Voltaire

  • November 2019
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Os anos que salvaram a reputação de Voltaire Biografia voltada ao período do fim da vida do escritor mostra como, na época em que viveu no exílio, ele passou a se preocupar não apenas com a literatura, mas com a defesa de direitos humanos POR P.N. FURBANK Em março de 1753, a temporada de três anos que Voltaire passara na corte de Frederico, o Grande, chegava a um final amargo: o monarca se revelou tão genioso que, quando Voltaire chegou a Frankfurt, no caminho de volta para casa, foi preso sob acusação de posse ilegal de alguns poemas do rei. Ainda na cidade alemã, juntou-se a Voltaire Mme Denis, sua sobrinha e amante, que também foi detida. Protestos populares contra as prisões levaram à liberação de ambos, em julho. Voltaire, habituado aos reveses e truques baixos da fortuna, e sem se mostrar intimidado, passou então cinco semanas hospedado luxuosamente por outros dois amigos importantes, o Bispo de Mainz e o Príncipe Palatino. Voltaire tinha 59 anos e estava riquíssimo, resultado de engenhosas trapaças e muita especulação, além de ter se tornado agiota para vários duques franceses e outras cabeças coroadas da Europa, o que lhe valeu não apenas benefícios financeiros mas também influência diplomática. Mas a frase "no caminho de volta para casa" pede uma pequena correção: Voltaire não tinha mais uma casa para a qual retornar depois que o Rei Luís XV fez saber a todos que ele não era bem-vindo na França. O escritor passaria, então, o resto da vida em exílio, uma situação que se revelaria admiravelmente adequada. Em 1755, Voltaire comprou uma grande mansão que batizou de Délices, às margens do Lago Genebra. Um ano depois, adquiriu uma enorme propriedade no vilarejo de Ferney, em território francês, mas perto da fronteira suíça, o que lhe permitiria abrir um teatro - algo proibido pela lei em Genebra - e, em caso de emergência, bater rapidamente em retirada para a Suíça. Ian Davidson teve a idéia de escrever não a história completa de Voltaire, mas de seus últimos 25 anos. Nesse período, afirma o autor, Voltaire "passou por um notável processo de desenvolvimento moral". Até então, o escritor se preocupara "quase que exclusivamente com sua carreira literária, seus amigos e seu conforto pessoal, nessa ordem, e não dava sinais de possuir algo que lembrasse, mesmo remotamente, uma consciência social, e muito menos um desassossego pelo bem estar dos menos favorecidos". Foi só durante esses últimos anos, em que tomou o lado das vítimas de erros grosseiros cometidos pelo antiquado sistema judiciário francês, que Voltaire passou a defender os direitos humanos. Foi também nessa época que o escritor assumiu a causa dos pobres e oprimidos. Por essa razão, na opinião de Davidson, os 25 anos finais no exílio são os que mais importam hoje, e que salvaram sua reputação.

Davidson talvez tenha razão, e seu livro é interessante, bem fundamentado e muito agradável de ler. Voltaire, para quem o propósito da vida era agir, foi ele próprio hiperativo, o que acarretou conseqüências inesperadas, como a quase impossibilidade de se escrever sobre sua vida. Entre 1985 e 1994, foi publicada uma imensa biografia em cinco volumes (Voltaire et son temps), editada e, em grande medida, escrita por René Pomeau. Trata-se de um trabalho admirável e extraordinariamente erudito, mas na maior parte do tempo, por conta de sua extensão, funciona mais como obra de referência do que biografia (ou pelo menos esse é o uso mais comum). Além disso, Voltaire foi um excepcional - e exageradamente prolífico - escritor de cartas (o conjunto de cartas ocupa nada menos do que 13 volumes da coleção Pléiade). Que tesouro mais precioso - e pródigo - poderia um biógrafo desejar? Mas como o próprio Pomeau explica, seria impossível dar conta de tudo. Isso coloca Davidson em posição vantajosa; ao lidar com um trecho limitado da vida de Voltaire e, dentro desses limites, se concentrar em poucos temas, o autor consegue fazer um uso produtivo das cartas. E a opção se revela muito acertada em pelo menos um dos capítulos, em que Voltaire funda uma fábrica de relógios em Ferney. O escritor vinha anunciando a idéia de que uma pequena aldeia francesa de pescadores (Versoix) deveria ser transformada em uma cidade maior, com um porto comercial. Alguns trabalhadores se mostraram interessados em mudar para lá, mas as autoridades de Genebra, temerosas da concorrência, impediram a ação com violência, obrigando os operários a se refugiarem em Ferney. Alguns desses homens eram relojoeiros e Voltaire teve a idéia de abrir um negócio para utilizar essa mão-de-obra, em princípio arcando ele próprio com os custos. Segundo Davidson, o escritor se tornou "não apenas gerente geral, coordenador e organizador da fábrica, mas também financiador, gerente de banco, patrocinador, construtor das casas e das instalações fabris, comprador de metais preciosos e outras matérias primas, além de gerente de vendas internacionais". Nada desprezível para um homem com quase 80 anos de idade, que sofria de várias enfermidades e não tinha experiência em negócios. Para completar, o projeto foi um sucesso. O relato de Davidson é mais informativo - e mais engraçado - que o de Pomeau. Vide o modo como Voltaire termina a carta ao Cardeal Bernis, embaixador da França no Vaticano e que falhara no pedido de ajuda para abrir o mercado de Roma para os relógios: "Que Vossa Eminência aceite, por obséquio, o respeito e a profunda irritação deste eremita de Ferney".

A incrível história do envolvimento de Voltaire com Jean Calas, fundamental para o retrato traçado por Davidson, é bem conhecida, além de complexa e com ramificações de longo alcance, mas Davidson a sintetiza de modo muito lúcido. Calas era um próspero comerciante de roupas de Toulouse. Protestante, assim como a mulher, e portanto destituído de muitos direitos civis, tinha a infelicidade de morar em uma cidade fanaticamente católica. Em 13 de outubro de 1761, o casal, seus filhos mais velhos, Marc-Antoine e Pierre, e um jovem amigo de Pierre, Gaubert Lavaysse, jantaram juntos. Ao final da refeição, o normalmente mal humorado Marc-Antoine que estava deprimido porque, como huguenote, não podia nutrir esperanças de uma carreira profissional - levantou e disse que sairia para dar uma volta. Mais tarde, Lavaysse decidiu ir para casa. Pierre o acompanhou ao andar de baixo da casa e, aterrorizado, na escuridão da sala, identificou os contornos do corpo do irmão pendurado entre os batentes de uma porta. Voltaire ficou dois anos obcecado pelo caso Jean Calas, que considerou um chocante arremedo de justiça e uma vergonha para a França

Alertado pelos gritos, seu pai também desceu e não demorou em avisar as autoridades da cidade. Um magistrado brutalmente autoritário logo chegou e prendeu toda a família, inclusive a empregada católica, Jeanne. Desesperado para esconder os indícios de suicídio, Calas contou ao magistrado que haviam encontrado o corpo no chão, versão mais compatível com assassinato (história que ele depois rejeitou). Enquanto isso, uma multidão se aglomerava na porta da casa e, em pouco tempo, espalhou-se o boato de que a família havia matado Marc-Antoine para impedir que se convertesse ao catolicismo. A igreja capitalizou o incidente e emitiu uma carta monitória, que deveria ser lida em todos os púlpitos da paróquia, convocando os fiéis a testemunhar contra a família Calas e a confirmar que Marc-Antoine estava prestes a se converter. O resultado não foi convincente. Mesmo assim, sob instruções da magistratura, o jovem foi declarado católico cristão, com direito a ser enterrado em solo consagrado. O funeral foi espetacular, acompanhado por uma procissão de Penitentes Brancos. O processo contra Calas foi transferido, por recurso, para o Parlamento, que, em conformidade com as regras introduzidas em 1670, praticava uma abordagem aritmética, absurda, ao estudo das provas: vários indícios leves, ao serem somados, constituíam prova grave; duas provas graves resultavam em uma violenta, o que dava

direito a interrogatório sob tortura e assim por diante. Em 9 de março de 1762, por uma pequena maioria, decidiu-se que Calas era culpado e deveria ser quebrado vivo na roda, ficar exposto por duas horas e depois ser estrangulado e queimado. A sentença foi cumprida no dia seguinte. Mesmo sob tortura, Calas se recusou a confessar culpa e declarou que perdoava seus algozes. Voltaire, ao saber da história, usou-a como exemplo de fanatismo protestante ("podemos não valer muito, mas os huguenotes são piores"). Mas passados alguns dias, ao conhecer melhor os detalhes, mudou completamente de opinião. "Esse caso me corta o coração", escreveu ao Cardeal Bernis em 25 de março. "Entristece-me em minhas horas alegres, corrompe-as". Voltaire ficou dois anos obcecado pelo assunto, que considerou um chocante arremedo de justiça e uma vergonha para a França, tendo escrito a respeito em seu Tratado sobre a tolerância (1763): "E isso acontece hoje! Em uma época em que a filosofia progrediu tanto... Parece que o fanatismo, relegado durante algum tempo por conta dos sucessos da razão, está revidando furiosamente". Voltaire conduziu com paixão, vontade e incansável insistência uma campanha em favor do bom nome de Calas e do bem estar da família. Era como se aquele caso fosse o motivo pelo qual ele havia atingido uma posição de tamanho destaque. E, por fim, obteve sucesso. Em 1764, o veredicto do Parlamento de Toulouse foi revogado e um novo julgamento foi realizado. No ano seguinte, anunciou-se que Calas fora completamente reabilitado e que sua família receberia uma substanciosa compensação financeira do tesouro real. Foi um triunfo magnífico. Mas também nos leva ao ponto fraco da tese geral de Davidson. O autor nos convoca a ler a vida de Voltaire como se fosse a narrativa de uma conversão, quando não houve conversão nenhuma: Voltaire se manteve capaz, quando assim lhe convinha, de agir com maldade, mesquinhez e incrível hipocrisia. E isso estava de acordo com seus pontos de vista. Ele sustentava que "o caráter de todos os homens é caótico". Não faz sentido pensar nele como um "homem transformado". O ponto fraco da tese de Davidson é mostrar a vida de Voltaire como a história de uma conversão, quando não houve nenhuma Em segundo lugar, é preciso também questionar o resumo que Davidson faz do Voltaire mais jovem. Não teria sido a guerra contra a superstição e o obscurantismo, já em andamento nas Cartas filosóficas, um empreendimento desinteressado, feito para o bem público, e não apenas uma tentativa de colher elogios? Além disso, Davidson classifica de mortas as tragédias em verso de Voltaire. O leitor dificilmente concluiria, a partir do texto de Davidson, que algumas dessas peças (notadamente Zaire, a mais popular) formavam alegorias de candentes questões sociais. A verdade é que Davidson, embora admire o Voltaire reformista, não capta o escritor. Quando o poeta Samuel Rogers descreveu um certo autor promissor como "um Voltaire", Adam Smith bateu na mesa com força e exclamou: "Existe apenas um Voltaire!" É preciso concordar. Além do mais, é possível explicar em que consistia essa singularidade: no pessimismo extremamente vigoroso de Voltaire. Os pessimistas, principalmente os famosos, tendem a ser introvertidos. Senancour, o autor do romance epistolar e auto-questionador Obermann (1804), foi um pessimista por falta de energia para ações ou crenças. ("Oh vontade fragilizada! Oh coração partido!", saúda Matthew Arnold em homenagem a Senancour). Para o poeta Leopardi, o pessimismo estava ligado a noia, ou spleen (enfado, melancolia), uma forma de sofrimento puramente

interior; e o pessimismo de Thomas Hardy, em teoria pelo menos, era um gesto de recolhimento, um murmúrio queixoso contra as condições injustas da existência humana. Para Voltaire, por outro lado, as bases do pessimismo se encontravam fora do sujeito. O indivíduo precisava apenas colocar o nariz para fora da porta para testemunhar um dilúvio de calamidades caindo sobre sua cabeça. Havia mal na terra: era a verdade maniqueísta das coisas. Quando o poeta Samuel Rogers descreveu um certo autor promissor como "um Voltaire", Adam Smith bateu na mesa com força e exclamou: "Existe apenas um Voltaire!" É preciso concordar. Além do mais, é possível explicar em que consistia essa singularidade: no pessimismo extremamente vigoroso de Voltaire. Os pessimistas, principalmente os famosos, tendem a ser introvertidos. Senancour, o autor do romance epistolar e auto-questionador Obermann (1804), foi um pessimista por falta de energia para ações ou crenças. ("Oh vontade fragilizada! Oh coração partido!", saúda Matthew Arnold em homenagem a Senancour). Para o poeta Leopardi, o pessimismo estava ligado a noia, ou spleen (enfado, melancolia), uma forma de sofrimento puramente interior; e o pessimismo de Thomas Hardy, em teoria pelo menos, era um gesto de recolhimento, um murmúrio queixoso contra as condições injustas da existência humana. Para Voltaire, por outro lado, as bases do pessimismo se encontravam fora do sujeito. O indivíduo precisava apenas colocar o nariz para fora da porta para testemunhar um dilúvio de calamidades caindo sobre sua cabeça. Havia mal na terra: era a verdade maniqueísta das coisas. É difícil encontrar alguém menos utópico do que Voltaire. Em Cândido, o escritor torna seu reino da razão, Eldorado, deliberadamente sedutor, mas também absurdo, de modo que as reações do servo de Cândido, Cacambo, surgem com toda força da razão. Caso, diz Cacambo, eles retornassem cobertos de riquezas ao mundo corrupto e decadente de onde vieram, causariam uma ótima impressão. Poucas coisas são mais prazerosas do que bravatear perante os próprios conterrâneos e, por isso, duas pessoas felizes (afortunadas), como eles se encontravam naquele momento, poderiam racionalmente decidir não ser felizes. O que Voltaire sugere, naturalmente, é que um lugar perfeito, em que nada mais pode ser ansiado, seria intolerável. E se Voltaire não era utópico, tampouco era estóico. O estóico busca extinguir a esperança, ao passo que, segundo Voltaire, ainda que a esperança seja um conceito ridículo em um mundo necessitário, ela é ainda o último recurso humano. A esperança, dizem os últimos versos de seu "Poema sobre o Desastre de Lisboa" (anterior a Cândido), é o único privilégio negado a Deus. Em Cândido, o personagem, apesar de todas as lições que a vida lhe oferece, nunca aprende nada. O contraste com o Ingênuo, no livro de mesmo nome, é total. O Îngênuo, tendo sido criado entre os índios Huron, não teve a mente saturada por noções viciadas e de segunda mão e, assim, descobre uma aptidão incrível para o auto-didatismo. É possível detectar aí uma espécie de piada com John Locke e o tema aprendizado. Voltaire endossa a teoria de Locke de que o ser humano vem ao mundo sem idéias inatas e recebe todo o conhecimento por meio dos sentidos. Mas os personagens de Cândido parecem nunca conseguir ir além da primeira idéia que recebem por esse método.

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