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BIBLIOTECA DE FILOSOFIA CONTEMPORANEA Uma colecção que se pretende aberta a todas as correntes do pensamento filosófico actual, congregando os autores mais significativos e abarcando os grandes pólos da filosofia actual: filosofia da linguagem, hermenêutica, epistemologia e outros
BIBLIOTECA DE FILOSOFIA _._._._---~ CONTEMPORANEA
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MENTE, CÉREBRO E CIÊNCIA, Iohn Searle TEORIA DA INTERPRETAÇÃO, Paul Ricoeur TÉCNICA E CIÊNCIA COMO «IDEOLOGIA», Iürgen Habermas ANOTAÇÕES SOBRE AS CORES, Ludwig Wittgenstein TOTALIDADE E INFINITO, Emmanuel Levinas AS AVENTURAS DA DIFERENÇA, Gianni Vattimo ÉTICA E INFINITO, Emmanuel Levinas DISCURSO DE ACÇÃO, Paul Ricoeur A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO, Martin Heidegger A TENSÃO ESSENCIAL, Thomas S. Kuhn FICHAS (ZETTEL), Ludwig Wittgenstein A ORIGEM DA OBRA DE ARTE, Martin Heidegger DA CERTEZA, Ludwig Wittgenstein A MÃO E ESPÍRITO, Iean Brun ADEUS À RAZÃO, Paul Feyerabend TRANSCENDÊNCIA E INTELIGIBILIDADE, Emmanuel Levinas A SOCIEDADE TRANSPARENTE, Gianni Vattimo
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Gianni Vattimo Título original: LA SOCIETÀ TRASPARENTE © Garzanti Editore, s.p.a., 1989 Tradução de Carlos Aboim de Brito Revisão de tradução deArtur Morão Revisão tipográfica de Artur Lopes Cardoso Capa de Edições 70 Dep('lsito
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ISBN -972-44-0787 -X Direitos reservados para língua portuguesa por Edições 70, Lda. EDIÇÕES 70, LDA. - Av. Elias Garcia, 81 r/c Telefs. 762620 / 762792 / 762854 Fax: 761736 Telex: 64489 TEXTOS P
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PÓS-MODERNO: UMA SOCIEDADE TRANSPARENTE? Actualmente, fala-se muito de pós-modernidade. Fala-se tanto que já se tomou quase obrigatório guardar as distâncias em relação a este conceito, considerá-Io uma moda passageira, declará-Io mais uma vez um conceito «superado» ... Pois bem, na minha opinião, o termo pós-moderno tem um sentido. E este sentido liga-se ao facto de a sociedade em que vivemos ser uma sociedade de comunicação generalizada, a sociedade dos mass media. Antes de mais, falamos de pós-moderno porque consideramos que, em qualquer dos seus aspectos essenciais, a modernidade acabou. O sentido em que se pode afirmar que a modernidade acabou relaciona-se com o que se entende por modernidade. Entre as muitas definições, julgo que existe urna com a qual podemos estar de acordo: a modernidade é a época em que o facto de ser moderno se toma um valor determinante. Em italiano, mas creio também que em muitas outras línguas, é ainda uma ofensa dizer a alguém que é «reaccionário», isto é, agarrado aos valores do passado, à tradição, a formas de pensamento «ultrapassadas». Em maior ou menor grau, esta considera9
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ção «eulógica», elogiante, do ser moderno é aquilo que, na minha opinião, caracteriza toda a cultura moderna. Tal atitude não é tão evidente desde finais de Quatrocentos (quando «oficialmente» se dá início à idade moderna), ainda que, desde então, por exemplo na nova maneira de encarar o artista corno génio criador, se desenvolva cada vez mais o culto do novo, do original, que não existia nas épocas precedentes (épocas em que a imitação de modelos era um elemento de extrema importância). Com o passar dos séculos, tornar-se-á cada vez mais claro que o culto do novo e do original na arte se relaciona com urna perspectiva mais geral, a qual, corno acontece na idade do Iluminismo, considera a história humana corno um processo de emancipação progressivo, corno urna cada vez mais perfeita relativização do homem ideal (o texto de Lessing sobre A educação do género humano, 1780, é uma expressão típica desta perspectiva). Se a história tem este sentido progressivo é evidente que terá mais valor aquilo que está mais «avançado» em termos de conclusão, aquilo que está mais próximo do termo do processo. No entanto, a condição para conceber a história corno realização progressiva da humanidade autêntica é que esta possa ser vista corno um processo unitário. Só quando existe história se pode falar de progresso. Pois bem, a modernidade, na hipótese que proponho, acaba quando - por múltiplas razões - já não é possível falar da história corno algo de unitário. Efectivamente, semelhante visão da história implicava a existência de um centro em torno do qual se recolhem e se ordenam os acontecimentos. Pensamos a história como algo ordenado em torno do ano zero do nascimento de Cristo; mais especificamente, corno urna cadeia de vicissitudes dos povos da zona «central», o Ocidente, que representa o lugar da civilização, à margem do qual se situam os «primitivos», os povos «em vias de desenvolvimento». A filosofia entre os séculos XIX e XX criticou radicalmente a ideia de história unitária, revelando precisamente o carácter ideológico des10
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tas representações. Walter Benjamin, por exemplo, num breve escrito de 1938 (Teses sobre a Filosofia da História) defendeu que a história corno discurso unitário é urna representação do passado construída por grupos e classes sociais dominantes. O que se recebe, afinal, do passado? Não tudo o que aconteceu, mas apenas aquilo que parece ser relevante. Por exemplo, na escola, estudámos muitas datas de batalhas, tratados de paz, até revoluções; mas nada nos disseram das transformações operadas no modo de nos alimentarmos, no modo de viver a sexualidade, ou coisas semelhantes. Assim, aquilo de que fala a história são os factos da gente que conta, dos nobres, dos soberanos, ou da burguesia quando se torna classe de poder; mas os pobres, ou mesmo os aspectos da vida que são considerados «baixos», não «fazem história». Se se desenvolverem observações corno esta (segundo urna via iniciada, antes de Benjamin, por Marx e Nietzsche), conclui-se que a ideia de história corno curso unitário acaba por se dissolver. Não existe urna história única, existem sim imagens do passado propostas por pontos de vista diversos, e é ilusório pensar que existe um ponto de vista supremo, globalizante, capaz de unificar todos os outros (corno seria «a história» que engloba a história da arte, da literatura, das guerras, da sexualidade, etc.). A crise da ideia de história traz consigo a crise da ideia de progresso: se não existe um curso unitário dos factos humanos, nem sequer se poderá sustentar que eles caminham para um fim, que realizam um plano racional de melhoramento, educação, emancipação. De resto, o fim que a modernidade considerava poder dirigir o curso dos acontecimentos era, também ele, representado do ponto de vista de um certo ideal do homem. Iluministas, Rege!, Marx, positivistas, historicistas de todos os tipos, pensavam todos, mais ou menos da mesma maneira, que o sentido da história fosse a realização da civilização, isto é, da forma" do homem europeu moderno. Tal corno a história só se pensa unitariamente de um ponto de vista determinado 11
que se coloca ao centro (seja ele a vinda de Cristo ou o Sacro Império Romano), também o progresso só se concebe assumindo como critério um certo ideal do homem; o qual, na modernidade, foi sempre o ideal do homem moderno europeu - como quem diz: nós, europeus, somos a melhor forma de humanidade, todo o curso da história se ordena conforme este ideal se realize mais ou menos completamente. Se considerarmos tudo isto, percebemos também que a crise actual da concepção unitária da história, a crise consequente da ideia de progresso e o fim da modernidade, não são apenas acontecimentos determinados por transformações teóricas - pelas críticas que o historicismo do século XIX (idealista, positivista, marxista, etc.) sofreu no plano das ideias. Muito mais e diverso aconteceu: os povos ditos «primitivos» colonizados pelos Europeus em nome do bom direito da civilização «superior» e mais evoluída, revoltaram-se e tornaram problemática a ideia de história unitária centralizada. O ideal europeu de humanidade foi revelado como um ideal entre outros, não necessariamente pior, mas que não pode, sem violência, pretender ter o valor de verdadeira essência do homem, de todos os homens. Paralelamente ao fim do colonialismo e do imperialismo, um outro grande factor foi determinante para a dissolução da ideia de história e para o fim da modernidade e que é o advento da sociedade da comunicação. Chego assim ao segundo ponto, aquele que diz respeito à «sociedade transparente». Como já se observou, a expressão «sociedade transparente» é aqui introduzida de uma forma interrogativa. O que pretendo defender é o seguinte: a) no nascimento de uma sociedade pós-moderna, os mass media exercem um papel determinante; b) eles caracterizaram esta sociedade não como uma sociedade mais «transparente», mais consciente de si, mais «iluminada», mas como uma sociedade mais complexa, ou mesmo caótica; e, por fim, c) é precisamente nestes «caos» relativo que residem as nossas esperanças de emancipação. 12
Em primeiro lugar, a impossibilidade de pensar a história como um curso unitário, impossibilidade que, segundo a tese aqui defendida, dá lugar ao fim da modernidade, não surge apenas da crise do colonialismo e do imperialismo europeu; é também, e talvez mais, o resultado do aparecimento dos meios de comunicação de massa. Estes meios - jornais, rádio, televisão, em geral tudo aquilo a que hoje se chama telemática - foram determinantes para o processo de dissolução dos pontos de vista centrais, daqueles que um filósofo francês, Jean François Lyotard, denomina as grandes narrativas. Este efeito dos mass media parece ser exactamente contrário à imagem que um filósofo como Theodor Adorno ainda tinha. Na base da sua experiência de vida nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, Adorno, em obras como A Dialéctica do /luminismo (escrita em colaboração com Max Horkheimer) e Minima Moralia, previa que a rádio (só mais tarde a televisão) tivesse o efeito de produzir uma homologação geral da sociedade, permitindo, ou melhor, favorecendo, por uma espécie de tendência demoníaca interna, a formação de ditaduras e governos totalitários capazes, como o «Grande Irmão» de 1984, de George Orwell, de exercer um controlo estreito sobre os cidadãos, através da distribuição de slogans, propaganda (tanto comercial como política), visões estereotipadas do mundo. O que de facto aconteceu, não obstante todos os esforços dos monpólios e das grandes centrais capitalistas, foi que a rádio, a televisão e os jornais se tomaram elementos de uma explosão e multiplicação generalizada de Weltanschauungen, de visões do mundo. Nas últimas décadas, tomaram a palavra nos Estados Unidos minorias de todos os tipos, surgiram na ribalta da opinião pública culturas e subculturas de todo o género. Podemos, certamente, objectar que a esta tomada de palavras não correspondeu uma verdadeira emancipação política - o poder económico está ainda nas mãos do grande capital. E fiquemos por aqui - não quero alargar dema13
siado a discussão neste domínio; o facto é que a própria lógica do «mercado» da informação requer uma contínua dilatação deste mercado e exige consequentemente que «tudo» se tome, de certo modo, objecto de comunicação. Esta multiplicação vertiginosa da comunicação, esta «tomada de palavra» por parte de um número crescente de subculturas, é o efeito mais evidente dos mass media e é também o facto que - interligado com o fim ou, pelo menos, com a transformação radical do imperialismo europeu - determina a passagem da nossa sociedade para a pós-modernidade. Não só nos confrontos com outras culturas universais (por exemplo, o «Terceiro Mundo»), mas também no seu próprio seio, o Ocidente vive uma situação explosiva, uma pluralização que parece ser irresistível e que toma impossível a çoncepção do mundo e da história segundo pontos de vista unitários. A sociedade dos mass media, precisamente por estas razões, é o oposto de uma sociedade mais esc1arecida, mais «educada» (no sentido de Lessing ou de Hegel, ou mesmo de Comte ou de Marx); os mass media, que teoricamente tomaram possível uma informação «em tempo real» sobre tudo o que acontece no mundo, poderiam, efectivamente, parecer uma espécie de realização concreta do Espírito Absoluto de Hegel, ou seja, de uma perfeita autoconsciência de toda a humanidade, de uma coincidência entre o que ocorre, a história e o conhecimento do homem. Vendo bem, críticos de inspiração hegeliana e marxista como Adorno raciocinam precisamente pensando neste modelo, e baseiam o seu pessimismo no facto de que ele (no fundo, por culpa do mercado) não se realiza como seria possível, ou então realiza-se de modo perverso e caricatural (como no mundo homólogo, e talvez mesmo «feliz» através da manipulação dos desejos, dominado pelo «Grande Irmão»). Mas a libertação das múltiplas culturas e das múltiplas Weltanschauungen, tomada possível pelos mass media, desmentiu, no entanto, o próprio ideal de uma sociedade transparente: que sentido teria a liberdade de infor14
mação, ou mesmo apenas a existência de mais canais de rádio e de televisão, num mundo cuja norma fosse a reprodução exacta da realidade, a perfeita objectividade, a total identificação do mapa com o território? De facto, a intensificação das possibilidades de informações sobre a realidade nos seus mais variados aspectos toma cada vez menos concebível a própria ideia de uma realidade. Talvez se verifique uma «profecia» de Nietzsche no mundo dos mass media: o mundo real toma-se, afinal, uma fábula. Se temos uma ideia da realidade, esta, na nossa condição de existência tardo-moderna, não pode ser entendida como um dado objectivo que se situe a um nível inferior, para lá das imagens que nos dão os media. Como e onde poderemos atingir uma tal realidade em si? Realidade, para nós, é o resultado do encadeado de relações da «contaminação» (no sentido latino) das múltiplas imagens, interpretações, reconstruções que, em concorrência entre si, ou de algum modo sem qualquer coordenação «central» os media distribuem. A tese que pretendo propor é que, na sociedade dos media, em vez de um ideal emancipativo modelado na autoconsciência completamente definida, no perfeito conhecimento de quem sabe como estão as coisas (quer seja o Espírito Absoluto de Hegel, quer seja o homem já não escravo da ideologia, como pensa Marx), está a surgir um ideal de emancipação que, na sua própria base, reflecte oscilação, pluralidade, e finalmente, a erosão do próprio «princípio de realidade». Hoje, o homem pode finalmente tomar-se consciente de que a perfeita liberdade não é a de Espinosa, não é - como sempre sonhou a metafísica conhecer a estrutura necessária do real e adequar-se a ela. A importância dos ensinamentos filosóficos de autores como Nietzsche e Heidegger reside no facto de que estes nos oferecem os instrumentos para compreender o sentido emancipador do fim da modernidade e da sua ideia de história. Nietzsche mostrou, de facto, que a imagem de uma realidade racionalmente ordenada na base de um fundamento (a imagem do mundo que a metafísica sempre con15
Mas em que consiste mais especificamente a possível amplitude de emancipação, de libertação, da perda do sentido da realidade, no mundo dos mass media? Neste caso, a emancipação consiste mais no desenraizamento que é também, e simultaneamente, libertação das diferenças, dos elementos locais, de tudo aquilo a que podemos chamar, no seu conjunto, o dialecto. Caída a ideia de uma racionalidade central da história, o mundo da comunicação genera-
lizada explode como uma multiplicidade de racionalidades «locais» - minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais ou estéticas - que tomam a palavra, finalmente já não tacitamente aceites e retomadas pela ideia de que só existe uma única forma de humanidade verdadeira para realizar, não obstante todas as peculiaridades, todas as individualidades limitadas, efémeras, contingentes. Este processo de libertação das diferenças, diga-se de passagem, não é necessariamente o abandono de toda e qualquer regra, a manifestação bruta do imediato: até os dialectos têm uma gramática e uma sintaxe, logo, só quando adquirem dignidade e visibilidade descobrem a sua própria gramática. A libertação das diversidades é um acto através do qual elas «tomam a palavra», se apresentam, isto é, se «põem na forma», de modo a poderem ser reconhecidas; algo bem diferente de uma manifestação bruta do imediato. O efeito emancipador da libertação das racionalidades locais não é, no entanto, apenas o de garantir a cada um um mais completo reconhecimento e «autenticidade»; como se a emancipação consistisse em manifestar por fim aquilo que cada um é «verdadeiramente» (em termos ainda metafísicos, espinosianos): negro, mulher, homossexual, protestante, etc. O sentido emancipador da libertação das diferenças e dos «dialectos» consiste mais no complexo efeito de desenraízamento que acompanha o primeiro efeito de identificação. Se falo o meu dialecto, afinal num mundo de dialectos, também estou consciente de que ele não é a única «língua», mas precisamente um dialecto entre outros. Se professo o meu sistema de valores - religiosos, estéticos, políticos, étnicos - neste mundo de culturas plurais, terei também uma consciência aguda da historicidade, contingência e limitação de todos estes sistemas, a começar pelo meu. É aquilo a que Nietzsche, numa página da Gaia Ciência, chama «continuar a sonhar, sabendo que se está a sonhar». Será possível uma coisa deste tipo? A essência do que Nietzsche chamou o «super-homem» (ou ultra-ho-
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cebeu) não passa de um mito «reconfortante», própria de uma humanidade ainda primitiva e bárbara: a metafísica é um modo ainda violento de reagir a uma situação de perigo e de violência; procura, de facto, apropriar-se da realidade num «golpe de mão», recolhendo (ou julgando recolher) o princípio primordial de que tudo depende (e, assim, assegurando ilusoriamente o controlo dos acontecimentos). Heidegger, seguindo na linha de Nietzsche, mostrou que pensar o ser como fundamento, e a realidade como sistema racional de causa e efeitos, é apenas um modo de estender a todo o ser o modelo de objectividade «científica», da mentalidade que, para poder dominar e organizar rigorosamente todas as coisas, as deve reduzir ao nível de meras presenças mesuráveis, manipuláveis, substituíveis _ reduzindo a este nível, afinal, o próprio homem, a sua interioridade, a sua historicidade. Se com a multiplicação das imagens do mundo perdemos o «sentido da realidade», como se diz, talvez não seja, afinal, grande perda. Pela sua perversa lógica interna, o mundo dos objectos mesuráveis e manipuláveis da ciência-técnica (o mundo do real, segundo a metafísica), tomou-se um mundo de mercadorias, de imagens, o fantasmagórico mundo dos mass media. Deveremos contrapor a este mundo a nostalgia de uma realidade sólida, unitária, estável e «com legitimidade»? Tal nostalgia corre o risco de se transformar continuamente num comportamento neurótico, num esforço de reconstrução do mundo da nossa infância, no qual as autoridades familiares eram, ao mesmo tempo, ameaçadoras e reconfortantes.
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mem), o Uebermensch, está toda aqui; e é a tarefa que ele atribui à humanidade do futuro, precisamente no mundo da comunicação intensificada. ,
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Um exemplo do que pode significar o feito emancipador da «confusão» dos dialectos pode encontrar-se na descrição da experiência estética que Wilhelm Dilthey dá (uma descrição que continua a ser decisiva também para Heidegger, na minha opinião). Ele pensa que o encontro com a obra de arte (como de resto o próprio conhecimento da história) é uma maneira de experimentar, na imaginação, outras formas de existência, outros modos de vida diferentes daquele a que de facto estamos limitados no nosso quotidiano concreto. Cada um de nós, ao amadurecer, restringe os seus próprios horizontes de vida, especializa-se, fecha-se no interior de uma determinada esfera de afectos, interesses, conhecimentos. A experiência estética permite-lhe viver outros mundos possíveis, mostrando-lhe também a contingência, a relatividade, o carácter não definitivo do mundo «real» dentro do qual está encerrado.
simultaneamente reconfortantes, continua a estar radicada em nós, como indivíduos e como sociedade. Filósofos niilistas como Nietzsche e Heidegger (mas também pragmatistas como Dewey e Wittgenstein), ao mostrar-nos que o ser não coincide necessariamente com o que é estável, fixo, permanente, mas tem a ver com o acontecimento, o consenso, o diálogo, a interpretação, esforçam-se por nos tomarem capazes de captar esta experiência de oscilação do mundo pós-moderno como chance de um novo modo de sermos (talvez finalmente) humanos.
Na sociedade da comunicação generalizada e de pluralidade de culturas, o encontro com outros mundos e forma de vida talvez seja menos imaginário do que era para Dilthey: as possibilidades «outras» de existência realizam-se sob os nossos olhos, sendo representadas pelos múltiplos «dialectos», ou mesmo pelos universos culturais que a antropologia e a etnologia nos tomam acessíveis. Viver neste mundo multifacetado significa fazer experiência da liberdade como oscilação contínua entre pertença e desenraízamento.
É uma liberdade problemática, não só porque este efeito dos media não é garantido, é apenas uma possibilidade reconhecer e cultivar (os media podem igualmente ser sempre a voz do «Grande Irmão»; ou da banalidade esteriotipada, do vazio de significado ...) - mas também porque nós próprios não sabemos ainda muito bem qual é a sua fisionomia. É difícil conceber esta oscilação como liberdade: a nostalgia dos horizontes fechados, ameaçadores e 18
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CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIEDADE DA COMUNICAÇÃO
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A relação entre ciências humanas e sociedade de comunicação - a nossa sociedade caracterizada pela intensificação do intercâmbio de informações e pela identificação tendencial (televisão) entre acontecimento e notícia - é mais estreito e orgânico do que geralmente se crê. Se, na generalidade, é de facto verdade que as ciências, na sua forma moderna de ciências experimentais e «técnicas» (manipuladoras dos dados naturais), constituem mais o seu objecto do que exploram um «real» já constituído e ordenado, isto é válido de maneira muito especial para as ciências humanas. Estas não são unicamente urna nova maneira de enfrentar um fenómeno «exterior», o homem e as suas instituições, determinado deste sempre; mas tomaram-se possíveis, nos seus métodos e no seu ideal cognoscitivo, pela modificação da vida individual e associada, pela constituição de um modo de existência social que, por sua vez, é directamente moldado pelas formas da comunicação moderna. Não seria concebível urna sociologia corno ciência, e, mesmo tendencialmente, corno previsão, de grandes comportamentos colectivos, ou até unicamente corno ac21
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~ão tipológica das diferenças destes comportamentos, não só se não subsistisse a possibilidade de recolher as informações necessárias (que, portanto, supõem um certo modo de comunicação), mas, sobretudo, sem que algo como um comportamento colectivo se pudesse determinar como facto. Esta possibilidade só se toma efectiva num mundo em que a comunicação social superou certos níveis. Até e sobretudo um saber como o da antropologia não seria possível sem o facto elementar do encontro com civilizações e grupos humanos diversos - encontro que só se verificou de modo determinante com as viagens e as descobertas modernas. Ou ainda, voltando à sociologia: uma descrição da sociedade que não se identifique com a descrição, catalogação e comparação de regimes políticos (como a Política de Aristóteles), nem sequer se pode conceber "_ mais uma vez no quadro do devir social moderno - antes de se ter constituído algo como a «sociedade», o que Hegel denominava sociedade civil, distinta do Estado e das formas de organização política do poder. Observar-se-á que o aparecimento e o desenvolvimento de uma sociedade civil distinta do Estado não são, de imediato, um fenómeno em que se possa ver a conexão directa Com os fenómenos da comunicação e com os novos meios de informação postos à disposição pela técnica moderna. No entanto, é possível mostrar - por exemplo, retomando os estudos de Habermas sobre a opinião públicae) - que, mesmo no devir da sociedade moderna, como âmbito diferenciado em relação ao Estado, a opinião pública desempenha um papel fundamental, como ideia geral de uma esfera pública que está, decerto, ligada aos mecanismos da informação e da comunicação social.
ct) Ver J. Habennas, Storia e critica deI!' opinione pubblica (1962), tradução italiana de A. Illuminati, F. Masini, W. Perretta, Bari, 1974.
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Uma primeira abordagem do nosso tema pode ser, pois, a constatação - naturalmente corroborada por mais amplos aprofundamentos e factos relevantes -- de que as ditas «ciências humanas» (um termo que, no nosso discurso, como na cultura actual, continua não totalmente determinado quanto aos seus limites e ao seu âmbito de conhecimento), da sociologia à antropologia e até à psicologia que surgem, de facto, já na modernidade - estão condicionadas, além do mais numa relação de recíproca determinação, pela constituição da sociedade moderna como sociedade da comunicação. As ciências humanas são, no seu conjunto, efeito e meio de ulterior desenvolvimento da sociedade da comunicação generalizada. Embora não se possa pretender dar uma definição exaustiva nem das ciências humanas nem da sociedade da comunicação -- dois termos cuja indeterminação deriva precisamente do seu preliminar carácter óbvio no discurso da nossa cultura pode concordar-se genericamente, que denominamos ciências humanas todos os saberes que se inscrevem (ou tendem a inscrever-se como, por exemplo, a psicologia) no âmbito do que Kant denominou antropologia pragmática - isto é, que dão uma descrição «positiva», não filosófico-transcendental, do homem, não a partir do que ele é por natureza, mas do que fez de si, ou seja, a partir das instituições, das formas simbólicas, da cultura. Esta definição das ciências humanas deixa certamente em aberto muitos problemas, sobretudo o que diz respeito à antropologia de Arnold Gehlen. Mas o que nos interessa agora não é uma definição epistemologicamente exaustiva das ciências humanas, mas a relação destas formas de saber (quais os limites exactos do seu domínio) com a sociedade da comunicação generalizada. Se avançamos a hipótese, muito genérica, de que as ciências humanas são as que descrevem «positivamente» o que o homem faz de si na cultura e na sociedade, então também podemos pressupor que a própria ideia de descrição está essencialmente condicionada pelo desenvolvimento, de modo visível e acessível a análises 23
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comparativas, mano, o que, mente com o seus aspectos
de uma tal positividade do fenómeno huna forma mais evidente, se articula precisadesenvolvimento da sociedade moderna nos comunicativos.
Falar de sociedade da comunicação inclui, todavia, uma outra hipótese, que estende e complica a primeira que propusemos sobre a conexão entre ciências humanas e sociedade da comunicação, isto é, a hipótese de que a intensificação dos fenómenos comunicativos, a acentuação da circulação das informações até à contemporaneidade da crónica televisiva directa (e à «aldeia global» de McLuhan) não é apenas um aspecto entre outros da modernização mas, de algum modo, o centro e o sentido próprio deste processo. Tal hipótese reclama-se obviamente das teses de McLuhan, segundo o qual uma sociedade é definida e caracterizada pelas tecnologias de que dispõe, não em sentido genérico, mas no sentido específico de tecnologias da comunicação. Eis a razão por que falar de uma «galáxia Gutenberg» ou de um mundo tecnotrónico não equivale a sublinhar apenas um aspecto, ainda que essencial da sociedade contemporânea, mas indica antes o carácter essencial destes dois tipos de sociedade. Quando falamos de civilização da técnica, no sentido mais amplo e «ontológico» a que a noção heideggeriana de Oestell faz alusão, devemos compreender que aquilo a que nos referimos não é apenas o conjunto dos utensílios técnicos que mediatizam a relação entre o homem e a natureza, facilitando-lhe a existência através de todos os tipos de utilização das forças naturais. Embora esta definição da tecnologia seja válida, em geral, para todas as épocas, revela-se hoje demasiado genérica e superficial: a tecnologia que domina e modela o mundo em que vivemos é certamente feita de máquinas, no sentido tradicional do termo, que fornecem os meios para «dominar» a natureza externa; mas é sobretudo definida, e de maneira essencial, por sistemas de recolha e transmissão de informações. Isto toma-se cada vez mais evidente à medida que a diferença entre países avançados e países 24
atrasados se precisa como a diferença no desenvolvimento da informática. Consequentemente, quando Heidegger fala (como em Veredas Interrompidas) de «época das imagens do mundo» para definir a modernidade não usa uma expressão metafórica, nem descreve apenas um aspecto entre outros do moderno complexo de ciência e técnica, como fundamento da mentalidade moderna; mas define precisamente a modernidade como a época em que o mundo se reduz - ou melhor, se constitui - a imagens construídas e verificadas pelas ciências, que se desdobram quer na manipulação da experiência, quer na aplicação dos resultados à técnica e na tecnologia da informação. Dizer que a sociedade moderna é essencialmente a sociedade da comunicação e das ciências sociais não significa, portanto, pôr entre parêntesis a amplitude das ciências da natureza e da tecnologia que elas tomaram possível na determinação da estrutura desta sociedade, mas antes constatar que: a) o «sentido» em que a tecnologia se move não é tanto o domínio mecânico da natureza, mas o desenvolvimento específico da informação e da construção do mundo como «imagen»; b) esta sociedade em que a tecnologia tem o seu auge na «informação» é também, essencialmente, a sociedade das ciências humanas -- no duplo sentido, objectivo e subjectivo, do genitivo: a que é conhecida e construída, como seu objecto adequado, pelas ciências humanas; a que se exprime nestas ciências como um dos seus aspectos determinantes. Todo este conjunto de hipóteses pode ser corroborado, se não «provado», mostrando que funciona para compreender, por exemplo, a centralidade que assumem nas sociedades tardo-industriais as tecnologias informáticas, que são como «o órgão dos órgãos», o lugar em que o sistema tecnológico tem o seu «piloto» ou ciberneta, a sua direcção, mesmo entendida como direcção tendencial de desenvolvimento. Um outro terreno em que parece que esta descrição unitária do mundo tecnológico como mundo das ciências sociais e da informática pode servir como hi25
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pótese unificadora é o da definição da «contemporaneidade» do mundo contemporâneo: o qual, na perspectiva que propusemos, não se chama assim na base de critérios banais de proximidade «cronológica» (contemporâneo é o que nos está temporalmente mais próximo), mas sim enquanto mundo em que se delineia e começa a realizar-se concretamente a tendência para a redução da história no plano da simultaneidade, através de técnicas como a telecrónica directa. Se não quisermos seguir até às suas extremas e vertiginosas consequências esta definição da contemporaneidade, que comporta certamente um reajustamente radical da própria noção de história, poderemos, no entanto, reconhecer a racionalidade de um outro aspecto ligado a tal hipótese, ou seja, mostrar que à luz dela os ideais sociais da modernidade se mostram unitariamente descritíveis por serem guiados pela utopia da autotransparência absoluta. Tornou-se claro, pelo menos a partir do Iluminismo, que submeter as realidades humanas - as instituições sociais, a cultura, a psicologia, a moral - a uma análise científica não é apenas um programa epistemológico que se proponha atingir interesses cognoscitivos, estendendo o método científico a novos âmbitos de estudo; mas é uma decisão revolucionária que só se compreende em relação a um ideal de transformação radical da sociedade. Não no sentido de considerar o saber sobre o homem e as instituições como um meio para agir mais eficazmente em vista da sua modificação. A Aufklarung não é apenas uma etapa ou um momento preparatório da emancipação, mas a sua própria essência. A sociedade das ciências humanas é aquela em que o humano se tomou finalmente objecto de saber vigoroso, válido, verificável. A importância que revestem, no programa de emancipação iluminista, aspectos como os da liberdade de pensamento e da tolerância, não é motivada apenas, ou principalmente, por uma reivindicação geral de liberdade, de cujos momentos fazem parte, mas antes pela consciên26
cia de que uma sociedade livre é aquela em que o homem se pode tomar consciente de si numa «esfera pública», a esfera da opinião pública, da discussão livre, etc., não ofuscada por dogmas, preconceitos e superstições. O «cientismo» positivista, que se concretiza na reivindicação de uma passagem ao estádio positivo do saber do homem, não é banalmente redutível a uma sobrevalorização, quanto aos seus métodos, da ciência da natureza, cuja aplicação, inclusivamente no âmbito social e moral, deveria garantir uma maior certeza e eficácia mesmo a estes tipos de saber; mas compreende-se, pelo menos relativamente a Comte, apenas quando o observamos do ponto de vista da sua analogia com o programa hegeliano da «realização» do espírito absoluto, da plena autotransparência da razão. Este ideal de autotransparência, que atribui à comunicação social e às ciências humanas um carácter não só instrumental, mas de algum modo final e substancial, no programa de emancipação, encontra-se hoje largamente na teoria social. Deste ponto de vista, é emblemático o pensamento de autores corno Jürgen Habermas e Karl OUo Apel, ambos diferentemente ligados à herança do marxismo crítico, da hermenêutica, da filosofia da linguagem, mas sobretudo movidos por uma poderosa inspiração neokantiana, que se associa a uma certa interpretação da psicanálise. Apele), por exemplo, constrói toda a sua visão da sociedade e da moral em torno do ideal (que faz as funções de imperativo categórico kantiano) da «comunidade ilimitada da comunicação» - um termo que se reivindica de Peirce e ao qual ele atribuiu a função de uma meta-regra que torna possível todos os nossos múltiplos jogos linguísticos. Referindo-se ao conhecido aforisma de Wittgenstein, segundo o qual nunca se pode jogar um jogo linguístico sozinho, Apel vê
e) Ver K. o. Apel, Comunitá e comunicazione (1973), tradução italiana de G. Carchia, Rosenberg e Sellier, Turim, 1977. 27
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implícita nesta utilização da linguagem, e logo de todos os actos de pensamento, uma inevitável assunção de responsabilidades nos confrontos das regras linguísticas; tal responsabilidade, porém, relaciona os falantes com os partner, reais ou potenciais do diálogo social, face aos quais cada um é responsável pelo respeito das regras: o que também é válido quando se estabelecem jogos completamente privados, com linguagens que um falante tenha inventado para si só; mesmo neste caso, o falante que inventa as regras não é idêntico ao falante que, num momento diferente, as aplica e que assume a responsabilidade, face a qualquer potencial partner, da sua correcta observância. Isto significa que cada acto de pensamento, enquanto acto de linguagem, como defende Apel, se desenvolve sempre no horizonte de uma comunidade ideal de argumentantes, para os quais o sujeito - a fim de que a sua forma de jogo linguístico tenha sentido - não pode deixar de reconhecer os mesmos direitos que reconhe a si próprio. Daí, portanto, uma espécie de exigência intrínseca de veracidade da linguagem, que exige a eliminação de todo e qualquer obstáculo à transparência da comunicação: sobretudo dos obstáculos levantados voluntariamente pelos sujeitos (que os podem levantar certamente, mas não podem deixar de reconhecer que não deveriam fazê-Io assim, como é de resto o caso de cada falta ao respeito dos imperativos morais); e ainda de todos aqueles de tipo social, ideológico, psicológico, que tomam de facto opaca e imperfeita a comunicação. Temos aqui uma extensão e radicalização do que Peirce denominou «socialismo lógico», uma expressão muito significativa para compreender o ideal normativo de fundo em todo este discurso: o ideal da perfeita transparência de conhecimento, uma espécie de transformação da sociedade num «sujeito» de tipo científico - como o cientista no laboratório, sem preconceitos, ou capaz de prescindir deles em vista de uma verificação objectiva dos factos. Momento decisivo, segundo Apel, para a realização de um socialismo lógico, são precisamente as ciências humanas ou so28
ciais: são, de facto, a condição positiva que toma possível uma autoconsciência social que supere os limites, quer do idealismo, quer do determinismo materialista; a dialéctica destes dois momentos, no sentido de uma síntese e de uma superação, verifica-se precisamente «no momento em que a comunicação, que constitui o sujeito transcendental da ciência, se toma ao mesmo tempo objecto da ciência, no domínio das ciências sociais no sentido mais lato do termo. Assim, toma-se claro que, por um lado, o sujeito do possível consenso n,a verdade da ciência não é "uma consciência em geral" extramundana, mas a sociedade histórico-real, e também que, por outro lado, a sociedade histórico-real pode ser compreendida adequadamente mas só se for considerada como sujeito virtual da ciência, incluindo a ciência social, e se a sua realidade histórica for reconstruída sempre, de modo simultaneamente empírico e normativo-crítico, em referência ao ideal, por realizar na sociedade, da comunidade ilimitada da comunicação»e). Convém observar que, neste caso, a expressão «sociedade da comunicação», a que atribuímos um sentido genericamente descritivo, se toma um ideal normativo, com a introdução do termo «comunidade» que, além de retomar Peirce, evoca uma ideia de maior organicidade e imediatismo da própria comunicação, assinalando uma das dirccçf)cs dc significado em que certamente Apel se move, um idcal dc tipo «compenetrado» romântico, que a maioria das vc:t,cs é dominante nas teorias contemporâneas da comunicação(4). A sociedade da comunicação ilimitada, aquela em que se realiza a comunidade do socialismo lógico, é uma sociedade transparente, que mesmo na liquidação dos obstáculos e das opacidades, através de um processo largamente modelado numa determinada ideia da psie) Ibidem, p. 172. (4) Ver sobre o assunto G. Vattimo, L' ermeneutica e il modello della comunitá no vaI. elaborado por U. Curi, La comunicazione umana, Angeli, Milão, 1985. 29
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canálise, chega também a reduzir radicalmente os motivos de conflito. As posições de Apel são significativas não só porque atribuem um papel essencial às ciências humanas na realização de uma sociedade da comunicação entendida como ideal normativo, mas também porque esclarecem sem equívocos o que está contido neste ideal como seu aspecto essencial, isto é, a autotransparência (tendencialmente) completa da sociedade, sujeito-objecto de um saber reflexivo que, em certo sentido, realiza o carácter absoluto do espírito que, em Hegel, era um puro fantasma ideológico, um absoluto que, na sua «idealidade», mantinha com o real concreto uma relação de transcendência «platónica», típica das essências metafísicas com todas as suas implicações também, em grande sentido, repressivas (na medida em que continuam a ser necessariamente transcendentes). Uma verificação da importância deste ideal da autotransparência na cultura contemporânea pode encontrar-se na estrutura conceptual que rege a grande pesquisa de Saltre sobre a razão dialéctica, onde o problema é precisamente o de individualizar os meios concretos na base dos quais o saber de si da sociedade se constitui em formas não aIienadas, e assim enquanto efectivamente participadas por todos os membros de tal sociedade: Sartre pensa naturalmente na revolução, enquanto Habermas e Apel pensam na amplitude emancipadora das ciências sociais; mas o ideal de autotransparência é o mesmo.
É portanto esta, o ideal da autotransparência, a direcção para que aponta hoje a conexão entre sociedade da comunicação e ciências sociais? Isto é, estaremos finalmente em condições de realizar um mundo em que, como diz Sartre na Questão de Método, o sentido da história se dissolverá nos que a fazem concretamente?CS) De facto, esta possibilie) Ver J. P. Sartre, Critica della regione dialettica (1960), tradução voI. I, pp. italiana 76-77. de P. Caruso, II Saggiatore, Milão, 1963, 30
dade parece estar ao alcance da mão: bastaria que os mass media, que são os modos em que a autoconsciência da sociedade se transmite já a todos os seus membros, não se deixassem condicionar por ideologias, interesses particulares, etc., e se tomassem de algum modo «órgãos» das ciências sociais, se submetessem à verificação crítica um saber rigoroso, difundissem uma imagem «científica» da sociedade, precisamente aquela que as ciências humanas já são capazes de construir. Se avaliamos a situação actual com o padrão de semelhante expectativa, isto é, do ideal normativo da autotransparência, encontramo-nos face a um conjunto de factos paradoxais: os próprios factos, por exemplo, que encontram os historiadores do mundo contemporâneo. Como escreve Nicola Tranfaglia(6), «paradoxalmente, no momento em que o enorme desenvolvimento da comunicação e do intercâmbio de informação culturais, além das políticas, tomava possível um projecto de história autenticamente mundial, o declínio da Europa e o nascimento de mil outros centros de história anulavam essa possibilidade e levavam a historiografia ocidental e europeia a confrontar-se com a necessidade de uma mutação profunda na própria concepção do mundo». Em geral, o desenvolvimento intenso das ciências humanas e a intensificação da comunicação social não parecem produzir um acréscimo da autotransparência da sociedade, parecem antes funcionar em sentido oposto. Tratar-se-á simplesmente - como assume muitas vezes uma sociologia crítica, talvez muito servilmente herdeira de esquemas da Zivilisations-Kritik dos primeiros anos deste século - do facto de que o desenvolvimento tecnológico tem uma tendência intrínseca para fazer as funções de suporte do poder tal como é, tomando-se fa-
(6) Na sua introdução ao voI. x, 2, de II mondo contemporaneo, dirigido por N. Tranfaglia, La Nuova Italia, Florença, 1983.
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talmente escravo da propaganda, da publicidade, da conservação e intensificação da ideologia? A impossibilidade de fazer verdadeiramente uma história universal, por exemplo, com que os historiadores da contemporaneidade estão confrontados, não parece estar ligada principalmente a limites deste tipo, mas antes a razões opostas; existe uma espécie de entropia ligada à própria multiplicação dos centros de história, isto é, dos lugares de recolha, unificação e transmissão das informações. A ideia de uma história mundial, nesta perspectiva, revela ser aquilo que de facto sempre foi: a redução do curso dos acontecimentos humanos sob uma perspectiva unitária que é também sempre função de um domínio, quer seja domínio de classe, domínio colonial, ou outro. Algo do género, provavelmente, é também válido para o ideal de autotransparência da sociedade: funciona exclusivamente do ponto de vista de um sujeito central, mas que se toma cada vez mais impensável à medida que, no plano técnico, se tomaria «possível» realizá-Io efectivamente. Talvez seja este o destino do hegelianismo, da Aufklarung, ou do que Heidegger chama metafísica, na sociedade contemporânea: ao tomar-se efectivamente possível do ponto de vista da disponibilidade estritamente técnica a autotransparência da sociedade, por um lado, como mostra sobretudo a sociologia crítica de Adorno, revela-se como ideal de domínio e não de emancipação; por outro _ o que Adorno, aliás, não via - desenvolvem-se, no próprio seio do sistema da comunicação, mecanismos (o «SUfgimento de novos centros de história») que tomam definitivamente impossível a realização da autotransparência. À luz destas hipóteses, creio, devemos repensar o desenvolvimento do debate, muito significativo na cultura do século xx, sobre a «cientificidade», pelo menos das ciências humanas e da historiografia. É sabido que este debate, no decurso do qual as ciências humanas definiram pela primeira vez a sua fisionomia específica, foi marcado nas suas origens pela distinção (formulada por Windelband) entre ciências naturais nomotéticas e ciências humanas 32
idiográficas (ou em Dilthey, ciências da natureza e ciências do espírito, com a oposição entre explicação causal e «compreensão»). Desde as origens, e cada vez mais nas décadas recentes, tal contraposição parece ser insatisfatória: não só porque não se podiam deixar as ciências do espírito em poder de uma compreensão quase exclusivamente intuitiva e simpatética; mas também e sobretudo porque as próprias ciências da natureza revelaram ser cada vez mais determinadas, na sua constituição, por modelos interpretativos de tipo histórico-cultural, entre os quais acaba por se integrar também o tipo pretensamente «neutraI» da explicação causal. Qualquer que seja o estado das coisas nas ciências da natureza, é indubitável que nas ciências humanas se impuseram modelos de racionalidade, desde o modelo centrado no tipo-ideal weberiano até ao de Cassirer, que se serve da referência à noção histórico-normativa de estilo (retomada de WOlfflin)C), e ao do «modelo zero» de Popper(8), nos quais é evidente o carácter por sua vez intra-histórico dos modelos de interpretação de que as ciências humanas se servem. Este carácter intra-histórico exclui que as ciências humanas possam ser pensadas como totalmente reflexivas, isto é, como capazes de reflectir a realidade humana independentemente de esquemas de interpretação que, sendo por sua vez factos hitóricos, representem também uma «novidade» relevante e, portanto, não um puro espelho do que se trataria de conhecer objectivamente. Mas não só: nesta tomada de consciência, que bem se pode chamar hermenêutica, as ciências humanas reconheceram o carácter histórico, limitado e, afinal, ideológico, do próprio ideal de autotransparência,
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Ver, por exemplo, E. Cassirer, Sulla logica delle scienze della cultura (1942), tradução italiana de M. Maggi, La Nuova Italia, Florença, 1975. (8) Ver K. R. Popper, Miseria dello storicismo (1944-45), tradução italiana de C. Montaleone, Feltrinelli, Milão, 1975. 33
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como do ideal de uma história universal a que nos referimos acima. O ideal da comunidade ilimitada da comunicação de Apel e Habermas é certamente modelado pelo ideal de comunidade dos investigadores e cientistas a que Peirce se referia, ao falar de socialismo lógico. Mas será legítimo modelar o sujeito humano emancipado, e eventualmente a própria sociedade, pelo ideal do cientista no seu laboratório, cuja objectividade e desinteresse são dirigidos por um interesse tecnológico de fundo, que pensa a natureza como objecto, mas só quando a representa como um lugar de domínio possível - implicando, portanto, uma série de ideais, de expectativas, de motivações que actualmcnte estão largamente sujeitos à crítica? Em vez de se dirigir para a autotransparência, a sociedade das ciências humanas e da comunicação generalizada dirigiu-se em direcção ao que, pelo menos na generalidade, se pode denominar «fabulação do mundo». As imagens do mundo que nos são fomecidas pelos media e pelas ciências humanas, mesmo em diferentes planos, constituem a própria objectividade do mundo, não são interpretações diferentes de uma «realidade» que de algum modo nos é «dada». «Não existem factos, só interpretações», segundo nos diz Nietzsche, que também escreveu que o «mundo verdadeiro se tomou finalmente fábula»(9). Não tem qualquer sentido negar pura e simplesmente uma «realidade unitária» do mundo, numa espécie de retomada de formas de idealismo empírico ingénuo. Mas tem mais sentido reconhecer que o que chamamos a «realidade do mundo» é algo que se constitui como «contexto» das múltiplas fabulações - e tematizar o mundo nestes termos é precisamente a tarefa e o significado das ciências humanas.
(9) É o título de um dos capítulos de Il crepuscolo degli idoli (O Crepúsculo dos Ídolos); veja-se a tradução italiana de M. Masini, Milão, 1970.em Opere, org. Colli-Montinari, voI. VI, 3, Adelphi,
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Neste sentido, embora por vezes possa parecer vazio de conteúdos, o debate metodológico que ocupa um vasto espaço das ciências humanas de hoje constitui nelas um momento não só instrumental e preliminar, mas também central e substancial: contribui pelo menos para as desdogmatizar, para as tomar «fábulas» conscientes de si como tal. A recente fama que, no debate de historiadores e sociólogos, adquiriu a noção de narratividade e o inquérito sobre os modelos «retóricos» e narratológicos da historiografia, incluiu-se perfeitamente no quadro de um saber das ciências humanas que liquida criticamente o mito da transparência. Não já a favor de um cepticismo totalmente relativista, mas a favor de uma disponibilidade menos ideológica para a experiência do mundo, o qual, mais do que objecto de saberes tendencialmente (mas sempre só tendencialmente) «objectivos», é o lugar da produção de sistemas simbólicos, que se distinguem dos mitos precisamente porque são «históricos» - isto é, narrações que guardam criticamente as distâncias, que se sabem colocadas em sistemas de coordenadas, que se sabem e se apresentam explicitamente como «resultantes de um devir», nunca pretendendo ser «natureza». O problema da criticidade do pensamento, uma vez que ele, mesmo apenas no sentido que foi mencionado, tenha reconhecido o processo de fabulização do mundo, colocase naturalmente de modo urgente; e por enquanto só existem poucos pontos de referência claros: em primeiro lugar, que a lógica na base da qual se pode descrever e avaliar criticamente o saber das ciências humanas, e a possível «verdade» do mundo da comunicação mediatizada, é uma lógica «hermenêutica», que procura a verdade como continuidade, «correspondência», diálogo entre os textos, e não como conformidade do anunciado com um estado de coisas mítico. Esta lógica é tanto mais rigorosa quando menos se deixa impor como definitivo um determinado sistema de símbolos, uma determinada «narração». Aqui, o termo «hermenêutica» conserva também a sua referência à 35
«escola do suspeito» (segundo uma outra expressão de Nietzsche): se não podemos (mais?) ter a ilusão de desvendar as mentiras das ideologias atingindo um fundamento último e estável, podemos, porém, explicitar o carácter plural das «narrações», fazê-Io actuar como elemento de libertação da rigidez das narrações monológicas, dos sistemas dogmáticos do mito. A autotransparência a que o conjunto dos media e das ciências humanas nos conduz, parece ser, por agora, apenas uma, a saber, o aparecimento da pluralidade, dos mecanismos e armações internas da construção da nossa cultura. O sistema media-ciências humanas funciona, quando funciona da melhor maneira, como emancipação, mas apenas enquanto nos coloca num mundo menos unitário, menos certo, portanto, também muito menos securizante do que o mundo do mito. É o mundo para o qual Nietzsche tinha imaginado, como novo sujeito capaz de o viver sem neuroses, a figura do Uebermensch, do ultra-homem, e ao qual a filosofia «corresponde» com o que, por direito, podemos já chamar a viragem hermenêutica.
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o MITO
REENCONTRADO
Um dos problemas mais urgentes que se coloca à consciência contemporânea, uma vez que ela se tomou consciente da «fabulização» do mundo operada pelo sistema media-ciências sociais, é o de redefinir a sua posição nas confrontações com o mito, sobretudo para não se chegar a concluir (como muitos fazem) que um reencontro com o mito pode representar a resposta adequada ao problema «que significa pensar» na condição de existência tardo-moderna. Não existe na rilosofia contemporânea uma teoria satisfalÚria do milo~- da sua essência e das suas relações com outras formas de ligação com o mundo. Por outro lado, é verdade que o termo e a noção de mito, embora não definidos com precisão, circulam amplamente na cultura corrente: a partir dos Mitos de Hoje, de Roland Barthes, nasceu, ou consolidou-se, uma tendência geral para analisar em termos de mitologia a cultura de massa e os seus produtos; enquanto na base, remota mas nem por isso menos eficaz, das Reflexões sobre a Violência, de Sorel, se continua a pensar na presença, e na necessidade, do mito em política, como único agente capaz de mover as massas; e 37
até Claude Lévi-Strauss, que aborda os mitos muito tecnicamente, como antropólogo escreve numa página da Antropologia Estrutural que «nada se assemelha mais ao pensamento mítico do que a ideologia política. Na sociedade moderna, esta só veio, de certo modo, substituir aqueles»e). Embora Lévi-Strauss não possa ser suspeito de utilizar o termo mito de maneira imprecisa, uma afirmação deste tipo, mesmo nele, aproxima-se mais do uso comum, não técnico, do termo mito, entrando, portanto, no carácter vago da noção a que nos referíamos. Nos ulteriores Mythologica, quando Lévi-Strauss aplica um conceito mais específico e preciso do mito às suas possíveis reminiscências no mundo de hoje, refere-se sobretudo à música e à literatura, como elementos e formas de experiência em que o mito, embora dissolvido, sobrevivee). Não é, porém, a este sentido mais limitado e técnico do termo mito que fazemos referência, quando falamos de presença do mito na nossa cultura, mas sim a um sentido mais vago que, aproximativamente, entende o mito na base das seguintes características: ao contrário do pensamento científico, o mito não é um pensamento demonstrativo, analítico, etc., mas narrativo, fantástico, abrangendo as emoções e, globalmente, com menores ou nenhumas pretensões de objectividade. Tem a ver com a religião e a arte, com o rito e a magia, e a ciência, por sua vez, nasce em oposição a ele como desmitificação, «desencanto do mundo». O saber racional sobre a realidade, «onde quer que procure consti-
e) c. Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, Plon, Paris,
1958, p. 231.
CZ) Ver, por exemplo, de Lévi-Strauss, o capítulo final de L'uomo nudo (Mythologica, IV, 1971), tradução italiana de E. Lucarelli, Il Saggiatore, Milão, 1974 e a «Abertura» de Il crudo e il cotto (Mythologica, I, 1964), tradução italiana de A. Bonomi, Il Saggiatore, Milão, 1966.
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tuir-se como consideração teorética e explicação do mundo, acha-se em oposição não tanto à realidade fenoménica imediata, quanto à transfiguração mítica desta realidade. Muito antes de o mundo se apresentar à consciência como um conjunto de "coisas" empíricas, tinha-se apresentado como um conjunto de potências e de acções mítícas»e). Nesta última citação, do livro de Cassirer de 1923, que talvez seja a última grande teorização filosófica do mito no nosso século, surge com clareza um elemento que é implícito e essencial na moderna teoria do mito: a ideia de que é um saber que «precede» o saber científico, mais antigo, menos maduro, mais ligado a aspectos da infância ou da adolescência da história da mente humana. Mesmo Lévi-Strauss, que decerto não tem uma concepção meramente evolucionista do mito como destinado a desenvolver-se no logos, apresentando-se antes como um anti-historicista radical, considera o pensamento mítico como um passado para a nossa cultura, ao ponto de se preocupar com indicar quer o seu sucedâneo na ideologia política, quer os seus aspectos reminiscentes na música e na literatura. Mas quando explicitamos estes conteúdos implícitos na posição de Cassirer e até na de Lévi-Strauss - para não falar de Weber - experimentamos um certo mal-estar. Na base deste mal-estar está um facto evidente: a moderna teoria filosófica do mito, até à mais recente, a de (~assirer, sempre se formulou no horizonte de uma concepção meta física, evolutiva, da história; ora, acontece que este horizonte de filosofia da história se encontra hoje perdido. Consequcntemente, até a teoria filosófica do mito deixou de ser formulada de modo preciso, e o uso comum do termo mito regista e exprime esta confusão teórica; por um lado, o termo continua a significar uma forma de saber
e) E. Cassirer, Filosofia delle forme simbo/iche (1923), tradução italiana de E. Arnaud, La Nuova Italia, Florença, 1966, voI.
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não actual, muitas vezes considerado mais primitivo, mas caracterizado, em relação ao saber científico, por uma menor objectividade - ou, pelo menos, por uma menor eficácia tecnológica. Por outro lado, quer devido à crise que, em filosofia, sofreram as metafísicas evolucionistas da história (e, juntamente com elas, o próprio ideal de racionalidade científica), quer devido a outras causas menos teóricas e mais ligadas à história política, a concepção do mito como pensamento primitivo parece ser insustentável. Estas confusões e contradições podem ser postas em relevo se procurarmos recensear as atitudes que hoje condicionam mais amplamente a utilização do conceito de mito - atitudes que proponho descrever na base de certos tipos ideais, os quais, na maioria dos casos, não se encontram expressos teórica e praticamente no estado puro, mas são igualmente presentes e característicos da situação cultural em que nos movemos. Estas atitudes predominantes podem revestir três títulos: arcaísmo, relativismo cultural, irracionalismo temperado. Todos eles, como veremos melhor, são caracterizados por incoerências e confusões que derivam do facto de não se ter resolvido o problema da filosofia da história que está na base de cada uma das concepções do mito: ou seja, nascem da recusa da metafísica da história que regia a teoria do mito precedente, mas não conseguem formular-se em termos teoricamente satisfatórios, porque não elaboraram uma nova concepção filosófica da história, simplesmente puseram de lado o problema. Descreverei como arcaísmo uma atitude que se poderia também chamar «atitude apocalíptica». Trata-se da desconfiança difusa na cultura científico-tecnológica ocidental, considerada como modo de vida que viola e destrói a autêntica relação do homem consigo próprio e com a natureza, e que está também inelutavelmente ligada ao sistema de exploração capitalista e às suas tendências imperialistas. Podemos ver na preferência da vanguarda artística do início do século xx pelas máscaras africanas um sinal do valor profético que a arte muitas vezes teve, como neste caso, 40
nas confrontações de movimentos da cultura e da sociedade mais gerais. O que na vanguarda artística histórica constituía principalmente um interesse por modos de representação do real não comprometidos com a tradição das linguagens artísticas herdadas, embora amplamente mesclado, pelo menos em determinadas poéticas (surrealismo, expressionismo), com uma profunda polémica contra a cultura burguesa, tomou-se hoje uma atitude geral: a má consciência da «intelligentsia» liberal nas confrontações do chamado Terceiro Mundo também se exprime, decerto, nas suas posições acerca do mito. Na generalidade, de resto, sem esta inspiração política, em sentido amplo, não se perceberia nem a popularidade de que a antropologia estrutural tem beneficiado nem talvez, mais genericamente, o facto de que, nos anos da sua maior difusão a nível de cultura comum, o estruturalismo - não só antropológico, evidentemente - tenha podido surgir como uma posição teórica «de esquerda»; na base de tudo isto, havia a ideia de que, quer o estudo puramente estrutural dos motivos e das culturas «selvagens», quer a consideração geral do homem em termos não historicistas (<<estudar os homens como formigas», dizia Lévi-Strauss contra Sartre), fossem um modo de liquidar a ideologia eurocêntrica do progresso, com todas as suas implicações imperialistas e colonialistas; a favor de um pensamento qlle recuperasse os valores «autênticos» de uma relação do homem com a natureza não mediado pela objectivação científica estreitamente ligada - corno mostrara a crítica de escola de Francofortc, mas também o Lukács da História e consciência de classe -- à organização capitalista do trabalho. A esta crítica c à má consciência nas confrontações no imperialismo e das várias formas de neocolonialismo vieram unir-se, mais recentemente, as preocupações ecológicas pelas consequências devastadoras que a ciência, a tecnologia, a exploração capitalista e a corrida aos armamentos têm na natureza externa e na própria natureza física do homem. 41
Partindo de todos estes factores nasce o que proponho chamar arcaísmo na consideração do mito: deste ponto de vista, o mito não é urna fase primitiva e superada da nossa história cultural, mas sim urna forma de saber mais autêntica, não devastada pelo fanatismo puramente quantitativo e pela mentalidade objectivamente própria da ciência moderna, da tecnologia e do capitalismo. A partir de um contacto renovado com o mito, aguardamos - quer na forma dos mitos das culturas «outras» (os mitos estudados pelos antropólogos nos povos selvagens ainda existentes), quer na forma dos mitos antigos da nossa tradição (os mitos gregos, revisitados com métodos e mentalidades antropológicas por filólogos e historiadores de formação estruturalista) - uma possível via de saída das deformações e contradições da actual civilização científico-tecnológica. Grande parte da popularidade de Nietzsche e de Heidegger na recente cultura europeia continental parece poder reportar-se - mesmo através de equívocos de interpretação nos quais não me demorarei - a estes cenários. A crítica da civilização científico-técnica e o interesse pelo pensamento arcaico que se encontram, sob diversas formas, em Nietzsche e em Heidegger, são assumidos como ponto de partida para tentar uma recuperação do mito, ainda que nem Nietzsche, nem sobretudo Heidegger, justificam semelhante empreendimento. Além disso, seria difícil indicar posições filosóficas ou programas culturais que, explicitamente, proponham um retomo ao saber mítico; exceptuando uma parte do movimento que, em Itália e em França, surge sob o nome de «nova direita», e que retoma a polémica anticapitalista do nazismo e do fascismo misturando-a com temas derivados do movimento de sessenta e oito. Mas o arcaísmo, como de resto as outras duas atitudes «ideal-típicas» que passarei a descrever, não dá lugar a verdadeiras e apropriadas posições doutrinais acabadas, pelas razões que já mencionei. Nasce como consequência da crise do historicismo metafísico, mas não propõe uma alternativa, estando, assim, des42
tinado a ficar teoricamente mudo ou, de algum modo, não enunciando em teses precisas. Quando não amadurece em programas de restauração da cultura tradicional, e em consequentes posições políticas «de direita», este arcaísmo pode dar mesmo lugar, e é esse o caso de muita da cultura liberal europeia recente, a puras atitudes de crítica «utópica» da civilização científico-tecnológica e do capitalismo. Neste caso, admite-se que não tem sentido, e é mesmo politicamente perigoso e inaceitável, procurar restaurar a cultura «tradicional»; mas o saber mítico, não comprometido com o racionalismo do Ocidente capitalista, continua a ser um ponto de referência, pelo menos negativo, para recusar a modemidade e os seus erros. A segunda atitude que, na nossa cultura actual, condidona e qualifica a presença do mito, dando-lhe urna actualidade específica, é o relativismo cultural. Segundo esta posição, os princípios e os axiomas fundamentais que definem a racionalidade, os critérios de verdade, a ética e que, na generalidade, tomam possível a experiência de uma determinada humanidade histórica, de uma cultura, não são objecto de saber racional, de demonstração, já que deles depende toda a possibilidade de demonstrar alguma coisa. Uma expressão desta posição, que se tomou popular no debate epistemológico dos últimos anos, pode considerar-se a teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn, pelo menos sua formulação original(4). Mas também a hermenêutica que se reclama de Heidegger é muitas vezes considerada uma teoria deste tipo, mesmo que existam boas razões para crer que, para ela, as coisas se passem de maneira diferente. No relativismo cultural, não só não existe qualquer ideia de uma racionalidade unívoca à luz da qual se possam considerar «míticas» certas formas de saber, como
(4) Ver Thomas Kuhn, La struttura delle rivoluzione scientifiche (1962), tradução italiana de A. Carugo, Einaudi, Turim,
1969.
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também, e sobretudo, a ideia de que os «princípios primordiais» sobre os quais se constrói um universo cultural específico não são objecto de saber racional, demonstrativo, deixa aberta a possibilidade de os considerar como objecto de um saber de tipo mítico: mesmo a racionalidade científica, que constituiu durante tantos séculos um valor directivo para a cultura europeia é, afinal, um mito, uma crença partilhada na base da qual se articula a organização desta cultura; e assim (como escreve, por exemplo, Odo Marquardt)CS) é também um mito, uma crença-guia não demonstrada nem demonstrável, a própria ideia de que a história da razão ocidental é a história do afastamento do mito, da Entmythologisierung. Diversamente do arcaísmo, o relativismo cultural não atribui qualquer (mítica) superioridade ao saber mítico em relação ao saber científico típico da modernidade; em geral, nega apenas que exista uma oposição entre os dois tipos de saber, uma vez que ambos se baseiam em pressupostos que têm a característica do mito - da crença não demonstrada, mas antes imediatamente vivida. Nem sempre estas crenças-base próprias de cada universo cultural são denominadas mitos, como vimos Marquardt fazer; mas é um facto que, no relativismo, o interesse pelo mito está tão vivo como no arcaísmo. Não porque se procure reencontrar um saber mais autêntico no mito, mas porque o estudo dos mitos de outras civilizações nos pode porventura ensinar o método correcto para conhecer também a nossa, já que também ela tem uma estrutura fundamentalmente mítica. Como se verifica através da utilização do termo no texto citado de Marquardt, mito equivale aqui a saber não demonstrado, imediatamente vivido. E, portanto, é assumido num sentido ainda muito condicionado pela
e) Ver O. Marquardt, Abschied vom Prinzipiellen, Reclam, Estugarda, 1981, p. 93. 44
sua pura e simples oposição às características próprias do saber científico. Na terceira das atitudes de que me parece depender hoje a consideração do mito, a que darei o nome de irracionalismo temperado ou teoria da racionalidade limitada, o mito é entendido num significado um tanto mais específico' que de resto se relaciona com o sentido etimológico original da palavra. Mito significa, de facto, como se sabe, narração. Sob esta forma, opõe-se ao saber científico, ou distingue-se dele, não por uma simples inversão das características deste último - a demonstratividade, a objectividade, etc. - mas por um dos seus aspectos específicos positivos: a estrutura narrativa. Podemos, de facto, chamar teoria da racionalidade limitada ao conjunto de atitudes culturais que consideram o saber mítico, enquanto essencialmente narrativo, como uma forma de pensamento mais adequado a determinados âmbitos de experiência, sem contestar, ou de algum modo pôr explicitamente em causa, a validade do saber científico-positivo noutros campos da experiência. Podemos encontrar exemplos desta posição em pelo menos três campos: a) na psicanálise, na qual a vida interior tende a ser considerada, quer no seu funcionamento normal, quer na situação terapêutica, como estrutura de narração; ou então, como acontece na psicanálise de derivação de Jung, como referente necessário a certas «histórias» basilares, a certos mitos arquetípicos, que a modelam não como princípios abstractos, jogos de forças, etc., mas precisamente como histórias, as quais não se deixam submeter, entre outras coisas, a modelos estruturais de que seriam apenas símbolos, alegorias, ou aplicações (neste sentido, creio, Hillmann fala também de politeísmo)(6); b) na
Ver, por exemplo, D. L. Miller - J. Hillmann, II nuovo (1981), tradução italiana de M. Bonaeei e P. Donfraneeseo, Comunità, Milão, 1983. (6)
politeismo
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teoria da historiografia, onde o modelo da narratividade é cada vez mais importante - não só porque revela os modelos retóricos sobre os quais se constrói a historiografia, mas sobretudo porque descobre, na pluralidade destes modelos, a base para negar a unidade da história e para reconhecer a sua irredutível pluralidade - a qual se distingue cada vez mais dos mitos, na medida em que já não reflecte uma realidade-norma; c) na sociologia dos mass media: aqui, a aplicação original da noção de mito aos movimentos das massas (revolucionárias) proposta por Sorel foi (muito significativamente, creio) substituída pela análise em termos de mitologia dos conteúdos e das imagens do mundo difundidas pelo cinema, pela televisão, pela literatura e diversas artes de consumo. Podem qualificar-se estes vários modos de pensar o mito, em termos de aplicabilidade a vários campos da experiência, como irracionalismo temperado ou teoria da racionalidade limitada, porque têm em comum um pressuposto que, aliás, remonta ao tempo de PlatãoC): o pressuposto segundo o qual certos campos de experiência não se deixam compreender mediante a razão demonstrativa ou o método científico, exigindo antes um tipo de saber que só pode ser qualificado como mítico. Como disse inicialmente, defendo que estas várias atitudes (que não inspiram apenas determinadas posições nas confrontações do mito, mas que encontram nele um dos seus conteúdos mais característicos) nascem todas, mais ou menos directamente, da dissolução das filosofias metafísicas da história, mas sem consumar (ou digerir) suficientemente esta dissolução. É precisamente por isso que apresentam equívocos e contradições, que as tomam teoricamente insatisfatórias. O arcaísmo, para começar pelo primeiro, não só não coloca o problema da história como não consegue dar lugar a uma posição praticável nas con-
c) Ver por exemplo Timeu, 19 d. 46
frontações do mundo moderno que não seja, e isto é significativo, a proposta de restauração, pela direita, da cultura «tradicional». O tradicionalismo de direita, que representa a única saída visível do arcaísmo em política, é significativo porque manifesta, agudizando-a, a debilidade teórica que consiste em transformar simplesmente o mito do progresso num mito das origens, as quais seriam, mas só como tal, mais autenticamente humanas e dignas de constituir, ou o fim de urna revolução política ou, pelo menos, o ponto de referência para urna crítica da modernidade. Idealizar como condição perfeita o tempo das origens é tão vazio como idealizar o futuro como tal (como fez e faz ainda o ideal secularizado do progresso, do desenvolvimento, etc.). Mas não só: estamos em ligação com as origens mediante o processo que daí derivou, desde o início até nós. O arcaísmo pretende simplesmente pôr de parte o problema constituído por tal processo e, em primeiro lugar, o problema seguinte: se a condição de mal-estar, alienação, etc., em que nos encontramos surgiu precisamente nas origens, por que razão havemos de remontar a elas? São problemas deste tipo, problemas de filosofia da história, que o arcaísmo pôs de parte sem os ter discutido de modo suficiente, enquanto eles não se tomaram efectivamente inactuais pelo facto de as metafísicas evolucionistas da história terem acabado. O mesmo se pode dizer do relativismo cultural. Neste caso, porém, é ainda mais evidente que o problema da historicidade não é colocado nem resolvido, mas simplesmente «saltado»: o rclativismo cultural não presta atenção, nem (a) ao efectivo contexto em que a tese da pluralidade irredutível dos mundos culturais é enunciada; nem (b) à efectiva impossibilidade de isolar os mundos culturais uns dos outros - e não só, como em (a), pelo nosso universo, de nós, antropólogos e estudiosos do mito, que fazemos a sua teoria. O problema que tantas vezes se põe aos antropólogos que trabalham «no terreno» - e da relação entre 47
eles, expoentes de uma cultura forte, muitas vezes colonialista, e os seus informadores indígenas - é só um aspecto do mais amplo problema hermenêutico que o relativismo cultural não suscita. O estudo das culturas «outras» surge cada vez mais num contexto que toma impossível, e artificialmente falsa, a pretensão de as representar como objectos separados; elas são, antes, interlocutores de um diálogo que, no entanto, uma vez reconhecido, levanta o problema do horizonte comum em que de facto ocorre, tomando vã a diferenciação pressuposta pelo relativismo. Este horizonte comum é o problema da filosofia da história, que não se pode liquidar facilmente. Por fim, a teoria da racionalidade limitada - ou seja, a ideia difusa sob várias formas segundo a qual o mito, como saber narrativo, seria um tipo de pensamento adequado a certos campos da experiência (a cultura de massa, a vida interior, a historiografia) - deixa de parte, também ela, o problema de definir a própria colocação histórica: não cai na conta de que se baseia numa aceitação tácita da distinção entre Natur- e Geisteswissenschajten; distinção que se toma cada vez mais problemática e dúbia quanto mais se aprofunda a consciência de que também a ciência exacta é um empreendimento social, e assim que os métodos objectivantes das ciências da natureza são um momento no seio de um contexto que, como tal, se incluiria de pleno direito no campo das ciências histórico-sociais. Em vários graus e sob diversas formas que decerto poderiam ser mais amplamente indagadas - as três atitudes concorrentes na cultura actual sobre o mito põem de parte muito apressadamente o problema da própria contextualização histórica: não dizem onde elas, como posições teóricas, se situam. O arcaísmo quer regressar às origens e ao saber mítico, sem se questionar sobre qual é o período «intermédio» que nos separa do momento inicial; o relativismo cultural fala de universos culturais separados e autónomos, mas não diz a qual destes universos pertence a própria teoria relativista; a racionalidade limitada não tem 48
uma teoria explícita sobre a possibilidade de distinguir verdadeiramente entre campos reservados ao saber mítico e campos em que a racionalidade científica é válida. A todos estes problemas, a metafísica da história de tipo idealista ou positivista dava uma resposta, concebendo a história como um processo único de Auj7darung e de emancipação da razão. O processo de emancipação da razão foi, todavia, além daquilo que o idealismo e positivismo esperavam: povos e culturas multíplices tomaram a palavra na cena do mundo e tomou-se impossível acreditar que a história é um processo unitário, com uma linha contínua dirigida a um telos. A realização da universalidade da história tomou impossível a história universal. Com isto, também a ideia de que o curso histórico pudesse ser pensado como Aufklarung, libertação da razão das sombras do saber mítico, perdeu a sua legitimidade. A própria desmitificação foi reconhecida como um mito(8). Mas a descoberta do carácter nítido da desmitificação legitimará realmente as atitudes para com o mito, que acima descrevemos? Desmitificar a desmitificação não significa restaurar os direitos do mito, entre outras razões, porque entre os mitos a que devemos reconhecer legitimidade está também o mito da razão e do seu progresso. A desmitificação, ou a ideia da história como processo de emancipação da razão, não é algo que se possa exorcizar tão facilmente. Nietzsche já tinha demonstrado que quando se descobre que também o valor da verdade é uma crença baseada em exigências vitais, portanto, um ~~erro»,não se restauram simplesmente os erros precedentes. Continuar a sonhar sabendo que se está a sonhar, como diz a passagem já citada da Gaia Ciência, não equivale certamente ao sonho puro e simples. Assim acontece com a desmitificação: se queremos ser fiéis à
(8) Ver ainda O. Marquardt, op. cit., p. 93, e todo o ensaio «Lob des Polytheismus».
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nossa experiência histórica, teremos de registar que, uma vez revelada a desmitificação como um mito, a nossa relação com o mito não se toma ingénua, mas fica marcada por esta experiência. Uma teoria da presença do mito na cultura de hoje deve partir novamente deste ponto. A palavra de Nietzsche na Gaia Ciência não é apenas um paradoxo filosófico, é a expressão de um destino da nossa cultura: tal destino pode ser indicado por outro termo, o de secularização. Nesta palavra, exprimem-se os dois elementos indicados pelo mote da Gaia Ciência: saber que se está a sonhar e continuar a sonhar. A secularização do espírito europeu da idade moderna não é só a descoberta e a desmitificação dos erros da religião, mas também a sobrevivência, sob diveresas formas e, em certo sentido, degradadas, daqueles «erros». Uma cultura secularizada não é uma cultura que simplesmente carrega às costas os conteúdos religiosos da tradição, mas que continua a vivê-Ios como facetas, modelos encobertos e distorcidos, mas profundamente presentes. São coisas que em Max Weber estão claramente ligadas: o capitalismo moderno não nasce como abandono da tradição cristã medieval, mas como a sua aplicação «transformada». O mesmo sentido tem a pesquisa de Loewith sobre o historicismo moderno; também aqui, as várias metafísicas da história até Hegel, Marx e Comte não são mais do que «interpretações» da teoria da história hebraico-cristã, pensadas exteriormente ao quadro teológico original. Não tanto em Loewith, mas certamente em Weber, ou mesmo na oposição comunidade-sociedade de Tonnies, o processo através do qual a modernidade (como capitalismo industrial em Weber, como sociedade já não baseada em ligações orgânicas em Tonnies) se destaca das suas matrizes religiosas originais surge como um misto inseparável de conquista e perda: a modernização não ocorre através do abandono da tradição, mas através de uma espécie de interpretação irónica desta tradição, uma «distorção» (Heidegger fala, num sentido não distante deste, de Ver50
windung)(9), que a conserva mas que também a esvazia parcialmente. Creio que destes elementos do conceito de secularização se podem aproximar quer as teses de Norbert Elias sobre a história da civilização europeia(lO), quer as teses de Girard sobre o sagrado como violência e sobre o cristianismo como processo de dessacralização(ll). Em Elias, o processo de civilização moderno desenvolve-se quando o poder e o exercício da força se concentram no soberano, no Estado absoluto e, depois, constitucional. Correspondendo a isto, a psicologia colectiva sofre uma transformação radical: os singulares interiorizam, em todas as classes sociais, as «boas maneiras» dos cortesãos, que antes tinham feito a experiência da renúncia à força a favor do soberano; as paixões já não são fortes e abertas, como nas épocas passadas, a experiência perde vivacidade e cor, mas ganha em segurança e formalização. Também aqui, o progresso é acompanhado por uma maior intensidade da experiência, uma espécie de esvaziamento ou de diluição. Quanto a Girard, o seu discurso diz respeito à civilização humana em geral: civilização cujo caminho, segundo ele, vai desde o nascimento do sagrado - que exorciza a violência de todos contra todos, concentrando-a na vítima do sacrifício, mas deixando-a sobreviver como base das instituições - até à sua desmitificação por parte do Antigo Testamento e de Jesus; este último mostra que o sagrado é
c) Sobre a noção de Verwindung, em Heidegger, e a sua interpretação no sentido aqui assinalado veja-se o capo X do meu Lafine della modernità, Garzanti, Milão, 1985. eo) De N. Elias, ver especialmente Potere e civiltà (1937), tradução italiana de G. Panzieri, Il Mulino, Bolonha, 1983. (11) De R. Girard, além de La vioZenza e il sacro (1972), tradução italiana de O. Fatica e E. Czerkl, Adelphi, Milão, 1980, ver especialmente Delle cose nascoste sin dalla fondazione deZ mondo (1978), tradução italiana de R. Damiani, Adelphi, Milão, 1983. 51
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a violência, e abre o caminho a uma nova história humana que, mesmo contra a terminologia e os propósitos de Girard, podemos bem denominar secularizada. A cultura moderna europeia está assim ligada ao próprio passado religioso não só por uma relação de superação e emancipação, mas também, inseparavelmente, por uma relação de conservação-distorção-esvaziamento: o progresso tem uma espécie de natureza nostálgica, como o classicismo e o romantismo dos séculos passados nos ensinaram. Mas o significado desta nostalgia só se toma manifesto com a experiência da desmitificação levada até ao fim. Mesmo quando a desmitificação se revela um mito, o mito recupera a legitimidade, mas apenas no quadro de uma genérica experiência «enfraquecida» da verdade. A presença do mito na nossa cultura actual não exprime um movimento de alternativa ou de oposição à modernização, pelo contrário, é um seu resultado consequente, um ponto de chegada, pelo menos até agora. O momento da desmitificação da desmitificação pode, assim, ser considerado o verdadeiro· momento de passagem do moderno ao pós-moderno. Esta passagem ocorre em Nietzsche, na sua forma filosófica mais explícita. Depois dele, após a desmitificação radical, a experiência da verdade já não pode ser apenas a mesma que anteriormente: deixa de haver evidência irrefutável, a evidência em que os pensadores da época da metafísica procuravam um fundamento absolutum et inconcussum. O sujeito pós-moderno, quando procura dentro de si uma verdade primordial não encontra a segurança do cogito cartesiano, mas as intermitências do coração proustianas, os relatos dos media, as mitologias evidenciadas pela psicanálise. Aquilo que o «retomo» do mito procura captar na nossa cultura e na nossa linguagem é precisamente esta experiência, moderna ou pós-moderna, e não um renascimento do mito como saber não inquinado pela modernização e pela racionalização. Só neste sentido, o «retomo do mito», quando e na medida em que se produz, parece 52
apontar para a superação da oposição entre racionalismo e irracionalismo; uma superação que, no entanto, volta a colocar o problema de uma renovada consideração filosófica da história.
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A ARTE DA OSCILAÇÃO Tal como aconteceu durante toda a idade modernae), é provável que também hoje os aspectos salientes da existência ou até, para falar em termos heideggerianos, o «sentido do ser» característico da nossa época, se anunciem de modo particularmente evidente, e antecipador, na experiência estética. É necessário, portanto, olhá-Ia com particular atenção, se queremos compreender não só que existe arte, mas mais genericamente que existe ser, na existência moderna recente. O problema da arte numa sociedade de comunicação generalizada foi enfrentado de modo determinante, e ainda hoje actual, pelo ensaio de Walter Benjamin sobre A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, de 1936CZ);um texto a que é necessário regressar continuamente, pelo menos na minha opinião, nunca foi efectiva-
e) Sobre isto, veja-se o capo VI do meu livro La fine della modernità, Garzanti, Milão, 1985. e) Está publicado em italiano, com tradução de E. Filippini, por Einaudi, Turim 1966. 55
mente assimilado e «digerido», digamos, pela investigação estética posterior. De facto, ele foi geralmente entendido como puro e simples reconhecimento sociológico das novas condições em que a arte contemporânea opera, utilizando-o quer como instrumento de polémica contra o mercado da arte, quer como base teórica para a reflexão sobre todos os fenómenos artísticos que se colocam fora das instituições tradicionais da arte (fora do teatro, como o happening; fora do museu e da galeria, como várias formas de arte comportamental, land art, etc.); ou então, acabou por ser liquidado como expressão de uma ilusão, a ilusão de que a reprodutibilidade técnica pode representar uma chance positiva para a renovação da arte, quando, na realidade, ela está bem longe da realização das condições da utopia de Benjamin, como defendeu Adorno, que viveu na América a experiência da civilização massificada, representando antes o esmagamento total de toda a arte na manipulação do consenso por parte dos mass media. Estas várias leituras do ensaio de Benjamin parecem, contudo, largamente insuficientes. É sobre a intuição central desse ensaio que convém reflectir de novo, ou seja, sobre a ideia de que as novas condições da produção e da fruição artística, que os mass media determinam na sociedade, modificam de modo substancial a essência, o Wesen da arte (um termo que utilizeremos aqui no sentido heideggeriano: não a natureza eterna da arte, mas o seu modo de realização na época actual). Em relação a esta mudança de essência, nem Adorno, com a sua crítica radical de reprodutibilidade, nem as interpretações sociologizantes (que vão até à esperança de uma reconciliação estética da existência, como em Marcuse) disseram verdadeiramente algo de novo e de adequado às premissas colocadas por Benjamin. Quando Adorno nega que a arte pode (ou deve) perder a aura, que isola a obra do quotidiano, está certamente a defender o poder crítico da obra em relação à realidade existente; mas adopta também, e defende, a concepção da arte como lugar de conciliação e de perfeição que se exprimiu em toda a 56
tradição metafísica ocidental, de Aristóteles a Rege!. Que a conciliação seja utópica, e se insira no domínio da aparência, como sublinha Adorno ao retomar oportunamente Kant contra Regel, não significa, no entanto, uma verdadeira mudança de essência, mas apenas a sua colocação num futuro indefinido, que preserva o seu papel de ideal regulador. É sobre este ponto que convém reflectir, mesmo face às recentes recuperações, sobretudo em França (com um certo atraso em relação a outros domínios culturais, como a Itália), da estética de Adorno e até do pensamento de Emst Bloch. Contudo, em Benjamin, encontram-se as premissas para orientar uma reflexão sobre o novo Wesen da arte na sociedade industrial actual, superando mesmo a definição metafísica tradicional da arte como lugar da conciliação, da correspondência entre interior e exterior, da catarse. Estas premissas podem ser adequadamente desenvolvidas partindo de uma analogia à primeira vista paradoxal, sobre a qual, que eu saiba, ainda não foi chamada a atenção. No mesmo ano de 1936, em que era escrito o ensaio de Benjamin, nascia também outro escrito determinante para a estética contemporânea, a saber, o ensaio de Reidegger sobre Der Ursprung des Kunstwerkes, hoje incluído em Holzwegee). É o texto em que Heidegger elabora a sua noção central de obra de arte como «prática da verdade», que processa no conflito entre os dois aspectos constitutivos da obra: a exposição do mundo e a produção da terra. Ora, a obra assim concebida exerce sobre o observador um efeito que Reidegger define com o termo Stoss - choque, à letra. No ensaio de Benjamin, encontramos - na base de premissas completamente diferentes e, aparentemente,
e) M. Heidegger, «L' origine deU' opera d'arte», no voI. Sentieri interroti, (1950), tradução italiana de P. Chiodi, La Nuova Italia, Florença, 1969. (Tradução portuguesa, A Origem da Obra de Arte, Edições 70, Lisboa, 1990, nesta colecção.) 57
também com significado diferente - uma teoria que atribui à arte mais característica da época da reprodutibilidade técnica - o cinema - um efeito definido precisamente em termos de shock. A tese que tenciono propor é a seguinte: desenvolvendo a analogia entre o Stoss heideggeriano e o shock de Benjamin, é possível captar os aspectos essenciais da nova «essência» da arte na sociedade industrial mais recente, aspectos que mesmo a reflexão estética contemporânea mais aguda e radical - em primeiro lugar, Adorno - deixou escapar. A reprodutibilidade técnica parece operar em sentido exactamente oposto ao shock: de facto, na época da reprodutibilidade, quer a grande obra de arte do passado, quer os novos produtos nascidos já para os media reprodutíveis, como o cinema, tendem a tomar-se objectos de consumo comum, logo, também cada vez menos relevantes no cenário da comunicação intensificada; à parte este efeito de embotamento psicológico que podemos identificar corno o «consumar» dos símbolos tantas vezes transmitidos e multiplicados, mesmo sob um outro aspecto, os meios técnicos da reprodução tendem a nivelar as obras porque, por muito aperfeiçoados que sejam, acabam por acentuar e isolar nas obras um conjunto de características que são as mais «perceptíveis» pelo próprio meio técnico, ou encerram, de certo modo, a obra dentro dos limites ligados às condições do meio: Adorno insistiu, por exemplo, na distorção dos tempos musicais que é produzida para encerrar os registos dentro dos limites de um disco. Naturalmente, o conflito entre um «ser em si» da obra e a sua adaptação às exigências do meio de reprodução só se apreende quando nos colocamos do ponto de vista - que é o de Adorno - que distingue ainda um ideal «valor de uso» da obra do seu alienado e decaído valor «de troca» (ligado às condições do mercado, às modas, etc.). Por sua vez, Benjamin, como sabemos, no ensaio de 1936, já tinha saudado como uma novidade decisiva e positiva o facto de a reprodutibilidade técnica fazer desaparecer completa58
mente o valor «cultural» da obra, a favor do seu valor «expositivo»; o que equivale a dizer que a obra não tem um «valor de uso» distinto do seu valor de troca; ou que, em suma, todo o seu significado estético se identifica com a história da sua Wirkung, do seu destino, aceitação, interpretação, na cultura e na sociedade (isto, diga-se de passagem, não equivale a assumir uma posição de puro e simples niilismo hermenêutico, expresso no moto de Valéry: «mes vers ont le sens qu'on leur prête»; as interpretações singulares não pairam no vazio, estão ligadas, num nexo que é histórico-factual, mas que tem também um alcance normativo, a todas as outras interpretações, à global Wirkungsgeschichte, ou «história dos efeitos», da obra)(4). Mas o problema da relação entre valor cultural - ou «aurático», no sentido de Benjamin - e valor expositivo da obra de arte não se resolve verdadeiramente, se não seguirmos até ao fim as implicações da teoria do shock. Até que se pense que a fruição da obra de arte é caracterizada como apreensão da perfeição da forma e como satisfação vivida por esta perfeição, será impossível aceitar que, como dissemos, o valor de uso se dissolve no valor de troca, ou que o valor cultural da obra cai a favor do seu valor expositivo. No ensaio de Benjamin, o efeito de shock é característico do cinema, que neste aspecto foi antecipado pelas poéticas dadaístas: a obra de arte dadaísta é, de facto, concebida como um projéctillançado contra o espectador, contra todas as suas seguranças, expectativas de sentido e hábitos de percepção. Também o cinema é feito de projécteis, de projecções: mal se forma uma imagem, é logo substituída por outra, à qual o olho e a mente do espectador têm de se adaptar novamente. Numa nota, Benjamin compara expli-
(4) Este é um dos termos centrais do debate hermenêutico contemporâneo; ver H. G. Gadamer, Verità e metodo (1960), tradução italiana de G. Vattimo, Bompiani, Milão, 1983, especialmente pp. 350 e segs. 59
citamente as prestações perceptivas requeridas ao espectador do filme como as necessárias a um peão (ou, podemos acrescentar, a um automobilista) que se movimenta no meio do tráfego de uma grande cidade moderna. «O cinema - escreve Benjamin - é a forma de arte que corresponde ao perigo cada vez maior de perder a vida, perigo que os contemporâneos são obrigados a ter em consideração ...»e). Parece ler-se aqui, numa forma curiosamente desmitificada e reduzida a dimensões de vida quotidiana - o tráfego e os seus riscos - aquilo que Heidegger teoriza no ensaio sobre A Origem da Obra de Arte com a noção de Stoss. Também para Heidegger, num sentido diferente mas talvez profundamente próximo do sentido de Benjamin, a experiência do shock da arte tem a ver com a morte; não tanto ou principalmente com o risco de ser atropelado por um autocarro na estrada, mas com a morte como possibilidade constitutiva da existência. O que, na experiência da arte, provoca o Stoss, para Heidegger, é o próprio facto de que a obra é mais do que não ser(6). O facto de ser, o Dass, como recordam os leitores de Ser e TempoC), está também na base da experiência existencial da angústia. No parágrafo 40 de Ser e Tempo, a angústia é descrita como o estado emotivo que o ser-aí (ou seja, o homem) vive, quando é confrontado com o facto nu do ser-lançado no mundo no mundo. Enquanto as coisas singulares pertencem ao mundo como que inseridas numa rede de correspondência, significações (cada coisa é referida a outras, como efeito, como causa, como instrumento, como sinal, etc.), o mundo como tal, no seu conjunto, não tem correspondências, é insignificativo; a angústia regista esta insignificância, a gratuidade total do facto de que o
L' opera d' arte, cit., p. 55, nota 29. Sentieri interroti, cit., pp. 49-50. O Ver M. Heidegger, Essere e tempo (1927), tradução italiana de P. Chiodi, Utet, Turim, 1969. (5)
mundo existe. A experiência da angústia é uma experiência de «desenraízamento» (de Un-heimlichkeit, de Un-zu-Hause-sein)(8). A analogia do Stoss da arte com esta experiência da angústia percebe-se, se pensarmos que a obra de arte não se deixa reportar a uma ordem de significados pré-estabelecida, pelo menos no sentido de que não é dela dedutível como uma consequência lógica; e também no sentido de que não se insere simplesmente no seio do mundo tal como este é, mas pretende lançar sobre ele uma nova luz. O encontro com a obra de arte, tal como Heidegger o descreve, é como o encontro com uma pessoa que tem uma visão do mundo, com a qual a nossa se deve confrontar interpretativamente. É sobretudo neste sentido que se deve entender a tese heideggeriana, segundo a qual a obra de arte cria um mundo, dado que se apresenta como uma nova «abertura» histórico-eventual do ser. Embora o Stoss pareça ser descrito com termos mais «positivos» da angústia de Ser e Tempo, que se relaciona sempre com Stimmungen como o medo, a ânsia, etc., o seu significado é, no essencial, o mesmo: o de pôr em estado de suspensão o carácter óbvio do mundo, de suscitar uma preocupada admiração pelo facto, em si insignificante (em sentido rigoroso, não remete para nada, ou remete para o nada), de que o mundo existe. Até que ponto a noção de Stoss tem realmente a ver, além da proximidade terminológica, com o shock de que fala Benjamin, em relação com os media da reprodutibilidade? Heidegger parece ligar o Stoss da obra de arte ao facto de que ela é «um pôr-em-obra da verdade», isto é, uma nova abertura ontológico-epocal; neste sentido, só se deveria falar de Stoss em referência a grandes obras que se apresentam como decisivas na histórica de uma cultura ou, pelo menos, na experiência vivida das pessoas singulares: a Bíblia, os trágicos gregos, Dante, Shakespeare ... O shock
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Essere e Tempo, cit., pp. 296-297.
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de Benjamin parece ser, no entanto, algo muito mais simples e familiar, precisamente como a rápida sucessão de imagens na projecção do cinema, que exige do espectador uma prestação análoga à requeri da a um condutor que se movimenta no tráfego da cidade. Todavia, os dois conceitos, o de Heidegger e o de Benjamin, têm pelo menos um traço em comum: a insistência no desenraízamento. Num e noutro caso, a experiência estética surge como uma experiência de estranhamento, que exige um trabalho de recomposição e de readaptação. Este trabalho não visa, no entanto, alcançar uma condição final de recomposição; a experiência estética tem como objectivo, pelo contrário, manter vivo o desenrafzamento. Para Benjamin, dado o exemplo do cinema por ele escolhido, é desde logo evidente que não podemos pensar que a experiência do filme se realize quando ele se reduz a um quadro estático. Para Heidegger, a experiência do despaísamento da arte contrapõe-se à da familiaridade do objecto de uso, no qual o carácter enigmático do Dass (do «quê») «se dissipa no carácter utilitário». Não podemos supor que Heidegger pensa numa «conclusão» da experiência de desenraízamento estético através de uma recuperação da familiaridade e do óbvio, como se o destino da obra de arte fosse transformar-se, no fundo, num simples objecto de uso. O estado de despaísamento - quer para Heidegger, quer para Benjamin - é constitutivo e não provisório. É precisamente o que constitui o elemento mais radicalmente novo destas posições estéticas nas confrontações da tradicional reflexão sobre o belo - e até da sobrevivência desta tradição nas teorias estéticas do nosso século. Desde a doutrina aristotélica de catarse, até ao livre exercício das faculdades de Kant, até à concepção do belo como perfeita correspondência de interior e exterior em Hegel, a experiência estética parece ter sido sempre descrita em termos de Geborgenheit, - de segurança, de «adaptação» ou «readaptação». Podemos indicar o novo elemento da posição de Heidegger e de Benjamin, através do qual eles se diferenciam 62
de todas as concepções da experiência estética em termos de Geborgenheit, mediante a noção de oscilação. Isto requer uma deslocação de acento no modo habitual de interpretar o sentido da estética de Heidegger: esta é, de facto, uma doutrina carregada de ênfase romântica, se insistirmos muito na função de «fundação» que a obra de arte exerce nos confrontos do mundo. Realmente, em Heidegger há também a seguinte insistência: «o que dura é criado pelos poetas», segundo a afirmação de HOlderlin, que ele tantas vezes cita; significa isto que na poesia ocorrem as viragens decisivas da linguagem, linguagem que é a «casa do ser», ou seja, o lugar em que se definem as coordenadas fundamentais de todas as experiências possíveis do mundo. Todavia, o que mais interessa a Heidegger, e que surge quer em muitas páginas do ensaio de 1936, quer nas suas leituras dos poetas(9), não é a definição positiva do mundo, que a poesia inicia e funda, mas a determinação da capacidade de «ruptura» que a poesia inseparavelmente, sempre tem. Fundação e ruptura são o sentido dos dois aspectos que Heidegger assinala como constitutivos da obra de arte, ou seja, a exposição (Auf-stellung) do mundo e a pro-dução (Her-stellung) da «terra». O mundo exposto pela obra é o sistema de significados que ela inaugura; a terra é pro-duzida pela obra enquanto apresentada, mostrada como o fundo obscuro, nunca totalmente consumável em enunciações explícitas, nas quais se enraíza o mundo da obra. Se, como já vimos, desenraízamento é o elemento essencial e não provisório da experiência estética, a terra é muito mais responsável por tal despaísamento do que o mundo; só pelo facto de o mundo de significados desenvolvido na obra estar obscuramente radicado (portanto, não logica-
e) Está finalmente disponível uma tradução italiana, excelentemente preparada por L. Amoroso, dos escritos de Heidegger sobre La poesia di Holderlin, Adelphi, Milão, 1988. 63
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mente «fundado») na terra, a obra produz um efeito de despaísamento: a terra não é mundo, não é sistema de conexões significativas, é o outro, o nada, gratuidade e insignificância geral. A obra só é fundação enquanto produz um contínuo efeito de desenraízamento nunca recomponível numa Geborgenheit final. A obra de arte nunca é tranquilizante, «bela» no sentido da perfeita conciliação de interno e externo, essência e existência, etc. Talvez possa ter algo de catarse aristotélica, mas só se a catarse for entendida como exercício de finitude, um reconhecimento dos limites intransponíveis, terrestres, da existência humana; não como purificação perfeita, mas como phrónesis. É neste sentido, não tanto fundante como de ruptura, que o Stoss heideggeriano se pode interpretar como análogo ao shock de que fala Benjamin. A analogia desaparece e parece absurda quando, à aparente insignificância do schok de Benjamin, se contrapõe uma visão enfática da obra de arte como inauguração e fundação de mundos histórico-culturais. Mas ler nestes termos a teoria de Heidegger significa ainda interpretá-Ia de forma metafísica ou, falando em termos heideggerianos, ôntica: neste caso, o Stoss dependeria do facto, da imponência positiva, das proporções decisivas do novo mundo que inaugura a obra e funda; interpretar e fruir a obra significaria uma estabilização neste mundo e na sua nova significação. Mas é claro que a Heidegger, no Stoss e na angústia, interessa o desenraízamento em relação a qualquer mundo - quer o que é dado, quer o que é perspectivado pela obra em termos positivos. «O cinema - diz Benjamin - é a forma de arte que corresponde ao perigo cada vez maior de perder a vida ...» Mas, no contexto de todo o seu ensaio, é também a forma de arte que realiza a essência tardo-moderna de toda a arte, aquela à luz da qual se torna então possível cada uma das experiências estéticas, mesmo de obras de arte do passado. Esta experiência já não pode ser caracterizada por nenhuma Geborgenheit, por nenhuma segurança e conciliação; pelo contrário, é essencialmente precária, ligada não 64
só aos perigos acidentais a que a vida do peão metropolitano está sujeita, mas à própria estrutura precária da existência em geral. O shock característico das novas formas de arte da reprodutibilidade é apenas o modo em que de facto se realiza, no nosso mundo, o Stoss de que fala Heidegger, a oscilação essencial e desenraízamento que constitui a experiência da arte. Enquanto no ensaio de Benjamin se capta facilmente uma orientação geral de valorização positiva da existência tecnológica, dado que o fim do valor cultural e aurático da obra de arte é por ele explicitamente entendido como uma chance positiva de libertação da arte da superstição, da alienação, em suma, das grilhetas da rnetafísica, parece que Heidegger é um juiz severo das condições de existência moderna, sobretudo porque a banalização da linguagem, que se verifica na sociedade da comunicação generalizada, destruiria a própria possibilidade de existência da obra como obra, reduzindo-a à insignificância. Mas é difícil demonstrar que Heidegger seja um teórico da obra de arte no sentido cultural da palavra, isto é, que ele veja o valor estético da obra ligado ao hic et nunc da sua presença de forma conseguida e perfeita, de produto do artista entendido como génio criador. São categorias que, embora essenciais na concepção cultural da obra de arte, são radicalrnente estranhas à atitude heideggeriana, segundo a qual a obra é «o pôr-em-obra da verdade» precisamente por ser sempre mais do que arte, mais do que forma conseguida e perfeita ou resultado de um acto criativo ou de uma mestria. A obra funciona como abertura da verdade porque é um «acontecimento» (Ereignis) do ser, o qual tem a sua essência de acontecimento no ser subvertido e «expropriado» no «jogo de espelhos do mundo» (como diz Heidegger no seu ensaio sobre «A coisa»)eo).
eo) O ensaio está inserido no volume Saggi e discorsi (1954), tradução italiana de G. Vattimo, Mursia, Milão, 1976.
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É mais importante aprofundar agora um outro problema, o da atitude de Heidegger nos confrontos com as características da existência humana no mundo da técnica. Esclarecendo este problema, podem encontrar-se importantes indicações sobre o significado estranhante e «oscilatório» da experiência estética na modernidade mais recente, indicações que servem também para desenvolver os elementos implícitos nas propostas de Benjamin. (Diga-se de passagem que é possível que ambos, Heidegger e Benjamin, tenham ido buscar os elementos para a descrição da existência humana na metrópole moderna a George Simmel)(ll). Voltemos às páginas de Identidade e Diferença e de Ensaios e Discursose2), nas quais Heidegger ilustra a sua noção de Ge-Stell. Com este termo, que, aproximativamente, se pode traduzir por im-posição, Heidegger caracteriza todo o conjunto da técnica moderna que, na generalidade, se pode pensar como um Stellen, como um «pôr»: o homem põe as coisas como objectos da sua manipulação mas, por sua vez, são-lhe sempre exigidas novas prestações, de tal modo que o Ge-Stell é uma espécie de contínua e desenfreada provocação recíproca de homem e ser. Mas a essência da técnica moderna assim definida não é apenas o supremo ponto de chegada do esquecimento metafísico do ser; para Heidegger, o Ge-Stell é também «um primeiro e premente relampejar do ereignis»(13), isto é, do acontecimento do ser, para além do esquecimento metafísico
delee4). Heidegger vê mesmo no Ge-Stell, isto é, na sociedade da técnica e da manipulação total, uma chance de ultrapassar o esquecimento e a alienação metafísica em que viveu até agora o homem ocidental. O Ge-Stell pode oferecer esta chance, precisamente porque se define em termos que são quase idênticos aos usados por Benjamin quando fala do shock. Efectivamente, Heidegger escreve: no Ge-Stell, «toda a nossa existência é provocada algures - ora em jogos, ora impulsivamente, ora estimulada, ora impelida - para se entregar à planificação e ao cálculo de cada coisa»es). A provocação a que se sujeita a existência do homem moderno é análoga à condição do peão citadino de Benjamin, para o qual a arte não pode deixar de ser shock, despaísamento contínuo e, no fundo, exercício de mortalidade. A chance de ultrapassar a metafísica que o Ge-Stell proporciona está ligada ao facto de que, nele, «homem e ser perdem as determinações que a metafísica lhes atribuiu»ct6): a natureza já não é apenas o lugar das leis necessárias das «ciências positivas», e o mundo humano também ele duramente submetido às técnicas de manipulação - já não é o complementar, e simetricamente oposto, reino da liberdade, campo das «ciências do espírito». Neste baralhar de cartas, o teatro da metafísica com os seus papéis definitivos acaba, podendo, por isso, proporcionar-se uma chance de novo advento do ser. A nossa terminologia estética, os conceitos de que dispomos para falar de arte - quer como produção, quer
e1) Ver de G. Simmel o ensaio «La metropoli e Ia vita mentale» (1903), tradução italiana de F. Luciano no volume Immagini deU' uomo, preparada por Ch. Wright Mills, Comunità, Milão, 1965. e2) Identitá e differenza (1957) está traduzido em italiano por U. Ugazio em «aut aut», n.º 187-88, Janeiro-Abril 1982; para Saggi e discorsi ver a tradução citada na nota 10. (13) Identitá e dif.ferenza, cit., p. 14.
e4) Sobre este conceito de esquecimento do ser próprio da metafísica, e sobre outros termos da filosofia heideggeriana, podem encontrar-se mais ilustrações no meu livro Introduzione a Heidegger, Laterza, Roma-Bari, 1982. (Tradução portuguesa: Introdução a Heidegger, Lisboa, Edições 70, 1989.) es) Identità e differenza, cit., p. 11. e6) Ibid., p. 13.
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como fruição - e que regressam sempre, sob diversas formas, à nossa reflexão, serão os adequados para pensar a experiência estética como despaísamento, oscilação, ruptura, shock? Um sinal de que não o são poderia verificar-se no facto de que a teoria estética ainda não fez justica aos mass media e às possibilidades que eles oferecem. Isto é, continua a parecer que se trata de «salvar» uma essência de arte (criatividade, originalidade, fruição da forma, conciliação, etc.) das ameaças que as novas condições de existência da civilização de massa representam não só para a arte, diga-se, mas para a própria essência do homem. As condições da reprodutibilidade, particularmente, são consideradas inconciliáveis com as exigências da criatividade, que parece ser indispensável na arte, não só porque a rápida difusão das comunicações tende a banalizar imediatamente cada mensagem (que, aliás, para satisfazer as exigências dos media, já nasce sempre banalizada) mas, sobretudo, porque se reage a este consumo dos símbolos através da invenção de «novidades» que, como as da moda, não possuem a radicalidade que parece necessária à obra de arte, antes se apresentando como jogos superficiais. Os mass media conferem, de facto, a todos os conteúdos que difundem uma característica peculiar de precariedade e superficialidade; esta entra duramente em choque com os preconceitos de uma estética que se inspira sempre, mais ou menos explicitamente, no ideal da obra de arte como «monumentum aere perennius», e da experiência estética como experiência que co-implica profunda e autenticamente o sujeito, criador ou espectador. Estabilidade e perenidade da obra, profundidade e autenticidade da experiência produtiva e fruidora são coisas que, na verdade, não podemos esperar da experiência estética tardo-moderna, dominada pela potência (e impotência) dos media. Contra a nostalgia pela eternidade (da obra) e pela autenticidade (da experiência), temos de reconhecer claramente que o shock é tudo o que resta da criatividade da arte, na época da comunicação generalizada. E o shock é definido 68
por duas características que reconhecemos, ao seguir as indicações de Benjamin e de Heidegger: em primeiro lugar, é apenas, no fundo, uma mobilidade e hipersensibilidade dos nervos e da inteligência, característica do homem metropolitano. A esta excitabilidade e hipersensibilidade corresponde uma arte, não já centrada na obra mas na experiência, mas pensada em termos de variações mínimas e contínuas (segundo o exemplo da percepção do cinema). São elementos que a estética dos séculos XIX e XX, embora sem desenvolver as suas últimas consequências, tantas vezes teorizou: Heidegger assinala-as, por exemplo, aliás de modo polémico, na teoria da arte de Nietzsche. A segunda característica que constitui o shock como único resíduo da criatividade na arte da recente modernidade é aquela que Heidegger pensa sob a noção de Stoss. Isto é, o desenraízamento e a oscilação que têm a ver com a angústia e a experiência da mortalidade. Ou seja, o fenómeno descrito por Benjamin como shock não diz apenas respeito às condições da percepção, nem é apenas um facto a confiar à sociologia da arte; é antes o modo de a obra de arte actuar como conflito entre mundo e terra. O shock-Stoss é o Wesen, a essência, da arte nos dois sentidos que esta expressão tem na terminologia heideggeriana, ou seja, o modo como se nos apresenta, na modernidade recente, a experiência estética; e é também o que nos parece essencial para a arte tout court, isto é, o seu acontecer como nexo de fundação e ruptura, na forma da oscilação e do despaísamento; em suma, como exercício de mortalidade. Chegar-se-á assim à proposta de uma apologia demasiado expedita da cultura de massa, liberta, segundo parece, de todas as características alienantes eficazmente reconhecidos por Adorno e pela sociologia crítica? O equívoco desta sociologia surge-nos hoje baseado no facto de não ter distinguido as condições de alienação política, próprias das sociedades de organização total, dos elementos de novidades implícitos nas condições de existência tardo-modernas. O resultado deste equívoco é que, muitas ve69
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zes, a perversidade da massificação e da organização total foi condenada em nome de valores humanistas cujo alcance crítico estava ligado exclusivamente ao seu anacronismo. De facto, eram valores inspirados em momentos precedentes da metafísica que desembocaram, como Heidegger viu bem, precisamente na organização total da sociedade. Hoje, talvez estejamos em condições de reconhecer que os elementos de superficialidade e precariedade da experiência estética, tal como se realiza na sociedade tardo-moderna, não são necessariamente sinais e manifestações de alienação, ligados aos aspectos desumanizantes da massificação. Contrariamente ao que a sociologia crítica acreditou durante longo tempo - e com boas razões, infelizmente - a massificação niveladora, a manipulação do consenso, os erros de totalitarismo não são o único resultado possível do advento da comunicação generalizada, dos mass media, da reprodutibilidade. Paralelamente à possibilidade - que deve ser decidida politicamente - destes resultados, abre-se uma possibilidade alternativa: de facto, o advento dos media comporta igualmente uma acentuada mobilidade e superficialidade da experiência, que contrasta com as tendências para a generalização do domínio, dando lugar, entretanto, a uma espécie de «enfraquecimento» da própria noção de realidade, com o consequente enfraquecimento, também, de toda a sua coacção. A «sociedade do espectáculo», de que falaram os situacionistas, não é só a sociedade das aparências manipuladas pelo poder; é também a sociedade em que a realidade se apresenta com características mais flexíveis e fluídas e na qual a experiência pode adquirir os aspectos da oscilação, de despaísamento, do jogo. A ambiguidade que muitas teorias contemporâneas consideram característica da experiência estética não é uma ambiguidade provisória: não se trata, através do uso mais livre e menos automatizado da linguagem que se verifica na poesia, de nos tomarmos - como sujeitos - mais se70
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nhores da linguagem em geral. Neste caso, a ambiguidade poética é apenas meio para produzir, afinal, uma mais plena apropriação da linguagem por parte do sujeito; portanto, trata-se também de um desenraízamento instrumental, visando um enraízamento conclusivo, que fica prisioneiro, se não da categoria de obra, pelo menos da categoria de sujeito, que as faz corresponder. A experiência da ambiguidade é, pelo contrário, constitutiva da arte, tal como a oscilação e o despaísamento; são estas as únicas vias através das quais a arte se pode configurar (não ainda, mas talvez finalmente) como criatividade e liberdade no mundo da comunicação generalizada.
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DA UTOPIA À HETEROTOPIA A transformação mais radical que se verificou, entre os anos sessenta e hoje, no tocante à relação entre arte e vida quotidiana pode descrever-se, segundo me parece, como uma passagem da utopia à heterotopia. Os anos sessenta (e sem dúvida, principalmente sessenta e oito, mas trata-se de um movimento que só vem culminar na contestação daquele ano e que está vivo desde o imediato pós-guerra) assistem a uma vasta difusão de perspectivas orientadas para um resgate estético da existência, que nega, mais ou menos explicitamente, a arte como momento «especializado», como «domingo da vida», no sentido em que falava Regel. A utopia apresenta-se obviamente na sua forma mais explícita e radical no marxismo; mas tem também uma versão «burguesa», que se pode encontrar na ideologia do design que se impõe amplamente, por exemplo, através da popularidade de Deweye), na
e) De Dewey, veja-se sobretudo L' arte come esperienza (1934), tradução italiana sob a direcção de C. Maltese, La Nuova Italia, Florença, 1966; e sobre a estética de Dewey o belo estudo de R. Barilli, Per una estetica mondana, Il Mulino, Bolonha, 1964. 73
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filosofia e na crítica europeia dos anos cinquenta. Também Dewey, como os teóricos e os críticos marxistas (de Lukács aos mestres de Francoforte e a Marcuse) tem ascendências hegelianas. Para Dewey, a experiência do belo está ligada à percepção de um fullfilment que tem tudo a perder ao ser separado do concreto da vida quotidiana: se existe um campo da arte em sentido específico, ele alude a uma sensação de harmonia mais geral, que tem as suas raízes na utilização dos objectos, no estabelecimento de equilíbrios satisfatórios entre indivíduo e ambiente. Quanto às várias formas de marxismo, têm em comum a ideia de que a separação da arte e a especificidade da experiência estética são aspectos da divisão do trabalho social que deve ser eliminada com a revolução, ou então com uma transformação da sociedade no sentido de reapropriação, por parte de todos, de toda a essência do homem. Em Lukács, esta perspectiva age principalmente ao nível de metodologia crítica (realismo não é puro reflexo das coisas tais como são, mas uma representação da época e dos seus conflitos com uma referência implícita à emancipação e à reapropriação); em Adornoe), a promesse de bonheur constitutiva da arte processa-se sobretudo como instância negativa e desmascaramento da desarmonia do existente - com a correlativa revalorização «revolucionária» das vanguardas históricas, que o realismo lukacsiano considerava, por sua vez, puros sintomas da decadência. Esta revalorização das vanguardas em chave utópica explicita-se depois, até às suas extremas consequências, no sonho marcusiano de uma existência esteticamente (e também sensível e sensualmente) libertada na sua totalidadee). Se Adorno tinha aberto o
caminho a uma consideração positiva, do ponto de vista marxista, das vanguardas, sobretudo como revoluções formais das linguagens das várias artes (a dodecafonia de Schonberg, o silêncio de Beckett ...), Marcuse «sintetiza» igualmente na sua utopia outros aspectos significativos da vanguarda, por exemplo, as instâncias de uma transformação geral das relações entre experiência estética e quotidianidade, instâncias valorizadas pelo surrealismo e pelo situacionismo. Como pano de fundo de tudo isto estão alguns grandes mestres do marxismo crítico - Benjamin para Adorno, Bloch para Marcuse; e personagens como Henri Lefebvre(4), mais explicitamente ligadas à experiência das vanguardas e do seu prolongamento até aos primeiros anos cinquenta, como é precisamente o caso do situacionismo. Olhando aqueles anos com a distância relativa que hoje deles nos separa, surgem também atenuadas as diferenças teóricas nada pequenas que distinguiam, por exemplo, a ideologia do design (o sonho de um resgate estético da quotidianidade através da optimização das formas dos objectos, do aspecto do ambiente) da atitude revolucionária dos vários marxismos. A partir destes pontos de vista entre si diversos visava-se sempre uma unificação global de significado estético e significado existencial que podemos, com todo o direito, considerar uma utopia. Utopia era, segundo a famosa obra de Bloch, de 1918e), o significado das vanguardas artísticas dos princípios do século XX; e
e) De Adorno, ver sobretudo a Teoria Estetica (1970), tradução italiana de E. De Angelis, Einaudi, Turim 1975, que apresenta teses já propostas em obras anteriores de Adorno. (Tradução portuguesa, Teoria Estética, Lisboa, Edições 70, 1982.) e) De H. Marcuse, além do clássico Eros e civilità (1955), tradução italiana de L. Bassi, Einaudi, Turim 1964, ver os en-
saios recolhidos em Cultura e società (1965), tradução italiana de C. Ascheri, H. Osterlow e F. Cerruti, Einaudi, Turim, 1969, e La dimensione estetica (1977), tradução italiana de Cannobbio-Codelli, Mondadori, Milão, 1978. (Tradução portuguesa, A Dimensão Estética, Lisboa, Edições 70, 1981.) (4) De Henri Lefebvre, ver sobretudo, sobre estes temas, a Critique de Ia vie quotidienne, Paris, 1947. (5) E. Bloch, Spirito deU'utopia (1918 e 1923), tradução italiana de F. Coppellotti e V. Bertolino, La Nuova ltalia, Florença,1980.
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estas vanguardas, tendo entretanto passado (através da Bauhaus, como ocorreu historicamente), em muitos dos seus aspectos, pela ideologia do design, por outro lado, através de um longo caminho (da recusa de Lukács até Adorno e, finalmente, até Marcuse), haviam-se ligado ao marxismo revolucionário (tal nexo, a nível de massa, é de resto um dos significados, ou o significado de 68). Desta grande utopia unificadora - que era utopia da unificação estética da experiência, e que unificava orientações teóricas e políticas diversas, conferindo-Ihes uma atitude geral de indiferença em relação ao que Nietzsche denominou «a arte das obras de arte», a favor do design ou a favor do resgate revolucionário de toda a existência - já não resta hoje, assim parece, grande coisa. É já raro, tanto quanto sei, que o discurso crítico sobre as artes ponha ainda explicitamente o problema do significado geral da arte, conjuntamente com o problema do significado e do valor da obra. Aquilo que Adorno considerava a essência da vanguarda e a sua verdadeira amplitude utópica, ou seja, o factor de pôr em discussão a própria essência da arte com a obra singular, parece não ser hoje uma questão actuaL Como se o «sistema do espírito», com as suas distinções e especializações, tivesse sido completamente restabelecido: paradoxalmente, também uma obra como a de Habermas, que se apresenta como reivindicação do permanente valor do programa moderno de emancipação, assume como ponto de referência não controverso a distinção de origem kantiana dos âmbitos de vários tipos de acção social, o teleológico, o regulador por normas e o expressivo e dramatológico - reservando a este último, de qualquer maneira, a esfera estética(6). A acção comunicativa, que representa em Haber-
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(6)Ver J. Habermas, Teoria deU' agire comunicativo (1981), tradução italiana de P. Rinaudo, sob a direcção de G. E. Rusconi, 11Mulino, Bolonha, 1986 (2 vols.).
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mas o momento culminante desta tipologia, não põe realmente em discussão a distinção dos outros três, antes valendo como norma transcendental que zela para que não se realizem colonizações indevidas (em primeiro lugar, dos vários interesses expressos nas três formas de acção em detrimento da comunicatividade; mas, provavelmente, também de cada um dos três tipos de acção sobre cada um dos outros). Não tenciono, no entanto, discutir aqui especificamente a Teoria da Acção Comunicativa de Habermas, mas apenas mostrar nela um exemplo de uma certa restauração teórica da separação e especialização do estético, que aqui, segundo uma tradição de pensamento profundamente enraízada na modernidade, é remetido para a expressividade. O facto de Habermas retomar o conceito kantiano de razão tripartida é apenas um sintoma da situação geral a que pretendo referir-me. O conceito de razão tripartida não é necessariamente citado como facto «negativo» e a criticar como um retomo teórico e prático (ainda que, como espero mostrar mais adiante, não tenha a menor pretensão de compartilhar a posição de Habermas e a sua intrépida defesa da actualidade do moderno). Habermas exprime, neste aspecto da sua teoria, a queda da utopia e o regresso a uma tranquila aceitação da separação do estético. No entanto, o que acontece na relação entre arte e vida quotidiana nos anos recentes não é só isto, ou principalmente isto: o retomar da estética kantiana por parte de Habermas poderia antes citar--se como sinal do facto de que a sua defesa do lIuminisrno e da modernidade implica também uma surdez específica nas confrontações de muitos fenómenos que estão relacionados com a cultura «estética» massificada, e que Ilabermas não «quer» ver e reconhecer na sua amplitude. O retomo da mie aos seus limites, após a utopia dos anos sessenta, é apenas um aspecto da situação que nos interessa, situação que Habermas - no tocante à estética - parece isolar de acordo com alguns dos seus preconceitos teóricos (ou seja, de acordo com a sua recusa da pós-modernidade).
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c) De H. G. Gadamer, além do já citado Verità e metado, ver L' attualità deI helio, tradução italiana de R. Dottori e L. Bottani, Marietti, Génova, 1986, e Persuasività delia letteratura, tradução italiana sob a direcção de R. Dottori, Transeuropa, Ancona, 1988.
bém a sua problemática, nas confrontações da qual não podemos deixar de tomar posição. Na sociedade em que Kant pensava e escrevia, o consenso da comunidade na fruição de um objecto belo podia ainda viver-se, pelo menos tendencialmente, como consenso da humanidade em geral. É verdade, para Kant, que, quando tenho a fruição de um objecto, atesto e vivo a minha pertença a uma comunidade, mas esta comunidade - ainda que pensada apenas como possível, contingente e problemática - é a própria comunidade humana. A cultura de massas não nivelou a experiência estética, homologando todo o «belo» aos valores daquela comunidade -- a sociedade burguesa europeia que se sentia portadora privilegiada do humano; pelo contrário, evidenciou de modo explosivo a multiplicidade dos «belos», dando a palavra a culturas diversas - com a investigação antropológica - mas também a «subsistemas» internos da própria cultura ocidental. De facto, o fim da utopia do resgate estético da existência através da unificação do belo com o quotidiano ocorreu paralelamente, e pelos mesmos motivos, no final da utopia revolucionária dos anos sessenta: devido à explosão do sistema, à impossibilidade de pensar a história como curso unitário. Quando a histÓria se toma, ou tende a tomar-se, de facto, história universal --- dado que nela tomaram a palavra os inúmeros excluídos, sem palavra, destituídos - tomou-se impossível pens(í--Ia verdadeiramente como tal, como um curso unit(írio, eventualmente dirigido a uma emancipação. A utopia, mesmo nos seus aspectos estéticos, implicava o quadro de referência da história universal como curso unitário. E dissolveu-se, também no plano estético, com a realização efectiva de uma certa «universalidade» na forma como tomaram a palavra os diversos modelos de valor e de reconhecimento. O que aconteceu, quanto à experiência estética e ao seu modo de relacionamento com a vida quotidiana, não foi só o «retomo» da arte às suas sedes canónicas modernas, mas também, e sobretudo, o delineamento de uma experiência estética de massa como tomada de
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Mas o certo é que a utopia estética dos anos sessenta está, de qualquer maneira, a realizar-se, de forma distorcida e transformada, sob os nossos olhos. Se, por um lado, a arte no seu sentido tradicional, a arte das obras de arte, regressa à ordem, na sociedade a sede da experiência estética desloca-se: não já no sentido do design generalizado e de uma universal higiene social das formas, nem como resgate estético-revolucionário da existência no sentido de Marcuse, mas como desenvolvimento da capacidade do produto estético - não nos referimos, evidentemente, à obra de arte - de «fazer mundo», de criar comunidade. Deste ponto de vista, talvez a interpretação mais teoricamente fiel e adequada da experiência estética, que tem sido apresentada nos últimos anos, seja a proposta pela ontologia hermenêutica de Gadamer. Para GadamerC), como sabemos, a experiência do belo é caracterizada pelo reconhecimento numa comunidade de fruidores do mesmo tipo de objectos belos, naturais e de arte. A razão é reflexiva, segundo a terminologia de Kant, não só porque não se refere ao objecto, mas ao estado do sujeito, mas porque se refere ao sujeito como membro de uma comunidade (o que, em certa medida, está já presente em algumas páginas da Crítica da Razão). A experiência do belo, mais fundamentalmente do que experiência de uma estrutura que aprovamos (mas na base de que critérios?) é, em suma, experiência de pertença a uma comunidade. É fácil ver como e porquê uma tal concepção do estético se pode apresentar com um carácter particularmente persuasivo, em especial hoje: a cultura de massa multiplicou e tomou macroscópico este aspecto da estética, evidenciando tam-
palavra por parte de múltiplos sistemas de reconhecimento comunitário, de múltiplas comunidades que se manifestam, se exprimem e se reconhecem em modelos formais e em mitos diferentes. Assim, a essência «moderna» da experiência estética, que Kant já tinha descrito na Critica da Razão, desdobrou-se em toda a sua amplitude, mas também se redefiniu: o belo é a experiência de comunidade, mas a comunidade, precisamente quando se realiza como facto «universal», sofre um processo de multiplicação, de pluralização imparável. Vivemos numa sociedade intensamente estetizada, precisamente no sentido «kantiano» da palavra, isto é, onde o belo age como instituição de comunidade, mas em que, devido precisamente a tal intensificação, parece ter-se dissolvido o outro aspecto da universalidade kantiana, a identificação, pelo menos tendencial e reivindicativa, da comunidade estética com a comunidade humana tout court. Mesmo na estética esperamos aquilo que, com diversas modalidades e carga dramática, acontece na ciência, que sempre parecera (refiro-me, aqui, ainda ao modo como Habermas fala: a acção teleológica pressupõe um mundo «objectivo», uno) o lugar de dádiva do mundo como objecto único, ou seja, esperamos que o mundo não seja uno, mas multifacetado; o que denominamos o mundo talvez seja apenas o âmbito «residual» e o horizonte regulativo (mas com que problemas) em que os mundos se articulam. É verosímil que a experiência estética da sociedade de massa, a vertiginosa proliferação de «belezas» que fazem mundos, seja profundamente modificada pelo facto de o mundo unitário, de que a ciência julgava poder falar, se ter revelado uma multiplicidade de mundos diversos. Já não é possível falar de experiência estética como pura expressividade, pura coloração emotiva multíplice do mundo, como acontecia quando se pensava que este mundo-base fosse, de qualquer modo, dado, possível de encontrar com os métodos da ciência. Isto deixa seguramente aberto o problema da redefinição da estética e talvez tome impos80 I
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sível «defini-Ia» delimitando-a e diferenciando-a: também aqui, parece que nos encontramos face a uma realização imprevista, e talvez «distorcida»(8), da utopia. O desenvolvimento da experiência estética como experiência de comunidade e não como avaliação de estruturas verifica-se, no entanto, exclusivamente no mundo da cultura de massa, do historicismo difuso e do fim dos sistemas unitários. É por isso que não se trata de uma realização pura e simples da utopia, mas de uma realização distorcida e transformada: a utopia estética só se realiza desenvolvendo-se como heterotopia. Vivemos a experiência do belo como reconhecimento de modelos que fazem mundo e que fazem comunidade apenas no momento em que estes mundos e estas comunidades são explicitamente dadas como múltiplices. Nisto talvez se encontre também um fio condutor normativo, capaz de responder às preocupações que sublinham que se o belo é sempre, de qualquer maneira, unicamente experiência de comunidade, deixaremos de ter qualquer critério para distinguir a comunidade violenta dos nazis que ouvem Wagner, ou dos rockers que eventualmente se preparam para violências e vandalismos, da comunidade dosfans de Beethoven ou da Traviata ... Ao constatarmos que a universalidade em que Kant pensava se real iza para nós sob a forma da multiplicidade, podemos assumir legitimamente como critério normativo a pluralidadc explicitamente vivida como tal. O que de modo legítimo, e nào só na falsa consciência da ideologia, era para Kanl o apelo à comunidade humana universal (a expectativa de que, em torno dos valores do belo «burguês», se
(8) Esta «distorção»
é pensada na base de um termo central
da filosofia de Heidegger, a Verwindung; nas confrontações da metafísica, isto é, do esquecimento do ser, o pensamento só pode exercer uma acção de «distorção» que, de certo modo, também segue e aceita a tradição; sobre tudo isto, ver o último capítulo do meu livro O Fim da Modernidade.
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solidificasse o consenso de qualquer ser humano verdadeiramente digno desse nome), tomou-se hoje, nas diversas condições da história do ser, a referência explícita à multiplicidade. O reconhecimento de si que grupos e comunidades fazem nos seus modelos de beleza tem, intrinsecamente, urna norma, fornecida pelo modo de ocorrência, pelo Wesen da arte e do estético nas condições do nosso destino histórico: a norma segundo a qual a experiência do reconhecimento de urna comunidade num modelo se deve fazer em referência explícita, com explícita abertura, à multiplicidade dos modelos. Sim, isto equivale provavelmente a passar a positiva, tomando-a corno padrão, a atitude que Nietzsche, na sua segunda consideração intempestiva(9) descria corno típica do homem do século XIX, produto de urna cultura histórica exagerada, o qual vagueia corno um turista no jardim da história, e corno numa loja de máscaras teatrais junto com disfarces sempre diferentes. A experiência estética toma-se inautêntica quando, nas actuais condições de pluralismo vertiginoso dos modelos, o reconhecimento de um grupo por si mesmo nos próprios modelos vive e se apresenta ainda sob a forma da identificação da comunidade com a própria humanidade; isto é, apresenta o belo e a comunidade determinada que o reconhece, corno um valor absoluto. A «verdade» possível da experiência tardo-moderna é provavelmente o «coleccionismo», a mobilidade da modas e também o museu e, no fundo, o próprio mercado, corno lugar de circulação de objectos que desmitificaram a referência ao valor de uso e são puros valores de troca: não necessariamente apenas de troca monetária, mas de troca simbólica, não status symbois, cartões de identificação de grupos. Talvez não seja
(9) Ver F. Nietzsche, Sul!' utilità e il danno del!a storia per Ia vila, (segunda das «Considerazioni inattuali», 1874), tradução italiana de S. Giametta, em Opere, ed. Colli-Montinari, voL m, 1., Ade1phi, Milão, 1972. i
arriscado aventar a hipótese de que muitos discursos teóricos da estética filosófica e da crítica das artes se expliquem hoje, apesar de tudo, ainda corno esforços para valorizar critérios «estruturais» na consideração das obras de arte. Mas nem todas as teorias se movem neste sentido exorcizante e de fuga regressiva: a partir de Dilthey, cujas teses reencontramos em Ricoeur e, antes ainda, em Heidegger, a capacidade da obra de arte de «fazer mundo» é sempre pensada no plural - portanto, não em sentido utópico, mas em sentido heterotópico: é precisamente no ensaio sobre A origem da obra de arte, de 1936, que Heidegger fala, já não do mundo, corno em Ser e tempo, mas de um mundo (e logo, implicitamente, de muitos mundos). E Diltheyeo) vê já o sentido profundo da experiência estética (e da própria experiência historiográfica) na sua capacidade de nos fazer viver, na dimensão imaginária, outras possibilidades de existência, dilatando deste modo os limites da possibilidade específica que realizamos no quotidiano. Para Heidegger, bastará sair do horizonte ainda fundamentalmente cientista em que Dilthey se move, para ver o sentido da experiência estética na abertura de um mundo ou mundos, que não são «só» imaginários, mas que constituem o próprio ser, são acontecimentos de ser. Esta leitura teórica, apenas esboçada, da transformação da experiência estética dos últimos vinte anos pode ser concluída, ainda que provisoriamente, com a explicitação de duas implicações já incluídas no que acima dissemos: a passagem da utopia à hcterotopia comporta corno seu aspecto mais relevante a libertação do ornamento e, corno seu significado ontológico, o despojamento do ser. A libertação do ornamento, ou melhor ainda, a descoberta do carácter de ornamento do estético, da essência
eo) Ver, de Dilthey, os textos recolhidos em italiano em Critica del!a ragione storica, sob a direcção de p, Rossi, Einaudi, Turim, 1954.
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ornamental do belo, é o próprio sentido da heterotopia da experiência estética. O belo não é o lugar de manifestação de urna verdade que nele encontra expressão sensível, provisória, antecipatória, educativa, corno muitas vezes quis a estética metafísica da tradição. A beleza é ornamento no sentido de que o seu significado existencial, o interesse a que corresponde, é a dilatação do mundo da vida num processo de reenvio a outros possíveis mundos de vida, que, entretanto, não são só imaginários ou marginais ou complementares ao mundo real; mas compõem, constituem, no seu jogo recíproco e corno seu resíduo, o chamado mundo real. A essência ornamental da cultura da sociedade de massa, o carácter efémero dos seus produtos, o eclectismo que a domina, a impossibilidade de lhe reconhecer um qualquer carácter essencial - que tantas vezes nos faz falar de kitsch relativamente a esta cultura - corresponde plenamente ao Wesen do estético, na modernidade tardia. Ou seja, não é na base de um regresso a valorizações «estruturais», centradas no objecto belo, que se pode assumir urna atitude selectiva nas confrontações desta cultura. O kitsch, a existir, não deixa de responder a critérios formais rigorosos e efectua-se no carácter inautêntico da falta de um estilo forte. O kitsch é apenas o que, na época do ornamento plural, pretende ainda ser válido corno monumento mais perene do que o bronze, reivindica ainda a estabilidade da perfeição e carácter definitivo da forma «clássica» da arte. Não é exagerado afirmar que nem a estética teórica, nem a crítica parecem hoje preparadas para se orientarem selectivamente no mundo do estético tardo-moderno juxta propria principia, isto é, fora de urna referência duradoura, e irremediavelmente ideológica, à estrutura do objecto. Poderá discutir-se quando e até que ponto esta insuficiência da estética e da crítica se realiza verdadeiramente. Mas se ela é um facto, corno me parece, depende também provavelmente do reconhecimento falhado da segunda «implicação» da passagem da utopia à heterotopia corno característica da experiência estética, ou
seja, das consequências que se situam ao nível ontológico. Daqui deriva a extraordinária importância da «ontologia» de Heidegger para o nosso pensamento: só ela parece ser capaz de nos abrir autenticamente à experiência da modernidade recente sem urna permanente e subentendida referência a cânones e princípios metafísicos. No caso da estética, isso é visível precisamente na substancial incapacidade que esta manifesta em considerar corno chance do destino, e não só corno perversão de valores e essências autênticas, a experiência estética da cultura de massa. O esforço realizado por Benjamin com o ensaio sobre A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica era dirigido neste sentido, mas provavelmente estava demasiado ligado a urna concepção dialéctica da realidade para ter êxito. Heidegger, por sua vez, ao criticar a identificação metafísica do ser com o objecto, com a estabilidade estrutural do «dado», retira radicalmente a legitimidade da nostalgia pela forma clássica, pela valorização baseada na estrutura. Só quando o ser não tem de se pensar corno fundamento e estabilidade de estruturas externas, mas é dado corno evento com todas as implicações que isso importa em primeiro lugar, um enfraquecimento de base, através do qual, corno também Heidegger diz, o ser não é, mas acontece ---.. só nestas condições a experiência estética como heterotopia, multiplicação do ornamento, não-fundamento do mundo, quer no sentido da sua colocação num cenário, quer no sentido da sua integral des-autorização, adquire um significado e pode tomar-se terna de urna reflexão teórica radical. Sem esta referência ontológica, procurar ler como uma vocação e um «destino» as transformações da experiência estética das últimas duas décadas (como, aliás, as das épocas precedentes), não passa de urna galanteria historicista, urna cedência à moda, urna fraqueza de quem quer a todo o custo acertar o passo com o tempo. Mas o tempo, corno sabemos, tem um passo e só apresenta urna direcção quando é lido e interpretado. A aposta com a heterotopia, chamemos-lhe assim, pode não ser só frivoli-
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dade, se se ligar a experiência estética transformada da sociedade de massa ao apelo heideggeriano a uma experiência não Gá) metafísica do ser. De certo modo, é só quando esperamos, tal como Heidegger, que o ser seja precisamente aquilo que não é, que se afirma na sua diferença como não presença, estabilidade, estrutura; só assim podemos - talvez - encontrar um caminho no meio da explosão do carácter ornamental e heterotópico do estético de hoje.
ÍNDICE
/ Pós-moderno: Uma Sociedade Transparente? Ciências Humanas e Sociedade da Comunicação
21
O Mito Reencontrado
37
A Arte da Oscilação
55
Da Utopia à Heterotopia
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