A Carta Das Almas

  • June 2020
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A CARTA DAS ALMAS A Quaresma é uma época de meditação e oração, cuja introspecção levou o caboclo de nossa região a reinterpretar seus simbolismos, criando uma aura mística e assustadora. Este período é preocupante, o Tinhoso está a solta tentando os homens, portanto, deve-se tomar muito cuidado. E foi justamente numa quarta-feira de quaresma após os Cânticos de Alerta num bairro próximo, que Chico Berto, ouviu dos mais velhos a famosa história das cartas das almas. Era corriqueiro ouvir sobre pessoas que pactuavam com o diabo em troca de riqueza e juventude, porém, um único dia do ano, na Sexta-feira Maior, as Almas consentiam tais privilégios à três pessoas de coragem. Todavia, essas três pessoas deveriam buscar as tais cartas no cemitério e em seguida enfrentar as diabruras das trevas, se persistentes e ilesos receberiam as dádivas pretendidas. Chico Berto, ficou inquieto com a história, dormiu mal a noite e noutro dia arrumou dois bravos companheiros, Mané Curió e Tiburtino. As 23:30h da quinta-feira santa reuniram-se em frente ao cemitério. Muita coragem e um bom litro de pinga nas mãos. Rezaram, beberam, beberam, rezaram e beberam de novo. Quando o sino deu a primeira badalada, estavam os três em frente ao portão, receosos, bêbados e mudos de medo. Em seguida, o portão abriu e um garboso jovem de preto convidou-os a entrar. A coragem dos três quase foi embora, de pernas bambas e de braços dados entraram e vislumbraram todos os túmulos enfeitados, iluminados e o moço de preto conduziu-os até o acendedor de velas. Quando chegaram viram uma criança, como um dos vários anjinhos de pedra que enfeitam os túmulos, era realmente um anjo, que graciosamente entregou um envelope branco a cada um, pegaram e já foram saindo, achando a maior moleza. Mas, foram informados que deveriam comparecer até os fundos da igreja para selar os papéis. Hummmm! Isso não cheirava bem, caminharam desconfiados e deram de cara com uma criatura, meio homem, meio bode preto, bufando, rosnando, soltando fogo pelas ventas. Quase desmaiaram, Mané Curió, depois de se urinar todo desembestou na carreira, saltando os túmulos como um atleta. Tiburtino foi mais audaz, topou se aproximar, mas quando sentiu uma gelada mão cadavérica tocar-lhe o pescoço gritou para todos os santos e saiu correndo, com uma verdadeira legião de capetinhas atrás de si. Ficou Chico Berto, que sorveu a última dose de pinga, limpou a boca na manga da camisa, pegou a carta colocou em cima da mesa e pediu para que fosse selada. O diabo, pegou a carta, abriu, escreveu algo e mandou um imenso selo colado a cuspe no papel, entregou ao Chico, que saiu de costas, a passos mansos. Atrás de si ouvia-se um tropel, gritos, palavrões, choros e estouros. Assim foi ele saindo, passo a passo, lívido e suado. Quando enfim saiu, pode respirar melhor, trêmulo e cansado, parou junto a uma pedra, tirou o envelope do bolso e viu um papel branco reluzente e escrito em tinta luminosa como um vaga-lume, a seguinte frase: -Se quiser ver seus amigos de volta, devolva esta carta. Chico ficou louco, esbravejou, blasfemou, xingou, pensou em deixar aqueles dois covardes. Mas, eram seus amigos e fora ele quem os metera nessa encrenca, pensou alguns minutos nas riquezas, juventude, enfim.... Desconsolado, deu meia volta e correu para o portão, lá encontrou os dois do lado de dentro e um sarcástico rapaz de preto, pediu a carta de volta. Resistiu, mas viu um abismo se abrindo e o bode vindo, entregou rápido o papel, o portão se abriu e saíram correndo. Pelo caminho, Chico Berto veio batendo nos amigos e insultando-os com todos os palavrões possíveis, até que chamou atenção o suficiente para que a policia chegasse e prendessem os três por embriagues e baderna. Ao relatar o fato a policia, tomou uma surra e uma semana de cadeia por desacato. Na venda do nhô Pedro, Chico e os amigos contavam o caso com veemência, todos achavam que era mais uma bebedeira de três aventureiros.

O ESQUARTEJADO Lá pela década de 20, nas proximidades do bairro dos Gatos, hoje Vargem Escura, existia uma velha casa, pequena, quatro cômodos de taipa, abandonada, porém, não vazia, além dos móveis cobertos de poeira e teias de aranha, morava um fantasma que aterrorizava todo o bairro. Parecia que alguém abandonara a casa às pressas, não se importando em retirar a arcaica e pobre mobília, mas curioso, que nem mesmo os ratos toparam roer os colchões, cortinas ou móveis. Nada vivo morava ali, exceto as aranhas que teciam e teciam cortinas de teias sobre tudo. Tibúrcio Mané, era um homem audacioso e avarento e ouvia as inflamadas conversas sobre a assombração daquela casa. Diziam que todos que tentaram morar ou pernoitar logo desistiram, pois ouvia uma voz a sussurrar pelas paredes, dizendo: -Vou cair, vou cair... Tibúrcio ouvia a historia que ia instigando sua alma, uns diziam que um grande avarento morou na casa e nela enterrou um tesouro, até então não revelado e desta forma sua alma vagava pelo lugar, até que alguém tivesse coragem de descobri-lo. Sorrateiro, curioso e interessado, Tibúrcio, sem contar a ninguém foi até a casa assombrada. Abriu a porta que num ranger triste denunciava sua idade e viu tudo coberto pelas teias de aranha e muita poeira, passou o resto da tarde, sem nada ver ou sentir, limpou a cama, removendo o lençol, acendeu uma lamparina que ainda continha querosene e ficou a esperar a dita assombração. Logo ouviu o sussurro triste e murmurante: -Vou cair, vou cair... Respirando fundo respondeu: -Pois que caia então! Eis que de repente uma perna estatelou no chão. -Vou cair, vou cair... Outra vez retrucou Tibúrcio: -Pois que caia! E outra perna caiu ao chão e assim foi até que um corpo de homem se formou. Um clarão iluminou a casa que misteriosamente ficou nova em folha, toda a poeira e as teias sumiram, tudo estava em ordem. A assombração, um homem alto, forte, aparentando quarenta anos sentou-se na cadeira e disse-lhe: -Aqui vivi muitos anos, enterrei um tesouro que está debaixo desta cama, porém para libertar-me deverá agir da seguinte forma: -Metade do tesouro é seu, a outra dividirás em duas partes, uma darás a um necessitado e a outra para alguém esquecido, feito isso gozarás das venturas do meu ouro. Logo tudo sumiu, Tibúrcio deu um pulo da cama e pensou ter sonhado, porém a curiosidade era tanta, que resolveu cavar debaixo da cama e ali encontrou um pequeno baú cheio de moedas de ouro, seus olhos brilharam, lembrou-se com detalhes do sonho e fez a seguinte divisão murmurando sobre a mesa: -Bem, dividirei parte com um pobre, portanto, pobre sou, esta parte é minha, outra parte é para um esquecido, bem, esquecido estou, esta parte é minha, a outra metade, é para quem descobrisse o tesouro, como fui eu, esta metade também é minha. Feito isso se levantou e foi para casa. Passado uns dias, contou gostoso a historia na venda do bairro. Comprou roupas novas, gado e terras, se gabava da coragem e da esperteza na divisão que fizera. Alguns medrosos o alertavam do perigo desta divisão que não parecia ser honesta, outros achavam que o ouro era amaldiçoado. Tibúrcio porém ria e nem caso fazia, pagava a rodada de bebida e ia embora num belo cavalo tordilho que comprara. Certa feita, indo embora, passando pela casa assombrada, sentiu seu cavalo dominado por uma força estranha, tentou controlar o animal e não conseguiu, o bicho se desembestou morro abaixo, tentou pular e não conseguiu, gritou bem alto á beira de um barranco: -Vou cair!!! Uma voz do alto do morro gritou: -Pois então que caia! O cavalo parou num golpe duro e arremessou Tibúrcio morro abaixo, rolou entre pedras, sendo esquartejado pela força e distancia da queda! Localizaram o corpo no outro dia e o sepultaram no cemitério local, todo o ouro misteriosamente desapareceu e hoje na casa assombrada, ouve-se a voz de Tibúrcio, gemendo: Vou cair... Vou cair... E os mais atentos ouvem o estatelar de um membro no chão! Aguarda esta avarenta alma alguém para libertá-la da triste pena que contraiu.

O NENÉM LOBISOMEM Lá pelas bandas do bairro da Bocaina, na casa do Coronel Leôncio, nascia mais um rebento. Para preocupação de muitos, era o sétimo filho homem do casal. Alegria do pai, preocupação da mãe, pois sete filhos do mesmo sexo, não era bom agouro. Enfim, o menino apesar de pequeno e magro era saudável. Transcorreu um ano tranqüilo, o menino foi batizado e recebeu o nome de Saturnino, um nome nada católico como diziam uns para um sétimo e agourento filho. Na quinta-feira santa, por volta das nove horas da noite, ao aproximar-se do berço, a mãe do menino deu um grito, percebeu que o rebento havia desaparecido, estavam no berço apenas as roupas e os cueiros. Desespero geral pela casa, procura daqui, procura dali e nada de achar o garoto. Convocaram todos os colonos da fazenda, tochas foram improvisadas, deram buscas por horas, chamaram a policia e nada! Onde estaria o menino do coronel. Desaparecer num dia santo destes, só podia ser coisa do demônio. Com muito custo, convenceram o Coronel em mandar buscar a benzedeira nhá Rosa, afinal, esse desaparecimento poderia ser feitiçaria, rapto por bruxas ou curupiras. A velha benzedeira chegou com a mesma tranqüilidade de sempre, fez algumas invocações para São Miguel, depois para Santo Antonio, enfim para São Bento. Queimou palma benta, alho e pó de café no braseiro. Percebeu então que havia um cachorrinho preto embaixo da mesa a roer alguns ossos. Nhá Rosa, perguntou sobre o dono do cachorro, ninguém soube responder, havia aparecido ali. Apesar de ser um filhote era brabo, rosnou e esperneou quando Nhá Rosa o pegou e saiu com ele. Dirigiu-se até o galinheiro e em seguida ouviram um choro de criança e a velha benzedeira voltava com o neném nos braços, todo sujo de fezes de galinha. Lavaram a criança e a benzedeira teve uma reunião de portas fechadas com a família. Tal atitude, deu mil comentários, todos foram embora, nada perguntaram a família e o caso foi encerrado, porém, perceberam que houve um novo batizado, a criança foi re-batizada pelo irmão mais velho e teve seu nome mudado para Bento. No ombro esquerdo da criança ficou por muitos anos um feia cicatriz, segundo alguns, foram agulhas espetadas num ritual mágico para destruir o fadário deste pobre inocente. Ninguém questionou nada, mas no fundo sabiam que aquela criança com certeza seria mais um lobisomem e rezavam para que o poder das simpatias de nhá Rosa conseguisse vencer os mistérios da lua cheia.

CUMPADRE LOBISOMEM Mês de agosto, um mês de ventos quentes e ares estranhos, por tradição época de mau agouro, onde as desgraças acontecem. Seu Leandro, velho vizinho da fábrica de farinha, recolheu a lenha no final da tarde, acendeu o fogão e ficou pensando no acontecido da última lua cheia, quando um imenso cachorro preto adentrou o terreiro da casa, arranhando a porta da cozinha e fugiu quando ele saiu com um tição de fogo nas mãos. Estava preocupado pois sua filha tinha um recém nascido na casa ainda por batizar. Ficou absorvido em pensamentos olhando o fogo, sabia que era lua cheia e um lobisomem rondava as vizinhanças uivando pelos quarteirões. João Pedro o futuro padrinho da criança adiou o batizado duas vezes em julho, agora não queria que o mesmo ocorresse no fatídico mês. Os pais da criança saíram para um velório e deixaram o netinho aos cuidados do avô. Sua intuição o avisava que naquela noite algo aconteceria, de vez em quando ia até o quarto espiar o menino que dormia mansamente. Vento forte, quente e seco que assobiava ao bater na fresta da velha porta, a lua cheia avermelhada subia o céu lentamente, dando um clarão lúgubre a cidade. Logo ouviu a cachorrada da vizinhança latir numa pavorosa total, alguns choramingavam um uivo triste e amedrontado. Ouviu então um pesado andar, com unhas a raspar o piso de tijolos na entrada da casa, algo rondava por ali, percebeu um suspirar como um espirro abafado no canto inferior da porta. Seu Leandro pensou em pegar a cartucheira, mas lembrou-se do perigo em tirar sangue deste possível lobisomem, pegou um chicote foi até o oratório, retirou uma vela e a esfregou fortemente sobre o mesmo. A criança acordou aos berros, como pressentindo o perigo que a rondava. Sabedor que tições de fogo espantavam o amaldiçoado animal, levou alguns para o quarto da criança, despejou sobre eles alhos amassados criando uma fumaça pesada e cheirosa. Em seguida abriu rapidamente a porta e enfrentou o imenso cachorro preto de olhos vermelhos faiscantes. O animal rosnava, porém seu Leandro, confiando na proteção divina foi se aproximando do animal desferindo de quando em quando uma chicotada, encurralando o animal próximo ao paiol, empurrando-o para dentro e num golpe certeiro fez o chicote enrolar no pescoço do bicho prendendo-o com força, o efeito sagrado a cera benta o imobilizou, tremendo e suado, seu Leandro pegou um rolo de fumo de corda e atou o animal com ela, único tipo de corda que prende este ser. Aproveitou-se disso e deu uma surra violenta de chicote no monstro, deixando-o largado no chão, porém, sem tirar-lhe sangue. Pegou seu neto e foi a procura da policia, horas mais tarde depois de muito papo para convencer os policiais em acreditar no acontecido chegaram ao paiol, quando então, para sua surpresa, defrontaram-se com um homem nu, todo marcado de chicotadas, identificaram João Pedro, que relatou a policia que fora atacado violentamente por seu Leandro quando dirigiu-se a sua casa para dar-lhe um recado. Seu Leandro amargou uns três dias no xilindró da cidade e respondeu processo por agressão física. João Pedro, envergonhado desapareceu da cidade, a maioria acreditava que ele realmente fosse o lobisomem que por ali rondava. Depois de seu desaparecimento nunca mais ouviram nos dias de lua cheia, o uivar do lobisomem ou o latir amedrontado dos cães da vizinhança. Hoje seu Leandro conta orgulhoso o acontecido, mesmo tendo amargado uns dias de cadeia, foi ele quem conseguiu livrar a vizinhança do terrível animal.

O CANTAR DO SAPO O sapo sempre foi um bicho temido pelo caboclo, venenoso, matava cobras e cães, podia ainda cegar as pessoas com seu leite ou sua urina. As feiticeiras matavam pessoas costurando fotografias, fios de cabelos, punhados de terra de cemitério e nomes na boca do sapo. Outros afirmavam que o sapo poderia penetrar nas entranhas das mulheres descuidadas que iam ao mato fazer suas necessidades, matando-as em terrível agonia ou ainda grudando nas pessoas e somente soltando quando houvesse um relâmpago. Eram contos com suas funções sociais e morais, assim como as crianças sapos, que nada mais era do que a anencefalia, oriunda do excesso de grau de parentesco dos casais e outros fatores. Assim diz uma história: Foi no final de janeiro, mês das águas, com uma chuva fina, que Joana, moça de dezoito anos, juntava a trouxa de roupa para lavar no rio. Sua mãe, mulher de meia idade, ralhava com a caçula: -Joana não vá a beira do rio em dia de chuva, já é tardinha e nesses dias os sapos estão por lá cantando e ocê tá em dia de regra e muié pode engravidá do sapo. -Que nada mãe, a senhora acha que tudo engravida, até o arco-íris a senhora acha que engravida. E a teimosa moça foi a beira do rio ignorando os queixumes da mãe. A chuva já tinha cessado e um festival de coaxar espalhava-se pelo local. Começou a cantar e bater a roupa na tábua. Sem perceber, um sapo grande fixou seu olhar na pobre moça e começou um coaxar forte e ritmado, como que hipnotizada a moça entrou em um estranho transe por alguns minutos, quando voltou a si, sentiu um arrepio pelo corpo e viu o feio animal olhando fixamente para ela, juntou as roupas e saiu rapidamente para casa, meio assustada e perturbada pelo acontecido, entrou sem nada falar e tomou um banho quente para tirar a sensação de frio que sentia pelo corpo. Decorrido um mês, Joana começou apresentar vômitos constantes, pigmentação esbranquiçada pela pele e mais tarde algumas erupções. Levada a um curandeiro, foi diagnosticada como cobreiro de sapo e após alguns benzimentos melhorou. A mãe começou a desconfiar da filha, cujo namoro com o primo já excedia há três meses, e nada mais justo do que apressar este casamento. Terminada a Quaresma, casou-se após a semana santa, num dia qualquer de abril. Joana em outubro ostentava uma pequena e pontuda barriga, muito esquisita, até que pela manhã começou a se contorcer de dores e em seguida teve sangramento. Imediatamente chamaram a velha parteira nhá Rosa, que foi informada tratar-se de criança de sete meses, chegou, examinou, passou alguns ungüentos, deu algumas ervas, porém nada adiantava, desconfiada de sérios problemas, mandou um mensageiro a cidade chamar um médico. Como sabia que isso ia demorar algumas horas, apelou para o sobrenatural, rezou, virou um pilão de boca para baixo, mandou trazer uma raposa, pois o abençoado animal não têm as dores do parto, fez de tudo para diminuir a agonia de Joana, que a cada instante gritava mais, colocaram-na num lençol e balançaram a moça numa atitude desesperada de desvirar a criança, porém nada funcionava. A tarde chegou o médico, que também examinou, aplicou remédios e a moça já enfraquecida estava entre a vida e a morte, num ultimo suspiro e tentativa, expeliu a criança entre muito sangue, morrendo a pobre mãe em seguida. A criança era algo disforme, sem pescoço, pele escura, dedos compridos e magros, respirava com dificuldade, agonizando morreu em seguida. Somente nhá Rosa e o médico estavam no quarto, Nhá Rosa logo percebeu que era uma criança sapo, filho do olhar e do canto do estranho animal. Médico e parteira firmaram um pacto, esconderam a criatura e noticiaram á família a morte de Joana, cuja criança de sete meses não tinha sido expelida. No outro dia sepultaram Joana, como uma das muitas que morriam de parto naquela época. A criatura falecida foi levada por nhá Rosa que a sepultou na beira de um rio, para que o corpo voltasse a origem e a alma, se é que possuía uma, voltasse ao seu devido lugar.

A NOIVA Esta é a história de uma famosa assombração que amedrontou muitas pessoas nas décadas de 60 e 70, a Noiva. Era um fantasma, um vulto branco, de imensas proporções, chamada também de a Noiva de Sete Metros, a qual aparecia a qualquer hora da noite, de preferência na Travessa João Villaça, caminhando até a porta da igreja matriz. Assim deve ter acontecido: Era o dia do casamento de Maria Inocência, bela moça de dezessete primaveras colhidas na esperançosa vida da roça. Vestida toda de branco com flores de laranjeiras, a igreja repleta de pessoas, sorrisos e ela impaciente aguardava a chegada do noivo, que estava muito atrasado. Enfim, chegou um cavaleiro, cochichando com todos, choros e soluços abafados, até que a trágica noticia chegou aos seus ouvidos. Seu noivo, vindo à cavalo e as pressas acidentou-se com uma refugada do animal e faleceu em seguida. Um turbilhão de pensamentos passou pela sua mente, no quarto chorando em desespero, conseguiu fugir para o paiol, onde para acabar com seu sofrimento, sorveu alta dose de formecida-tatú, falecendo em agonia horas depois. Foi um enterro com dois corpos e uma cisma, ou seja, o acidentado com certeza seria julgado por Deus, a suicida condenada a peregrinação pela Terra. Muitos temiam o triste fim de Maria Inocência e dito e feito; decorridos sete meses, apareceu pela cidade um vulto branco, vestido de tecidos esvoaçantes, parecendo deslizar sob os pés, aí estava a maldição, como muitos temiam. Os anos foram passando e os relatos da assombração foram se tornando mais comuns, todos evitavam as noites frias, enevoadas e silenciosas... Foi neste período por volta da década de 40, que Gerôncio, um varão de família se casaria com a jovem e bela Aurora no dia primeiro de maio, a moça do mais belo sorriso da cidade, cujos negros cabelos caiam em cachos moldando seu lindo e moreno rosto. Era um bom moço, tímido e medroso ao extremo. Na véspera do casamento, a noite, resolveram fazer a despedida de solteiro, com muita festa e bebedeira, seus primos, tiveram a triste idéia de assustá-lo, amarraram o dito cujo na porta da igreja e o abandonaram, para que visse a tal assombração. Risos e piadas, seus primos se foram mesmo diante de seus soluços de desespero e pedidos de piedade. Um dos mais exaltados teve a idéia de vestir-se de branco e dar-lhe um susto final e assim foi feito, vestiu-se com um imenso lençol e quando lá chegou, para sua surpresa nada encontrou a não ser as cordas que o prendiam. Os lampiões do interior da igreja estranhamente estavam acesos, uma doce melodia cantada em refinada voz vinha lá de dentro, com muito esforço conseguiu ver pelo buraco da fechadura que uma névoa úmida cobria o chão, um casamento se realizava, a igreja lotada de convidados e no clarão sombrio dos lampiões delineou o rosto de Gerôncio no altar, casando-se com uma estranha e bela mulher! Gritou, chamou os primos, tentaram entrar, arrombar as portas, mas nada conseguiram. Foram até a casa do padre e relataram o acontecido. Muito a contra gosto e esbravejando, o padre resolveu dirigir-se a igreja e quando abriram a porta para brabeza do padre e espanto dos moços, não havia ninguém. Inconformados, censurados e humilhados foram embora, no outro dia, procuraram Gerôncio por todos os lados, havia desaparecido por completo. O horário do casamento chegando, a noiva quase pronta e nada do noivo aparecer. Desesperados os primos contaram o acontecido a alguns familiares que saíram ao encalço de Gerôncio. Finalmente uma noticia! Chegou o coveiro e avisou que Gerôncio foi encontrado dormindo no cemitério, encima do túmulo da falecida Maria Inocência, porém, estava louco, totalmente louco. Conseguiram achar o noivo e realmente estava estorvado. O casamento foi cancelado e em vão médicos e curandeiros tentaram curar o rapaz. Enlouqueceu de vez, ficou pelas ruas vagando, falando coisas desconexas, bêbado pelas calçadas. Sua noiva, a bela e desgraçada Aurora, lembrou-se de Maria Inocência, imortalizada e amaldiçoada em seu amor, tal como ela se envenenou e desde o seu enterro Maria Inocência descansou em paz e um novo vulto branco passou a caminhar pela cidade, deslizando num vestido de névoas, exalando o doce aroma das laranjeiras, aguardando alguém para desposá-la e livrá-la do triste fadário assumido...

A BRUXA BELISÁRIA Dentro do nosso folclore regional a situação das crianças era bem complicada, principalmente nos primeiros dias de vida, quando ainda não eram batizadas. As crianças corriam o risco de serem devoradas por lobisomens, sugadas por bruxas, raptadas por curupiras, privadas de seu leite pela cobra grande, aterrorizadas por cucas e além é claro dos perigos dos quebrantos e mau olhados. No alto da serra numa pequena choupana um choro estridente de recém-nascido enchia o pequeno ambiente. Para desalento dos pais o pequenino rebento, único varão da família, estava doente. Benzimentos, preces, queima de ervas mágicas e nada da criança melhorar. Distante da cidade, sem condução e condições, chamaram nhá Assunta, benzedeira renomada em toda a região. Apesar da idade avançada, a velha e magra senhora, arcada pelos idos anos, ainda mostrava destreza nas pernas e um largo sorriso que contrastava com seu vincado e pálido rosto. Logo que subiu o penoso morro, pegou a criança, macilenta e amarela e passou-a por um braseiro de onde fumegavam pedaços de sabugos, palma benta e cascas de alho. Desenrolou a criança e examinou o umbigo, o qual estranhamente estava demorando a secar e cair, retirou a moeda que o apertava e em seguida colocou uma medalha do Divino em seu lugar, tornou a enfaixá-la e a fez dormir um sono profundo. Nhá Assunta resolveu pernoitar ali mesmo e enquanto jantavam ao cair da noite suas suspeitas se confirmaram. Apesar da casa toda fechada, viu uma grande e cinzenta borboleta invadir a casa, dirigindo-se para o quarto do rebento, iluminado por fraca lamparina do altar de Santo Antonio. A benzedeira levantou-se e disse em voz alta e firme: -Vade retro criatura má, amanhã passe aqui e lhe daremos o sal! A borboleta, como por encanto, desapareceu. Assustados e sem nada compreenderem, os pais da criança entre olharam-se e nhá Assunta explicou que era a bruxa que ali estava, uma criatura má a qual tinha o poder de transformar-se em vários animais, principalmente em borboletas cinzas (mariposas), alimentando-se de sangue de recém nascidos, sugando-lhes os umbigos, era por isso que a criança estava doente e fraca. Tornava-se bruxa a sétima filha de uma seqüência de mulheres ou aquela que por opção pactuasse com o diabo seus maléficos poderes. Hipnotizava os rapazes, fazendo-os crer que ainda era jovem e bela, raptava as crianças e as abandonavam para longe das casas, viviam em fortes tormentos e em busca de sal, o qual não podiam tocar a menos que lhe fosse ofertado por alguém, este sagrado elemento aliviava sua maldição e é por esta forma que eram impelidas compulsivamente a buscar sal quando lhes ofertavam. Seu fadário era muito parecido com o do lobisomem, herdavam-no pelo sétimo nascimento (neste caso seqüência de mulheres), percorriam sete cidades, transformando-se em animais e vagavam pelo mundo pagando penitência. No outro dia a criança já estava melhor e quando despediam-se, a velha Belisária moradora da beira do rio apareceu muito envergonhada, estendeu a mão e nhá Assunta deu-lhe um punhado de sal. Calada foi embora e nunca mais ninguém a viu nas redondezas. Nhá Assunta voltou para sua casa e foi informada que o umbigo da criança caiu, cicatrizou e a criança ficou cheia de saúde. Quanto a bruxa Belisária, possivelmente habita outra cidade, até que um dia descubram seu triste fadário!

O CAIPORA O Caipora é um mito indígena, conhecido desde os primeiros portugueses; o seu nome significa habitante do mato e possui inúmeras variantes que vão deste uma figura pequena e feminina até o monstro peludo com um único olho como em nossa região. Defende as caças e as matas, engana os caçadores, surra e assusta os cães de caça, aprecia fumo e cachaça. Jamais se deve entrar numa mata, sem levar um pouco de fumo, senão, estará perdido se encontrar o Caipora. Mas vamos a venda do Pedro Villar para saber mais do mesmo. Eram quase dez horas da noite e nhô Pedro Villar já estava fechando a porta da venda, quando desesperado, Zico Pacuera entra na venda quase derrubando as cadeiras, lívido, tremendo, gaguejando, pediu uma branquinha. -Que é isso homem! Parece que viu assombração! Tá ficando louco rapaz! -Pior nhô Pedro, muito pior! Quase morri do coração! Põe logo essa pinga, antes que eu morra de veiz! O rapaz bebeu a dose generosa num só gole, respirando fundo e recuperando a cor, começou a falar: -Nhô Pedro do céu! O senhor num vai acreditá em mim! Tava eu agorinha memo, vindo da casa do compadre João Militão e eis que destemperou a viola, deu uma dor de barriga de coxear tripa e me embrenhei no mato para me aliviá, terminado o serviço, dei dois passos e dei de cara com uma baita onça pintada, desse porte, quase um metro e meio. A sorte que eu já tinha me aliviado, porque senão ia encher o sapatão. Desembestei na carreira e a bichona atrás, num enxergava nada, mas fui pro rumo, cheguei num jacarandá e subi que nem macaco, a pintadona lá em baixo, só olhando, pensando se subia ou não! De repente cutucaram as minhas costas e uma voz rouca falou: -Dá fumo ai! –Nhô Pedro, inté pensei que era outro acuado de onça, mais perguntei o que ele fazia ali e nada do rapaz responder! Fiquei cismado, mas entre a onça e um esquisito, resolvi fazer um cigarrinho e picá um fumo, enrola paia, conversa vai e não vem e o dito cujo quieto, a gatona lá embaixo. Quando acendi o isqueiro, aquele moderno nhô Pedro, de fluido, que a chama fica desse porte aqui, clareou a arvore e dei de cara, frente a frente, com um baita bicho peludo, preto que lumiava, um zoião na testa, uma boca enorme, juntinho de mim! Ah! Nhô Pedro, joguei o cigarro, desci da árvore que nem corisco e sai na carreira até chegar aqui! -Espera lá Pacuera e a onça que estava no pé da árvore? -Que onça nhô Pedro, com o medo que eu tava, passei na carreira, que a onça num viu nem cheiro, se correu atrás de mim num conseguiu arcança até agora! Deus me livre, que raio de amigo que é o senhor, quer que tudo aconteça com gente, vai pro inferno, o senhor é meu amigo ou amigo da onça? E saiu Zico Pacuera, porta a fora, resmungando alguma coisa pelo caminho, meio assustado e olhando de quando em quando em direção a mata por onde passara. Nhô Pedro, descrente, balançou a cabeça, riu tranqüilamente, quando passou a tranca na porta, ouviu um esturro de onça, ficou cismado, mas logo deu de ombros e foi embora para a cama, aguardando mais um dia, para novas histórias e aventuras de seus fregueses.

O CORTEJO DAS ALMAS Assim aconteceu por volta dos anos 20. Luiz Maneco necessitando estar muito cedo na cidade, teve a idéia de lá pernoitar em casa de parentes, porém, deu aquela famosa paradinha numa venda e lá emendou na conversa e quando deu por conta, já era tarde e a cidade ficava a duas léguas, andando a passos largos levaria duas horas para percorrer esses treze quilômetros. Já habituado com a distância, saiu despreocupado com a escuridão. O percurso transcorreu sem incidentes até a entrada da cidade, no lugar denominado Urucuzeiro, quando então, percebeu algumas tochas e um grupo de pessoas rezando em voz muito baixa. Tirou o chapéu e percebeu que se tratava de um enterro. Como costume da época, os defuntos eram conduzidos no bangüê e logo ele viu um corpo magro balançando num lençol traspassado pôr um grosso taquaruçú, as pontas da mortalha apareciam mostrando os bordados dourados da barra. Respeitoso, acompanhou o enterro, ora rezando pelo defunto, ora para que acabassem logo o terço e ele pudesse perguntar quem era o falecido. Mal acabava um mistério do terço já começava outro, a escuridão impedia que visse os rostos dos acompanhantes, as tochas eram muito fracas para se delinear um conhecido vulto. Rezas e ladainhas e o corpo balançando, andava, andava, cabisbaixo e nada de chegar na cidade, penosa e vagarosa era a caminhada. Intrigado e impaciente aproximou-se de um rapaz e perguntou quem era o falecido, ele apenas fez: -Psiu! E uníssonos todos repetiram o mesmo. Envergonhado e irritado, continuou a murmurar a prece, a cada passo a caminhada ficava mais penosa, os pés mais pesados e um estranho cansaço tomou conta de seu corpo, avistou os lampiões da cidade e nada de chegar! Cânticos, rezas, ladainhas, perfume de flores e um corpo balançando no pálido clarão das tochas. Pensou mesmo em pegar a ponta do bangüê e apressar os passos, mas desistiu temendo represálias. Resolveu então, tomar uma drástica e mal educada decisão, disparou na frente e deixou o cortejo para traz, quando bem distanciado ouviu um galo cantar e olhou para traz; sentiu um arrepio de baixo para cima, notou que não existia nenhum funeral, nada! Ninguém atrás de si, correu feito um louco para a cidade e chegando numa ferraria relatou o acontecido, sendo então informado que isso era o Cortejo das Almas, que sempre por ali aparecia pedindo preces para um falecido que nunca chegou ao cemitério. Diversos relatos como este existiram no local, mas o defunto também evoluiu, pois muitas das histórias contadas após a década de 40 não falavam em bangüês, mas sim em caixões de madeira ricamente ornamentados. O que dizer sobre isso? Nada! Absolutamente nada, são coisas do outro mundo, coisas do arco da velha!

CURIANGO Não se sabe ao certo o porque o curiango, esta ave de hábitos noturnos foi associada a tantas coisas más no universo do nosso caboclo. No boletim da Comissão Estadual de Folclore (nº 01-1997), contam a história do Bacurau muito parecido e confundido com o Curiango, contando que para participar de uma festa no céu, emprestou penas de diversos pássaros, porém no dia seguinte não fez a devolução, sendo então castigado por São Pedro, tornando-se uma ave de hábitos noturnos, a qual solta o grito “amanhã eu vou”, referindo-se a devolução das penas. Em nossa região o Curiango é uma ave de mau agouro, mensageira das assombrações e indicadora do “coisa-ruim”. Curiango quando pia pode ter certeza que tem assombração por perto. O diabo adota a forma de curiango e atormenta cavaleiros que passam pela noite. Bater ou matar um curiango, traz um imenso azar, a pessoa é perseguida constantemente até enlouquecer, ou perde o rumo da casa, andando em círculos por horas. Tunico Peroba, homem mau, beberrão, briguento e aventureiro, voltava altas horas de mais uma noite de farras, montado em seu cavalo alazão, capa nos ombros e chapéu de abas largas dava a impressão de um gigante pela estrada, soberbo e corpo ereto andava devagar. Logo um curiango piou, uma, duas e três vezes e passou rente ao seu rosto. O cavalo como que pressentisse alguma coisa levantou as orelhas e resmungou, deu de sair a galope, mas foi detido pelas fortes mãos de seu condutor. Olhos atentos, Tunico percebeu que toda a natureza emudeceu, curiango piou outra vez, num berro rouco e estridente, Tunico gelou, era encrenca na certa. O curiango cruzou sua frente e Tunico já irritado tentou conter-se, curiango outra vez piou e bateu-lhe no rosto. Muito irritado, Tunico esbravejou palavrões e ouviu uma gargalhada como resposta, tentou apressar o cavalo, mas o pobre animal estacou e parecia uma estátua. Tunico desceu, puxou a estimada garrucha e ficou a esperar, curiango piou outra vez e sentou na porteira, seus olhos redondos e grandes pareciam brasas, as penas arrepiadas, piou e desta vez mais alto, Tunico não teve dúvida, mirou a arma e passou fogo, curiango tombou debatendo-se no chão. O valente subiu no cavalo, mas, para sua surpresa ouviu um pio nas suas costas, algo como garras juntou-o fortemente, chegou esporas no cavalo e saíram em desembalada carreira. Aos berros Tunico tentava libertar-se das estranhas garras, correram e correram até o galo cantar e a aurora aparecer, foi quando então que o cavalo, banhado de suor e exausto arriou, e para surpresa de Tunico estavam no mesmo local onde tudo começou, as garras sumiram, notou penas espalhadas pelo chão. Quase que exaurido foi a pé arrastando seu cavalo, chegou em sua casa e adormeceu. Desde esse dia, Tunico nunca mais bebeu, brigou ou saiu de casa para suas farras, passou a freqüentar a igreja e a noite tranca-se em casa e dela não sai de forma alguma e toda vez que ouve um pio de curiango, reza todo um rosário e se penitencia pelos seus antigos pecados.

COMO ENGARRAFAR O DIABO Mané do Lopo era um homem avarento, sempre preocupado em enriquecer, porém, sem muito esforço, é claro! Não era muito católico, as vezes aparecia na missa e na porta da igreja gostava de contar vantagens. Certo dia, ele conheceu nhô Ambrosio, benzedor famoso e curador, residente numa cidadezinha no sul de Minas, ficou maravilhado com os “causos” de pessoas que possuíam um diabinho dentro da garrafa, tendo o dito cujo como seu escravo a fazer muita arte e procurar tesouros escondidos. Foi o que bastou, Mané do Lopo, de cor e salteado, sabia passo a passo como engarrafar o diabo, e lá estava ele numa sexta-feira com a mão aparada em baixo de uma galinha preta esperando o ovo cair. O que não tardou e num salto de alegria, rápido e rasteiro, acomodou o ovo debaixo do sovaco esquerdo, lugar que o mesmo ficaria por vinte e dois dias a fio. Neste período Mané do Lopo, dormia sentado com medo de quebrar a preciosidade, banho nem pensar! Os amigos notaram que Mané desaparecera, a casa vivia fechada, quando batiam á porta ele ficava em total silencio. Morto não estava, pois os vizinhos as vezes viam a chaminé da casa fumegar. O que estaria aprontando desta vez? Questionavam todos. Passado os vinte e dois dias, Mané sentiu algo estremecer dentro do ovo, colocou-o contra luz e viu uma pequenina forma avermelhada no interior. Seus olhos brilharam, era chegada a hora, imediatamente pegou uma garrafa, quebrou a ponta do ovo e colocou na boca da garrafa e proft!!, algo escorregou para o interior. Quando olhou, era um simpático diabinho, vermelho, olhos grandes e uma boca pequena a sorrir de forma maliciosa. Emocionado Mané quase chorou, rapidamente fechou a garrafa com uma rolha e nela com um canivete desenhou uma cruz. A noite a garrafa ficava iluminada num tom vermelho vivo, com treze dias de vida, o bicho já falava de tudo, inclusive palavrões. Pactuaram então que, em troca de sua liberdade o bichinho deveria servi-lo por sete anos, após o que estaria finalmente livre. Quando fora da garrafa, o diabinho tinha um metro de altura, voava, fazia predições e tudo mais, porém, somente Mané conseguia enxergá-lo. Durante o dia ele entrava na garrafa e ficava quietinho, como um bom menino, a noite... A noite saía, aprontava todas as traquinagens possíveis, escondia animais, talhava leite, dava nós em roupas, apagava os fogões-a-lenha, assustava pessoas, etc. Alguns diziam que era saci, outros procuravam o padre com medo de ser o coisa-ruim. Mané do Lopo, nada dizia para não levantar suspeitas, porém, numa madrugada foi levado a uma fazenda antiga e lá seguindo as instruções do diabinho começou a cavar, encontrou uma arca cheia de ouro a qual rapidamente levou para sua casa. Passado alguns meses, todos comentavam a mudança de Mané. Roupas novas, reforma na casa, gado da melhor raça, até charuto fumava. A origem da riqueza de Mané era papo predileto nas barbearias e nas rodas de comadres, uns falavam em roubo, outros em herança, outros em pacto com o diabo e assim por diante. Quando indagado, Mané respondia que era herança de um tio e já mudava o rumo da prosa. Assim passaram-se os anos, Mané na opulência e o diabinho na garrafa. Quando chegou o sétimo ano, Mané ficou desesperado, já estava acostumado com sua presença, suas travessuras, seus maus modos, etc. Num dia, enquanto ele entrou na garrafa, Mané rapidamente tapou a garrafa com a rolha, impedindo assim que o mesmo fosse embora, porém, ele ficou muito triste, chorava, nada falava e dia após dia seu brilho diminuía. Comovido Mané do Lopo, não agüentou e soltou seu companheiro. Chorando, pela décima vez se despedia do dito cujo, abraçava-o, pedia para que ficasse. Parecia que a tristeza era recíproca, pois o diabinho também gostava de Mané. Depois desse dia, ninguém nunca mais viu Mané do Lopo, a casa fechada, nada de fumaça na chaminé, sumira, temendo que estivesse morto, arrombaram a porta e nada acharam, senão uma garrafa quebrada e um estranho pó vermelho no chão. Para onde foi Mané do Lopo? Até hoje ninguém sabe, nunca mais apareceu. Ficou a casa, o gado, roupas, ficou tudo intacto, chamaram a família e esta apoderou-se dos bens. Ninguém nunca mais soube do Mané do Lopo, sumiu... e quando falam dele, dizem que tudo isso é coisa do Arco da Velha.

A MÃE DO OURO Lá pelas bandas da Pedra do Carmo e adjacências existem diversas tocas de pedra e pequenas cachoeiras, as quais misteriosamente são visitadas por bolas de fogo, que por vezes aparecem sozinhas, outras vezes em bando, cruzando os céus e se arremessando nestes lugares, principalmente na Gruta da Saudade e na Cachoeira da Eponina, com grandes estouros e clarões. São inúmeros os relatos por todo o município, porém não são temidas, mas na verdade são até apreciadas pelos moradores do sertão, os quais a chamam de Mãe do Ouro. Não é uma assombração, mas sim, um espírito da natureza, que guarda locais encantados e jazidas de ouro. Dona Rita, esposa de seu Herculano, era fascinada pela Mãe do Ouro, sempre ouvia com atenção os mais velhos contarem suas histórias. Todos os dias antes de dormir ela olhava atenta para o céu na esperança de vê-la passar, porém, nada, ano após ano e nada. Morava ela numa pequena casa de pau-a-pique, próxima a um riacho, no qual a pequena cachoeira num burburinho monótono embalava seu sono. Certo dia, dona Rita foi até a reza de um terço numa capela do bairro, chegou meio atrasada e dado o grande número de pessoas ficou quase fora da capelinha. Ajoelhada, terço nas mãos, véu sobre a cabeça, murmurava automaticamente a reza, quando então, sua atenção foi desviada para um clarão no céu. Rente a mata uma pequena bola de fogo avermelhada subia e descia deixando escapar faíscas douradas. Levantou-se silenciosamente e foi em direção a bola de fogo, a qual embrenhou-se na mata. Saiu tão sorrateira, que ninguém percebeu. Pensava agora angustiada: Seria a Mãe do Ouro? Sem pensar muito começou a seguir a bola de fogo, quando mais andava, mais a bola embrenhava-se no mato, como que a conduzindo para a cachoeira que ali existia. A poucos metros da cachoeira a bola explodiu num prisma de cores, luzes, brilhos e depois num tom dourado tão intenso que lhe tirou a visão por alguns segundos. Quando pode ver outra vez, viu o estranho brilho concentrado na cachoeira, como um pequeno sol, aproximou-se lentamente, esquivando-se entre arbustos vislumbrou um vulto feminino no meio da intensa luz, pequenos seres em forma humana a cercavam, era de uma beleza espetacular, folhas, cascas, pedras e até a água tornara-se ouro puro. Fascinada, dona Rita teve a impressão que se passaram alguns minutos, quando voltou a si, notou que tudo começou a desaparecer, a perder o brilho e voltar a forma original, apressada pegou uma grande pedra de ouro e saiu correndo da mata, mas para seu desespero quando chegou na capela não havia mais ninguém, todos tinham ido embora, percebera então que ficara por horas no local, apressou-se em chegar em casa antes que o marido acordasse, correu tanto, segurando a pedra de ouro que quando chegou em sua casa não tinha mais fôlego e de tão cansada caiu sobre a cama e adormeceu. Horas depois, foi acordada pelo marido, que voltava da roça já na hora do almoço e preocupado indagou por que ela não tinha se levantado. Contou-lhe dona Rita toda a história, o marido riu gostosamente, dizendo que fora apenas um sonho, mas dona Rita insistia e puxou debaixo da cama a pedra que trouxera, quando o marido olhou riu ainda mais, pois nada mais havia do que uma pedra de granito. A partir deste dia, o marido passou a dormir preocupado achando que sua esposa era sonâmbula. Dona Rita até hoje guarda a pedra na esperança que algum dia volte a ser ouro e ainda fica na janela suspirando e esperando a Mãe do Ouro reaparecer.

A MULA-SEM-CABEÇA A mula-sem-cabeça é um mito com muitas variáveis por todo o Brasil e também muito divulgada na Europa desde a Idade Média, também é conhecida como burra-do-padre, mula-de-fogo ou burrinha; ela chegou ao Brasil com os primeiros portugueses e de lá para cá, ouvem-se muitas histórias, como esta: Seu André Pinhá era antigo morador do bairro Sabiá-Una do Sertão, homem de meia idade, experiente na vida e nas coisas da roça. O dia estava terminando e Seu André vindo da lavoura esticou o caminho até a venda do Nhô Pedro Villar para tomar uma talagada de pinga e logo ir embora. Quando chegou, a conversa estava animada sobre uns relinchos e clarões misteriosos no alto do morro de Nhá Tudinha. Seu Pedro, descrente de tudo desdenhava de todos dizendo: -Mas qual o quê, cês tão tudo sonhando, mula-sem-cabeça é coisa que não existe. Gervásio, outro morador do bairro, medroso toda vida, retrucava: -Num abuse seu Pedro, a tal da mula existe, mulas-sem-cabeça são almas que pagam penitência, batendo-se uma na outra ou disparando morro abaixo procurando alivio pelo pecado que cometeram em vida, são as almas de compadres que em vida tiveram caso amoroso. O senhor sabe, depois que a gente vira compadre a comadre é sagrada para gente, passa a ser membro da família. -Mas que nada! Outro dia o senhor disse que era alma de mulher que teve caso com o padre, agora é alma de compadre. Isso tudo é imaginação. Disse seu Pedro, desdenhando outra vez. Outro espertalhão no assunto, Tico Gambé, garantia de pés juntos: -Eu vi a tal da mula, e essa é diferente! É uma baita mula preta, com uma crina enorme e no lugar da cabeça saem chispas de fogo, o barulho do trote é horrível e o que é pior, depois que passou deixou as marcas dos cascos do chão. Pra mim a mula é gente viva que tá se transformando em vida mesmo. Seu André que até agora só ouvia, tomou o ultimo gole e desafiou: -Pois bem, eu tô indo embora e vou cortar caminho pelo morro de Nhá Tudinha, se a tal da mula aparecer eu volto montado nela! E foi o seu André, foice no ombro, cigarro da boca, sem se importar com os outros. Na venda, ficou todo mundo pasmo e seu Pedro ria do acontecido. No pé do morro, três curiangos piaram feio e quando curiango pia é coisa do demo, lembrou logo seu André. E não deu outra, ouviu um relincho estridente acompanhado de um pesado e desembalado galope morro abaixo. Gelou, o suor corria-lhe o corpo, o coração foi bater na boca. E agora? Corajoso, abaixou-se numa moita, quando a mula se aproximou, ele num salto rápido deu uma foiçada com toda força, a mula deu um estouro, fogo e cheiro de enxofre se espalhou no ambiente, ainda afoito percebeu que a pata dianteira da mula tinha sido cortada, apanhou-a e voltou correndo para a venda de Nhô Pedro. Quando lá chegou, contou ofegante o acontecido, ainda cansado, com a respiração oprimida, esvaziou seu bornal em cima da mesa para mostrar a prova irrefutável da existência da mula, porém, para surpresa de todos caiu sobre a mesa a mão esquerda de uma mulher. Seu André, num grito desesperado, saiu correndo e somente mais tarde acharam-no no pé do morro de nhá Tudinha, com uma faca no coração em cima do corpo de sua esposa, em cujo cadáver faltava a mão esquerda. Conta-se ainda, que como castigo pelo suicídio, seu André transformou-se no estranho animal e agora ambos se batem no alto do morro, assombrando com relinchos e clarões toda aquela região.

A PORCA DE SETE LEITÕES Ora, não há na zona rural quem não tenha ouvido falar na porca de sete leitões, este animal estranho que passa grunhindo pela estrada, assustando as pessoas e depois misteriosamente desaparece. Quitéria Joaquina, conhecida como Quita, desdenhava de tais histórias, morena faceira e tinhosa, Quita dava de ombros e ria quando ouvia falar da porca de sete leitões ou até mais, como afirmavam alguns. Pessoa de má vida, segundo alguns moradores e uma perdida mulher segundo enciumadas esposas. Quita morava sozinha desde seus vinte anos, quando morrera sua mãe, a negra e solteira Tibira, a qual também não teve uma vida como mandava a Santa Madre Igreja. Desde então, Quita assumira o lugar de sua mãe, acolhendo prazerosa a farta clientela de um pequeno boteco que a própria havia montado. Para desespero de muitas mulheres o boteco sempre era bem freqüentado e muito falado pelas cercanias. Além disso, neste período onde ainda não existiam anticoncepcionais, por vezes Quita aparecia de barriga, mas logo em seguida a mesma desaparecia. Conhecedora de algumas ervas e magias, herdadas da negra Tibira, ela utilizava-se desde urina de coelho a sementes especiais para evitar a gravidez, mas muitas vezes quando suas mandingas falhavam, recorria então a arrudas, perobinhas, caetês e caraguatás. Os que ficavam sabendo de suas práticas, apavoravam-se com medo que esses inocentes pagãos virassem cobra grande ou boitatás. Por onde passava Quita era repudiada e assíduos fregueses faziam de conta que não a conheciam. Ela porém, no seu jeito de desdém, dava de ombros e saia rebolando a rir da ironia do destino e dos encontros e desencontros da vida. Certo dia, Nhá Rosa, a velha e caridosa parteira, foi acordada em sua casa por desesperado cavaleiro pedindo para que a mesma tivesse piedade e socorresse Quita, que há horas agonizava com um aborto mal sucedido. Nhá Rosa chamou seu neto Bastião e pediu para que o mesmo preparasse a charrete, antes foi até seu altar e acendeu uma vela para Nossa Senhora do Bom Parto e saiu em seguida, numa fria madrugada de quinta-feira. Sabia que levariam mais de uma hora para chegar até a venda de Quita, o cavalo já acostumado com a necessidade de ser rápido dava tudo de si, porém, de repente o cavalo se assusta, levanta suas patas dianteiras e refuga diante de um estranho vulto, as rodas da charrete passam por cima de ruidosos obstáculos, quase derrubando a velha parteira, gritos de pequenos leitões enchem a estrada num triste atropelo, porém, Nhá Rosa desce calmamente da charrete, e vê seu neto tentando em vão tocar os inúmeros leitões em direção a uma imensa porca preta do outro lado da estrada. Imediatamente ela grita para seu neto: -Bastião, deixe esses leitões suba na charrete e vamos voltar para casa! -Mas vó, e Quita? Retruca ele. -Quita morreu, vamos para nossa casa agora! Obedecendo a velha e teimosa avó, ele subiu na charrete, e no mesmo instante os leitões saíram em disparada atrás da grande porca. Foi então que ele percebeu, que aquilo não era um animal comum, mas sim coisa do demo; arrepiou-se, fez o sinal da cruz e seguiu calado para a casa da avó. No outro dia, soube que quando o cavaleiro chegou a casa de Quita ela já estava morta e no velório as poucas pessoas que lá estavam não entenderam o porque nhá Rosa pela primeira vez na vida deixou de atender alguém. Bastião, entendeu muito bem a sabedoria de sua avó, percebeu que a porca e os leitões que lá estavam era a alma de Quita com seus inúmeros abortos a pagar uma triste penitência pela eternidade.

AS TRAQUINAGENS DO SACI Pelas bandas do bairro dos Gatos, moravam numa simples e aconchegante casa de barrote, dona Tunica e seu Alberto. A casa era simples, porém, caprichosamente caiada a mão e cheia de mimosos canteiros, onde floresciam diversas dálias e copos-de-leite. O capricho do casal era comentado por toda a redondeza. Certa feita, seu Alberto, resolveu buscar uns taquaruçús num bairro vizinho para melhorar uma bica d´agua de sua casa. Quando chegou no taquaral sentiu um cheiro forte de bode e logo foi pensando que isso era coisa de saci. Os antigos afirmavam que esse negrinho malvado nascia de dentro dos gomos da taquara durante os dias de ventania. Cortou um bom feixe e voltou para casa; ao partir um dos gomos, sentiu o característico cheiro de bode e enxofre e uma nuvem de gás amarelo escapou por um orifício, pensou apenas que fosse pressão de alguma água acumulada. No entanto, logo desapareceu a foice que o mesmo estava usando, em seguida dona Tunica reclamava que todo o leite tinha coalhado e mais tarde aos gritos esbravejava quando viu todo seu varal de impecáveis roupas cair no empoeirado chão. E a coisa não parou por aí, no dia seguinte o fumo de corda sumiu e o cavalo de seu Alberto apareceu exausto, com a crina e a cauda toda trançada. Dona Tunica matou a charada na hora, percebeu que se tratava do saci-pererê. Em seguida, espalharam sal pela casa e fizeram um circulo com o rosário de quinze mistérios para que o dito cujo se materializasse, em volta da casa viram um redemoinho de poeira passando, seu Alberto num salto rápido pulou em cima com uma peneira e em seguida colocou a boca de uma garrafa dentro da mesma e rapidamente retirou-a e fechou com uma rolha encimada pelo desenho de uma cruz. Colocaram a garrafa numa prateleira e desde aquele dia acalmou-se a moradia. No entanto, dona Tunica ficava olhando a garrafa, na tentativa de enxergar o negrinho de uma só perna, de gorrinho vermelho e taquari (cachimbo) na boca e nada... Passaram-se dias e nada dela conseguir ver o espertinho saci, até que um dia dominada pela curiosidade e para ver melhor tirou levemente a rolha na tentativa de espiar o interior da garrafa, nada e nada, quando tirou quase toda a rolha a garrafa deu um soco e dela saiu um redemoinho esfumaçado o qual foi rodando por toda a casa, derrubando todas as coisas, desesperados ela e seu marido fugiram para o mato e ficaram de longe espiando o redemoinho destruindo todo o mimoso jardim, jogando todas as panelas para fora, rasgando as roupas e fazendo a maior baderna possível. Cansado da bagunça o saci juntou um rolo de fumo de corda e se mandou para o mato, dando saltos, boas gargalhadas e fumegando no seu pito.

O CORPO SECO Zeca Honório era uma cria ruim, pior que carne de pescoço, com ele ninguém lidava, ninguém tirava farinha. Quando criança contava-se que fazia todo tipo de maldade, tanto com animais quanto com pessoas. Sua mãe dona Assunta, era uma coitada, viúva, com cinco filhos, tinha no caçula o tal do Zeca a personificação da ruindade. Porém, Zeca cresceu e casou-se com Catarina, uma pobre mulher que morreu dois anos depois, num formidável pontapé na barriga prenhe que o marido desferiu num de seus ataques de cólera. Morta a mulher, voltou a residir com a sofrida mãe, a qual como sempre socorria o Zequinha, todavia, suas crises e ruindades aumentavam, até que um dia por qualquer motivo, chegava a espancar a pobre velha, proferindo uma série de blasfêmias aos céus. Dona Assunta de desgosto morreu logo e passado um ano o tal do Zeca, aos quarenta e imprestáveis anos foi fulminado por um ataque cardíaco. Passado alguns meses, diziam que o coveiro teve que enterrar de novo o Zeca Honório, pois misteriosamente o corpo estava exposto e o que é pior intacto. Passou um ano, a terra rachou e para surpresa do coveiro o corpo outra vez subira a superfície, apesar das roupas corroídas o corpo estava inteiro e os cabelos e as unhas tinham crescido. O coveiro, muito esperto, entendeu que Zeca Honório pelo fato de ter batido na mãe e outras maldade mais, virara Corpo Seco, o qual tanto a terra, quanto os vermes o repudiavam. Escondeu o corpo em outra cova e ladino como ele só, contou o caso a uma benzedeira e esta informou que para acabar com a maldição, seria necessário a mãe do defunto dar uma surra com vara benta no dito cujo, como a mesma já era falecida, tornava-se impossível acabar com a maldição por completo, só restava uma solução, enviar o corpo para Pico do Selado, onde as almas penadas pagam penitência. Na primeira tempestade noturna que se formou, o coveiro, a benzedeira e mais um ajudante pegaram uma rede, passaram uma taquara (bangüê), recolheram o corpo e foram para a igreja, lá passaram um conto no vigário, ou seja, informaram que era uma mulher que tinha falecido de doença contagiosa e necessitava ser enterrada o quanto antes, o padre, já de idade avançada, cansado, meio míope, num clarão de vela, mal olhou o cadáver e começou a encomendar o corpo. Conforme rezava, o vento assobiava forte, raios e trovões pareciam aumentar a cada instante; a cada sinal da cruz um raio iluminava e estremecia a igreja. Terminada a reza, o trio dirigiu-se para fora e deixaram o corpo no chão e este sacudido pelo forte vento começou a balançar, a flutuar num sobe e desce tétrico e horripilante. Os três mal respiravam e com os olhos arregalados, viram o corpo se desvencilhar da rede, os cabelos esvoaçando vistos com os clarões dos relâmpagos e de repente um estouro (buummm!) e num clarão faiscante o corpo foi em direção ao Pico do Selado, deixando um rastro vermelho no céu. Assim termina a história de Zeca Honório, cuja alma como tantas outras, está aprisionado no Pico do Selado, local este que foi muito temido até décadas atrás, donde se ouviam as mais variadas histórias, possíveis e impossíveis.

SUÇUARANA De repente um ladrar de cachorros encheu o ambiente, na porta da nossa já conhecida venda do nhô Pedro Villar, se ajuntaram uns oito cachorros de caça numa algazarra total e logo apareceu seu Zico Pacuera, o mais famoso caçador da região, conhecido como especialista em onças pintadas, a suçuarana, tendo diversas peles da mesma em sua casa e em cada exemplar um “causo” diferente, que muitos acham ser a mais pura mentira. Como de costume entrou na venda deixando a educada cachorrada no lado de fora, mandou picar meia peça de mortadela e uns pedaços de lingüiça e deu para seus fiéis amigos de nariz frio. Todos sabiam que o dito cujo era um famoso contador de “causos”, papudo e mentiroso como ele só. -Cachorrada bonita zeu Zico! Mas não sei pra que tanto purguento pra mata umas jaguatiricas por aí? Cutucou nhô Pedro Villar, já se preparando para ouvir uma das cabeludas do seu Zico Pacuera. E dito e feito: -O sr. tá achando que pra caçar onça num precisa de cachorro. E não precisa mesmo! Meu pai caçava onça com a zagaia, aquela lança enorme. Ele acuava a pintada e quando ela pulava, ele esperava com a zagaia em riste e ela ia se debatendo até o fim da lança; isso quando a gatona num pulava de riba da árvore e o gorpe era certeiro. E digo mais: -Outro dia, tava eu no meio do mato com minha espingarda matando uma jacuzada e fiquei só com uma bala no cano, e eis que de repente escuto um esturro de onça e o que é pior, nhô Pedro, um bafo desgraçado perto de mim. Pensei comigo: C´os diabo! Tô perdido. Mas pra minha surpresa ao invés de uma onça, eram duas uma de cada lado! Fiquei duro, oiando, zóio no zóio, ora pra uma, ora pra outra, porque o senhor sabe, se a gente mirar bem firme, no fundo do zóio, ela não pula na gente. As pernas bambearam, pensei até que ia encher o sapatão. Mas criei coragem, tirei o canivete da cinta, agachei bem devagarzinho, catei um pedaço de bambu no chão, sem tirar o zóio da pintada, ora numa, ora na outra, amarrei o canivete na ponta, improvisando uma zagaia. Mais fui muito mais esperto que o senhor pensa! Finquei a minha zagaia no chão, mirei o cano da espingarda bem no meio do fio do canivete e fiz urrar a espingarda. Mas qual o quê, a bala cortou no meio, dividiu-se em duas e acertou as duas onças bem no arto da cabeça com um tiro só! -Barbaridade seu Zico! E vai dizer que eu vou acreditar nessa? Nhô Zico, esperto que ele só, meteu a mão no bolso e já foi desafiando: -E não nhô Pedro? Aqui tá a bala e o senhor veja bem, dividida em duas partes e inté amassada na ponta. Nhô Pedro riu da situação e serviu mais uma dose ao amigo e esta por conta da casa. Afinal, uma venda de sitio sem um contador de causo e sem história de caçada de onça, não pode ser uma venda da roça.

O AMIGO DA ONÇA Existem muitas histórias sobre a onça pintada, principalmente a temida suçuarana. Falavam de mulheres que viravam onças como os contos do centro-oeste do Brasil, o poder de imitar todos os animais e hipnotizá-los, além do poder de desaparecer misteriosamente, etc. Nossa região, há muito tempo possuía estes belos felinos, que na verdade é o atestado de saúde de uma região ambiental, haja vista que elas estão no topo da cadeia alimentar. Mas infelizmente, as onças bem como as jaguatiricas foram praticamente extintas por estas redondezas. O homem do campo sempre teve pavor das onças, tornando-se velhos inimigos, jamais permitindo uma convivência pacífica. Existe uma crença que as onças apreciam uma boa cachaça, desta forma era comum deixar uma garrafa de pinga no mato, para que depois de embriagada ela cairia nas armadilhas com maior facilidade. Uma coisa era certa, se a onça não bebesse a pinga, o caipora daria conta do recado. Certo dia, João Militão, invocado morador destas cercanias, apreciador da “marvada”, chegou na venda de nhô Pedro Villar, todo cheio de si, com o picuá cheio de munição, espingarda no ombro e já foi esbravejando: -Me dá uma garrafa de engasga gato, nhô Pedro, mas antes, coloque uma dose no copo pra eu provar se é das boas, porque o resto eu vou levar pro mato, pra ver se dou fim numa suçuarana que anda infernizando o meu sítio! Nhô Pedro, profundo conhecedor de seus fregueses, já foi debochando: -Mas qual o quê Militão, acho melhor mecê levar logo duas garrafas, por que senão a onça vai ficar sem. -Oh nhô Pedro, eu tô falando sério, vou dar um fim numa onça, a bicha anda comendo meus bezerros e já matou meu cachorro. A pegada da desgraçada é deste tamanho, esta é das grandes. Mas por via das dúvidas e devido ao tamanho da onça é melhor ver duas garrafas. E assim foi embora João Militão em busca da suçuarana. Na venda, nhô Pedro ficou cismado, pensando que o mesmo ia arrumar confusão de novo. E não deu outra, no fim da tarde, a venda cheia de fregueses, estranharam a ausência do velho freqüentador. Nhô Pedro Villar relatou o acontecido, e resolveram três compadres ir ao encalço do João Militão, que com certeza ou tinha matado a onça ou tinha virado comida dela. Procura daqui, procura dali e nada... Onde estaria o Militão? Subindo uma capoeira, defrontaram-se os três compadres com uma cena de arrepiar, João Militão caído no chão e a onça deitada por cima dele. -Meu Deus, João Militão acertou a onça, mas antes de morrer a onça com certeza matou ele! Exclamou um desesperado. E foram, devagar, passo a passo enfrentar a trágica cena, porém quando um deles engatilhou a espingarda, João Militão levantou-se, abraçou a onça que sorvia o último gole de pinga, e falou num tom mole, porém irado: -hic! Se alguém atirar no gatinho, eu passo fogo! A onça, meio que capengando, embrenhou-se no mato, pegaram João Militão, viram as duas garrafas totalmente vazias e colocaram-no nos ombros e o levaram para casa, no caminho o mesmo ria e perguntava constantemente da sua amiga, companheira de pinga e de trago. Segundo consta, nunca mais João Militão quis saber em caçar onça, muito pelo contrário, defende as mesmas com unhas e dentes. Esta história pode não ser do arco da velha, mas com certeza é do tempo que se matava onça com a zagaia.

O CURRUPIRA DE NHÁ CHICA Na estradinha de saibro batido, numa curva logo após a Cachoeira dos Pretos, ficava a casa de nhá Chica, onde muitos paravam para descansar da caminhada e gostavam da boa recepção dada por sua moradora; pessoa das mais estimadas e mais antigas do bairro. Foi numa dessas paradas, que sua comadre Assunta ficou de prosa com a nhá Chica, enquanto esta fritava em panela de ferro uns bolinhos pingados. A prosa ia longe quando deram por falta da menina Honória, filha de dona Assunta. Acreditando que a menina a qual já tinha oito anos de idade estivesse brincando no quintal, continuaram a prosa sobre bordados e fuxicos. Dado a hora, despediram-se as comadres, saíram a soleira e grita daqui e dali, chamaram Honória e nada da menina responder. Intrigadas, cada uma dirigiu-se a um lado do terreno e continuaram a chamar por Honória e nada! Procuram pela estrada, na tulha, paiol, na beira do rio e nada da menina. Buscas em vão, chegaram na casa de nhó Arnesto, um preto velho, rezador e curandeiro, que com toda a calma do mundo, explicou tratar-se de currupira, um ser fantástico do outro mundo, uma espécie de índio espírito das matas que muitas vezes aparece na forma de mulher e em outras na forma de homem, portando umas bonequinhas de ceras com as quais atraem crianças, levam para o mato e as deixam lá. Disse ainda o velho curandeiro que na mata de nhá Chica tinha currupira sim, que ele já vira o dito cujo passeando por ali e que era melhor voltarem antes que o sol se escondesse e procurarem no mato do lado de cima da casa. Voltaram rápido a passos largos as pobres senhoras, pegaram uns cachorros e pediram ajuda de alguns moradores e foram vasculhar a mata. Bem na beira do mato amarrada numa arvore estava a menina Honória, enrolada com cipós do tornozelo até o pescoço, tão bem amarrada que tiveram grande dificuldade em desatar os nós e desenrolar o mesmo. Aos prantos e muito assustada, Honória contou que caiu num estranho transe sendo chamada por uma mulher com uma bonequinha de cera nas mãos, de repente ela se viu grudada na árvore e como por encanto os cipós foram se enrolando no seu corpo e ficou muda sem poder falar e muito menos gritar. Desceram o morro, tomaram um novo café e dona Assunta e a filha resolveram pernoitar para não pegar a estrada durante a noite. A lição foi bem aprendida, criança longe dos olhos dos pais e de adultos corre o sério risco de serem raptadas pelos currupiras, principalmente se estiverem pelas cercanias da casa de nhá Chica.

O CRESCE E MÍNGUA Havia um homem chamado Dito Piuva, avarento, sovina, mão de vaca, pão duro, miserável, muquirana, unha de fome, e assim por diante uma série de adjetivos para relatar o quanto era mão fechada e tão pão-duro que diziam que nem o cabelo ele repartia e de tão miserável nem bom dia ele dava. Verdade ou não, tinha um belo pomar em sua casa, cujas ameixas e pitangas coloriam e instigavam de longe os olhos da molecada. Mas quem se atrevia a pular no pomar do Dito Piúva? Era tiro de sal na certa ou uma boa estilingada de pelota de barro seco ou boas mordidas do cachorro chamado Duque, um vira-latas pintado e brabo igual ao dono. Pedir uma fruta? Nem pensar! Fazer isso era ouvir xingo na certa e um grande não como resposta ou ainda a afronta que preferia ver as frutas serem comidas pelos pássaros ou vê-las apodrecerem no pé do que dividir com moleques, que na sua concepção eram piores do que os capetas. Tão miserável que mal comprava alguma coisa na venda e diziam que o pó de café era usado várias vezes para o cafezinho, comprava pão amanhecido para pagar menos e nunca deu esmola a ninguém ou alguma prenda para festas da igreja. Vivia remendado e andava descalço para jamais gastar com sapatos. Dito Piuva passava as horas na sua bela horta e em seu tentador pomar, onde as frutas pareciam mais gostosas do que a dos outros. Quando saia a noite tinha por hábito colocar um chapéu de couro bem velho e uma capa de boiadeiro herdada de seu avô, talvez a única peça em bom estado que teve na vida. Até que um dia Dito Piuva morreu de repente e seus parentes, felizes herdaram a propriedade e um colchão cheio de dinheiro guardado, tão bem guardado que muitas notas tinham perdido o valor e saído de circulação. Os mais antigos diziam que ser muito miserável é pecado de morte e quando a pessoa morre fica vagando pelo mundo, e foi o que aconteceu. Passado uns meses, ali pelas bandas baixas da cidade na beira do rio e acessos de algumas ruas que dão ao centro da cidade, começou a aparecer uma assombração. Um cresce-míngua, ou seja, um homem de capa e chapéu que vai crescendo, crescendo, ficando enorme, atingindo vários metros e depois vai minguando, minguando, até sumir. Contam que se ele arcar para frente e a pessoa não correr, o sujeito morre sufocado. Por décadas o Cresce Mingua pagou penitência por ali. Muitos o viram e foi assombração comum nas décadas de 50, 60 e 70. Até que minguou de vez, sumiu, mas se vier a morrer outro miserável, corremos o risco de termos um outro cresce-míngua rondando a cidade.

A COBRA GRANDE Nhá Rosa estava muito preocupada, com seus cabelos branquinhos e muitos anos nas costas parecia muito pensativa. -O que foi vó? A senhora parece distante, tá doente? Perguntou o neto Anastácio. A velha levantou-se acendeu uma vela a Nossa Senhora rezou um pouco e desabafou: -Anastácio, a coisa não tá certa! Já atendi hoje três crianças com tísica, magrelinhas, amarelas, chorando muito e examinei o bico do peito das mulheres, todos rachados e marcados. -Deus me livre Vó, a senhora não ta achando que... -Isso mesmo meu neto, é Cobra Grande! Antigamente tinha muito porque morriam filhos de escravas e jogavam na água sem batizar e viravam cobra grande, agora com esse mundo cada veiz pior, num duvido que alguma mulher por ai não tenha tirado o filho antes da hora e para esconder tenha jogado no rio. -Cruzcredo Vó! Ninguém teria coragem disso. Nem pense nisso! -É meu neto, as veiz essas mulheres num tem cabeça e faz besteira, se for isso, quando a criança cai na água vira a Cobra Grande e de noite vai procurar mulher que tá amamentando, põe olho grande nela, a mulher fica tonta e a cobra mama no peito e põe o rabo na boca da criança para esta não chorar, mama tudo e vai embora, a criança acaba morrendo de fome com o passar do tempo, morre tísica. -Mais pode ser urutu, dizem que urutu cruzeiro faz isso também.! -Urutu cruzeiro, tem cruz na testa porque jurou que quando picasse alguém ou matava ou aleijava, alguma veiz ou outra até mama em mulheres, mas eu tenho certeza que desta veiz é cobra grande, porque todos tem escutado choro de criança perto do rio. -E a senhora está pensando que vamos enfrentar o bicho? -Sim senhor!~Estou fazendo novena para Santa Catarina, Nossa Senhora do Rosário e São Bento e você vai me ajudar a fazer isso amanhã a noite. -Santa Maria, como é difícil aprender este oficio de benzedor! E assim foi, caiu a noite e a velha benzedeira munida de rosário, arruda, sal e água benta e o neto, a quem estava destinado passar seus poderes e mais um amigo com uma vara e uma corda nas mãos. Chegaram no rio, e fuça daqui e dali, logo acharam a bichona enrolada, uma enorme cobra, uma verdadeira sucuri de uns quatro metros. Ligeira nhá Rosa jogou o rosário e os corajosos rapazes pularam em cima e amarraram a cabeça da serpente, que se contorcia numa força fora do comum. Seguraram firme e nhá Rosa despejou água benta e fez o sinal da cruz com o sal e a arruda e batizou a serpente com o nome de vários santos, rezou um crendospadre e jogaram a cobra no rio. Voltaram felizes para casa. -E agora vó? -Agora ela volta para água, vira criança de novo, o corpo desfaz e o espírito vai descansar em paz. Passaram-se alguns dias, as crianças que estavam doentes recuperaram a saúde e as mães disseram que seus peitos melhoraram e estavam conseguindo amamentar com facilidade. Nhá Rosa acendeu outra vela em agradecimento, tudo voltara ao seu devido lugar, os dois mundos estavam em paz novamente. Graças a Deus!

BOITATÁ Gritaria e socos na porta. Eram quase oito horas da noite e uma algazarra na porta da venda do seu Pedro. Era gente cutucando onça com vara curta! -Abra seu Pedro pelo amor de Deus! Acuda nóis seu Pedro, tamo perdido. E lá vem o espanhol, mais brabo do que cascavel em dia de sol quente, mais irritado do que onça com dor de dente. Espingarda na mão, camisola até o pé denunciando que já estava indo dormir. Abriu a porta e entraram dois sujeitos, brancos, trêmulos, chamuscados e cheirando a queimado. -Tá bom, vão desembuchando os dois, com certeza tomaram umas pingas e caíram numa fogueira ou atearam fogo no pasto e não deram conta de controlar a queimada, não foi? Já disse seu Pedro num tom nada amigável. -Seu Pedro, o senhor não vai acreditar? -Nem quero saber, se um dos dois falar em assombração, eu passo fogo nos dois agora! Isso não são horas de acordar gente trabalhadora que quer um pouco de sossego! -Seu Pedro, seja um bom homem, põe uma pinga pra nóis, o coração tá saindo pra boca, pelo amor da Santa Madre como diz o senhor! -Santa Madre digo eu! Esta aí bebam e desembuchem logo. -Seu Pedro, tava nóis vindo embora e resorvemo cortá caminho pelo pasto da nhá Tudinha, e tava nóis descendo e iscutemo um istouro e olhamo pra traiz e coisa medonha seu Pedro! Uma baita cobra de fogo, girando no ar e clareando tudo, metendo fogo em tudo e deu carreira em nóis, descemos o morro feito corisco e a cobra de fogo atraiz de nóis. Era Boitatá seu Pedro! -Seus mentirosos, tomem a pinga paguem a conta e sumam daqui! Tomaram mais uma dose farta cada um que desceu a seco na goela -Pagá a conta seu Pedro? Que jeito, o senhor não ta vendo? Tamo tudo chamuscado com o fogo do Boitatá e o borná com o dinheiro caiu no chão e o marvado Boitatá queimou. Marque na caderneta e outro dia nóis paga. E saíram os dois paus d’água ou caras de pau, Seu Pedro ficou muito brabo, deu até uns dois tiros pra cima, fechou a porta e foi dormir bufando. Desta vez, com certeza lhe passaram um conto. Mas não faz mal, freguês é freguês, outro dia eles acertam. Mas inventar tudo isso para tomar uma pinga a mais e ainda mandar marcar na conta? Ossos do ofício ou Coisas do Arco da Velha? Vai saber...

O FILHO DA MÃE D’ÁGUA Caía uma chuva torrencial do quente mês de janeiro, Maria Assunta mais uma vez se contorcia nas dores do parto, assistida pela parteira nhá Ricardina, apesar da idade de quarenta e cinco anos, nascia depois de mais de dez anos, a raspa do tacho como diziam, seu nono filho, um belo e sadio menino. Todavia, a criança nasceu envolta em uma membrana branca que precisou ser rasgada pela parteira para que a criança viesse à luz. Após o parto, Nhá Ricardina informou que estas crianças envoltas em membranas, possuem o espírito d’água, portanto, devia-se tomar muito cuidado para que não fosse atraída pelas mães d’água. Na pia batismal recebeu o nome de João. E assim cresceu, tornou-se um belo rapaz, um caboclo de pele morena, olhos negros e brilhantes, que gostava de viver sem camisa em galope a cavalo pelos pastos aproveitando a liberdade da juventude. No entanto, era um rapaz quieto, de olhar triste e pensativo, gostava de ficar na soleira da casa dedilhando a viola. Como todo adolescente se divertia no rio e nas cachoeiras, porém sua mãe o advertia, que o melhor nadador a água levava, João pouco caso fazia e vivia nos rios. Um belo moço de dezenove anos, cobiçado pelas moças, no entanto, ainda não tinha se enamorado, fato esse que incomodava os pais, pois mesmo sem namorar, parecia viver com o coração inquieto, atormentado, a suspirar para a lua como um apaixonado não correspondido. O que faltava a João? Quem seria este amor oculto que entristecia o rapaz? Na soleira da casa olhava vagamente para o horizonte e ficava por horas quieto, quando indagado dizia estar bem e suspirava dolorido a sua angustia desconhecida. Ponteava a viola e parecia que um estranho eco respondia suas notas musicais. Era o canto da Mãe d’água, um som suave e distante que vinha da cachoeira, um canto triste e misterioso, uma melodia envolvente e penetrante que tocava fundo nas fibras de João. A cada dia o rapaz mais triste, sorumbático e quieto, um olhar vago e distante. Certa noite de lua deixaram João sozinho e foram a casa de Nhá Ambrosia, a benzedeira do bairro, enquanto benzia a roupa de João a mesma explicava que era o canto da Mãe d’água que o encantava, pediu que voltassem para casa o quanto antes, pois era noite de lua cheia e isso deixava o rapaz ainda mais frágil e lá fizessem uma série de rezas e simpatias para segurar o rapaz que encantado era chamado para o reino das águas. Enquanto isso, João na soleira, ouvia o doce canto da Mãe d’água, desta vez estranhamente mais forte e envolvente, um clarão mágico como um tapete de luz clareava até a cachoeira, os vagalumes aos milhares compassavam seu voar com a música, o vento balançava as flores no mesmo compasso, a natureza toda fora dominada no canto mágico. João levantou-se pegou a viola e caminhou até a cachoeira lentamente, hipnotizado, embevecido. Lá viu a nudez da bela mulher de longos cabelos a delinear o corpo esbelto, despiu-se, beijou-a, num passo rápido foi atirado na água e afundou no sumidouro do rio. Seus pais chegaram rápido, porém somente acharam pequenas pegadas molhadas em direção ao rio, acharam suas roupas, chamaram os vizinhos, a polícia e tudo mais, mesmo após dias de buscas nunca o corpo de João foi encontrado. Passado alguns anos o pai de João, encontrou um menino moreno de olhos claros, com poucos dias de vida na beira do rio, segundo alguns, as Mães d’água são como as amazonas, criam somente as filhas e abandonam os filhos para os homens. Hoje a velha Maria Assunta embala o suposto neto na soleira da porta, quieta, sorumbática, ouvindo o canto da Mãe d’água que a partir de então passou a ser ouvido acompanhado da toada de uma viola.

A PEDRA EM QUE O DIABO SENTOU Quem conta um conto aumenta um ponto, isso já diziam os antigos e foi numa dessas prosas que encontramos a venda do Pedro Villar cheia de gente e numa conversa acalorada demais. -Nem diga cumpadre, eu é que não vou neste enterro, Deus me livre carregar o caixão daquele homem, dizem que quem dá alma pro “Dito Cujo” pesa demais, e quanto mais perto do cemitério chega, mais pesado o corpo fica. Deus me livre, vai que numa dessas vão pouca gente e sobra pra mim carregá aquele filho da mãe! -Eu também num vô cumpadre, imagina só, se na hora do padre jogá a água benta o bicho estoura e vira enxofre só, nem passá perto eu quero! -Bando de ingratos! Vão deixar o pobre coitado sem enterro? Belos cristãos vocês são! Tudo isso é crendice e invenção da cabeça de vocês! Retrucou brabo o Pedro Villar do outro lado do balcão. A conversa estava acalorada em função da morte de Zé Pindaíba, lá do bairro do Mosquito, que segundo diziam tinha dado a alma para o Diabo em troca de não precisar trabalhar nunca mais. -Zé Honório, você que é meio parente do falecido, conta esse causo direito! Solicitou seu Pedro Villar debruçando no balcão e um silêncio dominou a venda para ouvirem o tal relato. -Foi assim seu Pedro, o Zé Pindaíba nunca foi chegado num serviço, sempre reclamou que era doente, era fraco, tinha tísica, mais vivia fumando que parecia uma chaminé. Até que um dia derrubaram um mato lá pro meio do morro do Mosquito e acharam uma pedra que parecia uma cadeira, meteram fogo em tudo, limparam o terreno e deram de plantar café, milho e feijão. Mas a tar da pedra nem chamuscou, ficou lá que nem um trono no meio do pasto. E não é que o preguiçoso do Zé Pindaíba achou o cadeirão ajeitado e já foi sentando, se acomodando no tar, parecia um rei sentado. -Eu não tava lá, mais disseram que ele ficou esquisito, começou a falar grosso e dizer que era a pedra do diabo, que o diabo tinha descansado ali e umas besteiras mais. Eu num duvido que foi truque do Zé pra ninguém sentar mais na pedra. Só sei que na hora da comida todo mundo sentava no chão e nem perto ficavam da pedra e o Zé corria lá e ficava que nem rei sentado e falando sozinho. Quando chegava o capataiz da fazenda pra medir a tarefa o Zé nem ligava, ficava lá sentado o dia todo e nóis no cabo da enxada, carpindo o que tinha sido medido. Acredite ou não a parte do Zé ficava lá perdida no mato, ele ia embora pra casa e nem adeus dizia pra nóis. No outro dia quando nóis chegava a parte dele tava limpinha, sem nenhum pé de mato. Quando era colheita nóis chegava cedo e ele as veis nem vinha e tava a parte dele lá colhida, limpinha amontoada, certinha. O capataiz ficava feliz e elogiava o mardito. Vez em quando aparecia limpinho, bonitão e passava por nóis sem fazer conta e ia sentar na pedra. -Ninguém seu Pedro, atrevia a sentar naquele lugar! Os mais antigos diziam que era a pedra que o diabo sentou e que quem sentasse lá e contratasse com o diabo nunca mais precisava trabaiá, mais quando morresse aí tinha que pagar o trabaio e pagava com a alma servindo o diabo no inferno. -Só sei que passaram os anos, o Zé cada veiz mais soberbo, o serviço dele rendendo mais que o nosso. -Trudia contaram que o Maneco Lazinho muito enxerido deu de ir a noite na roça para ver se o Zé não tava fazendo o serviço a noite para tapear todo mundo. Disse ele que ficou arrepiado dos pés a cabeça, pois viu um enorme diabo vermelho sentado na pedra e um monte de capetinhas carpindo a tarefa do Zé Pindaíba. Desceu morro abaixo que nem louco e quase morreu do coração. Foi até arrumar serviço em outro bairro pra nem de dia passar ali. Foi assim que saiu um monte de empregado da fazenda e o Zé passou a ser capataiz e deu conta sozinho da lavoura inteira e ganhou muito dinheiro com isso. -Outra que fiquei sabendo foi que o Sergino muito descrente de tudo, foi lá de dia e sentou na pedra e começou a abusar desta história, não é que ele sentiu uma mão invisive pegar no braço dele, erguer e lhe enfiar um pontapé no traseiro que o rapaiz caiu longe, e também pediu a conta da fazenda! O Luiz.

Maneco foi pior, chegou, sentou na pedra e não aconteceu nada, ficou brincando, pulando e abusando também e não é que saiu uma jaracuçu que ninguém sabe de onde e picou a perna do rapaiz! Só não morreu por que levaram ele na casa da nhá Rosa que benzeu a mordedura da cobra e ele ficou bão de novo, mais também pediu a conta da fazenda. -Só sei que o Zé esses dias começou com uma pigarra forte, emagreceu muito, começou por sangue pra boca e em três meis de sofrimento morreu sem falar nada. Finalizou Zé Honório, de olho arregalado pitando seu cigarro de palha e dando uma cuspida para o lado. -É verdade tudo isso, porque eu também soube dessas histórias, o desgraçado morreu, a pedra ta lá, ninguém quer trabalhar na fazenda e muito menos ir ao enterro com medo de alguma coisa acontecer. Falou Nico Soares outro morador do bairro e conhecedor da Fazenda do Mosquito. E continuou: -Tá todo mundo com medo dos diabinhos virem carregar o caixão para apressar a ida no novo trabalhador do inferno! -Cês são tudo louco, o Zé não gostava nem de trabalhar em vida, imaginou depois de morto e ainda mais no calor do inferno! Querem saber de uma coisa, vão tudo para fora da venda, vou fechar e vou eu mesmo no enterro ajudar a carregar aquele pobre coitado. Disse seu Pedro Villar empurrando sua assídua clientela para fora da venda. E assim foi, fechou a venda pegou uns companheiros chegaram na cidade, pegaram o caixão e rumaram ao cemitério, ilusão ou não o magrelinho estava pesado pra burro. Enterraram e acabou a história. Acabou não! Para a fazenda voltar a ter empregados deixaram o local da pedra sem plantar nada, deixaram o mato crescer e fizeram lavoura em outro lugar. O mato cresceu, ficou a terra abandonada, mas a pedra está lá até hoje, a pedra que o diabo sentou. Quem sabe esperando algum novo preguiçoso para contratar o trabalho do inferno. Deus me livre!

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