Filosofia da Ciência Unidade 1 - A concepção indutivista de ciência
Francis Bacon
Curso semipresencial de Filosofia da Ciência
Juliana de Orione Arraes Fagundes
Brasília Agosto - 2007
INTRODUÇÃO
O que é ciência?
A pergunta sobre o que é ciência, que intrigou muitos filósofos no decorrer dos séculos, já tem uma resposta definitiva? Uma forma de tentarmos responder é refazermos, de forma resumida, o caminho percorrido pela história da Filosofia da Ciência. O que se pensava sobre a ciência? Quais concepções sobre a ciência se mostraram equivocadas? Quais as razões desses equívocos?
Há outras questões interessantes que nos faremos neste curso. Por exemplo: ao tentar defender uma idéia, um dos argumentos apresentados por muitas pessoas é de que essa idéia foi “cientificamente provada”. Podemos nos perguntar: qual é o status de uma idéia provada cientificamente? A sua verdade está mesmo garantida por provas científicas?
E, daí, podemos nos perguntar também: A ciência revela o mundo tal como ele é? Se sim, a ciência revela o mundo em profundidade, ou apenas superficialmente? Se não, então como a ciência existiria? O que lhe daria sustentação para continuar o seu trabalho? Alguém poderia dizer, por exemplo, que não importa saber se a ciência diz algo de verdadeiro sobre o mundo. O importante é que ela traz benefícios para a humanidade.
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Ao longo deste curso, estudaremos várias concepções do que seja ciência. Começaremos pelo indutivismo. Porém, antes de entrarmos no indutivismo, vamos rapidamente relembrar algumas noções de lógica. A primeira parte deste capítulo será sobre dedução. Em seguida, entraremos na indução e na concepção indutivista de ciência. Por último, veremos como as noções de dedução e indução se relacionam para os indutivistas. Bons estudos!
DEDUÇÃO
Quando elaboramos um argumento, temos a pretensão de que as premissas forneçam as informações capazes de provar a conclusão. Em algumas situações, as informações contidas nas premissas são tais que a conclusão nada acrescenta ao que já foi dito, mas apenas explicita. Nessas situações, temos um raciocínio dedutivo.
Um raciocínio dedutivo é válido quando é impossível que as suas premissas sejam verdadeiras ao mesmo tempo em que a sua conclusão seja falsa. As premissas e a conclusão dos argumentos dedutivos válidos são de tal maneira relacionadas que verdade das premissas fornecem as provas suficientes e necessárias para a sua conclusão.
O exemplo mais clássico de dedução é o argumento abaixo:
1) Todo homem é mortal. 3
2) Sócrates é homem. 3) Logo, Sócrates é mortal.
Onde (1) e (2) são premissas e (3) é a conclusão.
Embora os argumentos dedutivos válidos tenham tal estrutura lógica que, se as suas premissas forem verdadeiras, a conclusão será necessariamente verdadeira, eles não têm potencial para informar nada acerca de como o mundo é. A lógica dedutiva, como vocês estudaram na disciplina Lógica, está interessada em conhecer os meios que permitem a passagem do verdadeiro para o verdadeiro, nos argumentos dedutivos válidos. Porém, quem poderá falar sobre a verdade das sentenças não é a lógica, mas sim a ciência.
Considere o seguinte argumento:
1) Todos os cães têm três corações. 2) Lassie é um cão. 3) Logo, Lassie tem três corações.
O argumento acima é válido? O que você acha? Para responder a essa questão, tente usar a definição: o argumento válido é aquele em que, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão será necessariamente verdadeira. Note que disse "se". O caráter hipotético da definição é importante.
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Então, imagine um mundo em que todos os cães têm três corações e onde há um cão chamado Lassie. Nesse mundo, (1) e (2) seriam verdadeiro, certo? Seria possível, nesse caso, (3) ser falso? Quero dizer, todos os cães desse mundo teriam três corações. Seria possível que nesse mundo, Lassie não tivesse três corações? Se você respondeu que não, parabéns! Você reparou, portanto, que o argumento é válido.
O que o argumento acima nos mostra é que verdade e validade são coisas diferentes. Verdade é uma propriedade de algumas frases, as frases verdadeiras. Validade, como vimos, é uma propriedade dos argumentos dedutivos bem construídos. Portanto, é um erro dizer que um argumento é verdadeiro, apenas frases podem ser verdadeiras.
No exemplo anterior, embora o argumento seja válido, nem todas as frases que o compõem são verdadeiras no nosso mundo. Afinal, no nosso mundo, não é fácil encontrarmos cães de três corações! Isso nos leva a uma distinção entre o trabalho dos lógicos e o trabalho dos cientistas.
Enquanto os lógicos estão preocupados em identificar os argumentos válidos, os cientistas nos mostram quais são as frases verdadeiras. Os lógicos não dizem se os cães têm um, dois ou três corações. Eles dizem apenas que, se os cães têm três corações e se Lassie é um cão, então Lassie também terá três corações. Cabe ao cientista e, em particular ao biólogo, descobrir quantos corações tem um cão e mesmo se Lassie é um cão! 5
É claro que o trabalho do biólogo é bem mais complicado do que isso, mas podemos tomar esse exemplo por fins didáticos. Isso nos permite compreender melhor a distinção entre o trabalho do lógico e do cientista.
INDUÇÃO
Imagine um médico, o Dr. Bacon, que está testando um remédio R para doença de Chagas. Ele ministra o remédio para Paulo, que está com doença de Chagas, e Paulo fica curado. Em seguida, ele faz o seguinte registro em sua caderneta:
O remédio R curou a doença de Chagas de Paulo.
No dia seguinte, o Dr. Bacon administra o mesmo remédio em Maria, Joana e Claudete, todas também acometidas da doença de Chagas. Todas ficam curadas. O médico, então, faz os seguintes registros em sua caderneta:
O remédio R curou a doença de Chagas de Maria. O remédio R curou a doença de Chagas de Joana. O remédio R curou a doença de Chagas de Claudete.
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Entretanto, o médico não pára por aí. Ele continua testando o medicamento em diversos outros pacientes, sempre com sucesso. Ao fim de suas observações, ele registra em sua caderneta:
O remédio R cura doença de Chagas.
Então, você acha que o Dr. Bacon deduziu que o remédio cura a doença? Provavelmente, ao analisar a situação com cuidado, você responderá que não. É possível as premissas serem verdadeiras e, ainda assim, a conclusão ser falsa? Sim. Basta que uma única pessoa não se cure da doença de chagas após o tratamento com o remédio R.
Por outro lado, se você estivesse sofrendo com a doença de Chagas, você tomaria o medicamento? Eu tomaria, mesmo sabendo que o Dr. Bacon não fez uma dedução válida.
Ele nos ofereceu um argumento indutivo. Argumentos indutivos são aqueles nos quais partimos de premissas particulares e chegamos a uma conclusão geral. "O remédio R curou a doença de Chagas de Paulo", "O remédio R curou a doença de Chagas de Maria" etc são premissas particulares. E "O remédio R cura doença de Chagas" é uma conclusão geral.
D maneira simplificada, argumentos indutivos são argumentos que possuem a seguinte forma: 7
A1 é B. A2 é B. (...) An é B. Logo, todo A é B.
Onde A1, A2, ... , An representam indivíduos quaisquer e B representa uma propriedade desses indivíduos.
No cotidiano e na ciência, freqüentemente raciocinamos dessa forma. Partimos de premissas particulares e chegamos a uma conclusão geral. E é dessa forma que construímos grande parte de nosso conhecimento sobre o mundo. Partindo das nossas experiências específicas, elaboramos leis gerais sobre o mundo. E não são apenas os cientistas que agem dessa forma! Todos nós freqüentemente tiramos conclusões a partir das nossas experiências.
A CONCEPÇÃO INDUTIVISTA DE CIÊNCIA
A idéia mais comum acerca da ciência é de que ela é baseada em provas. E essas provas partem de uma observação sobre os dados do mundo. Acredita-se que os cientistas observam o mundo de uma maneira desinteressada e livre de 8
concepções pré-concebidas. Assim, por meio das experiências, eles são capazes de construir conhecimentos confiáveis e até de mudar as concepções de mundo vigentes em determinadas épocas.
Contudo, sabemos que nem sempre algumas observações serão suficientes para a elaboração de leis gerais. Além disso, as proposições da ciência têm uma forma geral. Veja o exemplo de Chalmers (1993, p. 25). A proposição "À meia-noite de 1º de janeiro de 1975, Marte apareceu em tal e tal posição no céu" não tem qualquer interesse do ponto de vista científico. Porém, a proposição "Os planetas se movem em elipses em torno de seu sol" é cientificamente relevante.
Quais são as condições pelas quais podemos partir das experiências particulares para a formulação de proposições gerais e chamá-las de leis científicas? Para o indutivista, é necessário que certas condições sejam satisfeitas para que a generalização se torne legítima. Chalmers (1993, p. 26) enumera essas condições: 1. O número de observações particulares deve ser suficientemente grande para permitir uma generalização adequada; 2. As observações devem acontecer em condições diversas; 3. Todas as observações devem estar de acordo com a lei científica que queremos derivar.
Vejamos a condição 1. Você tomaria um remédio que foi testado em apenas duas pessoas e foi bem sucedido? A menos que você tenha se proposto a ser cobaia 9
de um experimento científico, presume-se que não. Por outro lado, você tomaria um outro remédio que foi testado em 20 milhões de pessoas e bem sucedido em todas? Nesse caso, a resposta parece tender para o sim. O que diferencia os dois casos é que o primeiro não observa a condição 1, porém, o segundo, a observa.
Agora, pensemos na condição 2. Imagine agora que você descobre que o remédio acima foi testado em 20 milhões de homens brancos de 20 a 25 anos que moram no norte dos Estados Unidos e no Canadá. Você continuaria tomando o remédio com a mesma tranqüilidade? E se você for uma mulher negra, brasileira com mais de 45 anos? Nesse caso, a sua confiança no medicamento talvez caísse bastante. Não seria melhor se o medicamento tivesse sido testado em vários tipos de pessoas? Homens, mulheres, brancos, negros, jovens, idosos e geograficamente dispersos? É exatamente essa a condição 2.
Agora, suponha que o remédio foi testado em 20 milhões de pessoas diferentes, de ambos os gêneros, de diversas etnias, diversas idades e que residem em vários locais diferentes. Porém considere que algumas delas de fato não foram curadas. Pareceria correto dizer que o remédio cura sempre a doença em questão? A resposta parece ser não. Apenas podemos dizer que o remédio cura sempre a doença em questão se, em todos os casos observados os, doentes de fato ficaram curados. Essa é a condição 3.
Essas condições podem ser sintetizadas da seguinte maneira (Chalmers, 1993, p. 27): 10
Se um grande número de As foi observado sob uma ampla variedade de condições, e se todos esses As observados possuíam, sem exceção, a propriedade B, então, todos os As têm a propriedade B.
Chamemos o princípio acima de princípio da indução. Para muitos, o princípio da indução é a base da ciência. Acreditam que, se partimos de observações particulares e, se observamos as condições 1, 2 e 3 acima, então, a conclusão geral a que chegamos merece ser chamada de lei científica. Chamamos a essa concepção de indutivismo. De acordo com essa concepção, o cientista alcança leis científicas sempre partindo de observações particulares e empregando raciocínios indutivos. Para o indutivista, o método da ciência é o método indutivo.
INDUÇÃO E DEDUÇÃO
A concepção indutivista da ciência é bastante atraente, pois combina bastante com a concepção do senso comum sobre o trabalho científico. Aliás, essa concepção combina muito com a maneira como nós adquirimos vários dos nossos conhecimentos no dia-a-dia, conhecimentos estes que nos permitem viver.
Porém, o processo de construção do conhecimento que leva à elaboração de leis gerais não é suficiente para explicar o papel da ciência. A ciência faz previsões.
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A partir do momento em que a lei geral é elaborada, ela se torna útil para que o cientista possa fazer suas previsões. O astrônomo, por exemplo, pode estar interessado em prever um eclipse. Como ele fará essa previsão? Ele precisará aplicar as suas leis gerais aos casos particulares. Dessa vez, o seu método será dedutivo.
Imagine que Jorge tem um problema alérgico. Sempre que ele entra em um ambiente que acabou de ser pintado, Jorge passa mal. Provavelmente, ele descobriu esse seu problema por meio de um processo indutivo. A descoberta o levou à formulação da seguinte lei geral: se eu entrar em um ambiente que acabou de ser pintado, passo mal. A partir dessa descoberta, Jorge passa a evitar os locais que acabaram de ser pintados, pois agora ele já pode prever que passará mal. A aplicação da lei geral aos casos particulares segue um procedimento dedutivo.
Segundo a concepção indutivista, o trabalho científico se assemelha a esse processo seguido por Jorge. A ciência parte das experiências particulares, formula as leis gerais e, em seguida, faz suas previsões, aplicando as leis gerais aos casos particulares, por meio de um processo dedutivo.
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Atividade
Após a leitura do texto, faça uma introspecção. Reflita sobre se as idéias ficaram claras para você. Procure escrever um resumo sobre o que você entendeu do texto. Procure encontrar os pontos que você teve dificuldade. Em seguida, discuta com seus colegas e seu tutor no fórum da turma.
Para saber mais: CHALMERS, A. F. Indutivismo: Ciência como Conhecimento Derivado dos Dados da Experiência. In: O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasilense, 1993. COPI, I. M. Introdução à Lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978.
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