Um Mundo Do Avesso

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COLÉGIO MILITAR

LIÇÃO INAUGURAL Proferida na Abertura Solene do Ano Lectivo 2004/2005 14 de Outubro de 2004

UM MUNDO DO AVESSO Reflexões sobre o quotidiano Quando, no final do ano lectivo transacto, o Excelentíssimo Senhor Director do Colégio Militar me convidou a proferir esta lição inaugural, o meu pensamento, talvez na procura de um refúgio sapiente, encheu-se das palavras que Miguel Torga, em 1962, escreveu no poema Viagem, poema que me acompanha e, de certa forma, norteia, desde a meninice e que tomo a liberdade de partilhar com V. Ex.as.

Aparelhei o barco da ilusão E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar… (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos.) Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura... Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura, O que importa é partir, não é chegar.

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E, assim, conquistado, embarquei. Mergulhei num mar ora chão ora revolto. O que importa é partir, lembrei-me. Tantos temas. Tanto mundo e poesia a rodearem-me. De que falar? O que importa é partir, tornei a lembrar-me. E parti. Depois de muitas conversas com as partes visíveis e invisíveis dos mundos, encontrei o tema: “Um Mundo do Avesso – Reflexões sobre o quotidiano”. Vago, talvez. Mas era esse o propósito, afinal. Assim, vou partilhar com V. Ex.as um segredo: a existência de um instrumento que inventei há algum tempo e que muito útil me tem sido. Já há alguns séculos que usamos o microscópio para ver o infinitamente pequeno, o telescópio para ver o infinitamente grande. Joël de Rosnay inventou o macroscópio para ver o infinitamente complexo. Eu inventei o AVESSOSCÓPIO, um instrumento que nos permite ver o infinitamente visível pelo avesso. Mais à frente explicarei o funcionamento e a aplicabilidade deste prodigioso instrumento.

Aquilo de que vou falar são, por certo, trivialidades. Mas trivialidades que, de tão triviais, se distanciaram da reflexão. Assoberbados pelos afazeres quotidianos, acabamos por perder a capacidade de nos deslumbrarmos e maravilharmos com a simplicidade da complexidade do que nos rodeia. Como nos ensinou Vergílio Ferreira: «Não queiras saber tudo. Deixa um espaço livre para saberes de ti». E foi desta forma, com estes pensamentos a atravessar o sentimento, que procurei nesse espaço livre de quem quer saber de si, pequenas coisas, pequenos nadas que, apesar de irrisórios, nos desafiam a cada momento. Página 2 de 15

A Ciência em geral, e a Astronomia em particular são o pretexto para ir lançando alguns desafios a V. Ex.as. E, no fim, espero que possamos sair ilesos e munidos de um avessoscópio desenferrujado, um instrumento grátis, de fácil utilização e que já nasce connosco. Basta aprender a usá-lo.

Há sempre forma de virar do avesso cada ser, cada circunstância, cada objecto, cada pensamento, cada sentido e cada sentimento. E à medida que vamos aperfeiçoando a utilização do nosso recém-descoberto instrumento, podemos aperceber-nos quão bom é começarmos a coleccionar mundos do avesso. Eu tenho muitos, confesso. E desafio V. Ex.as a perscrutarem os vossos. Quando começarmos a coleccionar mundos do avesso e registarmos no fundo do nosso ser essas visões alternativas da realidade, poderemos dizer como Óscar Wilde: «Nunca viajo sem o meu diário. Deve-se ter sempre alguma coisa sensacional para ler no comboio.»

Agora, dirigindo-me particularmente a vós, Srs. Alunos, sugiro que adopteis o instrumento de que vos vou falar. No ano lectivo que hoje se inaugura solenemente, procurai encontrar perspectivas diferentes a cada passo. Antes de desanimardes, virai do avesso esse pequeno mundo de contrariedade e aprendei com ele. Analisai o que corre bem e o que corre menos bem. Aprendei com os erros. E, se o estudo para uma prova escrita ou para um exame, vos encher de desânimo, ou vos faltar vontade para acabardes uma tarefa ou um trabalho de casa, tal pode significar apenas que estará na altura de mudardes de perspectiva. Agarrai no avessoscópio e utilizai-o da forma que considerardes mais adequada. Espero que esta abordagem possa contribuir para se apaixonarem ainda mais pela vida, pelo que nos rodeia, pelo mundo em geral e pela Ciência em particular.

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Recordo as palavras com que a poetisa e actriz brasileira Bruna Lombardi termina o seu poema Alta Tensão: “(…) você pode me empurrar pro precipício não me importo com isso eu adoro voar.”

Como é fácil perceber, esta perspectiva é aliciante e profícua. Que voeis, esperançados, de matéria em matéria, de amizade em amizade, de sonho em sonho. E um dia, quando fordes ex-alunos, ireis olhar para o Colégio como para a vida, de forma ainda mais apaixonada.

Robert Lowell possuía um avessoscópio perverso. Dizia-nos ele que «a luz ao fundo do túnel pode ser a de um comboio em sentido contrário». Se há alguma verdade na afirmação, cabe-vos actuar para que não seja sempre assim. Não tem de ser sempre assim.

Também o Sr. Valéry, uma personagem criada pelo escritor Gonçalo M. Tavares, possui, há muito, um apuradíssimo e eficientíssimo avessoscópio. Não resisto a partilhar convosco um pequeno e bem divertido exemplo de como podemos descobrir em nós formas fantásticas de encararmos as contrariedades. «O Senhor Valéry era pequenino, mas dava muitos saltos. Ele explicava: Sou igual às pessoas altas só que por menos tempo. (…) Mas isto constituía para ele um problema. (…) Dias depois saiu à rua com um banco. Colocava-se em cima dele e ficava lá em cima, parado, a olhar: — Desta maneira sou igual aos altos durante muito tempo. Só que imóvel. Mas não se convenceu. (…) Por isso o Senhor Valéry decidiu ser alto na cabeça.» Sejamos, então, altos na cabeça.

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De tão longo, este intróito quase passou a texto chave. Mas como compreenderão, particularmente neste estabelecimento Militar de Ensino, “as ideias são como as formaturas, logo a seguir a uma vem outra!”.

E, como penso que já terão percebido de que falo, quando falo do avessoscópio, proponho que iniciemos uma viagem pelos mundos do avesso.

Lanço um desafio inicial: pensar um pouco sobre o que nos rodeia. Aliás, só o acto de pensar já nos deve fazer pensar. Usemos o avessoscópio. O que é isto de “um pensamento”? Se dissecarmos a parte biológica, química e física da questão, quem se vira do avesso somos nós. Um pensamento pode ser, porque não, reduzido aos seus átomos causídicos: carbono, oxigénio, hidrogénio, azoto e outros mais. Com os mesmos átomos, pensamos coisas tão diversas. V. Ex.as já tinham pensado nisto? Por exemplo, enquanto alguns Srs. alunos pensam nas camas das camaratas, outros pensam no Amarelo de Carne, outros na bolama, outros nos trabalhos de casa ou nas provas escritas que se avizinham, outros nas quartas-feiras e até mesmo nas noites de Domingo. Todos pensamos coisas diferentes mas, se repararmos, concluímos que as ferramentas que usamos são iguais. Somos todos feitos dos mesmos materiais e, no entanto, somos todos tão diferentes. Os átomos que constituem os nossos corpos, o nosso sangue, os mesmos átomos que nos permitem pensar, foram fabricados numa qualquer estrela de massa considerável ao longo de alguns milhões de anos. Por isso, pelo menos uma vez na nossa história pessoal já tivemos um doce momento de “estrelato”. Já fomos uma estrela. Em boa verdade, parte dela, mas isso pouco importa. E esses elementos químicos, feitos nessas fornalhas nucleares que podemos ver em noites de céu estrelado, são os blocos de construção das nossas células. A célula é a unidade básica da vida. Todos quantos aqui estão neste ginásio, são feitos de células. Não se sabe ao certo quantas constituem um organismo complexo, como o ser humano, mas estima-se que Página 5 de 15

tenha entre cinquenta e cem biliões de células. Imaginem um 5 com treze zeros à frente! É esse o número aproximado de células que nos compõe. Fantástico, não é? Desde que aqui entrámos, já muitas deixaram de estar funcionais nos nossos corpos. E já muitas se terão formado, entretanto… Cada célula tem, em média, uma dimensão de 20 micrómetros, ou seja, é 50 vezes mais pequena do que um milímetro. Seriam necessárias dez mil para cobrir a cabeça de um alfinete. Só no nosso córtex cerebral, o conjunto das “pequenas células cinzentas”, como lhes chamava Hercule Poirot, há três vezes mais células do que habitantes na Terra! Dá que pensar… E assim terminamos esta ideia como começámos: a pensar. E quanto mais pensamos sobre pormenores mais nos apercebemos de que eles são, de facto, da maior importância. Querem V. Ex.as ver como um pormenor nos vira completamente do avesso? Dentro do nosso corpo, o sistema respiratório está totalmente coberto de centenas de cílios que batem todos na mesma direcção e nos ajudam a escoar as mucosidades e a manter o asseio da respiração. A bióloga Clara Pinto Correia, explica-nos bem esta fantástica aventura de um pormenor que é, afinal, maior. A explicação pode parecer um pouco complexa mas o final é tão bonito que vos desafio a esperarem por ele. O motor dos tais cílios, tal como o dos flagelos dos espermatozóides, funciona graças a um sistema proteico perfeitíssimo. Há várias proteínas envolvidas no movimento dessas estruturas. Uma dessas proteínas chama-se dineína e está envolvida na tarefa de ajudar os cílios e os flagelos a deslocarem-se ordenadamente uns em relação aos outros para produzirem batimentos regulares. Há pessoas que nascem sem determinadas estruturas formadas por essa proteína dineína. Aí tudo se complica. Se os afectados são homens, são sempre estéreis, porque os flagelos dos espermatozóides não se agitam. O aparelho respiratório fica carregado de impurezas porque os cílios estão paralisados e não podem desempenhar o seu papel de limpeza – daí Página 6 de 15

resultando bronquites recorrentes e sinusites crónicas. Mas isso não é tudo. O mais espantoso é que a ausência de actividade enzimática da dineína interfere com a organização do embrião da maneira mais estranha deste mundo; metade das pessoas sem essas estruturas formadas pela dineína nasce com os órgãos ímpares do lado contrário ao normal: o coração, o fígado, o intestino, o apêndice, todos se deslocam para o lado de lá, como se cada uma destas pessoas fosse a nossa imagem no espelho. Uma alteração chamada situs inversus. Exteriormente nada se nota e algumas pessoas só o descobrem numa idade mais tardia. Quando lhes dói o coração, estas pessoas levam a mão ao lado direito do peito. Cá está um aparente pormenor a virar-nos do avesso. Imaginem-se V. Ex.as a dançar com uma pessoa com situs inversus. O coração de V. Ex.as do lado esquerdo. O do par de dança, do lado direito. Frente a frente, os dois corações sobrepõem-se e batem mais forte. Eu garanti que o final valia a pena. Alguém dançando com o avesso. É tudo uma questão de perspectiva.

Continuemos assim, de desafio em desafio.

Estamos numa instituição que comemorou recentemente duzentos anos de existência. Uma instituição há duzentos anos na História devido ao esforço, à vontade e à dedicação de todos quantos por aqui vão passando. Mas permitam-me V. Ex.as uma irreverente e poética utilização do avessoscópio: esta data de nascimento está incorrecta. Ou melhor, é imprecisa. E passo já a fundamentar esta minha proposta. A Natureza há muito que sabia que iria contribuir para a criação, manutenção e glória desta milenar e não secular instituição. Dizemos que tem 201 anos, mas algumas partes que o constituem têm muito mais. Exponho, então, esta minha teoria daqui lançando um novo desafio: um destes dias, ao subirem a escadaria que liga a Parada Nova aos Claustros, detenham-se a observar o chão que vão pisando e verão que o nosso Colégio Militar guarda segredos. Reparem no chão, nos degraus e Página 7 de 15

patamares. Os segredos gritados em silêncio fervilham naquelas rochas e mostram-nos um mundo do avesso que nos vê avessos ao mundo. Um destes dias atrevam-se a ouvi-los. Sem que nos apercebamos, os nossos pés calcorreiam um calcário compacto, também chamado lioz, de tons rosa e branco. Nele jazem marcas de seres vivos, contemporâneos dos dinossauros, que não são mais do que fósseis de rudistas caprinídeos, seres que tinham uma forma enrolada e viviam em águas agitadas tendo, por isso, uma concha espessa. Num dia em que vos sobre tempo, coisa rara, bem sei, entretenhamse a olhar para o chão. Procurem-nos. Será mais fácil procurarem secções destes organismos pois parecem pequenas espirais. E quando vos disserem que o Colégio Militar é uma casa cheia de História, pensem em voz baixa, “Nem sabem quanto!”.

Como referi, se há coisa que os alunos deste Colégio não têm, é uma vida calma. Pelo menos em termos físicos. Mas mesmo assim, é tudo uma questão de perspectiva. As apressadas caminhadas entre o Corpo de Alunos e os locais de aulas, as tais que acabam por não permitir que olhem para o chão, perecem quando as comparamos com outras que fazemos sem nos apercebermos. Passo a explicar. Aqui fechados, sentados ou em pé, mais à vontade ou em sentido, temos a aparente noção de calma, quietude e serenidade. No entanto, se pensarmos neste mundo do avesso, rapidamente nos apercebemos do paradigma da estabilidade. Nada está parado – tudo se move. A questão está em sabermos o referencial usado. A velocidade a que a Terra se move à volta da nossa estrela é incrível! O nosso planeta é uma verdadeira nave espacial e nós, aqui neste ginásio, sentados ou em pé, somos autênticos viajantes do espaço. É vertiginosa a velocidade média a que a Terra faz a translação em torno do Sol: 108 000 quilómetros por hora.

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Façamos uma experiência. Contemos 1 segundo. Já está? Muito bem. Neste segundo, a Terra andou cerca de trinta quilómetros em torno do Sol. Imaginem quanto andou desde que iniciei esta leitura. Fantástico, não é? Uma velocidade cerca de mil vezes superior à permitida nas nossas autoestradas! E em torno do centro galáctico viajamos à estonteante velocidade de 250 km/s! Por isso, quando partirem do Corpo de Alunos às sete horas e cinquenta minutos de cada manhã, lembrem-se do esforço que a Terra faz por nós, viajando a enormes velocidades mas de forma suficientemente doce para que não enjoemos. E, nos dias de calor mais intenso, quando os Srs. alunos estiverem formados debaixo de um Sol que insiste em lembrar de forma aguerrida a sua tão útil existência, lembrem-se que os raios que vos aquecem e incomodam percorreram cerca de cento e cinquenta milhões de quilómetros para chegar até vós, demorando 8 minutos a fazer o trajecto. Nessas alturas, se sentirem um esmorecimento, usem o avessoscópio e lembrem-se do cansaço da luz que vos ilumina.

Espero ter contribuído para relativizar algumas das vossas preocupações e cansaços.

Aproveito o ensejo, para vos falar de algumas outras preocupações da sociedade actual que, como vou demonstrar, tão fáceis são de resolver, se usarmos esta nova técnica de ver o mundo do avesso e procuramos aplicar os nossos conhecimentos de Ciência a par do nosso avessoscópio.

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Bem sabemos que a idade e o peso constituem, para muitos, motivo de preocupação. Neste colégio, talvez mais o peso que a idade, já que permanentemente se apela à máxima “Mente sã em corpo são”. Mas, como referi, tudo é ultrapassável, se soubermos “dar a volta”. Foi assim que me lembrei de vos convidar a, permitam-me a expressão, “dar uma volta” pelo nosso sistema solar. Os exemplos que vou partilhar com V. Ex.as podem não ser muito úteis mas, para além das reflexões científicas que permitem fazer, sempre constituem material para sonharmos quando uma depressão mais persistente se intrometer de rompante num dos nossos momentos felizes e de deslumbramento.

Hoje, 14 de Outubro de 2004, já vivi 11670 dias terrestres, quase trinta e dois anos ao longo dos quais fui engordando, confesso. Parece-me que esse peso crescente terá estabilizado por volta dos 85 quilogramas. Não é um bom exemplo para o Batalhão Colegial, bem sei! Mas peço o favor de usarem o avessoscópio para descobrirem o lado positivo da questão… Também peço desculpa por me usar como exemplo e por abusar da bondade da Física que me permite, condescendente, usar esta unidade de massa, o quilograma, quando, de facto, me refiro ao peso. Faço-o apenas para simplificar.

Voltando ao rumo. Quando me quero divertir e iludir, pego no avessoscópio e vou até Marte. Aí terei 16 anos e pesarei 32 quilogramas. Serei um adolescente, ainda em idade colegial, a saborear o maravilhoso céu cor-de-rosa com que este planeta nos presenteia. Percebo agora porque são felizes os marcianos. Aí poderei contemplar o Monte Olimpo, o maior vulcão do sistema solar que alcança uma altura de cerca de 27 km. Em Vénus, terei perto de 52 anos e pesarei 77 quilogramas. Neste planeta acontecerá algo curioso: verei o Sol erguer-se a Ocidente (Oeste) e pôr-se a Oriente (Este). Página 10 de 15

Já em Júpiter, pesarei cerca de 201 quilogramas e terei quase 2 anos e meio. Não gosto muito de me imaginar no planeta mais afastado do Sol. Sobretudo porque não é sempre o mesmo. É verdade. As órbitas de Neptuno e Plutão cruzam-se. Quando os alunos do Batalhão Colegial nasceram, era Neptuno e não Plutão, o planeta que mais afastado estava do Sol. Desde 1980 e até 14 de Março de 1999 foi isso que aconteceu. Quando vos perguntarem qual é o planeta mais afastado, peguem no avessoscópio e respondam: depende! Em Plutão, pesarei pouco mais do que 5,5 kg e ainda não terei sequer 1 ano de idade. E já que falei de vida extraterrestre, partilho com V. Ex.as a visão que o endiabrado Calvin conta ao seu tigre Hobbes: “Às vezes penso que a prova acabada de que existe vida inteligente algures no Universo é que até hoje não houve um único ser que tentasse contactar-nos”. Pelos vistos, o Calvin também já descobriu o avessoscópio…

Nesta viagem pelo sistema solar vou terminar na Lua. Aqui no Colégio não gostamos que esse planeta seja habitado pelos Srs. alunos durante as aulas, as cerimónias e as actividades de responsabilidade. Mas a atracção que este astro exerce sobre nós é forte e milenar. Muitas foram as canções e os poemas escritos tendo a Lua como inspiração e mote. Quantos amantes apaixonados namoraram ao luar. Mas como será esta nossa companheira, causadora das marés, vista através do avessoscópio? Estamos tão habituados ao que nos rodeia que não lhe damos grande atenção. A bela cor azul de um céu límpido parece-nos algo perfeitamente natural. No entanto, é um privilégio do nosso planeta que lhe é proporcionado pela sua atmosfera. A Lua não possui qualquer atmosfera pelo que o céu de dia ou de noite é sempre negro.

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Imaginemos que seria possível estarmos neste momento na Lua, sem quaisquer fatos pressurizados, e que eu falava sem microfones. Colocar-seme-ia um grande problema. […] Exactamente, seria essa a estranha sensação de não me fazer ouvir. Como na Lua não há atmosfera não há suporte material para o som se propagar. E quem diz na Lua diz no espaço em geral. Portanto, peguem no avessoscópio e apliquem-no aos filmes de Hollywood. Não deixem de se deslumbrar, sonhar, maravilhar, mas munam-se do espírito crítico quando ouvirem as ruidosas explosões do Star Wars… Na superfície lunar, com cerca de 14 quilogramas, poderei observar cerca de 30 mil crateras. Mas há quatro especiais. Têm o nome associado a portugueses notáveis o que as torna… notáveis. Vasco da Gama, Pedro Nunes, Fernão de Magalhães e o menos conhecido Cristobal Acosta. Já agora que entrámos nesta onda patriótica, talvez também não seja do conhecimento de V. Ex.as que, entre Marte e Júpiter, a cerca de 485 milhões de quilómetros do Sol, isto é, cerca de três vezes mais afastado do que a Terra, orbita um pequeno asteróide cujo nome é… PORTUGAL. Na noite de hoje, quando olharem para o céu não verão a Lua. Estamos na fase de Lua Nova. Mas, se fossem selenitas, ou seja, habitantes do nosso satélite, poderiam deslumbrar-se com a Terra Cheia. Talvez cheia de avessoscópios apontados para o céu!

E aqui vem um penúltimo desafio que nos permite concluir que a Astronomia está, de facto, em toda a parte.

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Analisemos a estrofe 89 do canto X da magnífica obra Os Lusíadas, escrita

por

Luís

de

Camões,

e

descodifiquemos

a

maravilhosa

e

contextualizada mensagem que nos transmite. (X, 89) Debaxo deste grande Firmamento, Vês o céu de Saturno, Deus antigo; Júpiter logo faz o movimento, E Marte abaxo, bélico inimigo; O claro Olho do céu, no quarto assento, E Vénus, que os amores traz consigo; Mercúrio, de eloquência soberana; Com três rostos, debaxo vai Diana.

É maravilhoso o confronto com esta visão, ainda geocêntrica, do sistema solar sabiamente apresentada pelo poeta. Com a sua imensa mestria, Camões explica-nos como, na altura, se concebia a organização dos astros, apesar das ideias heliocêntricas estarem já a ser ventiladas de forma mais fundamentada. Em volta da Terra havia sete esferas, para além das quais estaria o firmamento. Saturno ocupava a sétima esfera. Júpiter orbitava a Terra na sexta e Marte ocupava a quinta. O claro Olho do céu, bem se vê, o Sol, ocupava o quarto assento. Vénus a terceira esfera, Mercúrio a segunda e Diana, a Lua, com os seus três rostos (uma menção às suas fases) ocupava a primeira. Esta é apenas uma das preciosas pérolas astronómicas com que Luís de Camões nos presenteia ao longo dos Lusíadas. Aqui fica o convite. Que tal folhearmos esta magnífica obra com um olho avessoscópico?

Sete planetas. O número sete reveste-se de um carácter místico. Sete planetas, setes esferas, sete cores do arco-íris, sete vidas de um gato, sete dias da semana, sete anos até à Récita, entre outros. E sete os desafios que vos lancei. Página 13 de 15

Falta bem pouco para terminar. Mas não o poderia fazer sem vos mostrar como os céus pensam em tudo, de facto. Os alunos deste Colégio conhecem bem o útil Calisto, o caderninho que trazem junto ao corpo e que permite anotar, porque não, os mundos do avesso que os Srs. alunos vão encontrando. Por certo, nunca usaram o avessoscópio para o analisar. A origem do nome será outra mas aproveito para partilhar convosco uma nova perspectiva. Galileu Galilei foi o primeiro a observar as quatro maiores luas de Júpiter em 1610: Io, Ganimedes, Calisto e Europa, colectivamente chamadas luas galileanas. Os nomes destas quatro luas têm que ver com o facto de serem jovens que se enamoraram por Zeus, o deus grego que os romanos apelidaram de Júpiter. Destas, realçamos Calisto. Calisto era uma ninfa «belíssima» e uma virgem da corte de Ártemis. Zeus encantou-se com a jovem e engravidou-a de Árcade. Ártemis zangou-se e transformou-a em ursa. Mas Zeus transformou-a numa constelação, a Ursa Maior. Assim, numa noite de céu escuro e limpo, mesmo com a poluição luminosa que se nota nos céus de Lisboa, olhai para a Ursa Maior. Aí está Calisto que não cabe nos vossos bolsos mas reina nos lados de Norte, bem perto da estrela polar. Talvez por isso, munidos do Calisto, os alunos não percam nunca o Norte.

E estamos mesmo a terminar esta viagem pelos mundos do avesso. Espero ter contribuído com algumas pistas para uma visão alternativa da realidade que se tenta impor quotidianamente. Continuem a usar o avessoscópio. Se procurarem nas bandeiras da Austrália, do Alaska, do Brasil, nos quadros de Van Gogh, de Elsheimer, de Vermeer e nos frescos de Giotto, na Bíblia, na história dos calendários, nos filmes de Hollywood, no espólio fílmico e musical dos Monty Python, no primeiro filme do Shrek, na música Vincent de Don MacLean, no livro Viagem à Lua, de Cyrano de Bergerac, nos poemas de Nemésio, nos textos de Italo Calvino, nas Aventuras de Tintim e de Lucky Luke, nas tiras de Bill Watterson e muitos outros, encontrarão triliões de motivos para gostarem de estar vivos. Página 14 de 15

Cantem sempre como os Ornatos Violeta: “Ouvi dizer que o mundo acaba amanhã e eu tenho tantos planos p’ra depois”. (Adaptado)

Nem que tenham de fazer como o poeta holandês que nos conta a história de um homem que acredita. Acredita, apesar de tudo. Constrói e tem força. Diz-nos ele: Poesia é, para mim, a história Que me contaram em tempos De um homem que no seu sótão Construíra um avião de cimento E, orgulhoso, a todos afirmava Que voar, de facto, o avião podia, Só que… não passava no postigo! Rien Vroegingdeweij Poeta contemporâneo holandês Termino como comecei, citando gente que pensou o mundo. Olhou-o doutros prismas e ousou. Por isso o mudou. Aqui ficam, então, as sábias palavras do escritor argentino Jorge Luís Borges quando, em 1984, visitou o Egipto: A uns trezentos ou quatrocentos metros da pirâmide, baixei-me, agarrei num punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente mais à frente e disse em voz baixa: “Estou a modificar o Sara”.

Na minha mão está areia. E nas vossas? Tenho dito FIM Luz, 14 de Outubro de 2004 Rui Jorge Vieira Farinha Professor do Quadro de Nomeação Definitiva em regime de Requisição no Colégio Militar desde Setembro de 2003. Página 15 de 15

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