Unidade 4'

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Filosofia da Ciência Unidade 4 - Observação e teoria

Pato ou coelho?

Curso semipresencial de Filosofia da Ciência

Juliana de Orione Arraes Fagundes

Brasília Agosto - 2007

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RELEMBRANDO

Na última unidade, estudamos o falsificacionismo. Vimos que, diante dos problemas apresentados pelo método indutivo, Popper tentou mostrar que o processo do conhecimento científico não funciona por meio da indução. Ao contrário, ele argumenta que a ciência deve usar o método falsificacionista.

Conforme o falsificacionismo, o primeiro passo a ser dado pelo cientista é a elaboração de uma teoria científica. Em seguida, as observações deverão corroborar ou refutar essa teoria. Uma das exigências do falsificacionista, portanto, é que a teoria seja construída de tal forma que ela possa ser falsificada. Se ocorrer de uma observação refutar uma teoria, a teoria deve ser substituída por outra, com a condição de que a nova teoria também possa ser falsificada.

Ao mesmo tempo, para Popper, o método falsificacionista é justamente o que caracteriza a ciência e a torna diferente de outros tipos de aprendizado social, como as religiões ou os mitos, por exemplo. A ciência se separa nitidamente dessas outras formas de pensamento cultural, pois a religião e a mitologia não podem ser falsificadas. Assim, as tautologias não podem ser teorias científicas, pois não são falsificáveis. Da mesma forma, as hipóteses religiosas não podem ser observadas, e é por isso que o domínio da religião é diferente do domínio da ciência!

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Vimos, além disso, que Popper acredita na possibilidade do progresso científico, pois, embora jamais possamos ter certeza de que as hipóteses científicas são verdadeiras, já que elas devem sempre estar abertas à falsificação, os falsificacionistas acreditam que podem ter certeza que uma hipótese é falsa, quando a experiência refuta aquela hipótese.

Então, agora faça uma auto-avaliação. Você compreendeu o falsificacionismo de Popper? Esse é um tema central em filosofia da ciência! Se ainda houver dúvidas, releia o material da última unidade. Converse com seu tutor e com os seus colegas. E, agora, avante!

UM PRESSUPOSTO DO FALSIFICACIONISMO

Como vimos, o critério falsificacionista para que uma teoria seja considerada científica é que ela seja falsificável. É necessário, portanto, que seja logicamente possível realizar um experimento capaz de refutar a teoria científica. Sempre que o experimento confirmar a teoria, ela será corroborada. Quanto mais experimentos a confirmem, mais segurança teremos na hipótese científica. Porém, uma única refutação feita via experimentação será o suficiente para abandonarmos aquela teoria científica e a substituirmos por outra.

Assim, onde está o foco da ciência para o falsificacionista?

Ora, na

experimentação. É ela que dirige a ciência e é nela que o falsificacionista confia. 3

As hipóteses são meras conjecturas, sempre sujeitas à falsificação. Os experimentos, por outro lado, trazem para o falsificacionista um conhecimento seguro sobre o mundo, são elas que nos permitiriam ter certeza a respeito do que é falso.

Um pressuposto presente no falsificacionismo, portanto, é o de que a observação é mais confiável do que a teoria. Além disso, conforme o método falsificacionista, teoria e experimentação são coisas nitidamente separadas. Lançamos as nossas hipóteses sobre o mundo e depois verificamos como o mundo funciona, ou seja, devemos confiar naquilo que o mundo nos diz via nossas observações.

Porém, veremos nesta unidade que as coisas não funcionam bem assim. A observação e a teoria, em primeiro lugar, não são coisas totalmente distintas. Além disso, a observação nem sempre é tão confiável quanto pensa o falsificacionista. Vários elementos podem influenciar e alterar os resultados dessas observações. Abaixo, com alguns experimentos, veremos o quanto os nossos pressupostos teóricos influenciam as nossas observações e o quanto as observações podem ser interpretadas de maneira equivocada se não tivermos as teorias adequadas.

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DEPENDÊNCIA ENTRE OBSERVAÇÃO E TEORIA

A maior parte de nós pensaria que não há uma diferença entre experiências visuais e estímulos visuais. Em outras palavras, acreditamos que duas pessoas em condições semelhantes vêem as mesmas coisas. Por exemplo, se uma pessoa olha para um objeto de uma determinada perspectiva, em um determinado instante, acreditamos que aquilo que ela enxerga seria compartilhado por qualquer pessoa que estivesse na mesma perspectiva, no mesmo instante. Certamente, de um outro local, outra pessoa enxergaria o objeto de outra forma. Mas não é disso que estamos falando, pois a crença em questão exige que as condições sejam semelhantes.

Entretanto, por mais estranho que pareça, há uma série de razões para duvidar de que as pessoas sempre enxergam as mesmas coisas sob as mesmas condições. Considere a figura abaixo, para fazermos um experimento.

Figura 4.1: Cubo de Necker

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Certamente, você já conhece o enigma apresentado pelo cubo acima, conhecido como Cubo de Necker por ter sido publicado pela primeira vez pelo cientista suíço Louis Albert Necker em 1832. O problema que esse cubo coloca é: Em que face do cubo encontra-se o “x”? Uma resposta bem natural seria dizer que o “x” se encontra no canto superior direito da face da frente. Porém, existem outras formas de se ver essa figura, e talvez você esteja vendo de outra maneira! Você pode estar vendo o “x” no canto superior da face de trás do cubo. Se você não conseguiu ver dessa forma, tente! Pergunte a alguém se consegue ver dessa forma. Outras possibilidades são que o “x” seja visto no centro da face da frente ou da face de trás. Algumas pessoas apenas conseguem ver de uma maneira, enquanto outras conseguem ver das quatro formas. Talvez, uma criança pequena nem mesmo chegue a perceber faces nesse cubo, a criança, que ainda não percebe a representação das 3 dimensões em um plano, talvez veja apenas linhas, e não um cubo.

Que conclusão podemos tirar desse experimento? A resposta é simples. Não podemos identificar estímulos visuais e experiências visuais. Em princípio, ao olhar para o Cubo de Necker, todos temos os mesmos estímulos visuais correspondentes a doze segmentos de retas vermelhos. No entanto, nós temos experiências visuais diferentes ao olhar para o cubo. Alguns verão o “x” na face da frente do cubo, outros verão o “x” na face de trás. Alguns verão o “x” no centro de uma das faces e outros verão num canto de uma face do cubo. Alguns sequer verão um cubo! Chalmers (1993, p. 49) nos fornece um exemplo. Ele afirma que resultados de experimentos com membros de várias tribos africanas cuja cultura 6

não inclui o costume de representar objetos tridimensionais por desenhos em perspectiva bidimensional indicam que os membros dessas tribos teriam visto a figura 4.1 como um arranjo de linhas, e não como um cubo.

Outro exemplo muito comum é o da figura que está na capa desta unidade. Essa figura pode ser vista como um coelhinho ou como um pato, dependendo da sua forma de olhar para ela. Você consegue ver um coelho na figura? E um pato? Há pessoas que só conseguem ver um ou outro.

Porém, se formos pensar, o

estímulo visual não é um pato nem um coelho, mas apenas algumas manchas no papel. O que nos faz enxergar coisas diferentes? Não seriam as nossas expectativas, os nossos conhecimentos culturais e individuais e as nossas crenças que geram essas diferenças de perspectiva?

Podemos generalizar a idéia acima. Num sentido importante, aquilo que vemos depende de uma série de fatores, como a nossa cultura, por exemplo. Há também fatores subjetivos, como aquilo que esperamos, que desejamos e/ou aquilo em que acreditamos. Em psicologia, há um experimento chamado “experimento das cartas anômalas” que ilustra claramente o ponto. O experimento funciona da seguinte forma. Os experimentadores mostram cartas de baralho comuns a várias pessoas e pedem que elas identifiquem as cartas. A identificação consiste em dizer qual é o naipe e o número das cartas (por exemplo, “seis de ouros”). De forma geral, as pessoas identificam as cartas sem problema algum. Entretanto, sem avisar às pessoas, os experimentadores inserem no baralho cartas anômalas,

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isto é, cartas que não existem num baralho de cartas comum como, por exemplo, um seis de espadas vermelho e um quatro de copas preto.

Figura 4.2: Cartas anômalas

O interessante desse experimento é que a maior parte das pessoas que se sujeitam a ele, inicialmente, identifica as cartas normalmente. Por exemplo, ao ver o seis de espadas vermelho, algumas pessoas identificam-no simplesmente como seis de espadas ou seis de copas. Ao ver o quatro de copas preto, dizem que é um quatro de copas comum ou um quatro de espadas.

Entretanto, ao serem informadas da existência de tais cartas anômalas no baralho, as pessoas passam a ver o que antes não viam! Essa informação é suficiente para que elas comecem a reconhecer as cartas anômalas no baralho. Esse experimento feito pelos psicólogos nos mostra que aquilo que vemos depende, entre outras coisas, de nossas expectativas. Como diz Hanson (1975, p.130), “no ver existe algo mais do que aquilo que nos chega aos olhos”. 8

No experimento das cartas anômalas, vemos claramente que as hipóteses presentes na mente do sujeito influenciam fortemente os resultados do experimento. Quando o sujeito da experimentação não sabia da existência de cartas anômalas no baralho, ele simplesmente não as via, pois a sua teoria era de que todas as cartas daquele baralho eram cartas normais. Quando o sujeito soube que havia cartas anômalas naquele baralho, começou a ver de outra maneira. Uma nova teoria influenciou a sua observação.

Ora, se as teorias subjacentes às nossas observações são tão poderosas a pondo de sequer conseguirmos ver as cartas anômalas em um baralho, será então que as observações dos cientistas são tão confiáveis como pensa o falsificacionista? Certamente, não. As hipóteses feitas pelos cientistas podem influenciar as suas observações ou mesmo levar a uma interpretação errada dessas observações. Percebemos, assim, que as observações não são confiáveis como pensávamos. Talvez, um conhecimento baseado em conjecturas e refutações não seja, afinal, tão confiável quanto pensávamos.

Agora, vamos considerar um último experimento, um experimento de pensamento. Imagine que Jones está perdido em uma ilha deserta. Usando bambu e cipós, ele constrói um arco-e-flecha e põe-se a caçar aves. Jones se torna um exímio arqueiro e, em geral, consegue acertar todas as aves nas quais mira. Porém, certo dia, Jones enjoa da sua alimentação e decide variar. Ele decide usar o seu arco para pegar peixes. Jones está certo de que não terá dificuldades em sua 9

nova empreitada. Para sua surpresa, entretanto, ele não consegue acertar um peixe sequer. Não importa o quanto tente, ele sempre erra o peixe que deseja acertar.

Felizmente para Jones, a ilha não é deserta. Ela é habitada por uma comunidade indígena cuja alimentação é baseada no consumo de peixe. Os índios dessa comunidade usam o arco-e-flecha para pescar e sempre são bem sucedidos. Isso intriga Jones. Como é que eles acertam sempre e ele nunca? Jones decide observa-los para de elucidar o enigma.

Percebe que os índios não miram diretamente na imagem do peixe, mas a uma certa distância dessa imagem. Ele se lembra do chamado fenômeno de refração da luz, estudado no Ensino Médio. A idéia é simples. A refração é a passagem da luz entre meios diferentes, o que modifica a velocidade da luz e sua trajetória, provocando a ilusão de que a imagem está em um local onde ela não está.

Jones, como todos nós, pressupõe uma série de teorias

no

seu

dia-a-dia.

Uma

das

teorias

pressupostas por Jones ao tentar pescar é de que a luz sempre viaja em linha reta. Por essa razão, a sua pescaria não funcionou. O seu comportamento ao tentar pescar se baseou em uma certa observação do local do peixe que, por sua vez, se Figura 4.3: Fenômeno de refração na água.

baseou na teoria equivocada de Jones. 10

Inicialmente, Jones se baseou na teoria de que a luz sempre tinha uma trajetória reta. Suas observações pareciam corroborar com essa teoria. Porém, as observações de Jones o enganavam sistematicamente. Apenas com a observação do comportamento dos indígenas é que Jones se lembrou da teoria mais adequada para lidar com a questão e pôde, então, incorporar peixes à sua dieta.

O INDUTIVISMO TAMBÉM SE SUJEITA ÀS CRÍTICAS

Vimos no início desta unidade quais são os pressupostos falsificacionistas acerca do papel da observação no processo de aquisição do conhecimento científico. Você percebeu como os experimentos feitos acima fornecem objeções ao falsificacionismo? Essa questão, nós vamos deixar para que você responda! Pense um pouco... Chegamos à conclusão que a observação é sempre dependente da teoria, certo? Como essa conclusão pode se constituir como uma objeção ao falsificacionismo? Procure discutir sobre essa questão com os seus colegas no fórum de discussões.

Agora, vamos pensar nos pressupostos do indutivista. Qual é o peso dado pelo indutivista à observação? Um dos seus pressupostos, como vimos na unidade 1, é de que a ciência começa com a observação. O outro é de que a observação se constitui como um fundamento confiável para a construção da ciência. Porém, nossos experimentos nos mostraram que a observação está sempre ligada à 11

teoria. Portanto, não é possível que a ciência comece com a observação. Além disso, vimos que a observação não é tão confiável a ponto de poder servir de base para a construção do conhecimento científico.

Atividades

1. Neste capítulo, você viu uma série de experimentos relacionados à visão, um dos órgãos mais importantes para o nosso conhecimento acerca do mundo. Esses experimentos apresentam objeções (a) ao falsificacionismo e (b) ao indutivismo. Que objeções são essas?

2. A partir da leitura do texto complementar desta unidade, “Observação e interpretação” de Hanson, comente o seguinte trecho: “Quem nada aprendeu, nada pode observar - isso é parte do conteúdo semântico da palavra ‘observar’” (p. 134).

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Para saber mais

CHALMERS, A. F. A Dependência que a Observação tem da Teoria. In: O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasilense, 1993. HANSON, N. R. Observação e Interpretação. In: MORGENBESSER. S (org.) Filisofia da Ciência. São Paulo: Cultrix, 1975. KUHN, T. S. A anomalia e a emergência das descobertas científicas. In: A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000.

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