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64 UMA ROSA PARA EMILY WILLlAM FAULKNER (1897-1962 I Estados Unidos)
Quando a Srta. Emily Grierson morreu, nossa cidade toda foi ao funeral: os homens devido àquela espécie de afeto respeitoso que sentimos por um monumento caído; as mulheres, em sua maioria, movidas pela curiosidade de ver o interior da casa, que ninguém, com a exceção de um velho criado - uma combinação de cozinheiro e jardineiro -, vira nos últimos dez anos. Era uma casa grande de madeira que um dia fora branca, decorada com cúpulas, sacadas e torres com teto cônico, naquele estilo pesadamente leve dos anos setenta; ficava onde, uma vez, fora nossa rua mais elegante. Mas as garagens e as descaroçadoras de algodão haviam invadido a área, apagando os nomes mais ilustres do bairro. Só a casa de Emily Grierson ficara ali, alçando sua decadência coquete e teimosa por sobre as carroças de algodão e as bombas de gasolina excrescência entre excrescências. E agora, a Srta. Emily fora se juntar àqueles nomes ilustres, lá onde
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repousavam, no cemitério assombrado de pinheiros, entre túmulos famosos e anônimos dos soldados confederados e nortistas, mortos na Batalha de Jefferson. Quando viva, Emily Grierson fora uma tradição e um dever, uma responsabilidade hereditária sobre os ombros da cidade, desde aquele dia em 1894, quando o prefeito, Coronel Sartoris - autor de uma lei municipal que proibia qualquer mulher negra de aparecer nas ruas sem um avental -, a eximiu de todos os impostos, sendo a dispensa retroativa à morte de seu pai, e perpétua. Não que a Srta. Emily fosse uma mulher capaz de aceitar caridade, o coronel Sartoris teve de inventar uma complicada história de como seu pai emprestara algum dinheiro ao município e que a prefeitura, por uma questão de conveniência, preferia pagar desta forma. Só um homem com a mentalidade da geração do coronel Sartoris poderia inventar alguma coisa assim, na qual só mesmo uma mulher poderia acreditar. Quando os homens da geração seguinte, com idéias mais modernas, se tornaram prefeitos e membros do conselho, esse arranjo criou um pouco de insatisfação. No primeiro dia do ano mandaram a ela um aviso de cobrança pelos impostos atrasados. Veio fevereiro e nenhuma resposta. Escreveram então uma carta formal, pedindo que, à sua conveniência, comparecesse ao escritório do xerife. Uma semana depois, o próprio xerife lhe escreveu, oferecendo-se para ir vê-Ia ou então mandar o carro para buscá-la, e recebeu em
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resposta, numa folha de papel de um tamanho arcaico, uma nota escrita em caligrafia fina e fluente com tinta desbotada onde ela informava que não saía mais de casa, nunca. O aviso de cobrança vinha devolvido anexo, sem nenhum comentário. Convocaram uma reunião especial do Conselho Municipal. Uma delegação foi visitá-la, eles bateram naquela porta por onde não passara ninguém desde oito ou dez anos antes, quando ela deixara de dar aulas de pintura em porcelana. O velho negro os introduziu num vestíbulo mal-iluminado, de onde uma escada conduzia a sombras ainda mais escuras. Cheirava a poeira e desuso - um cheiro abafado e úmido. O negro levou-os à sala de visitas, mobiliada com móveis pesados e forrados de couro; quando abriu as persianas de uma das janelas, puderam ver que o couro estava rachado e, quando se sentaram, uma nuvem de pó subiu de entre seus joelhos, com suas pequenas partículas dançando à luz do raio de sol. Num velho cavalete, junto à lareira, havia um retrato em crayon do pai de Emily Grierson. Levantaram-se quando ela entrou - uma mulher pequenina e gorda, vestida de preto, com uma corrente fina de ouro descendo até a cintura e desaparecendo em seu cinto, apoiada numa bengala de ébano com um gasto castão de ouro. Seu esqueleto era pequeno e leve; talvez por essa razão, o que em outra pessoa seria apenas corpulência, nela era obesidade. Parecia inchada como um corpo submerso há muito tempo em água parada. Os olhos perdidos nas dobras de gordura do rosto, como dois pedaços de carvão enterrados em
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massa crua de pão, se moviam de um rosto para outro, enquanto a delegação explicava o motivo da visita. Ela não os convidou a sentar. Ficou de pé, na entrada da sala, ouvindo em silêncio, até que o portavoz do grupo terminou de gaguejar seu discurso. Então puderam ouvir o mecanismo daquele relógio invisível, preso à corrente de ouro. A voz dela era fria e seca. - Não tenho impostos a pagar em Jefferson. O coronel Sartoris me explicou a coisa. Basta que um de vocês verifique nos arquivos do município. - Mas já fizemos isso. Nós representamos o município. A senhora não recebeu um aviso do xerife, assinado por ele? - Sim, eu recebi um papel - disse ela. - Talvez ele se considere o xerife ... mas eu não tenho impostos a pagar em Jefferson. - Mas, veja a senhora, não existe nada nos livros que prove isso. Temos que nos guiar pelos ... - Falem com o coronel Sartoris. Não tenho nenhum imposto a pagar em Jefferson. - Mas, Srta. Emily ... - Falem com o coronel Sartoris. - (O coronel Sartoris morrera havia quase dez anos.) - Não tenho impostos a pagar em Jefferson. Tobe! - o negro apareceu. Acompanhe estes senhores até a porta. E ela os venceu, a cavalo e a pé, assim como vencera seus pais, trinta anos antes, a respeito do mau
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cheiro pelo ar. Isso fora dois anos depois da morte de seu pai e pouco tempo depois que seu namorado aquele que acreditávamos se casaria com ela - a abandonara. Depois da morte do pai ela saía muito pouco; depois do sumiço de seu namorado, praticamente ninguém mais a via. Algumas das senhoras cometeram a temeridade de ir visitá-la, mas não foram recebidas. O único sinal de vida na casa era o negro - ainda jovem na época - que entrava e saía com a cesta de compras. - Como se um homem, qualquer homem, pudesse cuidar de uma cozinha - diziam as mulheres; e assim não foi uma surpresa quando o mau cheiro começou. Era apenas mais uma coisa em comum entre a grosseira realidade do mundo e os altivos e poderosos Grierson. Uma vizinha reclamou com o prefeito, o juiz Stevens, com oitenta anos na época. - Mas o que é que a senhora quer que eu faça a esse respeito? perguntou ele. - Como? Mande dizer a ela que pare com o mau cheiro - disse a mulher. - Não existe nenhuma lei que proíba isso? - Estou certo de que não será necessário - disse o juiz. - Provavelmente é só uma cobra ou um rato que aquele negro dela matou no jardim. Falarei com ele. No dia seguinte, houve mais duas reclamações. Uma delas de um homem indignado. - Realmente, Sr. juiz, temos que fazer alguma coisa. Eu seria a última
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pessoa do mundo a incomodar a Srta. Emily, mas precisamos fazer alguma coisa. Naquela noite o Conselho Municipal se reuniu - três membros eram senhores grisalhos, um era um jovem da geração ascendente. - É muito simples - disse ele. - Mandaremos um aviso para que ela limpe a casa, lhe daremos algum tempo, e se ela não limpar ... - Maldição! - disse o juiz Stevens. - O senhor acusaria diretamente uma senhora de cheirar mal? Assim, na noite seguinte, quatro homens cruzaram o jardim de Emily Grierson e andaram em volta da casa como ladrões cheirando o ar em torno dos alicerces e nas frestas do celeiro, enquanto um deles fazia movimentos como se estivesse semeando alguma coisa de uma saca pendurada do ombro. Arrombaram a porta do celeiro e espalharam cal virgem lá dentro, e em toda parte em volta da construção. Quando atravessavam de volta o jardim, viram numa janela, antes apagada, a figura da Srta. Emily sentada, iluminada por uma lâmpada atrás dela, como o busto de um ídolo. Eles se esgueiraram em silêncio para a sombra das árvores alinhando a rua. Uma ou duas semanas depois o mau cheiro desapareceu. Quando seu pai morrera, dizia-se que a casa fora tudo que lhe restara; e de certa forma, isto deixou as pessoas satisfeitas. Finalmente podiam se apiedar dela. Ficando só e na miséria, se humanizaria. Agora ela também conheceria a velha alegria, e o velho deses-
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pero, de um centavo a mais, ou a menos . No dia seguinte à sua morte, todas as senhoras foram visitá-la para oferecer condolências e ajuda, como é nosso costume. A Srta. Emily as recebeu na porta vestida como sempre e sem nenhum traço de luto no rosto. Disse a elas que seu pai não morrera. Continuou fazendo a mesma coisa por três dias, com os pastores indo conversar com ela, enquanto os médicos tentavam persuadi-la a deixar sepultar o corpo. Quando já estavam a ponto de recorrer à lei, finalmente ela teve uma crise de choro, e rapidamente enterraram seu pai. Na época, não achamos que estivesse louca. Pensamos que era natural que agisse assim. Lembramos de todos os jovens pretendentes que seu pai mandara embora, e então, como não lhe sobrara nada, se agarrava a quem a roubara de tudo, como as pessoas sempre fazem. Esteve doente por muito tempo. Quando a vimos de novo, tinha o cabelo cortado curto, o que a fazia parecer uma menina - vagamente trágica e serena, como aqueles anjos em vitrais de igrejas. A cidade acabara de fazer o contrato para a pavimentação das calçadas, e no verão seguinte à morte de seu pai, começaram os trabalhos. A companhia construtora veio com operários, mulas e maquinaria. O encarregado era um ianque chamado Homer Barron, um homem habilidoso, moreno e grande, com uma voz possante e olhos mais claros que seu rosto. Os meninos o seguiam em grupos para ouvi-
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lo xingar os operários que cantavam ao ritmo de picaretas subindo e descendo. Em pouco tempo ele conhecia todo mundo na cidade. Sempre que você ouvia muitas gargalhadas, em qualquer lugar da praça, podia estar certo que Homer Barron estava no centro do grupo. E logo começamos a vê-lo com a Srta. Emily, nas tardes de domingo, passeando na charrete amarela, com a parelha de baios combinando, alugada no estábulo. No princípio ficamos felizes que a Srta. Emily houvesse encontrado um interesse na vida, porque as senhoras todas diziam: - É claro que uma Grierson não pensaria seriamente num nortista, um trabalhador diarista. Mas havia outras, as mais velhas, que diziam que nem mesmo a dor do luto faria uma verdadeira senhora esquecer noblesse oblige - e, é claro, sem dizer noblesse oblige. Diziam apenas: - Pobre Emily. Suas primas deviam vê-la. Tinha parentes no Alabama, mas anos antes seu pai brigara com eles por causa do inventário da velha senhora Wyatt, a louca, e não havia mais relações entre as duas famílias. Nenhum deles viera para o funeral. E logo que as velhas disseram "Pobre Emily", começaram os comentários. - Você acha que ela realmente .. .? - Claro que sim! O que mais poderia ... ? Tudo isso, escondendo a boca com a mão, e o ruído
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de cetim e seda amarfanhados por atrás de ciúmes e invejas enclausuradas, sob o sol de domingo à tarde, enquanto o c1op-clop-clop leve e ligeiro da parelha de baios passava. "Pobre Emily." Ela carregava a cabeça bem alta - mesmo quando achávamos que caíra. Era como se mais do que nunca ela exigisse o reconhecimento de sua dignidade como a última dos Grierson; como se usasse este toque de vulgaridade para confirmar sua posição intocável. Como quando comprou o veneno para ratos, o arsênico. Isso foi um ano depois de começarem a dizer "Pobre Emily", e enquanto as duas primas a visitavam. - Quero um pouco de veneno - disse ao farmacêutico. Já passara dos trinta, na época, mas ainda era uma mulher magra, talvez mais magra que o normal, com olhos negros e altivos num rosto em que a pele se esticava sobre a testa e em torno das cavidades oculares, um rosto como se imagina que o rosto de um encarregado de farol deve ser. - Quero um pouco de veneno - disse. - Sim, Srta Emily, de que tipo? Para ratos e coisas assim? Acho que ... - Quero o melhor que tiver. Não me importa o tipo. O farmacêutico enumerou vários produtos. - Podem matar qualquer coisa, até mesmo um elefante. Mas o que a senhorita quer é ... - Arsênico - disse ela. - Não é bom?
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- É ... Arsênico? Sim, madame, é muito bom. Mas o que a senhorita quer ... - Quero arsênico. O farmacêutico a olhou de cima a baixo. Ela devolveu o olhar, ereta, seu rosto como uma bandeira desfraldada ao vento. - Bem, claro - disse o farmacêutico. - Se é o que a senhorita deseja. Mas a lei exige que me diga para que pretende usá-lo. A Srta. Emily olhou para ele fixamente, com a cabeça inclinada para trás de modo a olhá-lo diretamente nos olhos, até que os olhos dele se desviaram, e ele foi buscar e embrulhar o arsênico. O garoto negro que fazia as entregas trouxe o pacote ao balcão, o farmacêutico não voltou mais. Quando ela abriu o embrulho em casa, estava escrito na caixa, bem embaixo do crânio e das duas tíbias cruzadas: "Para ratos." Assim, no dia seguinte, todos dissemos "Ela vai se matar", e dissemos que seria melhor assim. No início, quando ela começara a ver Homer Barron, disséramos "Vai se casar com ele". Depois dizíamos "Ainda o convencerá", porque o próprio Homer - ele gostava da companhia dos homens e costumava beber com os mais jovens no clube Elk's - dissera que não era do tipo de se casar. Mais tarde dissemos "Pobre Emily", por trás de ciúmes e invejas, quando passavam, nas tardes de domingo, na reluzente charrete. A Srta. Emily com a cabeça alta, e Homer Barron com o chapéu de banda,
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um charuto entre os dentes e as rédeas e o chicote numa luva amarela. Então algumas senhoras começaram a dizer que era uma vergonha para a cidade e um péssimo exemplo para os jovens. Os homens não queriam se meter, mas afinal as senhoras conseguiram convencer o pastor batista - embora a família Grierson fosse episcopal - a ir visitá-la. Ele nunca contou o que acontecera durante a conversa que tiveram, mas recusou-se a voltar lá. No próximo domingo, passearam outra vez pelas ruas na charrete e, assim, no dia seguinte, a esposa do pastor escreveu uma carta para os parentes da Srta. Emily, no Alabama. Com isso ela recebeu visitas outra vez em casa, e nós nos sentamos para ver como se desenvolviam os acontecimentos. No início não aconteceu nada. Depois nos convencemos de que se casariam. Soubemos que a Srta. Emily estivera na joalheria e encomendara um jogo de toalete masculino em prata, com as letras H. B. gravadas em cada peça. Dois dias mais tarde, soubemos que comprara um enxoval completo para homem, incluindo roupa de dormir, e dissemos "Eles já se casaram", e ficamos muito satisfeitos. Satisfeitos porque nos vingávamos assim das duas primas do Alabama, que conseguiam ser mais Grierson que a Srta. Emily. Por isso não foi uma surpresa - o trabalho nas ruas já terminara - quando Homer Barron partiu. Ficamos um pouco desapontados por não terem feito um anúncio público, mas imaginamos que fora preparar a
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casa para receber a Srta. Emily ou partira para dar-lhe uma chance de livrar-se das primas. (Na época era uma conspiração pública, que nos fazia todos aliados para ajudá-la a livrar-se das primas.) Como esperado, em mais uma semana elas partiram, e em três dias Homer Barron estava de volta à cidade. Um vizinho viu o criado negro abrir a porta da cozinha para ele entrar, ao anoitecer. Foi a última vez que o viram. A Srta. Emily também não foi vista por algum tempo depois disso. O negro saía e entrava com a cesta de compras, mas a porta da frente se mantinha fechada. Uma vez ou outra nós a víamos na janela, como quando os homens foram espalhar cal em seu terreno, mas por quase seis meses ela não apareceu nas ruas. Mas isso também, nós sabíamos então, era de se esperar; como se aquela qualidade de seu pai, que tantas vezes frustrara sua vida de mulher, fosse algo furioso e virulento demais para ter morrido com ele. Quando vimos a Srta. Emily de novo, ela havia engordado e seu cabelo estava ficando grisalho. Durante os anos seguintes, se tornou cada vez mais grisalho até chegar a uma tonalidade sal-e-pimenta toda por igual. Até o dia de sua morte, com setenta e quatro anos, conservou aquele vigoroso cinza metálico, como o cabelo de um homem ativo. Desde aquela época sua porta se manteve fechada, com a exceção de um período de seis ou sete anos, quando ela estava com uns quarenta anos, em que deu aulas de pintura em porcelana. Arrumou um estúdio,
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num dos quartos do andar de baixo, onde as filhas e netas dos contemporâneos do coronel Sartoris eram enviadas, no mesmo espírito em que eram enviadas à igreja nos domingos, com uma moeda de vinte e cinco centavos para o prato da coleta. Enquanto isso, o prefeito a isentara de impostos. Então uma nova geração se tornou a espinha dorsal e o espírito da cidade, as alunas de pintura cresceram e se dispersaram e não mandaram suas filhas para ela, com caixas de tintas e tediosos pincéis e motivos recortados de revistas femininas. Quando sua porta se fechou para a última aluna, se fechou para sempre. Quando a cidade se organizou para a entrega postal, a Srta. Emily foi a única pessoa a não permitir que colocassem uma caixa de correio, ou a placa de metal com o número, em sua porta. Não queria nem ouvir falar nisso. Cada dia, cada mês, cada ano, víamos o negro, mais velho e com seu cabelo mais branco, sair e entrar com a cesta de compras. Cada mês de dezembro, nós mandávamos a ela um aviso de cobrança de impostos, que voltava do correio sem ter sido aberto. De vez em quando a víamos numa das janelas do andar de baixo era óbvio que fechara o andar de cima - como o busto esculpido de um ídolo em seu altar, olhando, ou não olhando (nunca pudemos determinar), para nós. Dessa forma, ela passou de geração em geração - querida, inevitável, tranqüila, impermeável e perversa. E assim morreu. Adoeceu naquela casa cheia de pó e de sombras, com apenas o negro velho e trêmulo
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para cuidar dela. Nem mesmo soubemos que estava doente, há muito tempo desistíramos de conseguir qualquer informação do negro. Ele não falava com ninguém, é provável que não falasse nem mesmo com ela, pois sua voz se tornara áspera e enferrujada, como se por falta de uso. Morreu num dos quartos de baixo, numa pesada cama de nogueira com dossel cortinado; a cabeça encostada num travesseiro amarelo e mofado pelo tempo e pela falta de sol. O negro recebeu as primeiras senhoras na porta da frente. Ele as deixou entrar, com suas vozes murmuradas e sibilantes, seus olhares rápidos e curiosos, e depois desapareceu. Atravessou a casa, saiu pela porta dos fundos, e nunca mais foi visto. As duas primas vieram imediatamente. Fizeram o funeral no segundo dia, com toda a cidade comparecendo para ver a Srta. Emily coberta por uma massa de flores, com o rosto de seu pai no retrato em crayon olhando desconsolado para o caixão e para as senhoras sibilantes e macabras; e com os já muito velhos - alguns em seus uniformes confederados - no alpendre e no jardim, falando da Srta. Emily como se fosse contemporânea deles, acreditando que haviam dançado com ela ou talvez a cortejado, confundindo o tempo e sua progressão geométrica como fazem os velhos, para quem o passado não é uma estrada que se estreita, mas sim uma vasta campina nunca realmente tocada por nenhum inverno, separada do agora pelo estreito gargalo das últimas décadas.
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Já sabíamos então que havia um quarto no andar de cima, trancado há mais de quarenta anos, que teria de ser arrombado. Esperaram que a Srta. Emily fosse colocada decentemente em sua sepultura antes de abrilo. A violência do arrombamento levantou no quarto uma poeira que prevalecera a tudo. Uma névoa fina e ácida que parecia vir de uma tumba se espalhava sobre tudo nesse quarto, arrumado para uma noite de núpcias: sobre as cortinas de um rosa desbotado, sobre o abajur rosa das lâmpadas, sobre a penteadeira, sobre o delicado arranjo dos cristais e sobre o jogo de toalete masculino feito de prata, uma prata tão tomada de azinhavre, que já mal se viam os monogramas. Entre esses objetos, um colar e uma gravata como se houvessem acabado de ser retirados, que levantados deixavam uma marca no pó, como uma lua crescente. Sobre uma cadeira estava o terno, dobrado cuidadosamente, debaixo dele os sapatos e as meias. O homem estava na cama. Ficamos um bom tempo olhando aquele sorriso descarnado e profundo. O corpo parecia ter em algum momento permanecido numa posição de abraço, mas agora, o longo sono, que sobrevive ao amor, que vence até mesmo ao sorriso do amor, o enganara e lhe colocara chifres. O que sobrara dele apodrecera dentro do que sobrara de um camisolão de dormir, e se tornara inseparável, se confundindo com a cama onde estava; e sobre ele e sobre o travesseiro a seu lado se espalhava a coberta paciente e tolerante do pó.
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Então notamos que no segundo travesseiro havia a marca de uma cabeça. Um de nós achou alguma coisa ali e, inclinando-nos para frente, com aquela poeira ácida e seca em nossos narizes, vimos o cabelo - um longo fio cinza metálico. Tradução de Octávio Marcondes