Volume 02 - 4

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4 ABORTO

_____________________________ Se é verdade que Hipócrates jurou que a nenhuma mulher daria substância abortiva, Aristóteles sugeria o aborto para manter o equilíbrio populacional. Já os romanos consideravam o feto uma parte do corpo da mulher, que dele podia dispor, como lhe aprouvesse. Com o tempo, entretanto, o aborto passou a ser incriminado, também em Roma, principalmente depois da influência do cristianismo. Ainda hoje a incriminação do aborto é discutida entre todos os povos, com algumas sociedades nacionais considerando-o lícito, outras o tipificando, mas justificando sua prática excepcionalmente. O Código Penal brasileiro considera o aborto crime, porém admite sua prática lícita em duas situações, mais adiante analisadas.

4.1

CONCEITO E OBJETIVIDADE JURÍDICA Aborto é a interrupção da gravidez com a morte do ser humano em formação. A

gravidez, que começa com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, é o processo de formação do ser humano, que termina com o início do parto. A gravidez pode ser interrompida antes de chegar a termo naturalmente ou por provocação cirúrgica sem que ocorra a morte do ser humano em formação – parto cesariano. Quando a gravidez é interrompida, disso resultando a morte do feto, há aborto ou abortamento. O aborto pode ser natural, acidental ou provocado por ação humana. O aborto natural ou espontâneo é aquele ditado pelo próprio organismo da gestante, pelas mais diversas causas. É a própria natureza atuando no sentido de não permitir a conclusão do processo gravídico, o que às vezes acontece sem que a gestante o perceba, mormente nas primeiras semanas.

2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles Aborto acidental ocorre em razão de uma causa externa, um traumatismo decorrente de uma queda, a ingestão de uma substância inadequada, mas cujo poder destrutivo era desconhecido, enfim, por qualquer ação externa não dominada pela vontade de provocar o aborto. Aborto provocado é aquele causado por condutas humanas dirigidas à interrupção da gravidez, com o fim de impedir o desenvolvimento e nascimento do ser humano em formação. Pode ser crime ou não. As normas penais que incriminam o aborto, contidas nos arts. 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, têm como finalidade proteger a vida humana intra-uterina, uma vez que a vida extra-uterina é protegida pelas normas dos arts. 121, 122 e 123. Quando do estudo do homicídio, falou-se acerca de quando começa a vida independente – a partir do início do parto, que é, obviamente, o termo final da vida endouterina. Assim, é necessária, nesta oportunidade, a determinação do momento em que se inicia a vida intra-uterina. Ou seja, quando começa a vida humana protegida pelo Direito. A lei não define quando começa a vida dependente. Cabe à doutrina fazê-lo. São quatro as principais teorias que procuram explicar o começo da vida. Uma teoria afirma que a vida começa no momento da fecundação, quando do óvulo e do espermatozóide se forma o zigoto, que tem potencialidade própria e autonomia genética. Para outros é do momento da nidificação ou nidação do ovo ou zigoto na mucosa uterina, que se completa no décimo-quarto dia após a fecundação, quando se pode identificar a presença do ser vivo. Uma terceira teoria afirma que só a partir do momento em que se pode detectar atividade cerebral, com o surgimento de tecidos nervosos e com eletroencefalograma positivo, é que há vida protegida constitucionalmente. Isso vai acontecer por volta de duas ou três semanas após a nidificação. Por fim, defendem outros que só se pode considerar o ser merecedor da tutela penal quando ele demonstrar capacidade de viver fora do útero. Qual teoria é a correta? ALBERTO SILVA FRANCO, citando JUAN RAMON LACADENA, dá a resposta para tão intrincado problema: “Apesar do amplo espectro de respostas, tudo parece indicar que a posição mais

Aborto - 3 aderente à realidade biológica é aquela em que se estabelece o conceito de vida humana no momento exato em que o ser humano se individualiza. E quando isto ocorre? ‘A individualização de um novo ser requer que se dêem duas propriedades: a unicidade – qualidade de ser único – e a unidade – realidade positiva que se distingue de toda outra; quer dizer ser um só’. A unicidade pode ser rompida pelos gêmeos monozigóticos, que se formam pela divisão de um embrião e a unidade pode ser contrariada biologicamente pela existência comprovada de quimeras humanas, isto é, de ‘pessoas que realmente estão constituídas pela fusão de dois zigotos ou embriões distintos’. ‘Ambas as situações, o gemelismo monozigótico e as quimeras contradizem a necessária unidade e unicidade – e portanto a herança genética – que são exigências para poder-se afirmar, sem fissuras, a individualidade do ser humano. Mas, por assim dizer, por quanto tempo persiste esta incerteza genética? A resposta parece encontrar-se no fato de que um embrião não pode deixar de ser o que é a partir do décimo quarto dia da fecundação, quando aparece o primeiro tecido nervoso com a crista neural e coincidindo com o final da implantação. Daí resulta ser fundado admitir-se que durante os primeiros catorze dias de desenvolvimento – fase pré-nidificatória ou pré-implantatória – o embrião não está individualizado, pois segundo expressão de um biólogo, ‘não sabemos se será um de dois ou dois de um’. ‘Pode acrescentar-se a isto que os embriões precoces não adquiriram o que mais define biologicamente a personalidade do ser humano: as propriedades imunológicas, que adquirirão em fase posterior.’ Destarte, é no momento da nidificação, que o zigoto ‘estabelece uma relação de comunicação com outro ser da mesma espécie: sua mãe. Com efeito, é a partir do início da nidificação, que o organismo da mulher é informado da presença do embrião e, em conseqüência, reage. É a presença do embrião implantando-se no endométrio que, por assim dizer, desencadeia a desprogramação do ciclo menstrual e a programação do ciclo gestacional’.”1 Concordando com essa tese, que dispensa maiores comentários, tal é a sua coerência e harmonia, tamanha sua consistência lógica, entendo que somente a partir da nidificação é que já existe o ser humano protegido, ainda no interior do útero materno. Antes da nidificação, portanto, não há vida humana intra-uterina, porque ainda não

1

Aborto por indicação eugênica. Estudos jurídicos em homenagem a Manuel Pedro Pimentel. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 86-87.

4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles há um ser individualizado. Isso não significa, entretanto, que o material genético humano ou suas células germinais sejam considerados uma coisa e fora do alcance da lei penal. O que se disse é que o pré-embrião não é alcançado pelas figuras típicas de aborto. É de observar que a Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, que estabelece normas para o uso de técnicas de engenharia genética, define como crime a manipulação genética de células germinais humanas, bem assim a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos genéticos. A interrupção de gravidez desenvolvida fora do útero, ovárica ou tubárica, quando o óvulo se instala na parede das trompas, onde passa a desenvolver-se, e a da gravidez molar, com a formação degenerativa do óvulo fecundado, não constitui aborto. A falta de espaço impede que o feto cresça normalmente e a gravidez é interrompida. Quando o óvulo se aloja em outros órgãos, como as trompas de Falópio, ovários e até no abdome, a gravidez é caracterizada como ectópica. A gravidez ectópica é mais rara, representa um para cada 300 casos normais. Nesses casos, não se trata de ser humano protegido pela norma penal, sendo um indiferente penal sua destruição que decorre da interrupção desse tipo de gravidez anormal. Em conclusão, somente haverá aborto a partir da implantação do zigoto no endométrio – que se conclui no décimo-quarto dia após a fecundação – e até o início do parto. Dessa forma, condutas que visam impedir a nidificação, como a introdução e a utilização dos conhecidos dispositivos intra-uterinos, DIUs, não podem ser consideradas condutas típicas de aborto. Com muito mais razão, comportamentos que impedem a fecundação, como o uso de pílulas anticoncepcionais ou preservativos e outros mecanismos, também não são típicos.

4.2

SUJEITOS DO CRIME O Código Penal criou quatro figuras típicas, analisadas no item seguinte. São elas o

auto-aborto e o consentimento para o aborto (art. 124), o aborto sem o consentimento da gestante (art. 125) e o aborto com o consentimento da gestante (art. 126). Nas duas primeiras modalidades típicas, o sujeito ativo é a gestante. Somente ela pode

Aborto - 5 realizar esses tipos. Nas outras figuras típicas, qualquer pessoa pode praticar o crime. No aborto consentido, há dois sujeitos ativos, o terceiro que provoca o aborto e a gestante, que dá seu consentimento. Sujeito passivo, para uma parte da doutrina, é o ser vivo, seja o óvulo implantado, o embrião ou o feto, em todos os tipos de aborto, e, no aborto dissentido, também a gestante. MIRABETTE, em harmonia com a opinião de HELENO FRAGOSO, pensa diferente: “Não é o feto, porém, titular de bem jurídico ofendido, apesar de ter seus direitos de natureza civil resguardados. Sujeito passivo é o Estado ou a comunidade nacional. Vítima também é a mulher quando o aborto é praticado sem o seu consentimento.” 2 Parece-me, também, mais adequada essa opinião. O ser em formação é protegido não só pela lei civil, mas também pela lei penal, todavia, não tendo personalidade jurídica, porque ainda não nasceu, não pode ser titular do direito à vida.

4.3

TIPICIDADE

4.3.1 Conduta A interrupção da gravidez com a morte do ser humano em formação, por força de conduta humana, pode-se dar através de vários meios, instrumentos ou mecanismos. Havendo gravidez, pode ser interrompida através de métodos químicos ou mecânicos. Pelo método químico, a substância pode ser aplicada no próprio colo do útero ou dentro da cavidade amniótica, ingerida ou injetada. Ministrada por via oral ou parenteral, a substância pode causar um estado de intoxicação exógena grave, podendo o aborto ser um de seus efeitos colaterais. Os métodos mecânicos são mais eficazes. A introdução de corpos estranhos no canal cervical, tais como sondas, cateteres, laminarias e agulhas de tricô, pode desencadear o trabalho de parto, perfurar o saco amniótico, conduzindo à expulsão do ser humano em formação. Também se utilizam manobras de aspiração e de curetagem com o fim de remover todo o conteúdo do útero. Quando a gravidez está mais avançada, técnicas mais sofisticadas podem ser utilizadas, como a histerotomia, conhecida como microcesária.

2

Manual... Op. cit. v. 2, p. 94.

6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles A ação pode ser direta sobre o próprio ser em formação ou indireta, atuando sobre o corpo da gestante, com o fim de causar-lhe traumatismos ou lesões dos quais venha decorrer a interrupção do processo gravídico. Também é possível a provocação do aborto por ação psicológica empregada contra a gestante, infundindo-lhe terror e medo de modo a desencadear um estado psíquico que interfira no processo gravídico, interrompendo-o. Qualquer que seja o meio empregado, deve ter eficácia, o que se verá adiante, com mais profundidade.

4.3.2 Formas típicas simples 4.3.2.1

Auto-aborto

No art. 124 está definido o auto-aborto – provocar aborto em si mesma – sancionado com detenção de um a três anos. Crime de mão própria, só a gestante pode cometê-lo. Poderá cometê-lo pela ingestão de substância abortiva ou mesmo por meio mecânico. O terceiro que induzir ou instigar a gestante a provocar o auto-aborto ou ainda quando colaborar de modo secundário sem interferir na execução do procedimento típico, sem ter, portanto, poder de decisão, domínio do fato, será partícipe desse crime. Se, entretanto, contribuir materialmente para sua realização, praticando atos ou tendo poder de decidir sobre a consumação, responderá como autor do crime descrito no art. 126, adiante comentado.

4.3.2.2

Consentimento para o aborto

No mesmo art. 124, na segunda parte, está descrito o crime de mera conduta: consentir que outrem lhe provoque aborto, com a mesma pena de detenção de um a três anos. Nesse crime, a gestante simplesmente concorda, anui, autoriza, presta seu consentimento para que outra pessoa realize, em si, algum método interruptivo da gravidez, com o fim da morte do ser humano em formação. Essa conduta não é puramente

Aborto - 7 omissiva, porque nela a gestante contribui, colabora, facilita as práticas abortivas. Ela não é partícipe do crime do art. 126, que é o tipo que incide sobre o agente que realiza o procedimento típico de provocar o aborto. É autora do crime de consentir na realização do aborto em si mesma. Claro que a gestante deve ter capacidade de consentir, isto é, se ela é menor de 14 anos ou alienada mental seu consentimento é inválido. Também não terá qualquer valor se o consenso foi obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência, como determina o parágrafo único do art. 126. Nesse caso, o sujeito que tiver provocado o aborto responderá pelo crime do art. 125 – aborto sem o consentimento da gestante.

4.3.2.3

Aborto dissentido

A forma típica simples mais grave é a do art. 125: provocar aborto, sem o consentimento da gestante, com pena de reclusão de três a dez anos. Nela o agente realiza a intervenção no corpo da gestante, contra ou sem sua vontade, provocando a interrupção da gravidez e matando o ser humano em formação. Poderá agir com violência física ou grave ameaça, contrariando assim a vontade da gestante, que é a de não se submeter ao aborto. Pode também o agente agir mediante simulação ou fraude. Quando a gestante não tem conhecimento da gravidez ou de que está sendo submetida a um processo de sua interrupção, não terá havido consentimento, logo o aborto é sem seu consentimento. O agente pode induzir a mulher a submeter-se a uma curetagem, sem que ela saiba da gravidez ou desconhecendo que tal intervenção constitui prática abortiva. Num e noutro caso, não tendo ela consciência de que está submetendo-se a um aborto, o fato é de aborto dissentido. Presume-se o dissenso se a vítima não é maior de 14 anos, é alienada ou débil mental. De qualquer modo, quando ela for incapaz de consentir e ainda que não tenha havido violência real, moral ou física, haverá o dissenso. Nesse tipo, a ausência do consentimento válido da gestante é elemento essencial.

4.3.2.4

Aborto consentido

Ocorre o crime do art. 126 quando o agente obtém o consentimento válido da gestante e provoca a interrupção da gravidez, matando o ser humano em formação. Os dois

8 – Direito Penal II – Ney Moura Teles cometem crime, ela o do art. 124 e ele será punido mais severamente com a pena cominada no art. 126.

4.3.3 Elemento subjetivo Indispensável a presença do dolo na conduta do agente de qualquer dos tipos de aborto. Não há modalidade culposa. Assim, deve o agente estar consciente da existência da gravidez, fazer a previsão de que com a conduta poderá interrompê-la, matando o ser humano em formação, e agir com vontade livre de alcançar esse resultado. Se não souber da gravidez, não poderá prever o resultado, nem tampouco desejá-lo. Assim, o agente que desfere golpes contra o abdome de uma mulher cuja gravidez lhe é desconhecida, causando lesões que provocam aborto, terá agido com outro dolo, o de ferir, não o de aborto. Responderá por lesão corporal gravíssima, descrita no art. 129, § 2º, c, do Código Penal, desde que previsível a gravidez e, de conseqüência, o aborto, ainda quando não previstos. Se a gravidez é, todavia, visível pelo volume acentuado do abdome e o agente desfere o violento golpe no ventre da mulher, causando o aborto, é induvidoso que agiu com dolo, se não direto, pelo menos eventual, de provocar o abortamento. Perfeitamente admissível, portanto, a presença de dolo eventual, quando o agente, sabendo da gravidez e prevendo sua interrupção, ainda assim age, realizando a conduta, sem querer o resultado, mas nele consentindo, se acontecer. Abortos provocados por negligência, imprudência ou imperícia são fatos atípicos, porque o legislador não construiu, para qualquer de suas modalidades, o correspondente tipo culposo. Se a gestante, por imprudência, ingere substância abortiva ou realiza atividade física incompatível com o estado gravídico, disso resultando a morte do ser humano em formação, o fato será absolutamente atípico. Se o sujeito, culposamente, produz lesões corporais na gestante, dando causa ao aborto, seu crime será puramente o de lesão corporal culposa.

4.3.4 Resultado e nexo causal

Aborto - 9 Entre a conduta do agente e a interrupção da gravidez com a morte do feto deve haver nexo de causalidade, sem o qual não se pode falar em qualquer das figuras típicas de aborto. Se o agente, a própria gestante ou o terceiro, realizar práticas abortivas, mas a interrupção da gravidez e a morte do feto tiverem decorrido de outra causa, preexistente, concomitante ou superveniente, absolutamente independente da conduta, o resultado não poderá lhe ser imputado. Até porque é sempre bom lembrar que há abortos espontâneos, naturais. Daí que é indispensável a prova pericial de que a interrupção da gravidez e a morte do feto tenham, efetivamente, sido causadas pela conduta do agente. Causas supervenientes relativamente independentes que, por si sós, tiverem dado causa ao aborto também excluirão a imputação do resultado, conforme determina o § 1º do art. 13 do Código Penal. Realizada a conduta que desencadeia o procedimento típico do aborto, e até mesmo quando concluída sua execução completa, sem que a gravidez, entretanto, tenha se interrompido, e sendo a gestante levada ao hospital, onde vem a morrer, e com ela o ser humano em formação, em decorrência das queimaduras provocadas em seu corpo em virtude de um incêndio que irrompe na enfermaria onde se encontrava, não responderá o agente senão pela tentativa de aborto. Também será causa de exclusão da imputação do resultado à conduta do agente a intervenção médico-cirúrgica a que é submetida a gestante, após a completa execução do procedimento típico de aborto, com vistas a salvar a vida do feto, mas implementada com imperícia pelo médico que, longe de impedir o resultado, acaba por causá-lo de modo diferente do que ocorreria normalmente. O agente responderá por tentativa de aborto. Se a gestante, com dolo de auto-aborto, ingerir substância capaz de provocá-lo, mas antes da produção de seu efeito, vem a sofrer violento golpe na região abdominal, deste resultando o abortamento, responderá apenas por tentativa de aborto, atribuído este exclusivamente ao agente da violência.

4.3.5 Formas qualificadas pelo resultado O art. 127 do Código Penal apresenta quatro figuras típicas de aborto provocado

10 – Direito Penal II – Ney Moura Teles por terceiro qualificado pelo resultado, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, resultar: a) lesão corporal de natureza grave na gestante, no aborto consentido, a pena será reclusão de um ano e quatro meses a quatro anos e quatro meses; b) morte da gestante, no aborto consentido, a pena será reclusão de dois a oito anos; c) lesão corporal grave na gestante, no aborto dissentido, a pena será reclusão de quatro a treze anos e quatro meses; d) morte da gestante, no aborto dissentido, a pena será de seis a vinte anos. Não há forma qualificada pelo resultado derivada do auto-aborto ou do consentimento para o aborto, crimes próprios da gestante. A uma porque seria impensável puni-la pelo resultado da própria morte. Quanto à possibilidade de, do auto-aborto ou de seu consentimento para o aborto, resultar lesão corporal grave, também não terá sua pena aumentada, porque nosso Direito não pune a autolesão, a não ser quando motivada por um fim de obtenção de vantagem patrimonial (art. 171, § 2º, V, do CP). Essas formas típicas qualificadas pelo resultado são, todas, modalidades de crimes preterdolosos, nos quais o agente age com dolo de provocar o aborto, tão-somente o aborto, mas, por negligência, imprudência ou imperícia, acaba produzindo resultado mais grave. Se resultar lesão corporal grave, a pena será aumentada de um terço. Se acontecer a morte, a pena será duplicada. A conduta é dolosa – englobando apenas o aborto como resultado –, mas o resultado que também acontece – lesão corporal ou morte da gestante – é culposo, indo além do dolo do agente. É de todo claro que o resultado mais grave não pode estar alcançado pelo dolo do agente, nem mesmo eventualmente, pois se tal se der, isto é, se o agente, além do aborto, previu a lesão grave ou a morte e a desejou, ou a aceitou, então haverá concurso formal de dois crimes: aborto e lesão corporal de natureza grave, ou aborto e homicídio doloso. Indispensável, por isso, que tenha havido exclusivamente conduta culposa na produção do resultado. Se o agente provoca o aborto na gestante, adotando todas as medidas exigidas pelo dever geral de cautela para apenas interromper a gravidez e matar o ser humano em

Aborto - 11 formação, procurando, por todos os meios, empregar métodos com vistas a evitar infecções e outros efeitos colaterais e ainda assim, apesar da observância de todos os deveres de cuidado objetivo, sobrevier morte ou lesão corporal grave, não responderá pelo resultado mais gravoso. É que não se pode nunca olvidar a norma geral do art. 19 do Código Penal, segundo a qual pelo resultado que agrava especialmente a pena só responderá o agente que o houver causado ao menos culposamente. Imprescindível também o nexo causal, entre o aborto ou os meios empregados para provocá-lo e o resultado mais grave. Se este tiver decorrido de outra causa, ainda que superveniente e relativamente independente da conduta do agente, não poderá ser atribuído ao agente do aborto que, então, responderá pela forma típica simples. O resultado mais grave deve decorrer necessariamente do próprio aborto, ou dos meios empregados para sua provocação. O próprio aborto, em si, qualquer que seja sua forma de execução, é um processo violento que acaba por provocar lesões em órgãos do corpo da mulher. Muitas vezes, tais lesões são graves e só nessas hipóteses incidirá o aumento de pena. Lesões normais, próprias da intervenção abortiva, integram os tipos simples. Meios mais traumáticos ou inadequadamente utilizados igualmente podem produzir lesões extraordinárias, e até desencadear um processo que conduz à morte da gestante.

4.3.6 Consumação e tentativa Crime material, consuma-se o aborto com a morte do ser humano em formação. Possível, pois, a tentativa, seja pela interrupção do processo executório, seja pela nãoocorrência do resultado. Deve haver, necessariamente, início de execução. A mulher que se encontra na clínica onde pretende submeter-se ao aborto que nem chega a ser iniciado, pela intervenção da polícia, não comete crime algum ainda que esteja ali com consciência e vontade de buscar a contribuição de outro para nela provocar o aborto. Sem início de execução, não há tentativa. Realizado o processo de execução, interrompida a gravidez, nascendo vivo, entretanto, seu produto, haverá tentativa de aborto. Se o agente, então, mata o recémnascido, haverá homicídio ou infanticídio, se a própria mãe sob influência do estado puerperal, durante ou logo após o parto, em concurso material com a tentativa de aborto.

12 – Direito Penal II – Ney Moura Teles Ainda que a gravidez não se interrompa, ou, quando interrompida, mesmo assim o ser nasce com vida, mas dos meios empregados para a provocação do aborto resultar lesão corporal grave ou a morte da gestante, haverá tentativa de aborto qualificado pelo resultado. Admissíveis a desistência voluntária e o arrependimento eficaz quando, iniciada a execução, o agente desiste de nela prosseguir, não se consumando o abortamento, ou, concluído o processo executório, ele consegue impedir o resultado. Responderá apenas pelas lesões corporais causadas na gestante. Se o ser humano em formação também vier a ser lesionado, permanecendo vivo, haverá concurso formal de dois crimes de lesões corporais, um contra a gestante e outro contra o feto? Se se considerar que o feto é o outrem de que trata o art. 129, do Código Penal, a resposta deve ser positiva. Esse tema será abordado com profundidade quando da abordagem do crime de lesões corporais. Se a tentativa de aborto realizar-se com a utilização de meios absolutamente ineficazes – por exemplo, ingestão de substância inócua – ou sobre gravidez inexistente, apenas imaginada, será impunível, pois evidente que se trata de crime impossível.

4.3.7 Concurso de pessoas Quando se tratar de aborto com o consentimento da gestante, o executor é autor do crime do art. 126 e a gestante autora do crime do art. 124. Terceira pessoa que contribuir materialmente para a execução será co-autor juntamente com o executor. Se apenas induzi-lo, instigá-lo ou prestar colaboração não decisiva, será partícipe. Se a terceira pessoa induzir, instigar ou colaborar, sem poder de decisão, para o consentimento da gestante, será partícipe do crime desta. Aquele que contrata os serviços do executor do aborto consentido ou conduz a mulher ao local do crime é co-autor do crime do art. 126 e não simples partícipe, porque teve o poder de decisão. Em relação ao aborto sem o consentimento, valem as mesmas observações gerais já externadas sobre o concurso de pessoas. Se o concorrente tem o poder de decisão, é coautor, se apenas contribui, sem poder decisório, é partícipe.

Aborto - 13

4.4

ILICITUDE O Código Penal, no art. 128, consagra apenas duas causas excludentes de ilicitude

que podem incidir sobre o tipo de aborto, o aborto necessário ou terapêutico e o aborto ético ou sentimental.

4.4.1 Aborto necessário Todos os bens colocados sob a proteção do Direito são valorados. A vida é o mais importante de todos. Há, porém, duas espécies de vida humana, a endo-uterina e a extrauterina. A vida dependente, do ser em formação, e a vida do que já nasceu. Não podem ter, para o Direito, igual valor, porque, em sua essência, são diferentes. Qual vale mais? Há quem entenda que a vida do ser em formação deve merecer maior proteção, exatamente porque, sendo dependente, não tem autonomia e força suficientes para enfrentar e resistir a ataques. Frágil e dependente, deveria o Estado conferir-lhe tutela mais efetiva. Estando ainda em seu início, com maior expectativa de existência, deveria merecer mais atenção, porque assim poderia ter assegurada sua continuidade e proporcionar, à sociedade, ao longo do tempo, maiores benefícios. Outros pensam de modo diverso. O ser que ainda não nasceu, exatamente por isso, ainda não adquiriu as condições indispensáveis à sobrevivência fora do útero materno e, só por isso, é, ainda, uma tão só expectativa de existência. Pode nem nascer, por força de causas puramente naturais. Não estando apto a viver no mundo externo, por não se ter completado o ciclo gestacional natural, carece ainda da condição de ser humano e, de conseqüência, pode significar apenas uma possibilidade, não uma realidade concreta. E como tal deve ser tratado. O Código Penal brasileiro, dando efetividade à proteção constitucional do direito à vida, sancionou a morte do ser humano em formação com penas menos severas que as cominadas para a morte do ser humano que já nasceu. O crime de aborto menos grave – auto-aborto – tem pena menor do que o infanticídio. Optou, assim, o legislador penal por considerar a vida extra-uterina mais importante que a vida intra-uterina. Na realidade dura da vida, às vezes, instala-se uma situação concreta de choque entre a vida da gestante e a vida do ser em formação. Por mais avançada que esteja a medicina moderna, por mais evoluídas que estejam as técnicas de proteção à saúde, ainda assim pode acontecer de, no curso da gravidez, entrar a vida da gestante em rota de colisão

14 – Direito Penal II – Ney Moura Teles com a vida do ser humano em formação, de tal modo que pode ser impossível salvar as duas. Nesse caso, justifica-se o sacrifício do bem de menor valor. Nesse novo milênio, ainda há vozes que se levantam contra o aborto necessário, mormente de dirigentes da Igreja Católica, a quem se deve responder com as palavras lúcidas de NELSON HUNGRIA, que já no século passado pontificava: “Direito penal nada tem a ver com religião, a não ser para garantir a liberdade de cultos. Que o obstetra, se católico, faça chegar ao feto, como aconselhava MARCHAND, gotas de água benta e o batize, vá; mas terá faltado ao seu mais elementar dever se, podendo poupar a vida preciosa de uma mãe de família, com o sacrifício de um ser ainda não totalmente formado, deixar que ambos pereçam.”3 A ética do Direito é a de proteger bens jurídicos de lesões. Não sendo possível proteger dois bens em perigo, um deles deve ser salvo com o sacrifício de outro, de menor valor. Nos tempos de hoje, com o progresso médico-científico, a hipótese é cada vez menor, todavia, nesse país gigante também de miséria, não só nos grotões do Nordeste, mas nas periferias dos grandes centros urbanos, não é rara a ocorrência de situações dessa natureza, cabendo ao médico, com as condições que tiver a sua disposição, avaliar o quadro da situação e decidir, ele, sobre a prática do aborto. O Direito entrega ao médico o poder de decidir se a continuidade da gravidez constitui perigo para a vida da gestante. Não pode escolher a quem salvar, pois a lei, nesse caso, só justifica a morte do ser em formação. Claro que ele só deverá provocar o aborto “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”. Também ao médico cabe a decisão sobre a inevitabilidade do aborto. A situação de perigo para a vida da gestante não precisa ser atual, mas pode ser iminente e até mesmo futura, desde que, neste último caso, possa concluir, com segurança e certeza, pela impossibilidade de sua reversão. É que o Direito não pode exigir que se aguarde o perigo futuro, cuja probabilidade seja indiscutível, tornarse iminente ou atual, para, só então, autorizar a prática do aborto. Não é necessário que o médico obtenha autorização judicial para interromper a gravidez, porque não há norma legal nesse sentido. Se numa situação de perigo atual ou iminente seria impossível e imprudente a busca da prestação jurisdicional, também na

3

Comentários... Op. cit. v. 5, p. 300.

Aborto - 15 hipótese de um perigo futuro tal providência não se faz necessária, porque nenhum juiz pode conceder o que o ordenamento jurídico não lhe faculta dar. Nesses casos, o médico é o único juiz, não exigindo a norma a obtenção do consentimento da gestante ou de qualquer outra pessoa. Se, entretanto, o médico provocar o aborto sem que existisse o pressuposto fático da causa de justificação, o perigo para a vida da gestante, ou, mesmo existindo o perigo, não fosse inevitável o sacrifício do ser em formação, não incidirá a excludente de ilicitude. Inexistindo perigo ou não sendo o aborto o único meio para salvar a vida da gestante, o fato é ilícito. Se o médico tiver agido com dolo, ainda que eventual, responderá pelo aborto sem o consentimento da gestante, ainda quando esta tenha, por engano, anuído à interrupção da gravidez, porque nesse caso seu consentimento terá sido obtido mediante fraude, engodo. A lei só justifica o aborto necessário quando praticado por médico. Não sendo médico o agente, mas estando presentes a situação de perigo para a vida da gestante e a inevitabilidade da interrupção da gravidez, qualquer pessoa poderá provocar o aborto, sendo sua conduta justificada pela norma do art. 23, I, do Código Penal: estado de necessidade, desde que presentes os demais pressupostos desta excludente de ilicitude. Nesse caso, o perigo deve ser atual. Diferentemente da excludente do art. 128, I, que não exige a atualidade do perigo, o estado de necessidade a exige, porque, não sendo o agente um médico, capaz de bem diagnosticar com precisão científica os riscos para a vida da gestante, deverá, antes da atualização do perigo, aguardar ou procurar o socorro do especialista. Somente na hipótese de não ter sido possível obter o socorro médico e depois que o perigo tornar-se atual, poderá o não-médico intervir, sacrificando a vida do ser humano em formação. Aí estará amparado pela justificante do inciso I do art. 23 do Código Penal. Situações extremas como essas são daquelas que convivem, dadas suas circunstâncias, com falsa percepção da realidade, o erro, podendo ensejar uma excludente de culpabilidade, que será analisada adiante.

4.4.2 Aborto ético No inciso II do art. 128 o Código Penal justifica a prática de aborto quando a gravidez decorrer de estupro, desde que haja prévio consentimento da gestante ou, sendo

16 – Direito Penal II – Ney Moura Teles ela incapaz de consentir, de seu representante legal. É o chamado aborto ético ou sentimental. O aborto ético tem fundamento diverso do aborto necessário. Vítima de estupro – conjunção carnal obtida mediante violência ou grave ameaça –, a mulher pode engravidar e ver-se diante de um dilema crucial: gerar em seu útero e permitir o nascimento, assumindo, para o resto de sua vida, um dever moral e legal de mãe, de um ser formado contra sua vontade, ou livrar-se de um ser inocente? A mulher é livre. O ser humano é. Livre para ter relações sexuais com quem quer que seja. Livre para não ter com determinada pessoa e para não ter senão quando o desejar. Ainda que com o próprio marido ou companheiro. A mulher não é mero objeto do desejo. É senhora de si e não poderá ser compelida à conjunção carnal. Em hipótese alguma. Tanto que é crime o constrangimento ao ato sexual (art. 213, CP). O estupro é uma violência inominável. Se dele resulta gravidez, não pode o Direito obrigá-la a gerar e, depois, ser mãe de quem não queria. A violência seria inominável e se perpetuaria, repetindo-se, no tempo. Uma vez no ato sexual. Depois quando a mulher se descobre grávida. Durante toda a gestação estará sendo submetida àquilo que não desejou. E depois ainda estaria obrigada a receber o filho que não queria, pelo menos da forma como ele aconteceu. E ainda ter que ser mãe, por todo o tempo de sua vida, de um filho que lhe foi imposto. Não, o Direito jamais poderia exigir isso de uma mulher. A vida decorre das vontades livres de um homem e de uma mulher. A liberdade é a mais perfeita manifestação da vida. É poder escolher entre fazer ou não fazer. Entre a vida que nasce de violação à liberdade e a liberdade de não gerar outra vida, esta prevalece. O direito de liberdade da mulher violentada é mais importante que o direito da sociedade de ver nascer mais um indivíduo. Quando a vida é fruto de violação da liberdade, não é vida digna da proteção social. Só a mãe que carrega em seu corpo a vida que não desejou poderá, por ato de plena liberdade, permitir sua continuidade, atribuindo-lhe o que ela não teve em sua origem. Aí a vida passará a ser da vontade de dois. Por isso é lícito provocar o aborto quando a gravidez decorre de um estupro, desde que assim seja a vontade da gestante.

Aborto - 17 Essa excludente de ilicitude vai incidir quando a gravidez for decorrência de estupro e quando houver o consentimento da gestante. Não sendo esta capaz de consentir, por não ser maior de 14 anos ou por outra causa, o consentimento deverá ser obtido de seu representante legal, o pai, mãe ou outra pessoa. A lei exige que esse aborto lícito seja praticado por médico. Não sendo médico, o aborto será ilícito, todavia, como se verá adiante, a conduta poderá ser desculpada. Será lícito o aborto ainda quando a gravidez tenha resultado de estupro com violência presumida, por ser a vítima não maior de 14 anos, alienada ou débil mental ou não ter capacidade de resistir. A norma do inciso II do art. 128 referiu-se ao delito de estupro, sem excluir a hipótese de sua tipicidade ser verificada a partir da incidência da norma do art. 224 do Código Penal. Não tendo a norma permissiva restringido sua incidência, não pode o intérprete fazê-lo. Assim, sua vontade é a de permitir o aborto em qualquer hipótese de gravidez resultante de estupro, em qualquer de suas modalidades, com violência real ou sem violência real. A gravidez pode resultar de outra ação criminosa violenta, como na hipótese de atentado violento ao pudor (art. 214, CP), em que, embora não havendo conjunção carnal, pode, em tese, ocorrer fecundação e gravidez. Nesse caso, será lícito o aborto? Doutrina tradicional e jurisprudência respondem afirmativamente. Sendo a gravidez originada de ação violenta, moral ou fisicamente, equivalente à conduta do estupro, não há razão para não se aplicar a analogia in bonnam partem. Não é comum que uma mulher engravide sem conjunção carnal, mas é possível que a gravidez decorra de atos libidinosos outros, a partir dos quais haja a fecundação. Situação rara, mas ocorrente. Se a vontade da norma é permitir o aborto quando a gravidez resulta de uma ação criminosa violenta, é indiferente que tenha havido ou não a conjunção carnal. O que importa é o ato violento do homem contra a mulher, impondo-lhe uma gravidez indesejada. Correto o pensamento doutrinário e jurisprudencial. Todavia, pergunto, e se a gravidez resulta de outra ação criminosa, não violenta, como a posse sexual mediante fraude (art. 215, CP)? Ou quando a mulher é engravidada, contra sua vontade, por violência ou tão-somente fraude, mediante a aplicação de técnicas de reprodução assistida? Poderá o juiz, também nessas hipóteses, aplicar a analogia, para considerar lícito o

18 – Direito Penal II – Ney Moura Teles aborto provocado pelo médico? Usar a analogia é aplicar, a um caso concreto para o qual não haja norma legal incidível, a lei aplicável ao caso análogo. A essência do aborto ético, permitido, é ter sido a gravidez proveniente de um estupro. Este é um crime, não necessariamente cometido com violência real, até porque pode ser, inclusive, presumida. De conseqüência, é lícito o aborto quando a gravidez decorreu de uma violação à liberdade sexual da mulher, seja porque com o uso de violência ou grave ameaça, seja porque sem o consentimento válido da mulher. A norma permissiva, portanto, admite o aborto quando a gravidez decorreu de uma relação sexual não consentida ou com consentimento inválido. Quando a gravidez resulta de posse sexual mediante fraude, a relação sexual é obtida sem consentimento plenamente livre. A mulher é levada a erro e por isso consente. Não é, portanto, de sua livre vontade a conjunção carnal. Na sedução, ainda que a conjunção carnal se realize por vontade da mulher, não se pode negar que sua vontade foi dirigida, manipulada, controlada, dominada pelo agente que, com esperteza, convenceu-a a aceitar o ato sexual. Ainda que voluntária, sua aquiescência não foi plenamente livre, porque viciada pela influência astuciosa do sedutor. Nas duas situações, não se pode reconhecer a vontade livre de ter a conjunção carnal, muito menos a de engravidar. O mesmo se diga quando a mulher é enganada e levada a engravidar por meio de uma das várias técnicas de reprodução assistida. Imaginando estar sendo submetida a tratamento ginecológico ou a uma simples colheita de material para exame laboratorial, pode a mulher receber, no útero, o sêmen de um homem ou até mesmo um óvulo fecundado. Se de um desses procedimentos decorrer gravidez é de todo óbvio que não era de sua vontade livre. Em qualquer dessas hipóteses – posse sexual mediante fraude ou utilização de técnicas de reprodução assistida não consentida–, a gravidez não decorre da vontade livre da mulher. Em todas elas, uma ação externa atua sobre sua psique, influenciando sua decisão que, por fim, acaba viciada. Em nenhuma dessas situações é possível afirmar que a gravidez era desejada, que a mulher tivesse a vontade livre de ser mãe. E quando isso ocorre, não pode o Direito exigir-lhe aceitar a maternidade. A analogia, portanto, deve ser aplicada.

Aborto - 19 Penso que sempre que a gravidez resultar de uma ação delituosa, de um crime, qualquer que seja sua natureza, ainda quando sem violência real, deve o aborto ser permitido.

4.4.3 Anteprojeto de Código Penal A realidade social reclama atitudes mais ousadas do legislador. Para que haja maior proteção aos direitos individuais da mulher, não bastam as duas excludentes examinadas, nem tampouco seu alargamento pelo uso da analogia ou da interpretação extensiva. O aborto é uma das mais importantes causas da mortalidade materna. Milhares e milhares de mulheres brasileiras morrem, anualmente, em decorrência de abortos praticados em ambientes inadequados ou com o uso de técnicas ultrapassadas e por pessoas despreparadas. Por outro lado, o avanço da tecnologia médica tem proporcionado o conhecimento prévio, de má formação fetal, algumas indicando sua própria inviabilidade ou o comprometimento da saúde da gestante. Pensa-se, assim, a criação de outras excludentes de ilicitude para o aborto provocado por médico. No anteprojeto de 1997/1999 do Código Penal, propôs-se a ampliação dos conceitos de aborto ético e do aborto necessário, e a inclusão de uma nova excludente de ilicitude, que poderia ser denominada aborto por indicação embriopática ou fetopática. É a seguinte a proposta do novo dispositivo contendo todas as excludentes, as atuais ampliadas e a nova: “Não constitui crime o aborto provocado por médico, se I – não há outro meio de salvar a vida ou preservar de grave e irreversível dano a saúde da gestante; II – a gravidez resulta da prática de crime contra a liberdade sexual; III – há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias que o tornem inviável. § 1º Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do inciso I, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante ou, se menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou companheiro.” O aborto necessário seria permitido não só para salvar a vida da gestante, mas também para preservar sua saúde de um dano grave e irreversível. Comprovada, pelo médico, a probabilidade concreta de que a continuidade da gravidez acarretará um dano

20 – Direito Penal II – Ney Moura Teles grave e irreversível para a saúde da gestante, e não sendo possível evitá-lo, o aborto seria lícito. Não será qualquer dano ou comprometimento da saúde da mulher, mas uma lesão grave e irreversível, aí incluída, penso eu, a extirpação de qualquer dos órgãos de seu aparelho reprodutor. A fórmula é genérica e depende de interpretação com o socorro ao conhecimento médico-científico. Esse aborto, para preservar a saúde da gestante, dependeria de seu consentimento ou de quem a represente. A fórmula do aborto ético seria ampliada para alcançar não só o estupro, mas também todos os crimes contra a liberdade sexual da mulher. A inovação seria a permissão do aborto quando houver fundada probabilidade, devidamente atestada, comprovada, por dois outros médicos, de que o ser em formação é portador de graves e irreversíveis anomalias, que o tornem inviável. Exigiria o consentimento da gestante ou de seu representante. Necessário esclarecer que não se trata de buscar a formação de seres perfeitos, de uma raça superior, mas tão-somente de facultar à mãe impedir o nascimento de um ser malformado, que não terá vida digna e, em certos casos, nenhuma vida, por sua indiscutível inviabilidade. Exames como a biópsia de corion, a amniocentese e a cordoncentese podem permitir o diagnóstico de que o feto é portador de grave doença ou má-formação congênita incurável. Exemplos conhecidos são a acrania e a anencefalia, em que o ser não tem crânio ou cérebro. As lesões devem ser graves e incuráveis, não se incluindo, portanto, as graves que possam ser corrigidas cirurgicamente, nem as não graves incuráveis. As resistências no meio social ainda são grandes, mas é preciso discutir essas excludentes sem preconceitos, mas com vistas na busca da proteção dos bens jurídicos. Impor a uma mulher a continuidade da gravidez da qual resultará um ser condenado à morte logo após nascer ou a uma vida indigna e de muito sofrimento, sem qualquer perspectiva de inclusão no meio social, é injusto e desumano. O Direito não pode conviver com a idéia de autoflagelação ou de purificação espiritual pelo sofrimento.

4.5 CULPABILIDADE Resta, por último, verificar as hipóteses em que o aborto ilícito pode ser desculpado.

Aborto - 21 Só haverá reprovação da conduta do agente imputável quando ele tiver realizado o aborto com potencial consciência da ilicitude e quando podia ter agido de outro modo. Volte-se ao exame do caso do médico que erra no diagnóstico da situação de perigo para a vida da gestante. Imagina, por falsa apreciação do quadro clínico, que a continuidade da gravidez levará à morte da gestante e, por isso, intervém provocando sua interrupção e matando o ser em formação. Seria um caso de aborto necessário putativo, imaginário. Segundo a norma do art. 20, § 1º, do Código Penal, tendo ele suposto, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima, ficará isento de pena. Se o erro, entretanto, tiver derivado de negligência, imprudência ou imperícia, responderia pelo delito na forma culposa; todavia, não há aborto culposo, daí que o médico, ainda que negligente, não seria apenado. Essa solução não é correta, não só porque injusta, mas porque olvida um detalhe importante. Para que seja reconhecido o aborto necessário, não é suficiente que haja a situação de perigo para a vida da gestante, é preciso que a interrupção da gravidez seja o único meio para salvá-la. Ou seja, o aborto tem que ser inevitável. E essa inevitabilidade não é pressuposto de fato do aborto necessário, mas um elemento normativo da excludente. Quando o médico erra sobre a situação de fato e provoca o aborto, acaba errando também sobre a inevitabilidade da interrupção do processo gravídico. E às vezes, mesmo diante de uma real situação de perigo, pode errar sobre a necessidade do aborto. A solução, nesses casos, deve ser buscada através da norma do art. 21 do Código Penal porque, em qualquer das situações, de erro sobre o perigo para a vida da gestante ou de erro sobre a inevitabilidade do aborto, o médico atua sem a consciência da ilicitude. É, pois, erro de proibição. Se se demonstrar que o erro era inevitável, sua culpabilidade estará excluída. Se, entretanto, o erro podia ter sido evitado, por ter decorrido de negligência, imprudência ou imperícia, haverá culpabilidade, todavia, diminuída. O não-médico ou a própria gestante pode ter sua culpabilidade excluída ou diminuída quando provocar aborto imaginando que esteja sob o amparo da excludente do art. 128, II, por ser a gravidez decorrente de estupro ou outro crime contra a liberdade sexual. Pode ter atuado sem a consciência da ilicitude por erro de proibição, inevitável ou evitável. Se o médico provocar aborto por ter sido induzido a erro sobre a existência de

22 – Direito Penal II – Ney Moura Teles estupro antecedente, sendo inevitável o erro, será desculpado; se evitável, terá a culpabilidade diminuída. A mãe de seis ou sete filhos menores, desempregada, cujo marido a abandonou ou é recém-falecido, vivendo em péssimas condições de habitabilidade, em estado de miserabilidade

absoluta,

tendo

tomado

precauções

malsucedidas

contra

o

engravidamento, que se vê assim e abandonada, com a responsabilidade de, sozinha, criar os filhos famintos, e que, no desespero, recorre ao aborto, deve ser condenada? Pode o Direito, a sociedade, reprovar sua conduta? Penso que não. Há situações como essa, não raras, infelizmente, em que não se pode exigir da mãe de numerosa família de pobres conduta conforme o Direito. O Estado que não lhe proporciona, nem a seus filhos, moradia, educação, saúde, alimentação, trabalho, lazer, enfim, que lhe priva das mínimas condições de vida digna, não pode dela exigir que produza mais um miserável.

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