Vamos Ser Escritores

  • April 2020
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  • Words: 860
  • Pages: 2
Vamos ser Escritores Imagem retirada do site: http://dadosemcomum.wordpress.com/

O tempo corre, esgota-se, esfuma-se, transforma-se numa dor de estômago, num latejar da cabeça, num suor frio. As pessoas nunca estão realmente bem onde estão, nem às horas que estão, e sabem-no e gostam. Porque a viajem do 'aqui' para o 'ali', do 'agora' para o 'depois', é algo que lhes activa a circulação do corpo e areja a mente, por isso sentem-se bem mudando; mudam de roupa, de mobílias, de carro, de corte de cabelo, de casa. Assim, como é de esperar, neste contexto moderno, as pessoas que se movem mais 'ganham' às que se movem menos, é quase como jogar à apanhada. Mover ou mexer mais, procurar ou criar mais, no seio da nossa modernidade, não passam tudo de sinónimos de produtividade. Há pois que produzir, que engarrafar qualquer coisa que saía de nós, nem que seja apenas a nossa capacidade de trabalho (que qualquer dia até é medida em joules). Finalmente, para encher as prateleiras das nossas estantes, os discos dos nossos computadores, as caixas dos nossos correios e até a memória dos nossos telemóveis, há também que produzir livros, enciclopédias, brochuras, folhetos, blogs, pdf's e mais um cem número de outros formatos de apresentação de texto, incluindo as tão famosas SMS's. No entanto o livro é sempre aquele que apela verdadeiramente ao tradicionalismo intelectual e é ele o único que satisfaz a necessidade de prestígio dos mais puritanos e intelectuais. Conclusão: toda a gente tem que escrever um livro! Mesmo aquelas pessoas que o mundo ficaria melhor se ninguém chegasse a saber o que lhes passa pela cabeça. Quem não sabe fazer mais nada, torna-se escritor, já houve quem tivesse dito... Na verdade, quem quer ser famoso ou ter o mínimo de prestígio só possui três opções; ou grava um CD, ou participa numa novela (vida real ou não...), ou então, por último, escreve um livro! Qual é a opção mais fácil? Escrever um livro, óbvio! Isto por duas razões; Primeiro porque os critérios modernos de avaliação artística não existem, e se existem não são artísticos mas sim económicos; Segundo porque o mais certo é que ninguém vá ler o livro, portanto, o prestígio de ter escrito um livro atinge o seu climax quando este aparece nas prateleiras das livrarias ou é anunciado num telejornal ou surge a adornar as páginas dum curriculum vitae. Este homem não é um homem qualquer! Este homem escreveu um livro. Não é só importante escrever livros, também é importante ler livros. O homem culto e moderno vê o livro como o tal objecto sagrado de salvação, o único que o pode salvar da 'burrice eterna'. Para esse homem, o mundo natural, o mundo humano, todas as infinitas e distintas formas em que os pensamentos se materializam no seio do

universo cultural e artístico, não passam de pó, de diversão humana, de ‘nada’! Não alimenta a massa cinzenta; na sociedade moderna, só quem lê muitos livros é que cuida da sua inteligência. É como se todas as sementinhas deste planeta tivessem necessitado de um regadorzinho de plástico para chegarem a ser árvores robustas. Jamais se acredita nas nuvens, ou na chuva, portanto a massa cinzenta não se rega, a não ser que tenhamos dinheiro para comprar um livrinho todos os meses… Seja a lêlos, seja a escrevê-los, parece que quem mexe com os livros é sempre pessoa superior! E quando os livros que já se escreveu são muitos e se é mais do que um 'zé ninguém' na arte da literatura, a disputa muda de contexto e passa então a ser sinónimo de intelectualidade e de superioridade literária a quantidade de páginas e o número de citações. É nos meios académicos da modernidade que se inicia o culto da citação; como haveríamos nós de justificar as nossas palavras? Senão com as palavras de outros?! O que no fundo só faz algum sentido se as palavras de uns, forem realmente mais valiosas que as doutros! E são? Claro que são!... As palavras têm o prestígio de quem as profere, de quem as escreve. Portanto, se eu estiver a escrever um livro e precisar de dar crédito e prestígio às minhas palavras, é fácil, sirvo-me do prestígio do pensamento alheio e faço uso duma citaçãozinha que só me fica bem. Não há necessidade alguma dum pensamento lógico, coerente, auto-suficiente, viril o necessário para se bastar a si próprio. Para os intelectuais modernos, quanto mais citações melhor. Se as citações totalizarem mais de cinquenta por cento do conteúdo da obra literária, então perfeito, porque pode ser a maior idiotice jamais escrita, mas ninguém duvidará da sua fundamentação. É pois, mais do que suficiente para a nossa modernidade, um pensamento do género 'eco', um estilo inspirado no papel químico; onde o escritor faz de conta que tem uma cabeça, mas na verdade possuí apenas uma bola oca, onde as palavras que leu ou ouviu algures, se amontoam em camadas e se organizam por dossiers. Num dia qualquer, quando o escritor põe os dedos à boca, provoca o vómito e elas voltam a sair pelas suas mãos e se fixam novamente na folha de papel... Miguel Sagres http://lobosovelhas.blogspot.com/

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