Michel Giacometti e o Museu da Música Regional Portuguesa Domingos Morais (1994) Foi no Coro da Academia de Amadores de Música que pela primeira vez ouvi falar de Michel Giacometti. Estavamos em 1968 e o Maestro Lopes-Graça ensaiava algumas canções regionais portuguesas para Coro “a capella”. Recordo alguns títulos, “Na aldeia da amareleja”, “A Senhora d’Aires”, “Quando o teu pai me trocou”. Recém-chegado ao Coro e com o entusiasmo de quem descobre um mundo que desconhecia, fui perguntando como tinha sido feita a recolha das músicas originais aos colegas de “naipe” com quem tinha mais confiança. A história, em vários “episódios”, foi-me sendo relatada e revelada nos seus pormenores por vários intervenientes de que seria longa a lista. Lopes-Graça, Francisco D’Orey, mais tarde também o Michel, foram decisivos na minha decisão de dedicar grande parte do meu trabalho à música regional portuguesa. Este testemunho, não acrescentando nada ao que de mais significativo se dirá sobre a obra de M.Giacometti, vale apenas por poder ser generalizado para muitos jovens que na década de 70 puderam tomar consciência da cultura musical portuguesa nas poucas edições então disponíveis e na excelente série de televisão “Povo que Canta”. A “Canção Popular Portuguesa”, de Lopes Graça, “Instrumentos Musicais Populares Portugueses” de Ernesto Veiga de Oliveira e as edições dos Arquivos Sonoros Portugueses, de Michel Giacometti, vieram possibilitar o que em nenhuma escola ou instuituição portuguesa era possível. Na Juventude Musical Portuguesa, estimulados pelo Francisco D’Orey que tinha acompanhado o Michel na série “Povo que Canta”, fomos a algumas regiões com o objectivo de ouvir e ver os cantadores e tocadores que nos tinham sido revelados na TV e nos discos. Alguns desses jovens de então, vieram a realizar trabalhos de recolha e estudo ou a desenvolver a experiência adquirida como autores, divulgadores e mesmo investigadores (Luís Pedro Faro, José Alberto Sardinha, José Manuel David, Vitor Reino, Carlos Guerreiro, José Pedro Caiado, Rui Vaz). Um pouco por todo o país, especialmente nos centros urbanos e nas universidades, apareceram grupos de estudo e divulgação da música popular portuguesa para quem Michel Giacometti era uma referência obrigatória. Recordo-me das conversas com alguns dos jovens desses grupos que procuravam o Michel na sua casa em Cascais e que relatavam as histórias e opiniões de quem, tendo um agudo sentido crítico das chamadas “contrafacções folclorizantes”, não recusava pôr à disposição os seus arquivos, mesmo os inéditos, quando sentia que estava perante gente interessada, mesmo que muito ignorante sobre o que estava a fazer. A biografia de Michel Giacometti e o seu contributo para a consciência e conhecimento da realidade musical rural portuguesa terá de incluir depoiamentos dos muitos interlocutores que ao longo da sua permanência em Portugal com ele conversaram, sem horas marcadas e com o prazer que só pessoas de excepção como ele conseguiam imprimir ao mais trivial dos encontros. Quem percorre o país encontra também o testemunho das centenas de informadores das suas recolhas que recordam o “senhor francês das cantigas” que tinha conseguido que eles se lembrassem de um património musical que por vezes já não fazia parte do seu quotidiano e de que quase tinham vergonha. As peripécias do seu calcorrear são um dos capítulos mais interessantes dessa história não escrita que gostava de ver reunida e publicada. Recordo a hilariante descrição do seu encontro com o Padre Firmino
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Martins, no início da sua recolha por terras de Vinhais, Trás os Montes, tentando desesperadamente mostrar aos seus paroquianos as maravilhas de um recém-chegado televisor que mais não fazia que mostrar riscos e ruídos (o Michel descobriu que a antena não estava ligada), as noites de invernia por terras da Beira Baixa em que a Catarina Chitas depois de longas sessões de gravação e vendo-o exausto lhe preparava uma sopinha caseira, a dificuldade de gravar a “Melopeia da Carpideira” na Gavieira (Soajo), incluida no disco sobre o Minho, por a informadora não se sentir suficientemente triste para restituir a expressão própria, obrigando o Michel a uma longa conversa sobre as desgraças deste mundo, finda a qual foi possível realizar a gravação, que constitui um dos mais impressionantes documentos dos ritos funerários populares portugueses. Haveria também que falar das muitas dificuldades que teve de enfrentar, sem o apoio que outros investigadores tiveram. As noites em que, depois de regressar do campo, tinha de fazer montagem das horas de fita gravadas tomando a difícil decisão de aproveitar para o dia seguinte alguns metros de bobine desgravando trechos de que mais tarde viria a necessitar. As noites mal dormidas e o frio e fome por terras onde não havia uma pensão barata, o carro velho e com avarias frequentes (o José Fortes, hoje um dos nossos melhores engenheiros de som é uma das pessoas que o acompanhou nessas viagens) etc, etc,. Apesar de tudo isto, Michel Giacometti foi capaz de realizar uma obra esmagadora e única no seu alcance, dimensão e implicações. Sem ele, os trabalhos desenvolvidos por outros investigadores pouco ou nada significariam, não sendo possível traçar com segurança o que de mais importante caracteriza a nossa cultura musical regional. Com o correr dos anos e com as novas perspectivas culturais abertas pela Revolução de Abril, Michel Giacometti vê a possibilidade de responsabilizar o Estado português pelo acervo documental que tinha conseguido reunir. Participa activamente com o Serviço Cívico Estudantil no projecto, talvez dos mais conseguidos, de implicação de jovens no levantamento cultural do país e de que resultaram muitas horas de gravação e uma colecção de alfaias e instrumentos de trabalho que esperamos venham a contituir um “Museu do Trabalho”, caso a Câmara de Setúbal concretize o programa de trabalho traçado. Propõe a aquisição das suas gravações ao Ministério da Cultura (concretizado em 1984), com enorme inteligência e visão do futuro, responsabilizando o Estado português por tratar convenientemente o acervo, nomeadamente pela realização de cópias de segurança e na sua divulgação, o que se veio a concretizar em 1984 não sem que fosse preciso alertar publicamente para o perigo que todos corriamos de ver desaparecer, no sentido físico do termo, os suportes em fita onde se registavam fonogramas únicos e insubstituiveis. Estas gravações encontram-se actualmente em Lisboa, no Museu de Etnologia. Consegue que a Câmara de Cascais adquira a sua excelente colecção de instrumentos musicais em 1981, com a garantia de que eles seriam o núcleo de um futuro museu, recusando as ofertas que tinha de museus estrangeiros, muito mais compensadoras e dando garantias que não é possível obter em Portugal sobre o destino dos espécimes. Como era de prevêr, infelizmente, os instrumentos quase apodreceram nos caixotes em que foram colocados no Matadouro Municipal e só a capacidade de mover impossíveis de Michel Giacometti conseguiu uma vez mais o movimento de opinião pública que envergonhou a autarquia e a levou a honrar os seus compromissos, em 1987, com a
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constituição da Comissão Instaladora de um Museu que viemos a designar por “Museu da Música Regional Portuguesa”, designação que se deve a Michel Giacometti que nos ajudou a precisar o âmbito e objectivos a alcançar com essa futura instituição. Em 1989, com a lucidez que o caracterizava, propõe à Câmara Municipal de Cascais a aquisição da sua biblioteca especializada, e sem a qual não seria possível tornar o futuro Museu numa instituição capaz de oferecer aos seus utentes uma visão completa da música portuguesa. Continua entretanto, incansávelmente, a percorrer o país completando o levantamento de áreas menos estudadas ou actualizando a informação recolhida em anos anteriores. A reedição da Antologia da Música Regional, revista e aumentada, incluindo já a Estremadura e a Antologia da Música Alentejana eram alguns dos projectos em que trabalhava quando faleceu. Ficaram por realizar a edição do romanceiro e o seu trabalho sobre a bibliografia da música regional, que espero sinceramente ser possível recuperar e editar caso o seu espólio (inéditos, fichas de trabalho, apontamentos, etc,) venha a ter o tratamento que este país tem obrigação de assegurar. Do seu legado, o que penso ser de destacar é a consciencia que conseguiu criar nos cuidados a ter com a parte do nosso património que estudou e a forma como foi criando as condições que asseguram que o seu trabalho não foi inútil e será continuado. A responsabilidade dos poderes públicos é agora maior. O Estado responde directamente pelo que vier a suceder às gravações e filmes realizados por Michel Giacometti, num país em que o desleixo será, esperamos, penalizado. As autarquias que com Michel Giacometti se comprometeram a concretizar os seus projectos, não poderão invocar motivos de segunda ordem para os não realizar. Destes, merece especial destaque o Museu da Música Regional Portuguesa em Cascais. Nele se consubstanciam os objectivos que poderão dar o devido tratamento e divulgação à sua obra desde que não se adiem por mais tempo os planos traçados ao pormenor. É uma obrigação em devido tempo assumida pela autarquia e de que terá que dar contas, esperamos que bem, perante a comunidade científica e cultural. Oeiras, 17 de Janeiro de 1994 Domingos A. R. Morais
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