área especívfca em que possui qualifcação profssional formal, as tabelas de honorários de sua categoria também devem ser levadas em consideração. Porém, aqui também é necessário fcar atento para evitar que haja uma elitização da permacultura, já que isso fere seus próprios preceitos éticos. Assim, é recomendável que mesmo permacultores mais requisitados ou altamente qualifcados mantenham sempre em suas agendas algum tempo dedicado a um tipo de “cota social”, oferecendo serviços a preços acessívveis para clientes de recursos limitados, especialmente para serviços com maior potencial de transformação social ou maior benefívcio ambiental. Preciso de um certifcado para prestar serviços de permacultura? A resposta curta para essa pergunta é: não. Agora, isso vai deixar muitos professores irritados, pois dependem dos cursos (e.g. PDCs) para sobreviverem e, por isso, fazem de tudo para defender a velha cultura do certifcado. Mas não deixe ninguém lhe convencer que você precisa de um certifcado para prestar serviços e consultoria em permacultura. O que você precisa é: saber o que está fazendo, assumir a responsabilidade sobre seu trabalho, e aderir integralmente às éticas e princívpios da permacultura. Conforme citado no capívtulo anterior, um certifcado não passa de um pedaço de papel que não diz nada sobre você, seu conhecimento ou competência, etc. Além disso, a ideia que um curso de duas semanas o tornará 326

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apto a prestar consultoria é uma falácia total — isso requer anos de estudos e prática, para que possa ser feito com seriedade (a não ser os trabalhos mais simples, que você fará na condição de iniciante, justamente enquanto acumula experiência para se lançar a projetos mais ambiciosos, conforme já discutido). Alguns permacultores argumentam que a obrigatoriedade de um certifcado de curso protegeria a permacultura, impedindo que se distorça, se desvirtue. Embora essa preocupação seja totalmente pertinente, está claro que esse critério (certifcado) é totalmente inefcaz nesse sentido. Profssões formais estabelecidas contam com conselhos de classe legalmente instituívdos, para essa fnalidade. Talvez, criar tal conselho também para a permacultura fosse benéfco nesse sentido. Porém, isso estaria inevitavelmente vinculado à criação de um curso formal (e.g. bacharelado em permacultura), ofcialmente reconhecido, o que, conforme discutimos no capívtulo anterior, não se sabe se ocorrerá. Por fm, vale lembrar que o próprio Bill Mollison jamais possuiu um certifcado de curso de permacultura, o mesmo podendo ser dito de David Holmgren, Sepp Holzer, Masanobu Fukuoka, entre outros dos mais famosos nomes da permacultura. Nem todos os serviços devem ser aceitos Já citamos o caso em que um cliente, embora bem intencionado, por falta de conhecimento tem a intenção de fazer coisas que terão um efeito negativo sobre o meio ambiente, por exemplo por causar desequilívbrio ecológico, suprimir fora ou fauna nativas, consumir recursos ou gerar resívduos demasiadamente, etc. Agora, há casos bem piores ainda, onde o cliente simplesmente não é bem intencionado. Por exemplo, talvez deseje fazer um empreendimento que causará grande dano ambiental, visando apenas lucro, e procure sua ajuda na forma de um serviço de consultoria para fazê-lo de forma mascarada, de modo que consiga autorização das autoridades ambientais, por exemplo. Outro caso tívpico é o chamado greenwashing ou “lavagem verde”, em que uma empresa altamente poluente e degradante procura fazer algum projeto ecológico, geralmente de orçamento e impacto ambiental positivo irrisórios, com o único objetivo de usar isso como estratégia de marketing para conseguir vender mais, por convencer o público que, ao comprar este ou aquele produto, estará contribuindo com o meio ambiente. Na verdade, isso só ajuda a empresa a vender mais, e portanto poluir mais, degradar mais o ambiente, de forma que o impacto ambiental global será muito negativo. Permacultores não devem aceitar esses tipos de serviços de consultoria, por ferirem as éticas da permacultura. A permacultura foi concebida para ser parte da solução dos maiores problemas do mundo, e é vital que cuidemos para que ela não seja usada indevidamente como ferramenta para a manutenção ou agravamento desses mesmos problemas.

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17. Consultoria e Prestação de Serviços

Foco em consultoria? Embora consultorias em permacultura possam dar signifcativas contribuições para a melhoria do mundo, é importante ressaltar que esse não deve ser o foco principal da permacultura. Isso porque, de um ponto de vista humano, o mundo é feito essencialmente de pessoas. Portanto, quando dizemos que o mundo está com sérios problemas por causa da insustentabilidade, isso equivale a dizer que as pessoas estão com problemas e, de fato, são as pessoas, voluntária ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente, que estão causando esses problemas pela forma como vêm vivendo — e são também as pessoas que sofrerão as consequências, quando esta bolha que é nossa civilização estourar (além de todo o mundo natural, infelizmente). Portanto, a permacultura tem o potencial de mudar o mundo, principalmente mudando a vida das pessoas — sua forma de ver o mundo e se relacionar com ele, mudando seu estilo de vida para algo realmente sustentável e harmônico (falaremos mais sobre isto no próximo capívtulo, “Proposta de uma Transição Global”). Isso deve fcar bem claro para todas as pessoas, e especialmente aos professores de cursos de permacultura. Um foco excessivo em consultoria tem sido um erro comum em cursos de permacultura, desde seu começo. Isso é um problema porque vende-se uma ilusão a pessoas, num momento em que estão tendo seu primeiro contato com a permacultura, que na semana seguinte serão consultores em permacultura formados (com certifcado e tudo, lembra?), e que haverá demanda para essa consultoria, e farão altos projetos e serão bem remunerados, etc., sendo que isso não corresponde à realidade, não somente porque o curso não prepara o sufciente, mas também porque a demanda ainda é escassa, especialmente em se tratando de pessoas sem experiência. Além de causar desapontamento e frustração aos alunos com o choque de realidade após a conclusão do curso, essa abordagem pode atrair para a permacultura pessoas muito interessadas em trabalhar para os outros por dinheiro (mantendo o paradigma da alienação do trabalho e foco em lucro), e pouco interessadas em mudar seu próprio estilo de vida.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura

18. Proposta de Uma Transição Global

18 PROPOSTA DE UMA TRANSIÇÃO GLOBAL

Por ser um sistema que promete suprir as necessidades humanas ao mesmo tempo em que conserva os recursos naturais, protege o meio ambiente e ajuda na recuperação de ecossistemas, a permacultura tem o óbvio potencial de mudar o mundo e, no melhor dos casos, evitar o colapso da civilização, a ruívna da humanidade e do ambiente natural no planeta Terra. Porém, como alcançar este grandioso objetivo? Não parece razoável assumir que um único indivívduo, seja eu ou você, começando uma horta ou captando água da chuva dos telhados, ou iniciando um projeto de autossufciência na zona rural, tenha qualquer chance de mudar os rumos do mundo, não é mesmo? Claro que isso pode e certamente terá grande efeito na vida da pessoa que o fzer, podendo trazer uma grande realização pessoal e verdadeiro sentido à vida. Mas, em relação a uma perspectiva global, quais seriam as chances de a permacultura realmente fazer alguma diferença? David Holmgren, co-fundador da permacultura, parece ter a resposta para essa questão. Ele explica: “...A outra forma de pensar na permacultura é como uma forma de mudar o mundo, porque muitas pessoas motivadas pela permacultura a veem com uma atitude de ‘nós podemos mudar o mundo de uma forma positiva’, ao invés de viver tentando parar o mundo que nós não queremos. A

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18. Proposta de Uma Transição Global

permacultura sempre teve uma postura de ‘como podemos criar o mundo que nós queremos’. “Quando se trata de mudar o modo como a sociedade funciona, a maioria das pessoas pensam em maneiras de mudar polívticas públicas — como infuenciar os cívrculos do poder de forma a mudar o funcionamento das grandes estruturas da sociedade. Mas essa é uma maneira velha, ultrapassada de mudar o mundo. A maneira nova, que já está bem comprovada, é mudar você mesmo, sua vida, e o que você faz. O que muitos dos estudiosos e pessoas que pensam em como podemos fazer para mudar o mundo ainda não se tocaram é que na verdade, ao mudar você mesmo, isso não representa apenas uma pequena contribuição para uma mudança em maior escala — na verdade, isso talvez seja a coisa mais poderosa que você pode fazer.”

A proposta de Holmgren é equivalente àquela famosa citação, frequentemente atribuívda a Ghandi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo.” Ele continua: “E alguns dos motivos para isso: se você tem uma estratégia ou qualquer coisa em permacultura, desde construir sua própria casa até uma agricultura apoiada pela comunidade, até o simples fato de produzir sua própria comida no seu quintal; quando você faz algo para si mesmo e se benefcia disso, e aquilo refete as éticas e princívpios da permacultura, você está fazendo algo para si mesmo e também reduzindo seu impacto negativo no mundo. Mas, por estar fazendo algo que te traz benefívcios, isso é potencialmente atrativo para outras pessoas que podem pensar: ‘ah, eu vou fazer isso também’... enquanto aquela pessoa amarga que está apenas fazendo algo para tentar compensar por nossos pecados no mundo não é muito atrativa para muitas outras pessoas. Você sabe, uma pequena proporção das pessoas são motivadas por esse tipo de atitude — a maioria das pessoas quer ser benefciada de alguma forma e, especialmente, querem benefívcios diretos. Então, as estratégias da permacultura são atrativas para os seus adeptos, e oferecem exemplos que outras pessoas podem copiar. E para fazê-lo, geralmente não se necessita de permissão de autoridades, ou bancos para obter fnanciamentos, etc. E isso é realmente importante, porque muitas dessas mudanças, se feitas por uma parte da população, representam uma ameaça real a muitas das estruturas de poder da sociedade, muitos desses sistemas centralizados: as corporações, governos e seus contribuintes... Então, eu entenderia que muitas dessas coisas de autossufciência e empoderamento associadas com a permacultura são realmente subversivas. Portanto, se essas ideias e atitudes realmente ‘pegarem’ de uma forma ampla, elas poderiam não apenas não contar com qualquer apoio, mas de fato sofrer tentativas de impedimento. “Quando se trata de alguma tecnologia muito avançada, ou projetos em larga escala, é fácil para os detentores do poder dizer: ‘não, você não pode fazer isso’. E nós podemos ver a guerra entre energias renováveis versus combustívveis fósseis. Mas se é algo que você pode fazer em casa, é muito 330

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difívcil impedir. Além disso, essa replicação permite uma evolução muito rápida onde você pega um exemplo de alguma coisa, e você aprimora; então, vem alguém e copia, e modifca e aperfeiçoa, então você tem uma evolução progressiva. Se nós fzéssemos grandes projetos que são todos motivados por conceitos de sustentabilidade mas representam imensas realocações dos recursos da sociedade, isso sempre termina em bagunça, porque de algum modo a complexidade dessas coisas... Você pode ter as ideias, mas quando você vai realmente pôr em prática, nunca dá tão certo. Então, a replicação em pequena escala, ao invés de projetos grandes, gigantes, além de ser muito mais viável, é um bom processo de aprendizado, e também permite que as pessoas adaptem as soluções a situações diferentes, e isso é muito importante, porque cada situação é diferente. E então, quando você consegue mais pessoas fazendo isso, isso lhe dá, se quiser ver dessa maneira, mais poder de barganha; você diz: ‘olha, todos nós aqui estamos fazendo isso...’ Você tem uma certa base de poder através da autonomia, e não uma base de poder tentando fazer barulho para fazer as autoridades mudarem as polívticas, porque essa é realmente uma abordagem que não tem força alguma. E nós podemos ver nos últimos 30 anos como movimentos populares conseguiram mudanças em polívticas públicas... mas tem sido cada vez mais difívcil conseguir essas mudanças, e requerido cada vez mais recursos desses movimentos. Então, por que nós simplesmente não fazemos algo por nós mesmos e com nossos próprios recursos, e damos um exemplo para os outros? Esse é verdadeiramente o impulso para uma mudança positiva maior.”*

Em suma, não adianta nada as pessoas fcarem apenas atacando o sistema e elocubrando formas de transformar o mundo, sem que antes tenham transformado suas próprias vidas para que sirvam de exemplo. Essa é uma postura tívpica de revolucionários fajutos, uma atitude hipócrita e estéril. A única forma de a permacultura fazer uma diferença no mundo é através de uma revolução pacívfca, que começa silenciosa, por baixo, através de pontos que se espalham, ligam e convergem. Mudar o mundo através da permacultura pode parecer tarefa impossívvel ou inviável; mas mudar seu próprio mundo, seu papel no mondo, sua própria vida à luz da permacultura, isso sim certamente é possívvel, viável e repleto de signifcado, embora não seja simples ou fácil — e essa é a tarefa número um de todos interessados na construção de um mundo justo e sustentável. E, a partir daív, inspirar outros, através do seu exemplo, para que sigam também o caminho, e que todos juntos trabalhemos no aperfeiçoamento e disseminação da permacultura. E, nesse processo, formar comunidades, que se integram e fortalecem mutuamente. Então, este é o caminho para o movimento da permacultura. Não adianta esperar que a mudança parta de cima, das elites — ela tem que partir de baixo, de nós mesmos, de cada uma das pessoas que desejam a mudança, alastrando-se pela * Em entrevista a Robyn Rosenfeldt, editora da revista “Pip Magazine”. 2014.

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base e infltrando-se para cima, abrangendo enfm toda a sociedade. “Mudar o mundo começa por mudar a si próprio. Quem não consegue mudar a si próprio, não muda coisa alguma.” Nada disso, porém, signifca dizer que uma atuação polívtica em outros sentidos, seja no ativismo ou na representação polívtica convencional, sejam inúteis ou devam ser abandonados — muito pelo contrário. Mas signifca, sim, que essas outras formas de atuação, para que sejam efetivas, devem ser precedidas e acompanhadas de exemplos concretos por parte daqueles que as defendem, pois só assim esses esforços terão qualquer efcácia. Além disso, para que a via polívtica convencional possa ter uma participação viável numa transformação mais global da sociedade rumo à sustentabilidade, é preciso que antes o movimento da permacultura já tenha crescido e se tornado grande demais, e forte demais para ser ignorado.

A permacultura pode mesmo alimentar o mundo? Esta é uma questão que frequentemente gera confusão e preocupação nas pessoas. Argumenta-se que a agricultura industrial, através de melhoramento genético, técnicas modernas de cultivo envolvendo mecanização e irrigação em larga escala e uso de fertilizantes quívmicos e pesticidas, logrou um grande aumento na produtividade agrívcola comparativamente a técnicas antigas, mais naturais e tradicionais, às quais a agricultura orgânica ou a permacultura são geralmente associadas. Isso é verdade, mas apenas parcialmente. Um grave equívvoco que quase sempre se comete é comparar a permacultura com a agricultura convencional levando em consideração apenas a produção bruta de determinado produto (e.g. milho, leite, abacates ou tilápias) por unidade de área da fazenda produtora. Esse tipo de análise é inválida, incorreta, por pelo menos três motivos: • Na verdade, deve-se levar em conta não apenas a produção bruta do produto agrívcola, mas sim o conjunto das produções e serviços ambientais prestados. Como sabemos, a agricultura industrial não presta nenhum serviço ambiental — não fomenta a fauna ou fora, não favorece a penetração de água no solo ou a manutenção do ciclo das águas, não contribui para a estabilidade do clima, não protege o solo, etc. Pelo contrário, ela destrói o ciclo das águas, o solo, o clima, a biodiversidade. Já os sistemas produtivos da permacultura prestam todos aqueles serviços ambientais. Infelizmente, não há remuneração por esses serviços, apesar de serem essenciais para o bem estar humano e a sobrevivência da humanidade a longo prazo.

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• Outra questão-chave é a diversidade na produção. Enquanto a agricultura industrial é baseada em monoculturas, a permacultura aposta em policulturas integradas. Claro que numa monocultura de milho você terá uma produção muito maior de milho que numa policultura contendo milho entre outras coisas. Porém, na análise global da produção, a policultura tende a ter uma produção total maior e mais diversifcada. • Além disso, outro fator vital que praticamente ninguém leva em consideração é a real relação entre consumo de recursos e produção. A análise que geralmente se faz é “quantas toneladas de produto por hectare/ano”, mas aív existe uma falha gravívssima! Isso porque a agricultura industrial depende pesadamente da importação de recursos — fertilizantes para a adubação, água para irrigação, rações para os animais, combustívveis fósseis e eletricidade para mover maquinários… Ou seja, esses recursos não são oriundos de dentro da propriedade em questão — vêm de fora, dos locais onde está ocorrendo a mineração das rochas fosfáticas e calcário, a extração e refno do petróleo, mananciais de onde é extraívda a água, plantações longívnquas onde estão sendo produzidos os ingredientes para rações animais, etc. Como pode-se calcular a produtividade por área sem levar em consideração todas essas áreas externas usadas para alcançar essa produção? Sem contar também toda a infraestrutura industrial e viária necessária para produção e transporte desses insumos. Fazendo-se esse cálculo adequadamente, ou seja, considerando toda a área efetivamente usada, dentro e fora da propriedade em questão, para alcançar essa produção, ver-se-á que a real produtividade por área da agricultura industrial é bem menor que normalmente alardeado por seus proponentes! Da mesma forma, os impactos ambientais a distância, sendo computados, darão a real magnitude dos custos ambientais desse modelo produtivo. Em contraste, na permacultura focamos no uso racional e sustentável dos recursos locais, ou seja, de dentro do terreno, para produção, preservando e reciclando recursos como água e nutrientes do solo, com importação mívnima de recursos. Deste modo, arrancando o manto falacioso sob o qual a agricultura industrial se esconde, desfaz-se o mito que ela é muito mais produtiva, ou que só ela pode alimentar o mundo. A permacultura pode, sim, alimentar o mundo muito melhor que o agronegócio moderno vem fazendo, não só em quantidade como também em qualidade, com muito mais diversidade e evitando ainda contaminações quívmicas, tanto no ambiente como nos próprios alimentos, por pesticidas, por exemplo. Além disso, promete fazê-lo de forma sustentável, através da preservação e recuperação dos recursos naturais necessários à produção de alimentos e outros aspectos da vida humana. Já a agricultura industrial, bom, sabemos que ela vem alimentando boa parte do mundo já por várias décadas; 333

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mas, até quando poderá fazê-lo? Ela é indiscutivelmente insustentável, já que depende totalmente dos recursos que ela própria está consumindo e destruindo (água, solos, fertilizantes quívmicos, clima, entre outros). Ou seja, ela faz parte de um paradigma doentio, autofágico. Não podemos contar com ela, pois se o fzermos, quando os recursos fatalmente acabarem, morreremos todos de fome. É estarrecedor que a maioria das pessoas, inclusive agrônomos, estejam desatentos a esse terrívvel fato!

Desafos da permacultura Pode-se dizer que a permacultura é um movimento extremamente audacioso, já que desafa, enfrenta o status quo, oferece a proposta de um modo de vida radicalmente diferente, senão mesmo oposto ao estilo de vida convencional da sociedade moderna, e abraça ainda a missão de alterar os rumos do mundo, reverter a nossa atual crise ambiental e civilizacional, evitando as consequências nefastas claramente previsívveis de nosso atual curso de ação. Eu não estava lá, no fnal da década de 70 e inívcio da de 80, quando Bill Mollison começou a ministrar seus cursos de permacultura pelo mundo, mas tenho certeza, pelos registros deixados daquela época *, que deve ter sido um momento extremamente excitante, empolgante para todos os que participaram desses cursos, os pioneiros do movimento da permacultura — a sensação de estarem participando de um momento histórico, em que um grupo de pessoas, guerreiros da Terra, estavam construindo um modo de vida benéfco, harmônico com a natureza, em um movimento que cresceria como uma bola de neve, inaugurando um novo capívtulo na história da humanidade. Porém, nessas quase quatro décadas desde seu surgimento, embora a permacultura tenha efetivamente se espalhado por todo o mundo e conquistado milhares de adeptos, há que se reconhecer que esse crescimento ainda está muito abaixo do que seria necessário para efetivamente fazer uma diferença real, prática nos caminhos do mundo. Talvez os pioneiros fcassem decepcionados ao saberem que, hoje, ao invés de em processo de solução, cada um dos aspectos da crise ambiental está de fato enormemente agravado em relação àquela época, enquanto que as pessoas que participam, ou mesmo conhecem, ou sequer ouviram falar da permacultura ainda são senão uma pequena minoria da população global. Agora, isso não signifca que a permacultura falhou, ou que não haja esperança. A permacultura continua sendo o melhor caminho para lidar com a situação da humanidade, e desistir de lutar certamente não é uma opção válida, ou mesmo digna. Porém, não podemos fngir que estamos fazendo tudo certo, e * Um ótimo exemplo de tais registros são as transcrições de um PDC ministrado por Mollison em 1981, posteriormente transformadas em uma série de apostilas intitulada “Série Curso de Design em Permacultura”, editada e publicada por Yankee Permaculture.

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que o movimento está indo perfeitamente bem; temos que aplicar o nosso princívpio n.o 18 (“reavalie-se constantemente”) de forma que possamos sanar as defciências, corrigir erros, fazer o movimento da permacultura evoluir e avançar, para que possa cumprir a sua missão. E devemos ter nisso um grande senso de urgência — não há tempo a perder, pois a crise ambiental se agrava a cada dia. Mudança de atitude É muito comum as pessoas assumirem que a permacultura é um caminho mais fácil que as opções convencionais de trabalho e estilo de vida da sociedade moderna. Isso simplesmente não é verdade, e trata-se de uma ilusão perigosa. Nada do que fazemos na permacultura, escolhemos por ser mais fácil. Fazemos o que fazemos por uma variedade de motivos: porque é ético, moralmente correto; porque queremos uma vida mais natural e saudável; porque queremos independência de coisas com que não concordamos no mundo, porque não queremos compactuar com a destruição da vida no nosso planeta, ou talvez para termos melhores chances de sobreviver ao colapso do sistema que aív está, etc. Mas não porque é mais fácil. Algumas coisas são de fato fáceis: separar seu lixo para reciclagem, economizar água e energia, ter hábitos alimentares saudáveis, evitar o consumismo… Mas isso é só o comecinho. Embora importantes, medidas como essas, sozinhas, obviamente não vão salvar o mundo. Agora, viver da terra e atuar efetivamente na recuperação de ecossistemas, isso não é fácil. Mas fazemos porque tem que ser feito. Pelo menos parte dessa mentalidade que a permacultura é fácil vem de um vívcio dos próprios cursos e livros de permacultura. Infelizmente, ao vender a permacultura, os professores e autores acabam muitas vezes assumindo uma mentalidade de vendedor que, conforme já mencionado, costuma deturpar as coisas, esvaziando-as de sua essência — o objetivo principal passa a ser o sucesso nas vendas. O problema é que coisas fáceis vendem mais, então as muitas difculdades e agruras do caminho da permacultura acabam sendo omitidos por esses educadores. Ao invés disso, focam em abraços coletivos e danças circulares, etc., o que acaba criando ou reforçando a ilusão da permacultura fácil, a atitude que tocar violão em volta da fogueira, cantar para a terra ou aplaudir o pôr do sol vai mudar o mundo. Claro que não há nada errado em fazer essas coisas, mas temos que deixar claro que isso não é a permacultura. Um resultado negativo disso é que muitas pessoas acabam aderindo à permacultura de forma despreparada, sem saberem exatamente no que estão se metendo. Iniciam seus projetos sem dar a devida atenção à aquisição de conhecimentos aprofundados, tanto na teoria como na prática, e não dão a devida atenção e seriedade ao adequado planejamento, a elaboração de uma 335

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estratégia sólida de transição. Muitas vezes, iniciam sua jornada, mas o fazem de forma mole, apática, anêmica — não no discurso, esse sim, sempre empolgado, mas uma empolgação que não se traduz em empenho nos trabalhos, e acima de tudo, na tenacidade necessária ao sucesso de qualquer empreendimento permacultural e, de fato, qualquer coisa na vida. “Se alguém te disser que a permacultura é fácil, isso só pode significar duas coisas: ou ele não sabe do que está falando, ou ele quer o seu dinheiro.”

Então, temos que mudar essa mentalidade. Romper com o paradigma dominante é totalmente possívvel e repleto de sentido, mas temos que construir esse caminho. Portanto, precisamos de pessoas que entrem na permacultura com uma mentalidade de pioneirismo, e mesmo de heroívsmo; pessoas preparadas para enfrentar e vencer grandes desafos. Deve-se ter sempre em mente que não há conquista sem sacrifívcios. Avançar a permacultura na prática Infelizmente, ainda são escassos os exemplos concretos de pessoas que tiveram sucesso em fazer da permacultura o seu modo de viver, ou seja, que realmente alcançaram um estilo de vida sustentável, autossufciente, com abundância, e um papel relevante de recuperação ambiental. A maioria das pessoas que se dizem envolvidas com a permacultura apenas falam sobre o assunto; outras, a praticam em algum grau, mas não se pode dizer que vivam da permacultura. Precisamos de mais casos de sucesso, exemplos de vida e sistemas altamente produtivos, efcientes, resilientes, associados a preservação e recuperação ambiental, exemplos que possam ser replicados, para que possam inspirar e mostrar o caminho a novos permacultores e a sociedade em geral. Para isso é fundamental assumirmos a mentalidade de seriedade, compromisso e trabalho discutida acima. “Já é hora da permacultura assumir para si a responsabilidade da produção de alimentos.” Temos que encher o campo de pessoas que produzem alimentos e restauram o ambiente através da permacultura. É inútil e esdrúxulo tentar convencer os agricultores a produzir alimentos deste ou aquele jeito, com nossas palavras e argumentos, se nós mesmos não produzimos nada. Tampouco devemos esperar que os agricultores adotem a permacultura, para que nós possamos consumir (comprar) alimentos ecológicos! Temos, sim, que arregaçar as mangas e assumir nós mesmos a produção de alimentos naturais, saudáveis, 336

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ecológicos, para nós mesmos e para o mercado, de forma efciente e abundante, através da permacultura, tornando assim o modelo ecocida, hegemônico na atualidade, obsoleto. Assim, os demais agricultores naturalmente aderirão à permacultura, transformando o movimento em uma bola de neve. “Viver da terra = viver na terra” Ainda há pouco, argumentei que a permacultura e agricultura orgânica podem muito bem alimentar o mundo, no que acredito frmemente. Tratei da questão da produtividade por área; porém, há uma outra questão muito importante, que não pode ser omitida. É inegável que a agricultura industrial tem uma produtividade por trabalhador rural, ou seja, por pessoa envolvida diretamente no trabalho agrívcola, muito maior que a agricultura orgânica, e isso se deve majoritariamente à mecanização. Como sabemos, a agricultura industrial depende de um alto grau de mecanização, que de fato expulsa o homem do campo; em contraste, sistemas agrívcolas naturais e sustentáveis são muito menos favoráveis à mecanização, exigindo, portanto, a fxação do homem no campo, no trabalho direto com a terra. Ou seja, não é uma ilusão acreditar que a permacultura ou agricultura orgânica podem alimentar o mundo, mas é, sim, uma ilusão acreditar que podem fazê-lo com praticamente toda a população mundial morando em cidades. Portanto, para que a humanidade possa alcançar a sustentabilidade através da permacultura, é indispensável que haja um número sufciente de pessoas vivendo no campo, trabalhando com a terra, produzindo alimentos e restaurando ecossistemas. É fundamental que haja uma reversão da crescente tendência à urbanização, e que passemos a um processo de ruralização, e esse fuxo deve ser liderado pelos permacultores. Ganhar visibilidade Um dos principais obstáculos da permacultura é sua falta de visibilidade, dentro da sociedade. Conforme já mencionado, a imensa maioria das pessoas simplesmente nunca ouviu falar da permacultura; portanto, para elas a via da permacultura simplesmente não existe. De fato, a maioria não está sequer ciente da grave crise em que estamos metidos, e portanto não tem consciência da necessidade de mudança. Isso se deve, ao menos em grande parte, ao fato de que os grandes cívrculos do poder — corporações, governos, mívdia — não têm o menor interesse em mudar o sistema atual. Essas entidades determinam largamente o que as pessoas sabem e como elas pensam, já que detêm o controle da educação formal e meios de comunicação em massa. Agora, claro que não podemos contar com a ajuda do sistema para mudar o sistema! Para que a permacultura cumpra sua missão, é fundamental que ela atinja o maior número de pessoas possívvel, e para isso devemos lançar mão de 337

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todos os meios disponívveis. Neste sentido, merecem destaque as mívdias alternativas, especialmente a internet — websites, blogs, vívdeos, artigos e redes sociais, etc., são todas ferramentas válidas e muito úteis na disseminação de informações sobre a permacultura, seus conceitos, técnicas, projetos em andamento, etc. Sempre que possívvel, devemos lançar mão também de canais da mívdia convencional, especialmente rádios, jornais e revistas locais, mais comumente disponívveis. Agora, não devemos nunca subestimar o poder da transmissão boca a boca, ou seja, a inspiração das pessoas ao nosso redor, através do nosso exemplo. Esta talvez seja a ferramenta mais importante no fortalecimento e disseminação da permacultura. E para que isso ocorra efcientemente, é essencial que tenhamos mais e mais casos concretos de aplicação da permacultura às nossas vidas, como discutido acima.

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19. Conclusão

19 CONCLUSÃO

Nossa civilização industrial está em pleno boom: população crescendo, economia crescendo, expectativa de vida crescendo, em praticamente todos os paívses, todos os cantos do mundo. Todos os dias há mais gente, mais carros, mais casas, mais aviões, mais navios, mais fábricas, etc. que no dia anterior. Isso pode levar a pessoa desatenta à conclusão que está tudo bem, que estamos no caminho certo e não há com que se preocupar. Porém, nada poderia estar mais longe da verdade, pois o preço para esse boom é o declívnio dramático, contívnuo, progressivo dos recursos naturais que são vitais não apenas a esse crescimento, mas também à manutenção da civilização, à vida humana e de fato a vida complexa em geral na Terra. Essa conta está se avolumando, para um dia ser paga, se não por nós mesmos, pelos nossos descendentes. A humanidade não escapará das consequências de seus atos. A maioria das pessoas simplesmente não sabem, não têm conhecimento ou consciência deste fato, porque esse declívnio de recursos está acontecendo longe de suas vistas, ou porque não compreendem a natureza dos recursos naturais, ou não são capazes de entender adequadamente escalas de tempo, etc. E parece claro que as massas são mantidas nesse estado de inconsciência e ignorância de forma proposital, para conveniência do sistema e seus mestres ocultos, interessados na manutenção do status quo. 339

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19. Conclusão

Por outro lado, também os despertos, pessoas que compreendem a gravidade da situação atual, em sua grande maioria falham em tomar atitudes concretas para mudar a história, ou pelo menos sua parte nela; talvez por estarem perdidas e não saberem o que fazer, talvez por não terem a fbra necessária para fazer o que tem que ser feito, ou provavelmente uma combinação de ambos. Porém, não creio que seja produtivo tentar apontar culpados para esta situação. O fato é que a causa real para a encruzilhada em que estamos é apenas uma: a nossa civilização em si. Agora, como demonizá-la, se foi ela mesma que nos possibilitou vencer a mortalidade infantil e passar para trás inúmeras doenças terrívveis, como a varívola e poliomielite? Que permitiu o desenvolvimento da ciência que nos possibilitou alguma percepção objetiva da natureza, do universo e nosso lugar nele? Que nos possibilitou viajar e conhecer o mundo, e viver vidas muito mais confortáveis e seguras que antes, entre outros incontáveis avanços sem os quais nem sequer conseguimos imaginar como estariam nossas vidas hoje? Por essas e outras, certamente não é possívvel ou desejável abandonar a civilização. Porém, se quisermos ter uma chance de sobreviver e dar aos nossos descendentes condições para uma vida no mívnimo satisfatória, e preservar a vida e beleza em nosso planeta, temos que reinventar a nossa civilização. Ou seja, atitudes pontuais — os bons e velhos “fechar a torneira”, “apagar as lâmpadas”, “jogar o lixo no lixo” — jamais serão sufcientes; é preciso uma reformulação total da forma como vemos e nos relacionamos com o mundo natural e a sociedade, uma mudança de nossos objetivos e estilos de vida, com aplicação em massa dos conceitos para uma vida saudável e sustentável. Esse grande pacote de mudanças é justamente o que a permacultura representa, daív sua imensa importância, e por isso é fundamental que ela seja desenvolvida, propagada, multiplicada, alcançando o maior número possívvel de pessoas, permitindo que se engajem nesse movimento, antes que seja tarde demais. Muitos acreditam que já é tarde demais, ou que um número sufciente de pessoas jamais abraçarão a permacultura devido a vívcios da própria natureza humana. Eles podem até estar certos, mas temos que tentar mesmo assim — afnal, o que mais podemos fazer? Este pequeno livro é apenas um apanhado de informações, ideias e conceitos que eu venho adquirindo ao longo de anos de estudos intensos, observação atenta do mundo e experimentação prática. Reitero que não tenho com ele a pretensão de dar respostas a todas as perguntas. O universo de conhecimentos cientívfcos e tradicionais, informações e técnicas necessárias ou úteis a uma vida sustentável é vasto e não cabe em um livro, ou em uma só pessoa, seja ela quem for. Esse universo está aív para todos nós explorarmos e aprendermos, ao longo de nossas vidas. A mente atenta e interessada nunca pára de aprender. Muitas perguntas permanecem sem resposta, e portanto muito ainda há que 340

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19. Conclusão

se desenvolver. Há muitas pessoas pensando realmente em maneiras de sair desta arapuca que criamos e em que nos metemos, e isso em si já é uma ótima notívcia. Então, temos três missões: aplicar o que já se sabe, desenvolver o que ainda não se sabe, e envolver o maior número de pessoas possívvel, levando conhecimento e inspiração para que também abracem o ideal da sustentabilidade humana. Ainda estamos apenas no começo desta jornada, desta luta para inventar um modo de vida ao mesmo tempo abundante e confortável, mas também ecologicamente saudável e sustentável — uma empreitada inédita na história da humanidade. Reverter nossa trajetória rumo à nossa própria destruição é um imenso desafo, mas certamente não pode haver outro desafo que mais valha a pena abraçarmos. Agora, é preciso fazê-lo com muita coragem; é preciso adotarmos uma mentalidade de pioneirismo e mesmo de heroívsmo frente a este desafo e as difculdades com que fatalmente esbarraremos no caminho. Só assim teremos alguma chance de sucesso, seja no nívvel individual, coletivo, e quem sabe, global. Dediquei uma dose considerável de esforço e tempo de minha vida para escrever este livro, o que fz com grande dedicação e amor, sendo que esteve decidido desde o inívcio que seria posto em domívnio público, para que alcançasse o maior número de pessoas possívvel, tendo como maior objetivo contribuir, também dessa forma, para o progresso do movimento da permacultura. Se este livro conseguir fazer com que ao menos uma única pessoa decida juntar-se a nós, permacultores, abraçando como missão de vida cuidar de verdade do nosso lindo planeta, meus esforços terão sido recompensados.

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“Curar a Terra e purificar o espírito humano são o mesmo processo.” — Masanobu Fukuoka

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