Um Estranho No Espelho

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UM ESTRANHO NO ESPELHO: REPRESENTAÇÕES DO CABOCLO AMAZÔNICO

Maria das Graças Ferreira de Medeiros

2

MARIA DAS GRAÇAS FERREIRA DE MEDEIROS

UM ESTRANHO NO ESPELHO REPRESENTAÇÕES DO CABOCLO AMAZÔNICO

Manaus 2004

3

MARIA DAS GRAÇAS FERREIRA DE MEDEIROS

UM ESTRANHO NO ESPELHO: REPRESENTAÇÕES DO CABOCLO AMAZÔNICO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação “Sociedade e Cultura na Amazônia”, da Universidade Federal do Amazonas, como requisito para obtenção do título de Mestre em “Sociedade e Cultura na Amazônia”, área de concentração Processos Socioculturais na Amazônia.

Orientador: Professor Doutor Marcos Frederico Krüger Aleixo

Manaus 2004

4

Ficha Catalográfica:

Medeiros, Maria das Graças Ferreira de Um estranho no espelho: representações do caboclo amazônico / Maria das Graças Ferreira de Medeiros. Manaus, AM : UFAM, 2004. 187 p. : il. Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de mestra em “Sociedade e Cultura na Amazônia” pela Universidade Federal do Amazonas. Orientador: Professor Doutor Marcos Frederico Krüger Aleixo. 1. Atitudes étnicas 2. Identificação 3. Influência social 4. Mudança social 5. Estereótipo (Psicologia) I.Título Bibliotecária responsável: Maria Siméia Ale Girão

5

FOLHA DE APROVAÇÃO

Autora: Maria das Graças Ferreira de Medeiros Título: Um estranho no espelho: representações do caboclo amazônico Área:

Processos Socioculturais na Amazônia

Data:

23 de agosto de 2004

Dissertação de Mestrado apresentada em defesa pública como requisito para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação “Sociedade e Cultura na Amazônia”, do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas.

........................................................................................ MARIA DAS GRAÇAS FERREIRA DE MEDEIROS

........................................................................................ Professor Doutor Marcos Frederico Krüger Aleixo Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa / UFAM Presidente ........................................................................................ Professor Doutor Narciso Júlio Freire Lobo Doutor em Ciências da Comunicação / UFAM Membro ........................................................................................ Professor Doutor Amarildo Menezes Gonzaga Doutor em Educação / CEFET/AM Membro

6

Aos que acreditam no valor dos primeiros passos. A mim mesma, por não perder a Fé. Dedico.

7

“Um galo sozinho não tece uma manhã” João Cabral de Melo Neto

A todos os que, de alguma maneira, contribuíram para esta tessitura, com pequenos gestos de solidariedade, atenção generosa, orientação, incentivo e apoio. A Deus, porque sem fé não teria sido possível mover montanhas. Ao Marcos Frederico, meu orientador, pela paciência. Aos professores Narciso Lobo, Raquel Castro, Iraildes Torres, Heloísa Lara Raimundo Nonato Silva, pela gentileza. Às bibliotecárias do NAEA – Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPa, em especial a Cacilda, e à Socorro, da biblioteca do ICHL da UFAM, pela atenção desinteressada. Às amigas do Mestrado, especialmente Francileide e Socorro Pacó, pela solidariedade. Ao jornalista Aldísio Filgueiras, pela generosidade. Aos familiares e amigos que, em momentos importantes, hipotecaram o seu apoio : meu filho Daniel, Gisele, Terezinha, Dra. Ana Maria Marques e outros tantos, particularmente ao meu irmão, Osmir Medeiros. Minha gratidão.

8

O que sabemos é uma gota, o que ignoramos, um oceano. Isaac Newton

9

RESUMO

Este estudo investiga as representações sociais do caboclo amazônico, emergentes no discurso de jovens amazonenses, estabelecendo relação entre o imaginário sobre a Amazônia da época da colonização e os estereótipos relacionados a essa categoria social, procurando identificar as razões de sua permanência ao longo do tempo e a maneira como hoje se expressam nas relações sociais. Analisa, ainda, a possibilidade de existência de uma identidade cabocla, correlacionando as origens do termo e o processo histórico que consolidou o seu uso, à idéia de alteridade associada ao seu emprego relatada por estudiosos do homem amazônico e ainda hoje evidenciada na fala dos sujeitos da pesquisa. A tentativa de interpretação apóia-se na tradição hermenêutica, com vistas a ampliar a discussão sobre o tema. Palavras-chave: representações, estereótipo, imaginário, alteridade, identidade

10

ABSTRACT

This study investigates the emerging of the speech of young amazonenses Amazonian mestizo's social representations, establishing relationship among the imaginary on the Amazonian of the time of the colonization and the related stereotypes the that social category, trying to identify the reasons of its permanence along the time and the way as today is expressed in the social relationships. Its analyzes, still, the possibility of existence of an identity cabocla, correlating the origins of the term and the historical process that it consolidated its use, to the alteridade idea associated to its use told by the Amazonian man's specialists and still today evidenced in the speech of the subject of the research. The interpretation attempt leans on in the tradition hermenêutica, with views to enlarge the discussion on the theme. Key-words: representations, stereotype, imaginary, alteridade, identity

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

11

1. A ÓTICA EUROCÊNTRICA – ESTEREÓTIPO E PRECONCEITO 24 1.1 Um estigma como herança

36

2. CABOCLO – UMA IDENTIDADE POSSÍVEL?

46

2.1 A propósito do termo “caboclo” 2.2 A cultura cabocla 2.3 O caboclo na história (ou a história do caboclo?) 2.4 O caboclo hoje

54 62 69 76

3. RECOLHENDO FRAGMENTOS: UMA PERSPECTIVA DE DAS REPRESENTAÇÕES

COMPREENSÃO

81

3.1 Conhecendo o terreno: real e imaginário nas representações 3.2 Analisando os fragmentos: o dito e o não-dito

4. JUNTANDO OS PEDAÇOS: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO CABOCLO

90 96

139

4.1 O caboclo estereotipado: imaginário e representações 4.2 Caboclo “é o outro”: representação da alteridade 4.3 O caboclo e “eu”: identidade e conflito

139 148 153

REFLEXÕES FINAIS

162

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

172

OBRAS CONSULTADAS

179

12

INTRODUÇÃO

Existe, sim, um lugar secreto na Amazônia. No âmago de suas terras encontra-se a origem de todos os homens. 1

Í

cone da modernidade pseudo-ecológica na onda naturalista que invadiu o mundo nos últimos tempos, a Amazônia tem suscitado idéias e concepções controversas, especulações várias e pouca compreensão sobre a sua

realidade. No imaginário de muitos a Amazônia continua encarnando o papel do Novo Mundo, inóspito, fantástico, mágico, estarrecedor, que animou as elites européias por ocasião do descobrimento das Américas. Quando chegou ao conhecimento dos europeus, segundo Busato (s.d., p. 300), o Novo Mundo “já estava pré-construído no sentido do imaginário, por muitos séculos de estórias...”, principalmente criadas a partir de relatos dos grandes exploradores. Foram os estrangeiros, então, os primeiros a filtrar os mitos antigos e “exportar” para o Brasil o que eles elaboraram culturalmente, podendo-se afirmar que grande parte do ideário brasileiro não é de origem nacional. Referindo-se à época dos descobrimentos, afirma o autor que o indígena brasileiro, na cultura européia daquele tempo, aparecia como um ser degenerado e até como um simples animal, cuja figura perturbava a imagem particular da Amazônia “criada” pelos descobridores. Ao contrário da natureza exuberante, o homem amazônico apresentava falhas imperdoáveis aos olhos do colonizador. Fazendo uma releitura dos relatos dos expedicionários e naturalistas que por aqui passaram, vê-se o delineamento de uma imagem negativa sobre o amazônida e as bases sobre as quais ela foi assentada: o contexto sócio-cultural, a religiosidade e as raízes filosófico-políticas que norteavam o modus vivendi 1

GONDIM, Neide, em A Invenção da Amazônia.

13 europeu, confrontados com a existência amedrontadora de uma realidade outra, completamente adversa, assustadora mesmo para os padrões daqueles estudiosos. Essa criação, cristalizada no imaginário popular, ainda constitui o pano de fundo para qualquer representação da Amazônia, não somente em outros Estados do país, mas também na região amazônica e mesmo no Estado do Amazonas, resultando daí uma imagem mitificada, estereotipada, especialmente sobre o homem amazônico. A despeito da cultura rica e variada, originada das seculares tradições dos inúmeros povos indígenas que habitam essa vastíssima região, a idéia de inferioridade do homem americano provavelmente influenciou a auto-imagem dos seus descendentes. Resultado do processo miscigenatório entre índios e brancos, o caboclo parece ter absorvido em parte o estereótipo para si criado. Partindo desse pressuposto, pode-se supor que as representações do homem amazônico estão assentadas em terreno fértil, ou seja, são facilmente integradas, já que não se evidencia resistência aos estereótipos de indolência, preguiça, inferioridade intelectual e estética atrelados à imagem do nativo da região. Não é raro observar nos jovens amazonenses o afã de copiar modelos estrangeiros, no falar, no vestir, no comportamento. As influências dos padrões de beleza e modismos do sul do Brasil são evidentes no seu vestuário, nos adereços, na produção da imagem pessoal, no linguajar, nas opções de lazer, etc., o que é relativamente compreensível pela influência da mídia nos hábitos sociais. O que surpreende, no entanto, é o que se observa empiricamente no contexto local, no discurso cotidiano do próprio caboclo amazonense, entendido como o indivíduo aqui nascido e criado, independente de características físicas e status social. Em muitas ocasiões é possível verificar a predominância da visão do “estrangeiro”, ou seja, a emergência de preconceitos atribuídos aos “de fora”, como a idéia de que o caboclo é “preguiçoso”, é “burro”, é “feio”. Chamar alguém de “índio” ou “caboclinho” para alguns tem um cunho depreciativo, inclusive o

14 termo

é

freqüentemente

utilizado

pejorativamente

em

várias

situações,

especialmente em Manaus. Partindo-se dessas indicações, a presente investigação científica busca saber se realmente existe uma negação por parte do jovem amazonense, de uma identidade como “caboclo”, e se esse jovem se percebe integrante dessa categoria depreciada. Considerando as evidências históricas da constituição desse imaginário, em que sobressai a imagem depreciativa do homem amazônico, quais as razões de sua durabilidade, já que ainda hoje são percebidas evidências de sua existência? Os elementos para esboçar possíveis respostas a estas indagações, estão expostos no presente estudo. Assim sendo, o objeto desta pesquisa qualitativa diz respeito às representações

do

jovem

amazonense

sobre

o

homem

amazônico,

especificamente o denominado “caboclo”, buscando-se identificar se a influência da visão eurocêntrica ainda prevalece no pensamento desse jovem, e de que forma essa representação é feita, estabelecendo relação entre o contexto em que esse ideário negativo foi constituído e a realidade atual em Manaus. Considerando a grande lacuna observada em relação a esse habitante típico da região nos estudos investigativos registrados sobre a Amazônia, pretende-se também reunir dados que possibilitem uma melhor compreensão do tema e fomentem novos questionamentos. Esta pesquisa se impõe, então, a tarefa de compreender a maneira como o caboclo é representado, tomando como sujeitos alunos de nível médio de instituições de ensino público. Partindo do discurso dos mesmos e de sua análise, estabelece-se um diálogo entre esses dados empíricos, a base teórica relativa ao tema e as noções que o circunscrevem, dentro de uma perspectiva sócio-histórica e cultural. Adotou-se como elemento norteador a teoria das representações sociais, procurando-se compreender o indivíduo em seu contexto, sua história e imaginário social. Sá (1998) acentua que, como modalidade do pensamento prático,

as

representações

emergem

das

práticas

sociais,

tornando-se

15 imprescindível que, no processo de seu desvelamento, sejam resgatadas as condições em que foram tecidas. A investigação das representações sociais é uma forma para se atingir essa estrutura maior chamada “cultura”, pois os significados sociais são construídos num meio cultural que normaliza e pressiona a emergência dos discursos, das visões de mundo, das atuações, dos processos cognitivos, afetivos e sociais individuais. Cultura e sociedade, segundo Morin (1998) estão numa relação geradora mútua, onde os indivíduos exercem um papel importante, já que funcionam como portadores e transmissores de cultura: Por se tratar de um conhecimento prático, as representações sociais são enquadradas entre as correntes que estudam o conhecimento do senso comum. Pesquisar representações significa, então, adentrar a uma realidade intraindividual, onde elementos afetivos, sociais e mentais integram a cognição, a linguagem, a comunicação e se manifestam por meio da realidade material, social e imaginária se seus atores. Para compreender as representações sociais Minayo (1996) resgata um conceito de Gramsci, que considera o senso comum como a matéria-prima das representações, chamando a atenção para a solidez das crenças, que produzem normas de conduta e, ao mesmo tempo, conformismo diante da crise. O processo de análise das representações sociais impõe a necessidade de remissão aos conceitos centrais propostos por Moscovici (apud SÁ, 1996). O primeiro é o conceito de ancoragem, que indica a integração cognitiva do objeto representado a um sistema de pensamento social pré-existente, ou seja, interpreta-se

determinado

fenômeno a partir

de

experiências

anteriores

armazenadas, com as quais a experiência atual é identificada; o segundo conceito é a objetivação, através da qual se torna concreto o conceito abstrato. Por meio desses processos de ancoragem e objetivação ocorre a transformação do nãofamiliar em familiar, quando objetos, indivíduos e eventos são percebidos, compreendidos e “acomodados” em paradigmas previamente estabelecidos. De acordo com Minayo (1997), algumas representações sociais são mais abrangentes em termos da sociedade como um todo e revelam a visão de mundo

16 de determinada época. São as concepções das classes dominantes dentro da história de uma sociedade. Mas essas mesmas idéias possuem elementos de passado na sua conformação e projetam o futuro em termos de reprodução da dominação. No trabalho com representações, Sá (1998) chama a atenção para o fato de que a representação que liga o sujeito ao objeto é um saber efetivamente praticado que não deve ser apenas suposto, mas sim detectado em comportamentos e comunicações que de fato ocorram sistematicamente. Ou seja, a escolha do tema para estudo não pode estar baseada em especulações ou em suposições quanto à existência do fenômeno. É necessário ter previamente confiança de que o fenômeno exista de fato, assim como evidências de sua representação pelos sujeitos. Esta pesquisa tem como sujeitos 30 estudantes do ensino médio de duas escolas públicas de Manaus, a Escola Estadual Francisco Albuquerque, localizada na rua Joaquim Nabuco, no centro de Manaus, onde foram entrevistados 15 alunos do primeiro ano do nível médio, turno noturno, e a Escola Estadual Ernesto Penafort, na zona leste da cidade, onde 15 alunos do terceiro ano do turno vespertino participaram da pesquisa. A escolha da primeira escola se deu por estar situada no centro da cidade, considerando-se que a sua clientela seria composta de alunos de bairros diversos, possibilitando uma amostra mais heterogênea. Já a escola da zona leste foi escolhida porque nessa área predominam nos moradores as características físicas que evidenciam os traços somáticos indígenas. Optou-se trabalhar com jovens estudantes em razão, primeiramente, da facilidade de acesso a esse grupo, e também em razão de sua espontaneidade nas expressões e, ainda, por estarem os jovens em fase de formulação de conceitos

e

de

estruturação

de

um

pensamento

social.

Nessa

fase,

particularmente no contexto social da atualidade, os indivíduos estão submetidos a muitos estímulos e informações e muito suscetíveis a influências, mas teoricamente em condições de elaborar conceitos e discernir escolhas.

17 Utilizou-se para a coleta de dados a entrevista semi-estruturada, elaborada de maneira a possibilitar a emergência de informações relevantes sobre idéias, crenças, opiniões e condutas dos indivíduos, assim como as bases conscientes e inconscientes dessas construções e a revelação de sistemas de valores e normas do grupo no qual os indivíduos se inserem. As entrevistas foram realizadas com a permissão da direção das escolas, após solicitação formal de permissão para o contato com os alunos, tendo-se o cuidado de não atrapalhar o desenvolvimento normal das atividades escolares. O trabalho de campo foi realizado no período de julho a setembro de 2003, tendo havido receptividade e espírito colaborativo em ambas as escolas por parte dos professores para a participação dos alunos na pesquisa. Da parte dos sujeitos, 14 homens e 16 mulheres na faixa de 15 a 20 anos, em princípio houve certo retraimento, principalmente por parte dos homens, logo superado pela curiosidade, havendo depois um decréscimo do “ânimo” inicial em virtude da extensão da entrevista, elaborada de forma a captar o máximo possível de informações, assim como as contradições que freqüentemente emergem neste tipo de discurso. Minayo (1996) aconselha a associação de técnicas complementares à entrevista nos estudos de representação, como a discussão em grupos focais, uma estratégia de coleta de dados geralmente usada para complementar informações sobre conhecimentos peculiares a um grupo e para formulação de questões mais precisas nas entrevistas. O interesse da composição desses grupos para o campo das representações sociais, segundo a autora, prende-se principalmente no fato de que eles de certo modo simulam conversações espontâneas pelas quais as representações são veiculadas na vida cotidiana, fazendo emergir certas percepções e atitudes que só seriam vistos no ambiente natural. Essa estratégia foi então utilizada previamente à realização das entrevistas, com o intuito de colher informações mais precisas sobre o objeto das representações para a formulação de questões mais adequadas aos objetivos que se pretendia alcançar. A idéia era ver como os jovens estudantes se

18 comportariam numa conversa informal, o que deixariam transparecer que pudesse ser útil para orientar uma etapa posterior. Para a constituição do grupo focal foi feita uma reunião com nove alunos voluntários do nível médio, sem especificação de série. Percebeu-se, pela dificuldade de abordagem do tema com os jovens, a dificuldade de extrair nos depoimentos pessoais dados suficientemente relevantes para constituir material de estudo, evidenciando-se a necessidade de introduzir na entrevista perguntas mais diretivas, assim como observar a postura dos estudantes durante a verbalização. Os elementos emergentes no grupo ajudaram a conceber o tipo de abordagem que poderia ser mais eficaz e subsidiaram o roteiro da entrevista, principalmente quanto a aspectos sobre o ambiente social amazônico e amazonense que deveriam ser enfocados. Na entrevista partiu-se de questões mais gerais, procurando-se situar o entrevistado numa realidade sócio-econômica e política específica, para questões mais direcionadas ao objeto de estudo, as representações do caboclo, evitando-se a abordagem direta e privilegiando-se as sutilezas. Minayo

(1996)

considera

a

entrevista

uma

técnica

interrogativa

fundamental para recuperação das representações, constituindo-se a entrevista em profundidade ou semi-estruturada em um método indispensável nos estudos sobre as representações, pois parte da elaboração de um roteiro no qual o pesquisador pode enumerar da forma mais abrangente possível as questões que pretende abordar, de acordo com suas hipóteses ou pressupostos. Sabe-se, entretanto, que não é possível a previsão de todas as situações que vão ser encontradas no trabalho de campo, podendo surgir a necessidade de redirecionamento para captação de aspectos considerados relevantes na compreensão do objeto. A entrevista como fonte de informação fornece dados secundários e primários, referentes a fatos, idéias, crenças, maneira de pensar, opiniões, sentimentos, maneiras de sentir; maneiras de atuar; conduta ou comportamento presente ou futuro; razões conscientes ou inconscientes de determinadas crenças, sentimentos, maneiras de atuar ou comportamento (MINAYO, 1996, p. 108).

19 Sá alerta para a idéia errônea e bastante difundida de que o material discursivo do qual se queira extrair as representações deve ter sido produzido pelos sujeitos da forma mais espontânea possível: O problema não está em se fazer perguntas diretas, mas sim na qualidade das perguntas que são feitas, entendendo-se qualidade aí como uma decorrência da pesquisa estar criteriosamente informada pela teoria. A espontaneidade não é uma garantia de ampla revelação das representações, podendo mesmo ter, ao contrário, o efeito de encobrí-las (SÁ, 1998, p. 89).

Na opinião de Minayo (1996), o que faz da entrevista um instrumento privilegiado de coleta de informações, na área de ciências sociais, é a possibilidade da fala ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos, ao mesmo tempo tendo o poder de transmitir as representações de grupos determinados em condições históricas, sócioeconômicas e culturais específicas. Deve-se ter em mente, por outro lado que a entrevista não se resume a uma simples coleta de dados, por existir obrigatoriamente uma situação de interação entre o entrevistado e o entrevistador, podendo as informações dadas pelos sujeitos serem afetadas pela natureza dessas relações: [...] a dissimetria nas posições entrevistador / entrevistado tem que ser compreendida e assumida criticamente em todo o processo de construção do saber. O impacto resultante do pertencimento a outra classe, que se concretiza em experiências sócio-culturais e até conflitantes, é um dado condicionante da pesquisa, junto com todos os outros fatores que acompanham qualquer uma de suas fases (MINAYO, 1996, p. 119).

Existe também uma preocupação com o uso deste instrumento porque a entrevista é, antes de tudo, uma técnica que se traduz pela produção de um discurso, sendo este uma atividade complexa caracterizada por aspectos que dificultam sua análise. A expressão discursiva durante uma entrevista favorece, conscientemente ou não, a utilização de mecanismos psicológicos, cognitivos e sociais, o que pode comprometer a confiabilidade e a validade de seus resultados.

20 Essas dificuldades e divergências são efetivamente enfrentadas pelo pesquisador, segundo Minayo (1996), quando se parte para a tarefa concreta de análise do material coletado. Nesse momento não existe concordância nem quanto a pressupostos teóricos e nem quanto a métodos e técnicas a serem empregados, se instaurando uma polêmica que tem a ver com os próprios limites do conhecimento e com a luta intelectual para ultrapassá-los. Análise de conteúdo costuma ser a expressão comumente usada para representar o tratamento dos dados de uma pesquisa qualitativa. Na avaliação da autora, no entanto, esta expressão, mais do que um procedimento técnico engloba no seu significado uma histórica busca teórica e prática no campo das investigações sociais. Operacionalmente, a análise de conteúdo parte de uma leitura de primeiro plano para atingir um nível que ultrapassa os significados manifestos. Bardin (1977) concebe a análise de conteúdo como um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Não se trata de propriamente de um instrumento, mas de um “leque de apetrechos”. Diz a autora que, por ser um método muito empírico, que depende do tipo de fala e do tipo de interpretação que se pretende fazer, “a técnica de análise de conteúdo adequada ao domínio e ao objetivo pretendidos, tem que ser reinventada a cada momento...” (BARDIN, 1977, p. 30). Pertencem, pois, ao domínio da análise de conteúdo, todas as iniciativas que, a partir de um conjunto de técnicas parciais, mas complementares, consistam na explicitação e sistematização do conteúdo das mensagens e da expressão desse conteúdo, com o contributo de índices passíveis ou não de quantificação, a partir de um conjunto de técnicas que, embora parciais, são complementares (idem, p. 42).

A análise de conteúdo organizada e empregada como técnica interpretativa é criticada por Minayo (1996) pela ênfase na fala como material de análise, resultando em fraca capacidade explicativa: O material etnográfico é arrancado como um corpus, isto é, como um conjunto sistematizado e fixo, privilegiando-se tudo o que pode se constituir em sistema de signos a serem decifrados. Desta forma, não entram em pauta o processo de tomada de decisões no campo e nem o contexto da ação analisada. As entrevistas costumam ser vistas em bloco,

21 perdem sua autoria e o jogo dos “significantes em cadeia” passa a ser o foco da compreensão. [...]... o rigor formal de que se reveste costuma sacrificar a riqueza dos detalhes e a multidimensionalidade da pesquisa empírica – características que constituem a aura e o mérito da abordagem antropológica (MINAYO, 1996, p. 229-30).

É o método hermenêutico-dialético o proposto pela autora como o mais capaz de se aproximar de uma interpretação fiel da realidade, porque por esse caminho, segundo ela, a fala dos sujeitos é colocada em seu contexto para ser entendida a partir do seu interior e no campo da especificidade histórica e totalizante em que é produzida. A hermenêutica consiste na explicação e interpretação de um pensamento, buscando a compreensão de sentido que se dá na comunicação entre os seres humanos, importando, mais do que a expressão verbal, a compreensão simbólica de uma realidade a ser penetrada. Pela capacidade de propiciar uma reflexão que não se distancia da práxis, a hermenêutica-dialética é vista por Minayo como um “caminho do pensamento”, pelo qual, neste trabalho, é tentada uma compreensão mais aproximada quanto possível do pensamento social sobre o caboclo na atualidade. Esta opção metodológica para o trabalho interpretativo na análise de conteúdo foi escolhida também em razão da idéia de que o desvendamento e melhor entendimento do caboclo, na sua dimensão sócio-histórica e psicológica, implica em entender também a nossa história pessoal e social. Acredita Ricoeur (1978) que, de modo implícito ou explícito, toda hermenêutica é a compreensão de si mesmo mediante a compreensão do outro, e é uma melhor compreensão de si próprio, enquanto ser social, que todo investigador persegue em última instância. Após a transcrição das entrevistas, foi feita a leitura flutuante 2 do material, sendo os dados agrupados conforme as questões do roteiro de entrevista e gerando-se tabelas com a intenção de facilitar a análise posterior, que não foi desenvolvida a partir de uma teoria exclusiva, mas com base em conceitos e noções teóricas, por meio dos quais se estabelece um diálogo com os fenômenos empíricos3. Estes, após uma interpretação preliminar a partir das respostas às 2

Terminologia utilizada por Bardin (1977) para identificar a leitura prévia dos documentos. No sentido proposto por Minayo (1996, p. 92-3), os conceitos “são as unidades de significação que definem a forma e o conteúdo de uma teoria. Podemos considerá-los como operações mentais que refletem certo ponto de vista a respeito da realidade, pois focalizam determinados aspectos dos fenômenos, hierarquizando-os. Desta forma eles se tornam um caminho de ordenação da realidade, de olhar os fatos e 3

22 questões, reunidas pela convergência temática, foram novamente agrupados em três categorias empíricas centrais, que constituem a súmula interpretativa do material da pesquisa de campo. Para subsidiar a interpretação dos dados, além das leituras sobre representações sociais e o estudo dos principais conceitos para a articulação das análises, procedeu-se a levantamento bibliográfico com a intenção de identificar as origens do que configurou mais tarde o componente principal do imaginário sobre o homem amazônico, ou seja, a idéia de inferioridade da raça americana, idealizada na figura do indígena. Estudos tendo o caboclo como tema, também foram

pesquisados,

buscando-se

reunir

informações

suficientes

para

a

compreensão dos dados. No primeiro capítulo, então, aborda-se a visão eurocêntrica sobre o homem americano, impregnada de conceitos depreciativos, que tem permeado a representação de muitos sobre o amazônida dentro e fora do Brasil, estudada a partir de relatos de naturalistas, tomando-se como amostra o trabalho de Alexandre Rodrigues Ferreira, no século XVIII, os relatos de Spix e Martius, do início do século XIX e do casal Agassiz, da segunda metade do mesmo século. No século XX, vários estudiosos debruçaram-se sobre a Amazônia, com finalidade descritiva, analítica ou simplesmente reflexiva, dentre os quais Euclides da Cunha em sua obra À Margem da História, aqui referenciada. A escolha desses naturalistas, dentre os vários que aqui estiveram, justifica-se principalmente pela proeminência no cenário intelectual de sua respectiva época. A Viagem Filosófica, de Alexandre Rodrigues Ferreira, por exemplo, é um trabalho histórico de referência no Brasil, pela riqueza de detalhes e minúcias apresentadas para estudo, assim como a Viagem pelo Brasil, dos naturalistas Spix e Martius, no início do século XIX. Os relatos do casal Agassiz, em Viagem ao Brasil, na segunda metade do século XIX, por sua vez, trazem informações preciosas sobre o modo de vida da as relações, e ao mesmo tempo um caminho de criação.” Noções são entendidas pela autora como “elementos de uma teoria que ainda não apresentam clareza suficiente e são usados como ‘imagens’ na explicação do real. Eles expressam também o caminho do pensamento. Ou seja, expressam a relação intrínseca entre a experiência e a construção do conhecimento.”

23 população amazônica nas comunidades urbanas, com precisão de detalhes e descrições. Já no século XX, a visão literária de Euclides da Cunha imprime um cunho emocional ao painel sobre a região. Outros autores contemporâneos contribuem com seus escritos para esta pesquisa, buscando-se uma melhor compreensão e referências suficientemente capazes de embasar a análise empreendida a partir de dados coletados nas entrevistas. A categoria “caboclo”, escolhida para o estudo em questão, constitui o tema do segundo capítulo, tomando por base bibliografia específica a partir de textos que abordam o homem amazônico. O termo “caboclo”, por sinal, não é designativo exclusivamente de habitantes da região amazônica, mas aparece relacionado a grupos de outras regiões do país, e até mesmo de cunho religioso, como é o caso dos “caboclos” do candomblé. De toda forma, é forçoso perceber que os diferentes usos da designação “caboclo”, em algum momento convergem para as origens admitidas como mais remotas do termo, referindo-se àquele “que vem do mato”. A despeito das menções a outras acepções do termo, é especificamente para o indivíduo originário da região amazônica, geograficamente determinado e caracteristicamente identificado por seu habitat, costumes e modus vivendi, que está voltado este estudo, no qual se buscou extrair das escassas fontes de informação relacionadas ao tema, elementos suficientes para orientar a análise dos dados coletados na pesquisa de campo. Estudos como os de Eduardo Galvão, Roberto Cardoso de Oliveira, Charles Wagley e Eugene Parker constituíram fontes importantes de referência no assunto, assim como o trabalho de Débora de Magalhães Lima4, resumido em artigo, mesmo assim bastante útil pela abrangência de suas apreciações, sem demérito para outros tantos autores de cujas obras foram feitas menções. No terceiro capítulo estão apresentados os resultados da pesquisa de campo em articulação com os dados bibliográficos e os conceitos mais 4

Débora de Magalhães LIMA é autora da Tese de Doutorado (na qual assina LIMA AYRES) apresentada em 1992 na Universidade de Cambridge, intitulada The Social Category Caboclo: the history, social organization, Identity and outsider’s social classification of the rural population of an amazonian region (the Middle Solimões). Seu trabalho é referenciado em vários estudos sobre a Amazônia e o caboclo mas, infelizmente, não pôde ser consultado para esta pesquisa por não constar do acervo do NAEA – Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, onde foi obtido o Caderno com o artigo da pesquisadora, mencionado no presente trabalho.

24 diretamente relacionados ao tema, como identidade, alteridade, imaginário e estereótipo. Primeiramente estão expostos os dados colhidos junto aos sujeitos da pesquisa, reunidos e organizados respectivamente em quadro resumo, com as informações gerais sobre os entrevistados, e tabelas compostas com as respostas dos entrevistados às perguntas feitas na entrevista, seguidos de considerações analíticas. As representações do caboclo propriamente, fragmentadas no decorrer da análise, são recompostas depois em três categorias empíricas, expostas no quarto capítulo, considerando que foram construídas fundamentalmente a partir dos dados empíricos, mas que se prestam à interpretação norteada pela abordagem hermenêutica-dialética. Busca-se aí, identificar as interrelações intrínsecas entre o fenômeno das representações e aspectos da realidade dos sujeitos, para compreender as condições que os determinaram e pelas quais eles podem ser explicados. As considerações finais trazem uma retrospectiva desse “caminho do conhecimento” de que fala Cecília Minayo, a propósito do trabalho de pesquisa em ciências sociais. Ali estão resumidos os pontos principais de cada etapa, as dificuldades teóricas e práticas, assim como os pontos de convergência que se convencionou chamar de conclusões, na ausência de termo mais apropriado. Tendo em conta a lacuna existente em termos de um saber erudito estruturado e difundido de forma ampla sobre o tema, acredita-se que as informações aqui apresentadas possam resultar em contribuição para o escasso acervo local. Espera-se, por outro lado, contribuir para a ampliação do espaço de discussões sobre esse universo instigante que é a região amazônica, no qual o elemento humano, embora relegado muitas vezes a dados estatísticos nas pesquisas demográficas, esmaecido na grandiosidade da paisagem, há muito tempo está a merecer o olhar elucidador da investigação científica.

25

1. A ÓTICA EUROCÊNTRICA – ESTEREÓTIPO E PRECONCEITO “... a principal causa de todas as diferenças entre o selvagem e o homem sociável é que o primeiro vive em si mesmo e o segundo vive sempre fora de si...” Rousseau

D

e acordo com Lisboa (1997), as imagens da América criadas pelos europeus do séc. XIX reportam-se às idéias veiculadas na época da conquista européia do continente americano, quando as diferenças

entre os continentes foram firmadas por uma oposição conceitual entre o Velho e o Novo Mundo. O primeiro, centro de cultura e desenvolvimento, o segundo, uma “terra de ninguém”, selvagem e indômita. A imagem de inferioridade e de debilidade da terra e do homem americano é alicerçada pelos conceitos de naturalistas respeitados nos meios científicos, como Buffon e Cornelius de Pauw, este último defensor da idéia de que o continente americano estaria fadado a uma irreversível degradação. A teoria climática de Montesquieu é retomada por Buffon, que classifica a humanidade conforme uma “estrutura hierárquica” pautada no modelo normativo e eurocêntrico. Segundo esse modelo, os homens mais belos seriam encontrados nas regiões de clima temperado. Os extremos climáticos, como frio excessivo e áreas de climas tórridos aparecem como “desvios negativos” desse padrão. O homem selvagem é considerado parente dos animais, marcado pelo tamanho insignificante, debilidade física, carência de vivacidade, insensibilidade e frigidez sexual, “defeito” este que o torna ainda mais desprezível. Mundo intacto, é assim que Buffon visualiza ou imagina o Novo Mundo, onde o homem é um intruso. É um mundo ainda em formação. [...] Na construção da história do Novo Mundo, o clima nefando é o responsável pela geração dos animais inferiores. O clima, o solo, a umidade, o descomunal tamanho dos rios, a exuberância das florestas

26 diziam que o mundo era imaturo, porém a vida animal que o povoava mostrava, por outro lado, que esse mundo já nascera imperfeito, motivo pelo qual era fraco, enfermiço e débil. A influência desses fatores agia sobre o temperamento do homem, modulando sua história e seus costumes (GONDIM, 1994, p.73).

De Pauw foi mais longe e, sem jamais ter tido contato com os selvagens americanos, se declara convicto da sua “degeneração”, deduzindo serem esses pouco mais do que “bestas”, que sentiam ódio das leis da sociedade e da educação. Considera ele que, além de possuírem menos sensibilidade, menos humanidade, menos gosto, menos instinto, menos coração e menos inteligência, esses selvagens são fracos e incuravelmente preguiçosos, incapazes de progresso mental.

Tanto Buffon quanto De Pauw, em suas considerações sobre o homem americano,

denotam

um

exacerbado

preconceito,

extrapolando

a

visão

etnocêntrica que, de acordo com Claude Lévi-Strauss, na sua expressão mais imediata, não é particular do europeu. Grande parte dos seres humanos, segundo ele, apresenta essa atitude profundamente enraizada, razão por que o etnocentrismo é considerado como um desdobramento do “egocentrismo”, característico de todos os seres humanos e culturas. Meggers (1977, p. 199) vê o etnocentrismo como uma das principais barreiras à transmissão e evolução cultural, traduzido pela “convicção de que nossa própria gente é ‘gente de verdade’, enquanto que todos os outros grupos são inferiores, ou mesmo subumanos.” O comportamento de tais inferiores não é somente considerado indigno de imitação como também pode ser visto como inalienável, juntamente com a cor dos cabelos e outros traços biológicos. Esta atitude psicológica continua sendo muito espalhada hoje em dia e manifesta-se pelo desprezo para com os hábitos alimentares, roupas, métodos de adorno pessoal, indolência, agressividade e demais características de outro grupo, traduzindo-se, pois no esforço por evitar, tanto quanto possível, qualquer associação com esses indivíduos... (idem, p. 199).

Nessa forma de apreensão do mundo, o indivíduo se posiciona no centro do seu universo, o mundo da cultura e da civilização, olhando à sua volta aqueles que reconhece como seres humanos, seus semelhantes. Alguns parecem mais próximos; outros só longinquamente são aparentados. Para além disso há os estranhos, cujos costumes não são suficientemente reconhecidos e semelhantes

27 ao dele para que experimente sentimentos de simpatia humana. Além desses últimos há pessoas ainda mais estranhas, que não suscitam a menor sensibilização. Esses estão para além dos limites da humanidade, são selvagens, animais, elementos da natureza. É assim que é visto o nativo americano. Autômato, achatado sob um clima adverso, nômade, sem vontade própria, sem sociedade, o nativo não é anão, é um híbrido, algo intermediário entre o réptil e o vegetal que o camufla, apesar de ter sido produzido por obra divina. [...] Floresta virgem, madrasta para os inertes, é a personagem principal nesse cenário onde o homúnculo imberbe é gerado da mesma larva que os insetos, parido sobre o mesmo leito aplainado pelo rastejas das serpentes imensas. Mal constituído, não tem o tamanho nem da vitalidade da fauna que o sufoca porque é um híbrido, quase que produzido instantaneamente (GONDIM, 1994, p. 74).

Esse etnocentrismo pernicioso tem seus desdobramentos em larga escala, particularmente porque oriundos da Meca dos pensadores, a Europa. Na opinião de Gerbi (1996), é precisamente a partir da divulgação das idéias do naturalista Buffon, que a tese da inferioridade das Américas inicia uma trajetória histórica ininterrupta que passa por De Pauw e alcança seu ápice com Hegel. Imaturidade, impotência, inferioridade e degeneração, a partir de então passariam a ser termos recorrentes durante séculos, sempre que eram feitas descrições da realidade americana, incluindo sua natureza e sua gente. Os registros arquetípicos construídos nas especulações filosóficas sobre a existência de um paraíso terrestre, impenetrável e místico que em si mesmo encontra o seu oposto (o inferno), estava agora materializado no Novo Mundo, e era ele que acompanhava os viajantes e cientistas que aventuraram conhecer a Amazônia. As narrativas desses desbravadores eram destinadas aos europeus e é a partir deles, segundo Busato (s.d., p. 310), que vai surgir, recriado e filtrado dos mitos antigos, o imaginário amazônico “exportado” depois para o Brasil. Assim, “a visão atual da Amazônia pelos brasileiros fundamentou-se fora do Brasil e fora da época contemporânea”. De acordo com Cicerchia (2000), o trabalho que mais difundiu as teorias de Buffon e De Pauw foi The History of America, de William Robertson. Refratário às idéias de Rousseau e permeável ao pessimismo naturalista de De Pauw, o historiador escocês reconhecia na América um continente imenso, com um clima

28 predominantemente frio e uma população “rude e indolente”. Foi a partir deste texto que foi sendo introduzido gradualmente também um olhar que corrige a direção cerradamente naturalista dos detratores do Novo Mundo. Ainda que os americanos fossem primitivos ou animais melancólicos, Robertson via na variedade americana, possibilidades históricas. Em sintonia com as idéias de Buffon, Alexandre Rodrigues Ferreira, quando esteve na região amazônica em uma jornada encomendada pela Coroa Portuguesa, conhecida como “Viagem Filosófica”, buscou comprovar as teses do famoso naturalista e estabeleceu que a preguiça e a indolência eram responsáveis pelo atraso da Amazônia. A intervenção colonialista seria, então, uma forma de integrar os americanos nos rumos da “civilização” e estimular a sua inteligência, ainda embrionária. Apesar do domínio apresentado sobre alguns fenômenos da natureza, Ferreira considerou que a racionalidade indígena não era nem mais iluminada nem mais previdente que o instinto dos animais (RAMINELLI, 2001). Para o naturalista a ambição, poderosa "mola das ações humanas", era inerte naqueles seres, pois viviam na indolência e a felicidade consistia em não trabalhar. Quando a fome os perseguia, satisfaziam-se com qualquer raiz e animais, disponíveis na natureza. Não havia, entre eles, previsão para o futuro. Em suas observações pondera que, em alguns momentos, os seres primitivos deixavam entrever uma inteligência, mesmo que embrionária, capaz de se desenvolver (FERREIRA, 1971). Ferreira dissertou sobre a constituição física, moral e política dos povos amazônicos que conheceu, recorrendo também a testemunhos de viajantes, cronistas e estudiosos da América, cruzando informações, verificando similitudes, com a finalidade de compor uma "figura americana". Percorreu as várias nações indígenas sem buscar explicações para costumes e idiossincrasias; limitando-se a descrevê-las nos aspectos visíveis e extraídos dos acontecimentos, tratando os temas de forma superficial ou detalhada, conforme as particularidades e excentricidades dos grupos contatados.

29 Por meio de identidades e diferenças, o naturalista classificou-as pela fisionomia, "deformidade" anatômica, enfeite, vestimenta e capacidade produtiva. A descrição visual é, portanto, particularmente estática, dedicada, sobretudo, a pormenorizar os índios pelos aspectos externos e imediatos. Seguindo os pressupostos buffonianos, a descrição histórica está ausente. Vale ressaltar que a postura de Ferreira condizia perfeitamente com o encargo que lhe fora atribuído. Os naturalistas atuavam como homens de ciência, recorrendo à neutralidade para produzir conhecimento. Eles desempenhavam simultaneamente funções de cientistas e agentes imperiais, auxiliando a expansão da Europa. Por intermédio da história natural apreendiam-se as memórias. As pranchas e as espécies coletadas demonstravam o valor e a importância

das

comunidades

e

regiões

percorridas,

assim

como

as

potencialidades da exploração comercial. As informações reunidas na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira obedecem a essa racionalidade e constituem uma produção artística e científica com base em uma lógica colonial, destinada a classificar e transformar a natureza e as comunidades indígenas em bens para manutenção e exploração. Na ótica de Ferreira, o possível abastardamento e a degeneração dos índios civilizados seriam de inteira responsabilidade do próprio nativo, ao preferir a ociosidade de uma vida improdutiva à segurança civilizatória. O mito do bon sauvage, preconizado por Rousseau, discutido e combatido largamente, encontrava seu oposto: le mauveau sauvage. Para Rousseau (1983), o “estado de natureza” era o ideal humano, porquanto em estado primitivo não havia espaço para a corrupção promovida pelo contato social. Observa Lisboa (1997) que o pensador referia-se ao bon sauvage, não como sinônimo de inocência paradisíaca, mas em função de sua indiferença a valores morais, perfeitamente condizentes com o seu contexto histórico. Defendido por alguns e atacado por outros, esse mito norteou a visão de muitos estudiosos, viajantes e naturalistas como Spix e Martius, cujas anotações iniciais de viagem em área brasileira indicam claramente essa orientação. Tal visão, no entanto, ao contato com uma realidade cultural inteiramente diversa do

30 imaginado por eles, não só desfez-se completamente, como reforçou a construção de uma imagem totalmente negativa do indígena americano. O bom selvagem, entrevisto nos primeiros contatos, é mantido até o momento em que os naturalistas se defrontam com o universo cultural dos selvagens em sua plenitude. Um exemplo categórico foi a mudança da impressão de Martius quanto aos miranhas, grupo de antropófagos com os quais permaneceu durante algum tempo. No convívio com esse grupo indígena, Martius observa situações cotidianas e faz considerações em princípio favoráveis, como as relativas às mulheres miranhas: [...] embora as mulheres dos miranhas se ocupem incessantemente com essa delicada parte do seu lar, e também saibam confeccionar artísticos trançados, nunca se lembraram, entretanto, de fazer peças de vestuário para si mesmas. Elas sempre andam vestidas no traje da inocência, mas sempre cuidadosamente pintadas, em vez de roupa. Impressionou-me aqui tanto mais essa nudez, porque julguei notar nesse sexo muitos impulsos superiores. Ao passo que os homens se entregam à mais despreocupada ociosidade, as mulheres são incansáveis no incessante labor doméstico e até mostram bondade especial nos seus esforços contínuos de nos preparar comida melhor e na compaixão por nossa doença. Quase quero acreditar que o sexo mais fraco possua em menor grau a disposição e o temperamento dos aborígenes americanos, e que por isso, mais facilmente será possível levá-los à civilização (SPIX e MARTIUS, 1981, p. 234).

Depois, gradativamente, o que poderia ser considerado como uma ligeira simpatia mostra sinais de intolerância e rispidez:

Enquanto os homens se dispersam para caçar ou para pescar, ficam as crianças sob os cuidados da mãe, e esse momento é de educação, se é que se pode chamar assim a ocupação tola com os pequenos seres egoístas. Lição de moralidade, mesmo de simples bons modos, não se acha aqui; quando muito, um adestramento para a subsistência entre os outros. [...] Deferência, modéstia, obediência, desconhecem-nas tanto as crianças, quanto os pais (idem, p. 234).

Finalmente desaparece do ideário dos naturalistas toda a idéia de “bondade” que se inclinavam a atribuir-lhes, dando lugar ao “mau selvagem”, no sentido lato, que não é somente estúpido, indolente, ignorante e rude, mas também pervertido e mau por índole. Sobre esse grupo, que julgava “rudes até a bestialidade”, mas detentores de certa nobreza, após conhecer alguns costumes

31 e

presenciar

certas

festas

e

rituais,

Martius

expressa-se

de

maneira

especialmente contundente: Ainda me confrange a alma, quando me lembro da horrível degeneração desses brutos. [...] Fiquei persuadido de que esses selvagens não tinham idéia alguma do Deus, bondoso, pai e criador de todas as coisas; que somente domina seus destinos um ente mau, transformando-se em cada fatalidade, caprichoso e implacável, ao qual se sujeita em cego e inconsciente medo. A alma desses homens primitivos decaídos não é imortal; ela apenas se manifesta na existência, não conscientemente, e só a fome e a sede lhes lembram as necessidades da vida. Justamente por isso, a vida não é por eles considerada um grande bem, e a morte lhes é indiferente. Com ela, tudo se acaba; só sobrevivem o ódio e a vingança como espectros atormentadores. O laço do amor é frouxo; em vez de ternura, cio; em vez de afeição, necessidade; os mistérios da geração, profanados às claras; o homem, por comodidade, meio vestido; a mulher, escrava nua; em vez de puder, vaidade; o casamento, um concubinato que se desfaz, segundo o capricho; a preocupação do pai de família é seu estômago, quando cheio este, crua concupiscência; seu passatempo, glutonagem e ócio apático; sua ocupação, irregularidade; o trabalho das mulheres, cego e sem finalidade; os seus prazeres, repugnante lascívia; as crianças, fardo dos pais, e, por isso, evitada; a afeição paternal, somente cálculo, e a maternal, somente instinto; o pai de família, descuidado e sem autoridade; a educação, brincadeira imitativa da mãe, cega despreocupação do pai; em vez de obediência filial, medo; [...] em vez de amizade, camaradagem; [...] em vez de direito, a voz do egoísmo; [...] mutismo por pobreza de idéias; indecisão, por falta de discernimento; o domínio do tuxaua, por inaptidão dos demais, porém todos incapazes da verdadeira obediência moral, assim como do comando – eis como vive o aborígene destas selvas! No mais primitivo grau da humanidade, é deplorável enigma para si mesmo e para o irmão do oriente ... (SPIX e MARTIUS, 1981, p. 247).

As imagens projetadas pelo naturalista evocam a idéia de um ser abjeto, e denotam claramente o julgamento personalista ao que o autor submeteu os literalmente “inocentes” índios, os quais, medidos por parâmetros arbitrários, julgados e condenados como as mais vis criaturas, nada mais faziam do que “viver em natureza”, de acordo com o seu próprio universo. Esse julgamento, por sinal, não se restringe aos miranhas por seus bárbaros costumes, mas se expressa em outras circunstâncias, como sobre os júris e os botocudos, onde o preconceito eurocêntrico também é evidenciado nas referências às características físicas dos indígenas: [...] na sua aparência feia, quase não têm traço de humanidade. Indolência, embotamento e rudeza animal, estampam-se-lhes nos rostos [...]; voracidade, preguiça e grosseria, patenteiam-se-lhes nos lábios inchados, na barriga, assim como em todo o torso troncudo e no andar de passos curtos (idem, p. 247).

32 Em oposto à preconceituosa visão dos naturalistas sobre o homem dos trópicos, um ideal romântico de natureza sobressai nos relatos sobre as incursões pelo mundo natural. Essa imagem, no entanto, também se observa permeada de contradições, à medida que os viajantes adentram na região amazônica e são submetidos a inúmeros percalços em áreas inóspitas. Lisboa (1994) acredita que Spix e Martius experimentaram nos trópicos uma natureza que podia causar enorme prazer. No entender desses naturalistas, o “sentimento da natureza” era imprescindível para investigar os objetos da história natural na sua totalidade. Segundo a autora, possivelmente a criação dessas descrições paisagísticas tem como pano de fundo a discussão sobre os conceitos das duas formas de representar a natureza, que nortearam uma reflexão estética no decorrer da segunda metade do séc. XVIII em torno da poética do pitoresco e do sublime, estabelecendo uma contradição dialética entre o indivíduo e a coletividade. No trabalho dos naturalistas as referências paradisíacas são mais freqüentes do que as infernais, sendo sempre evocadas no contexto da prática do pesquisador da natureza, que se fascina com a descoberta da variedade e da vitalidade dos trópicos. Ao longo da viagem, no entanto, fustigados por insetos, animais, chuvas torrenciais, calor, doenças, os estudiosos perdem a empolgação, mostrando-se oprimidos e horrorizados com o perigo e com a estranheza de uma natureza invicta e selvagem. Lisboa observa na descrição dos viajantes uma dimensão visionária do “sublime”, segundo a qual a natureza os transporta a sensações infernais. Se antes era benéfica, agora podia provocar o mal-estar. Nesse aspecto, particularmente, os índios potencializam a imaginação de uma natureza ameaçadora. A consciência de pertencer a um mundo considerado “civilizado” os faz se sentirem agredidos por aqueles que representam a alteridade. Do mesmo modo que a natureza brasileira se oferecia ao enriquecimento da pesquisa naturalista, a diversidade étnica dos seus habitantes prestava-se para ampliar o conhecimento acerca dos “povos” extra-europeus e das raças humanas. No entanto, os diferentes tipos humanos encontrados nos trópicos são

33 classificados pelos naturalistas segundo idéias maniqueístas de degeneração e perfeição, deixando sobressair sua convicção da superioridade da raça caucásica no contexto da escola evolutiva dos homens. Lisboa (1994) situa Spix e Martius no grupo dos primeiros naturalistas a pesquisar os povos indígenas brasileiros de forma sistemática. A carência de sensibilidade para enxergar o índio evidencia justamente o etnocentrismo europeu no início do século XIX, uma vez que o critério básico para a investigação era o da perfectibilidade moral e o da conseqüente capacidade de “civilizar-se”, permeado pela dúvida quanto à humanidade ou não dos indígenas. A autora critica a insensibilidade dos naturalistas diante das complexas relações sociais intrínsecas a uma sociedade colonial escravocrata. Para aqueles estudiosos tanto os índios como os etiópicos e mestiços revelam uma timidez velada diante do branco, bastando um simples olhar deste e mesmo a sua presença para amedrontá-los, de forma que um branco poderia em tese governar tacitamente centenas deles. O conceito de inferioridade racial do homem americano ganha, então, dimensão maior nas considerações dos autores em seus relatos. Relata Lisboa que na opinião de Spix e Martius as feições da maioria dos grupos indígenas tinham pouca distinção entre um grupo e outro, parecendo todos dominados pelo que eles chamam de “traços gerais da raça”. A ausência de traços individuais seria sinal de sua falta de “desenvolvimento”. No entender desses naturalistas, o fenômeno da indistinção não acontecia mais em nenhuma outra raça, o que implicava a primitividade dos índios americanos na história da evolução humana. Na visão dos autores, o temperamento dos indígenas não se desenvolvia:

Não ligam para o dia seguinte, porque não distinguem “passado e futuro” [...] não conhecem o “sentimento de deferência, gratidão, amizade, humildade, ambição”. São “insensíveis, taciturnos, imersos no mais absoluto indiferentismo por tudo”. Levados pelos “instintos animais” são “frios e indolentes”, mesmo com a família. [...] Assim passam-se meses e anos, para o índio, em caçadas e guerras, festas selvagens e tarefas rotineiras, numa vida rude e insensível, ignorante de toda alta vocação, a que a humanidade tende (SPIX e MARTIUS apud LISBOA, 1994, p. 149).

34 Nessa ótica os índios vivem do lado de fora da sociedade humana, sendo fortemente conduzidos por instintos animais e dotados de uma alma definhada, inspirando esses homens das selvas nos naturalistas uma sensação mista de rejeição e de pretensa compaixão. A dança dos Puris, por exemplo, lhes evoca sentimentos melancólicos em razão da “degeneração do humano” nos índios.

[...] o porte baixinho, o pardo-avermelhado da pele, o cabelo negro de carvão, solto e desgrenhado, o formato desagradável da cara larga, angulosa, e os olhos pequenos, oblíquos, inconstantes, finalmente o andar de passos curtos, esquivos [...]. E, então, pelo caráter tristonho dessa festa, na escuridão da noite, a nossa impressão de pena era ainda maior... (SPIX e MARTIUS apud LISBOA, 1994, p. 150).

Apesar de consideraram os índios do Amazonas mais desenvolvidos do que os das tribos do sul do Brasil, em grau de “civilização”, em nenhum lugar pareceu-lhes tão medonha e triste a miséria do silvícola americano como entre os muras. Também o pavor de fantasmas e a crença em fatos extraordinários são considerados como ridículos. À medida que conheciam mais grupos aldeados, perdiam também a convicção do sucesso das iniciativas civilizatórias. A crítica dos autores à interferência colonizadora e ao trabalho dos jesuítas, “não se refere à trágica dizimação da população autóctone e o desrespeito à sua forma de vida, mas o fato de que essa política teria impedido a ‘civilização’ dos selvagens, perpetuando o seu estado de selvageria e de degeneração moral” (LISBOA, 1994). Os apontamentos de Spix e Martius sobre a questão indígena, de acordo com a autora, abrangem justamente o período caracterizado pelas polêmicas sobre a forma institucional de “civilizar” os índios. Os naturalistas não são alheios às contradições do processo colonizador e às dificuldades que se travaram entre os europeus e os íncolas originais. Criticam a conduta desrespeitosa dos colonos, o passado da violenta conquista, a escravidão indígena, a violação da legislação, a

política

dos

aldeamentos,

as

missões

religiosas,

as

autoridades

governamentais, enfim, conferem à colonização o papel de ter lançado tantas “sementes de destruição” no Novo Mundo, aparentemente relativizando e quase inocentando os índios de sua “decadência”...

35 O lado devastador da colonização para com a população indígena é apontado pelos naturalistas, os quais reconhecem que a “decadência moral e física” dos índios os joga numa vida ambígua e triste, na qual perdem os seus costumes originais, esquecem sua língua, dissipam “toda a energia moral” ou mesmo se extinguem por completo. Lisboa (1994) enfatiza que, ao exaltar a superioridade do europeu sobre as demais raças, no entanto, a razoável lucidez dos autores acerca das mazelas da colonização perde a sua intensidade. Spix e Martius destroem a própria crítica ao compactuar com a idéia que os índios são irracionais e inacessíveis à civilização:

Foram baldadas as mais diversas e numerosas tentativas para estabelecer em pé de igualdade de direitos e deveres estes homens entre os demais habitantes da América; quando, além disso, uma desproporcionada mortalidade faz entrever que os filhos dessa parte do mundo, cheia de vida material abundante, são de constituição tão fracamente dotada de força vital, temos de inclinar-nos à conclusão de que os índios não suportam a cultura mais alta que a Europa lhes quer inocular, e que a civilização progressiva, elemento vital da humanidade florescente, mesmo os destrói, como um veneno letal (SPIX e MARTIUS apud LISBOA, p. 163).

Na opinião dos autores, os índios contraem as enfermidades dos brancos em virtude de sua debilidade natural, assim como a falta de desenvolvimento espiritual explicaria o alastramento das doenças européias entre eles, a diminuição da fecundidade feminina e a degeneração da constituição robusta e resistente de seus corpos. Assim, o destino da raça americana, tal qual acontece com outros seres da natureza, é decompor-se, antes de alcançarem o mais alto grau de desenvolvimento. Por não serem dotados de perfectibilidade, a raça americana nada mais é do que um “ramo atrofiado no tronco da humanidade”, relegados, portanto, à impossibilidade de aperfeiçoamento e de atingirem a “humanidade superior”. O estado degenerativo é traduzido não somente pela ausência de traços e vestígios materiais que permitam a reconstrução de sua história, mas também pelo fato do passado do homem americano ser igual ao presente, de nada se ter

36 transformado neles e em torno deles e pelo fato de viverem num tempo imóvel, próprio de sua “natureza decaída”. Em sua concepção, os nativos americanos pertencem a uma não-história , em que não há passado nem futuro (LISBOA, 1994). A autora destaca que no texto O Estado do Direito Entre os Autóctones do Brasil, Martius menciona novamente o “enigma obscuro” que são os índios no meio das criações da civilização e dos costumes europeus que no Novo Mundo triunfalmente se espalharam do litoral para o interior do continente. Seu “estranho e inexplicável estado”, evidenciando sua incapacidade para o progresso, fez fracassar todas as tentativas de conciliá-lo inteiramente com a Europa vencedora e torná-lo um cidadão satisfeito e feliz. A tese de a raça americana ser um “ramo atrofiado” do tronco da humanidade é assim encampada por Martius, enfatizando que a decadência moral e física da população indígena teria sido causada muito mais por caprichos da natureza do que pela colonização. Para Martius, sendo o gesto fundador da civilização o domínio dos homens sobre a natureza, o vazio de seres humanos da paisagem brasileira, não pode ser preenchido por índios. Os naturalistas defendem o processo civilizador por ser este conduzido pela “raça caucásica”. Entendem ser a irradiação da civilização, iniciada no Oriente, a grande disseminadora de cultura devendo, mais cedo ou mais tarde, atingir a América.

O projeto civilizador dos naturalistas para o Brasil pautava-se não somente na dominação da natureza, mas também no cruzamento das diferentes “raças”, cabendo à raça caucásica, por ser mental, física e moralmente superior às outras, conduzir esse processo de branqueamento por meio da mistura racial. Apostavam que os brancos absorveriam, por meio da miscigenação, as demais etnias, descaracterizando-as no sentido de aperfeiçoá-las para a civilização. [...] Os poucos índios seriam naturalmente excluídos ou então, em casos raros, incorporados, à medida que perdessem a sua identidade cultural. Ao contrário de Hegel, para quem a América meridional era um mundo inacabado e imaturo onde a História Universal jamais chegaria,os naturalistas bávaros acreditavam que o Brasil estava a caminho do seu “aperfeiçoamento” (LISBOA, 1994, p. 173).

Para Martius, a miscigenação das raças, tal qual acontecia no Brasil, era um aspecto basilar no inexorável caminho da civilização. Ao homem branco nos trópicos, por representar a “verdadeira humanidade” e por isso gozar de

37 superioridade sobre as demais raças, cumpria a sua missão de difundir a civilização. Em teoria, quanto mais claros os indivíduos, mais dotados de perfectibilidade. Por serem considerados autores de referência nos estudos naturalistas, sua herança foi marcante para muitos estudiosos brasileiros, preocupados em definir uma identidade para a nascente nação: a questão da miscigenação foi um dos assuntos mais debatidos ao longo da segunda metade do séc. XIX e início do séc. XX, disseminando a visão eurocêntrica do homem americano pela elite brasileira, particularmente no meio científico. A força de idéias como esta, difundida e partilhada por muitos estudiosos, pode ser evidenciada tempos depois em trabalhos como o de Tavares Bastos (1975, p. 219): “Eu não imagino aplicável a esta região da América senão a medicina que tanto se recomenda a toda ela: a imigração de indivíduos das raças vigorosas do norte do globo”. Sem desconsiderar o trabalho minucioso e enriquecedor, do ponto de vista científico, com que estes estudiosos contribuíram para o conhecimento da região amazônica, acredita Lisboa que Spix e Martius não conseguiram ultrapassar o limiar da auto-referência para estabelecer uma identificação com os estranhos. Embora tenham sido capazes de integrar-se à natureza tropical, não conseguiram desfazer-se de si mesmos para observar o “outro”, representado pelos negros, mulatos e, principalmente, índios. Além disso, mundialmente reconhecidos e respeitados como pesquisadores, em parte do seu legado ajudaram a reforçar um estigma que ainda hoje perdura no auto-conceito do homem amazônico.

1.1 Um estigma como herança Outros viajantes, além de Spix e Martius, compartilharam da visão eurocêntrica de superioridade da raça caucásica e do preconceito com o indígena brasileiro, entre esses o casal Agassiz, que estiveram no Brasil na segunda metade do século XIX em viagem de estudos. Apesar de seus interessantes relatos muitas vezes afáveis e em tom afetuoso sobre os caracteres gerais da

38 Amazônia e a vida comunitária local, em vários momentos eles atestam sua adesão à idéia de inferioridade da população local. Assim, a despeito de apropriadamente criticarem a postura dos brancos em relação aos nativos, ressaltando a prática exploratória do trabalho indígena e a baixa moralidade da população branca, deixam entrever o preconceito subjacente com referência aos indígenas e mestiços, particularmente na região amazônica:

Não somente a população branca é muito escassa para corresponder à tarefa que tem diante de si, como essa população não é menos pobre em qualidade do que reduzida em quantidade. Apresenta o singular fenômeno de uma raça superior recebendo o cunho duma raça inferior, de uma classe civilizada adotando os hábitos e rebaixando-se ao nível dos selvagens. Nas povoações do Solimões, as pessoas consideradas como da aristocracia local, a aristocracia branca, exploram a ignorância do índio, iludem-no e embrutecem-no, mas tomam não obstante os seus hábitos e, como ele, sentam-se no chão e comem com as mãos (AGASSIZ, 1975, p. 154).

Aproveitam para criticar a colonização portuguesa que, em sua opinião, “rebaixa-se” ao nível dos índios:

Os norte-americanos e os ingleses poderão ser bem sórdidos em suas transações com os naturais do país; o tráfico de “peles azuis” não lhes deixou certamente as mãos limpas, mas não quereriam degradar ao nível dos índios como o fazem os portugueses: não se abaixariam a adotar-lhes os costumes”. (idem, p. 154)

O “elemento índio”, para o casal Agassiz, é o responsável pelo surgimento de uma classe híbrida, sem expressão, o grande vilão do processo miscigenatório:

Outra particularidade que igualmente impressiona o estrangeiro, é o aspecto fraco e depauperado da população. Já o havia assinalado anteriormente; mas, nas províncias do norte, isto é bem mais impressionante que nas do sul. Não se trata apenas de ver crianças de todas as cores: a variedade de coloração testemunha, em toda sociedade em que impera a escravidão, o amálgama das raças. Mas no Brasil essa mistura parece ter sido sobre o desenvolvimento físico numa influência muito mais desfavorável do que nos Estados Unidos. É como se toda pureza do tipo houvesse sido destruída, daí resultando um composto vago, sem caráter e sem expressão. Essa classe híbrida, ainda mais marcada na Amazônia por causa do elemento índio, é numerosíssima nas vilas e nas grandes plantações... (AGASSIZ, 1975, p. 180).

39 Mais do que o índio aparece aí o preconceito contra o resultado da miscigenação, o “híbrido”, representado pela figura “decadente” do mestiço:

Aqueles que põem em dúvida os efeitos perniciosos da mistura de raças e são levados por falsa filantropia, a romper todas as barreiras colocadas entre eles, deveriam vir ao Brasil. Não lhes seria possível negar a decadência resultante dos cruzamentos que, neste país, se dão mais largamente do que em qualquer outro. Veriam que essa mistura apaga as melhores qualidades, quer do branco, quer do negro, quer do índio, e produz um tipo mestiço indescritível, cuja energia física e mental se enfraqueceu. (idem, p. 180, rodapé)

Os “bastardos” da mistura de raças são equiparados a cães, cujas qualidades certamente sobrepujam às do miserável tipo “impuro”: O resultado de ininterruptas alianças ente mestiços é uma classe de pessoas em que o tipo puro desapareceu, e com ele todas as boas qualidades físicas e morais das raças primitivas, deixando em seu lugar bastardos tão repulsivos quanto os cães amastinados, que causam horror aos animais de sua própria espécie, entre os quais não se descobre um único que haja conservado a inteligência, a nobreza, a afetividade natural que fazem do cão de raça pura o companheiro e o animal predileto do homem civilizado (AGASSIZ, 1975, p. 184).

Em seu À Margem da História, em que relata sua experiência na região amazônica, também Euclides da Cunha (1975) lança um olhar como que “penalizado”, desalentador, sobre a paisagem e os seus raros habitantes. Reportando-se ao passado, Euclides registra o seu caráter ilusório, diante de uma realidade inalterável, na qual parece não haver progresso nem melhora, nem evolução, corroborando, ainda que não intencionalmente, a teoria de que a civilização dos trópicos está fadada a uma não-história: São realmente reveladores os inúmeros relatos de cronistas e viajantes que percorreram a Amazônia e deixaram impressões depreciativas sobre os lugares e seus primeiros habitantes. La Condamine, que desce o rio Amazonas em 1735, fala dos índios como inimigos do trabalho e indiferentes, incapazes de previdência e reflexão, preservando da infância os defeitos, sem amadurecer. Em sua opinião o homem americano ainda está na infância do mundo, pouco diferindo das bestas.

40 Praticamente todos os viajantes que visitaram o paraíso infernal amazônico, observa Gondim (1994), apontam os nativos como os agentes que desarmonizam a ordem social instalada pelo branco. La Condamine, por exemplo, pretendendo escrever um trabalho científico sobre a Amazônia, na sua opinião enredou-se na escolha do que considerou notável e digno de registro, engrossando a fileira dos detratores. Para Bates (1979) os índios são como animais anfíbios, dado o extremo vínculo com a água, com os rios. Em sua opinião o índio não passa de um estranho nas regiões tropicais e a aparente bondade é provavelmente decorrente muito mais da ausência de qualidades más do que da presença de boas qualidades. Bates critica também o temperamento apático e indiferente dos índios, assim como a ausência de ambição e a frieza de sentimentos, e a falta de curiosidade e agilidade mental, presumindo que esses têm uma imaginação embotada, sem vivacidade, generalizando essas e outras características depreciativas para toda a raça indígena dos trópicos. Cardoso de Oliveira (1978) considera um absurdo esse tipo de generalização, porquanto a imagem unívoca e abstrata de um índio genérico é em si mesma inverossímil, pois desconsidera (e mesmo ignora) a variedade cultural inerente à paisagem indígena brasileira. Ocorre que “os viajantes e conquistadores que por aqui andaram manifestaram seu fascínio ou estranhamento em relação à natureza e aos povos nativos a partir dos parâmetros da chamada “civilização ocidental”, tida como física, econômica e culturalmente superior” (COSTA, 2000, p. 123). Arruda (1998) refere-se às imagens sobre o mundo recém descoberto como representações de um imaginário pré-concebido com o qual era necessário familiarizar-se: As formulações edênicas, projetadas sobre a América, criavam uma ponte que aproximava o Novo Mundo do velho, integrando-o ao seu imaginário, preenchendo o lugar antes ocupado pelas terras longínquas ... De certa forma, edenizar a América significava estabelecer com ela uma camaradagem, uma cumplicidade que repousava no mundo imaginário. Encontrava-se ali algo que, de certa forma, já estava concebido: via-se o que se queria ver, o que se ouvira dizer (ARRUDA, 1998, p. 22).

41 Relativamente ao elemento humano, em detrimento da imagem do ‘bom selvagem’ venceu a diferença: “infernalizou-se o mundo dos homens em proporções jamais sonhadas. [...] Os índios seriam o foco mais vivaz da ambigüidade, retraduzida na detração.” Esta se estendeu do índio para os negros e daí para os colonos em geral (ARRUDA, 1988, p. 23). O índio, e depois o negro seriam bárbaros, animais, demônios. Denegrindo-os, procedia-se à cristianização. Detratando-os, estava justificada a escravidão. Todavia, estas não eram as únicas representações em presença. Elas constituíam sim, as mais pragmáticas, aquelas que melhor solucionavam a ambivalência diante do outro naquela situação (idem, p. 24).

Na descrição dos pesquisadores que no século XIX percorreram a Bacia Amazônica, observa Vicentini: [...] acoplava-se, ao pensamento quantitativo e classificatório da natureza, um forte sentido moral de civilização. Os povos primitivos eram comparados a outros animais e aos povos negros, numa referência aos pressupostos da escravidão, mesmo que o índio também fosse discriminado pela crença em sua apatia em relação ao trabalho, já que esses idéias se colocaram no sentido de domesticação do mundo a serviço do homem ocidental (VICENTINI, 1986, p. 113).

É digno de registro, segundo Nogueira (2000, p. 111), a surpresa que um missionário do século XVIII teve ao ouvir de um índio o que mesmo estava pensando, porque na concepção do religioso, nunca se soube que raça de índios do Amazonas, fosse capaz de pensar. “Ou seja, foi esta construção que predominou para definir o habitante da região. Diferente de outros, um vencido.” Na opinião de Arruda (1998, p. 21) as descrições da nova terra ressaltando a natureza inauguram um fluxo de representações que passaria a transitar em mão dupla entre o Brasil e o Europa. “Elas evocam a alteridade, cuja descoberta renova nosso saber sobre o homem e questiona a imagem que temos de nós”: A alteridade serviu de fermento para a renovação dos repertórios mentais. Urgia formular um novo senso comum que incorporasse a natureza tropical e as populações indígenas. [...] Novos sistemas representacionais eram convocados pelas informações que se produziam, confirmando sua aderência às situações de novidade, seja nas sociedades ditas complexas, seja nas anteriores. Elas trabalhavam pelo estabelecimento dum senso comum condizente com os novos tempos (idem, p. 21).

42 O novo, impactante, vislumbrado pelos colonizadores, na opinião de Arruda provocou a necessidade de acomodação de sentimentos ambíguos como surpresa e medo, atração e repulsa, fazendo com que no processo representacional certas características prevalecessem em detrimento de outras. “É nesse encontro das diferenças que mergulham algumas das fundas raízes da maneira brasileira de representar a si e a seu espaço” (ARRUDA, 1998, p. 25). Durante a colonização, a representação da natureza ofuscou a presença humana; ao surgir o Brasil-nação ela contaminou tudo e todos com o exotismo, embaçando a vista de si própria. [...] Essas representações omitiram a relação da sociedade com a natureza enquanto uma relação social, terminando por encobrir tanto uma quanto a outra . [...] A construção da “brasilidade” teria se dado, portanto, através de sucessivos tratamentos da diferença, que vão configurando um quadro de elaboração e apropriação progressiva da alteridade, sob formas diversas. (idem, p. 39-40)

A propósito da formação do pensamento social na Amazônia, pontua Weigel (2000, p. 22-3) que essa região sempre foi composta de um mosaico de concepções, mutante ao longo do tempo, ao longo da sucessão de tentativas de ocupação. O que é importante anotar aqui é que com a chegada da civilização ocidental, e posteriormente do capitalismo, ocorre a implantação de um modo de pensar dominante, mas que não consegue tornar-se predominante. É um modo de pensar de características hegemônicas, que não instala plenamente a sua hegemonia, pelas suas limitações inerentes e pela superioridade localizada de outros modos que com ele se chocam, balizados pela especificidade das interações homem-ambiente e pelo arcabouço cultural subjacente e determinante.

Acredita o autor que, por ser um fragmentado, o pensamento social sobre a Amazônia não é considerado em sua totalidade, o que “leva à perpetuação da dependência regional, do desgaste sociocultural e de propostas equivocadas de desenvolvimento” (WEIGEL, p. 30). Segundo Cardoso de Oliveira (1978, p. 257), na época da ocupação portuguesa, que se inicia em princípios do século XVII, a Amazônia era habitada por um grande número de tribos indígenas, cuja cultura era geralmente de subsistência, com base no cultivo de roças de mandioca, e de vida mais ou menos sedentária em aldeias. “A tribo como entidade política era pouco definida,

43 não obstante constituir uma unidade social resultante de língua, padrões culturais e território comuns”. O processo de aculturação entre as sociedades – a tribal e a nacional – foi facilitado, segundo ele, por fatores como a simplicidade cultural do colono e a sua dependência do índio, não apenas como mão-de-obra, mas como possuidor de um complexo sistema de adaptação às novas condições ecológicas com que este se defrontava. “A dominação secular e religiosa, apoiada em força de armas foi, nessa região, orientada para a integração do índio na sociedade colonial” (CARDOSO DE OLIVEIRA,1978, p. 268). O resultado do contato foi a destribalização dos grupos mais expostos, que habitavam as margens do Amazonas e de seus afluentes. Indivíduos de diferentes tribos foram reunidos nas vilas, aldeias missionárias ou transferidos para os centros coloniais. As diversas línguas foram substituídas por um dialeto comum, com base no tupi-guarani, falado pelas tribos costeiras, porém adaptado pelos missionários e colonos. O processo de absorção da massa indígena não foi, entretanto, pacífico. Galvão (1976) enfatiza que o elevado contingente indígena característico da formação étnica regional foi na Amazônia usado em maior número e muito mais intensamente que em qualquer outra região do Brasil. E isso devido à dependência maior sobre ele do colono, a quem faltava o conhecimento da técnica da exploração dos produtos naturais e da floresta.

As tribos indígenas do alto fornecem o braço de trabalho na medida em que se incorporam à sociedade rural e absorvem sua cultura, contribuindo ao mesmo tempo para a persistência e fixação de elementos ameríndios já integrados aos hábitos de vida do caboclo (GALVÃO, 1976, p.11-12).

A propósito do processo de colonização da Amazônia, viabilizado pela inserção compulsória da mão-de-obra indígena, Tavares Bastos faz referência ao caráter ideológico determinante daquelas condições: [...] nos casos onde a colonização de faz por meio de sistemas de trabalho compulsório, a ideologia operante tenderá a ser autoritária,

44 dispondo os indivíduos em grupos distintos e hierarquizados, tendo como limite as ideologias raciais. [...] À população dependente não cabe nessa ideologia papel algum, exceto submeter-se e funcionar segundo os padrões instituídos, identificando-se com a ideologia dominante e procurando traduzir em termos dela suas crenças e condutas. Tal ideologia de maneira alguma pretende oferecer-lhe elementos para uma opção de vida da qual ela própria será o agente, mas somente compilar e codificar um conjunto de obrigações que têm efetivamente a seguir (TAVARES BASTOS, 1975, p. 113).

No entanto, nem os europeus de outrora nem os brasileiros de hoje constituíram uma frente maciça e compacta, e desse modo, diluiu-se e foi enfraquecido seu poder de influenciar culturalmente as sociedades indígenas. Por outro lado, a guerra e a captura maciça de cativos determinaram a desorganização da maioria dos grupos indígenas e a assimilação forçada dos indivíduos no contexto urbano. O que restou da população indígena, refugiou-se nas cabeceiras dos rios, ou em áreas ainda inexploradas, onde remanescentes são encontrados ainda hoje (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, p. 274).

Com o período áureo da borracha uma mudança social se desenvolve, firma-se e empresta nova fisionomia às cidades e povoados, vindo a intensificação de atividades econômicas com um sistema original de crédito fornecer a base em que se desenvolveu um novo esquema de classes sociais. As distinções entre índios e brancos, na realidade distinções culturais e étnicas que se refletiam na organização social, praticamente desapareceram (GALVÃO, 1976). Uma outra hierarquia substituiu o modelo colonial e pós-colonial, dando lugar aos caboclos, coletores de borracha, recrutados entre índios, mamelucos, nordestinos e portugueses, e os patrões ou financiadores. De acordo com Galvão (1976, p. 113): A “cidade” e a “aldeia”, tradicional divisão das povoações amazônicas, identificando na “cidade o elemento branco ou mesclado, porém de cultura e situação social “branca”; na “aldeia”, o índio domesticado desapareceu, cedendo lugar a um único local segmentado em “gente de primeira” (comerciantes, funcionários de categoria, “famílias de tradição”) e “gente de segunda” (caboclos, roceiros ou seringueiros).

45 A imagem de inferioridade do homem amazônico, que percorreu gerações, tem nos caboclos a sua representação, constituindo, ao que tudo indica, elemento de auto-referência bastante forte para muitos integrantes da população local. O estudo de Lima (1997) sobre uma comunidade amazônica reflete suas impressões sobre esse conceito depreciativo em relação àqueles habitantes:

Em geral, as populações locais têm, ao lado de uma identidade própria, uma imagem, muitas vezes estereotipada, atribuída a elas pelos grupos sociais com os quais interagem na sociedade regional. No caso de Mamirauá, as populações locais apresentam duas categorias de referência: uma a de caboclo, usada pela sociedade para identificá-las, e outra, a de pobres, que é a categoria mais abrangente com que se identificam (LIMA, 1997, p. 305).

Segundo a autora, a representação cultural de um “típico amazônida rural” inclui também conceitos de valor, na maioria depreciativos, do ribeirinho: A “indolência” e a “preguiça” do caboclo são elementos de um estereótipo que oferece uma interpretação moral de sua pobreza. [...] Como a população “cabocla” firmou-se em número e em importância econômica nos meados do século dezenove, quando idéias racistas dominavam o pensamento social da elite ocidental e eram copiadas pelos brasileiros, a posição social da população cabocla foi explicada como sendo conseqüência do efeito deletério da mistura de raças. Essa busca por atribuições próprias para explicar a condição social inferior permaneceu no estereótipo do caboclo até os dias de hoje (LIMA, 1997, p.306).

Embora não incorporem de forma consciente o estereótipo, na análise de Lima os caboclos acabam por corroborar o estigma da preguiça, indolência e inferioridade física e intelectual atribuído a eles:

O retrato do caboclo, no entanto, não corresponde a uma identidade social, e o termo é geralmente por eles rejeitado ou transferido a outras classes e categorias sociais. Sua própria construção de identidade não lhes confere uma noção de coletividade demarcada por uma nítida diferenciação social, como a noção de caboclo poderia supor. [...] De certo modo, incorporam, embora de forma invertida, o estereótipo que lhes é atribuído, já que sua condição estruturalmente desprivilegiada lhes oferece a possibilidade de negar qualquer responsabilidade por sua sorte e se posicionar como merecedores “naturais” de auxílio. Enquanto o estereótipo atribui a causa de sua pobreza à indolência natural de sua “raça”, sua própria interpretação é de que, como não são responsáveis por sua condição social, são obrigatoriamente merecedores (carentes) de ajuda. Essa auto-imagem, reforçada e manipulada por patrões e políticos, principalmente em época de eleição, é de baixa auto-estima, e constitui mais uma dificuldade que têm que enfrentar para melhorar seu padrão de vida (LIMA, 1997, p. 307).

46 Essas representações deturpadas, afinal, têm sua origem, em última instância, na dificuldade dos europeus em reconhecer que os povos indígenas possuíam uma história, uma subjetividade, tal qual os “civilizados”, pois a alma indígena era tida como inferior e imanente à sua condição de bestialidade. Essa idéia de uma suposta incapacidade e ingenuidade dos indígenas é repassada às gerações desde os primeiros anos da escola, pois quando é ensinado que os índios ficaram felizes e impressionados com a chegada dos “descobridores”, a própria escola está colaborando para a concepção de que “o índio é um bobo, ao mesmo tempo que é um cara bom, porque deixou o outro chegar” (GAMBINI 1999, p. 86). Por outro lado, a visão etnocêntrica e preconceituosa fez com que e o estilo de vida despojado do indígena fosse traduzido pelos europeus como preguiça e indolência, e a sua docilidade e brandura percebidas como palermice e lerdeza correspondendo, em última análise, a ausência de inteligência e cognição (TORRES, 2003). O preconceito étnico é uma idéia articulada por processos sociais de longo alcance e intensidade como no caso de relações econômicas e culturais mundializadas, transpassadas pela cultura de fronteira. [...] As relações de poder encarregar-se-iam de criar o racismo e seus desdobramentos nas sociedades ocidentais (TORRES, 2003, p. 26).

Considera a autora que a exotização constituiu-se em um recurso utilizado pelas civilizações ocidentais para identificar sociedades e grupos humanos culturalmente diferenciados. Imagens e metáforas passaram dessa forma a ser a “base real sobre a qual o Ocidente explicitou sua vocação exploratória sobre outros mundos [...], que iria permitir o renascimento definitivo do outro, mesmo que o presentificando como exótico, primitivo, selvagem” (CARVALHO apud TORRES, 2002, p. 83). A literatura colonial, segundo Souza (2001) deixou um legado marcante na forma determinada de expressar a região a ponto de, muitos séculos depois, ser capaz de reproduzir-se com considerável força:

O espírito simulador do discurso colonial legou o velho e gasto conceito de “Amazônia, reserva natural da humanidade”.

47 Contraditoriamente, sua permanência é hoje a comemoração do assalto indiscriminado à floresta, da transformação da selva em deserto e da tentação de vergar a espinha para as diversas ações retóricas de solidariedade que deseja congelar o primitivo. Discurso colonial e discurso preservacionista são aparições do mesmo estoque de arrogância. Na mão direita, o processo de extermínio dos índios e a violação da natureza por uma lógica econômica ensandecida. Na mão esquerda, o bálsamo de um discurso que não é mais que a velha tradição do banquete de palavras, das metáforas discrepantes que pintam tudo em levitações da gramática e do significado, numa anacrônica dimensão equatorial do barroco, para que o homem das selvas nunca se liberte do primitivismo (SOUZA, 2001, p. 62).

Paiva (2002) fala de um processo de “moldagem” pelo qual a Amazônia tem passado ao longo do tempo, por parte de seus “intérpretes”, moldagem essa de acordo os seus diferentes interesses econômicos, políticos e culturais.

[...] podemos dizer que foi criada uma verdadeira “tradição de um pensamento sobre a Amazônia”, possível de ser detectada tanto por um aspecto sincrônico (o caráter auto-referente de seus intérpretes) quanto por um aspecto diacrônico (conforme os diversos contextos de sua apropriação). Enfim, as várias Amazônias foram devidamente “inventadas” em função do grau de apropriação que delas se fazia (PAIVA, 2002, p. 67).

A história da Amazônia, reforça Torres (2002, p. 84), tem sido escrita desde a época da colonização “com a letra minúscula do preconceito e da distorção mentirosa”. Em sua opinião, não há dúvidas de que o preconceito constitui uma construção social profundamente arraigada ao imaginário social, independente da nacionalidade e sentido de pertencimento a determinada cultura. “O preconceito assume uma dimensão simbólica gratuita, às vezes até inconsciente, mas que solda idéias e reforça o sistema de estereotipia”. Falar sobre o homem amazônico, portanto, especificamente neste caso aquele denominado “caboclo” e sua história (ou, como queriam os seus detratores, não-história), implica re-visão de estereótipos e preconceitos embutidos também nas visões sobre a Amazônia, implica em avanços e retrocessos em trilhas labirínticas, como os igapós da região, e por caminhos imprevisíveis como os igarapés, que fluem incessantemente em várias direções e para rumos ignorados.

48

2. CABOCLO – UMA IDENTIDADE POSSÍVEL? “ O espelho não vê coisas, mas imagens de coisas que significam outras coisas...” Ítalo Calvino5

A

história do caboclo amazônico é uma história de exclusão, de silêncios e ausências, evidenciada não somente pelas parcas menções nos registros históricos e no discurso científico nacional, mas também por

sua quase invisibilidade no panorama social brasileiro. O seu papel no mundo amazônico e na sociedade nacional tem sido marcado por evasivas e indefinições. Falar a respeito do caboclo, sobretudo se referido ao elemento assim denominado na região amazônica implica, portanto, um trabalho artesanal: é juntar pedaços, criar conexões, percorrer caminhos que se cruzam, tentando constituir um conjunto coerente de sentido. A invisibilidade do caboclo amazônico é um contraponto à excessiva visibilidade da região amazônica na atualidade. Objeto de atenção sem precedentes, hoje grande parte da humanidade, principalmente o mundo científico, volta os olhares para aquela que se configura como um manancial infinito de possibilidades: a Amazônia, de natureza portentosa e onipotente e recursos naturais

incalculáveis.

Desde sempre

estereotipada aos olhos

estrangeiros, a Amazônia é vista quase como uma entidade mágica, com vida própria, enquanto os seus habitantes, aqui representados na figura do caboclo, literalmente ignorados, esmagados pela paisagem natural, imobilizados dentro do conceito de natureza. Originário da fusão de culturas tão diferentes, o mestiço passou a caracterizar a representação mesma da alteridade, o avesso do nativo puro, um rascunho do índio e arremedo do europeu. Para os habitantes da Amazônia em 5

Em As Cidades Invisíveis.

49 geral, o índio não é definido como "caboclo", e este, com raras exceções, não se reconhece como tal, nem se sente parte de uma pretensão de "etnia", considerando-se grupo étnico aquele que se concebe em si mesmo bem diferenciado dos outros grupos e assim é percebido por aqueles. Por outro lado, os tidos como caboclos também não se consideram índios e, freqüentemente, negam uma ascendência indígena, apesar das características somáticas evidentes. Lima (1999) observa que o termo caboclo usado coloquialmente não se refere exclusivamente a um grupo social, nem corresponde a um grupo étnico. Segundo a autora, De acordo com Barth (1969:13), os traços críticos para a definição de um grupo étnico são autodenominação e denominação pelos outros. Seguindo a definição de Barth, nem mesmo a população dos ameríndios assentados a que se chamou de caboclos durante os tempos coloniais poderia ser considerada um grupo étnico. Embora esses primeiros caboclos fossem claramente distintos dos europeus a partir de uma base étnica, elas não constituíram um grupo político nem possuíram uma identidade coletiva (LIMA, 1999, p. 21).

Embora o termo seja utilizado em outras regiões do país, observa a autora, a combinação de um “tipo racial” específico a uma região geográfica está relacionada à história da Amazônia. “Em contraste com outras regiões do Brasil, a colonização da Amazônia incluiu políticas para integrar (ou seja, escravizar, estimular casamentos mistos e “civilizar”) a população indígena à sociedade colonial” (LIMA, 1999, p. 6). Por outro lado a exclusão do caboclo da História e do discurso científico está ligada à idéia da Amazônia como um vazio social, um deserto verde no qual é possível efetuar qualquer programa de desenvolvimento e exploração dos recursos naturais. Esse “renitente mito” da Amazônia como um vazio demográfico, segundo Souza (2001, p. 101), resultante da imagem amplamente divulgada pelos viajantes em toda a Europa e entre as elites intelectuais brasileiras, foi de pouca ou nenhuma valia para os habitantes da Amazônia, cujas vidas foram profundamente afetadas no decorrer dos séculos pelas conclusões desses homens de ciência, raros dos quais “se importaram realmente com a sorte dos nativos ou com o fato de já existir, pelo menos no alvorecer do século XIX, uma

50 civilização tipicamente amazônica, amalgamada pelos sistemas coloniais com as sociedades tribais.” Em razão dessa idéia de “vazio demográfico”, historicamente fixada, reitera Morán (1990), os europeus trouxeram e utilizaram sistemas de exploração de recursos naturais inadequados às peculiaríssimas condições do meio ambiente amazônico, no qual existiam e continuam a existir física e culturalmente populações

que

conhecem

a

fundo

o

ambiente

em

que

vivem.

O

desconhecimento histórico verificado (e justificado) na época da conquista tem sido repetido nas práticas exploratórias subseqüentes. Parker (1985, xx) refere-se aos primeiros caboclos como os culturalmente destituídos sobreviventes da destruição européia. Foram eles, segundo o autor, que deram início a um lento e difícil processo de forjar um padrão novo, um contexto novo para sua existência na Amazônia. In the context of the region’s history, caboclos are the indigenous, rural inhabitants of Amazonia who, for the most part, reside in small communities within riverine environs using Amerindian technologies in subsistence activities. […] Indigenous is employed here because caboclos are directly linked historically, culturally, and biologically to the Amerindian populations that occupied lowland Amazonia at the time of European contact; in effect, the “first caboclos” were the culturally disenfranchised survivors of the (predominantly) floodplain Amerindian populations that were destroyed by the Portuguese. These first caboclos, including their mixed-blood offspring, began, without benefit of script or history, the slow and difficult process of forging a new pattern, a new context, for existence in Amazonia. 6

É fato que o uso do termo transmite um significado preciso ao receptor, pois é de amplo uso e conhecimento. Mas, questiona Lima (1999, p. 8), “se é um termo de identificação do observador, qual é a identidade própria das pessoas às quais o termo se refere?” Em trabalho de pesquisa sobre o assunto, a autora constatou que os popularmente e mais especificamente denominados “caboclos”, no 6

caso

os

pequenos

produtores

rurais

amazônicos,

não

têm

uma

No contexto da história da região, caboclos são os indígenas habitantes rurais da Amazônia que, em sua maioria, vivem em pequenas comunidades nos arredores dos rios, usando tecnologia ameríndia em atividades de subsistência. [...] “Indígena” é aqui empregado porque os caboclos estão historicamente, culturalmente e biologicamente ligados diretamente à população ameríndia que ocupou a planície amazônica na época do contato europeu; com efeito, os “primeiros caboclos” foram predominantemente os culturalmente sobreviventes das populações ameríndias que foram destruídas pelos portugueses. Estes primeiros caboclos, incluindo seus descendentes miscigenados, começaram, sem benefício de registros ou história, o lento e difícil processo de forjar um novo padrão, um novo contexto para existência na Amazônia.

51 autodenominação, sendo a categoria social caboclo caracterizada pela ausência de uma identidade coletiva forte. “A população rural tem ao contrário, identidades locais, do ponto de vista de uma observação externa que nela percebe traços comuns.” Afirma Lima (1997, p. 106) que, como a população “cabocla” firmou-se em importância numericamente e economicamente em meados do século XIX, “quando idéias racistas dominavam o pensamento social da elite ocidental e eram copiadas pelos brasileiros, a posição social da população cabocla foi explicada como sendo conseqüência do efeito deletério da mistura de raças”, hipótese assimilada pelo nativo. Essa busca por atribuições próprias para explicar a condição social inferior permaneceu no estereótipo do caboclo até os dias de hoje. Da mesma forma que o papel das políticas coloniais que determinaram a formação de uma classe camponesa subordinada à elite colonial foi ignorado no século passado, hoje, a preguiça atribuída pelo estereótipo substitui uma compreensão apropriada das condições desfavoráveis que esta população enfrenta para se reproduzir no contexto da formação de uma estrutura de classes que acompanha a expansão mercantil-capitalista na Amazônia (LIMA, 1997, p.106).

Efetivamente, segundo a autora, o retrato do caboclo não corresponde a uma identidade social, e o termo é geralmente por eles rejeitado ou transferido a outras classes e categorias sociais. Sua própria construção de identidade não lhes confere uma noção de coletividade demarcada por uma nítida diferenciação social, como a noção de caboclo poderia supor. Em sua fala, a categoria de identidade mais abrangente que usam para se referirem a si mesmos é a de “pobre”, seguida, mais recentemente, da identidade de “ribeirinho”, introduzida ao longo do trabalho de evangelização católica (idem, p. 107).

A dificuldade de precisar o termo é antiga. Wagley (1985), citando o trabalho realizado por ele e Eduardo Galvão em uma comunidade amazônica (Gurupá) nos idos de 1940, menciona os obstáculos encontrados por eles para “localizar” fisicamente os ditos “caboclos”. Desde os primeiros momentos os informantes, ao direcioná-los aos “caboclos de Gurupá”, automaticamente se excluíam, apontando outros grupos que, por sua vez, indicavam outros, sempre relacionando o considerado como pertencente a um status inferior.

52 In the late 1940s when Eduardo Galvão and I were preparing for research in Gurupá which we gave the fictious name of Itá in our publications, our colleagues, government officials and others in the city of Belem exclaimed when we outlined our research plans. “So you are going to study the caboclos of Gurupá.” When we reached Gurupá, our informants and friends in the town looked puzzled at first when we used the term. Then, they told us that the caboclos da beira (river bank inhabitants) lived on the alluvial islands across the river channel. They excluded the farmers who lived on the upland terra firme; the caboclo was a rubber gatherer cultivating only a small plot in quick growing corps in the annually flooded varzea and adding to their food supply by hunting and fishing. They laughed and told us stories of the rustic behavior of the caboclos; they arrived in town without shoes or sandals and complained of the hard streets. (They were not paved) Later, we spent time on the islands coming to know the so called caboclos only to find that they did not identify themselves as such. They pointed to the north toward the Brazilian-Guiana border. “There are caboclos there”, they explained, “and they are nude and hunt with bows and arrows.” In short, to them the caboclo is the autochthonous Indian. Darrel Miller in this paper states correctly that the term is mildly pejorative. As our experience in Gurupá indicates it is used by segments of the Amazon population for those lower in socio-economic status than their own. No one, even the innocent Indian, uses the therm to identify themselves. In the history of the Amazon, the term caboclo was first used to refer to the Amerindian. Then as miscegenation took place, it referred to the offspring of a European male and an Indian women (synonym “mameluco”). Finally, by the mid-19th century it came to designate the rural rustic7 (WAGLEY, 1985, p. viii).

Quem é, afinal, o denominado “caboclo”? Para chegar a uma definição é preciso fazer uma distinção básica entre o significado “nacional” e sentido “regional” do termo. Em nível nacional, grosso modo, o termo caboclo é usado para designar uma pessoa que vive no interior do país e ocupa uma posição social inferior do que aquela que está falando. No entanto, se no caso do caboclo do sul do Brasil o componente índio é quase nulo, no caboclo amazônico é, ao contrário, predominante, fato que contribuiu para conferir ao caboclo amazônico uma configuração particular em comparação à cultura brasileira geral. 7

Nos idos de 1940, quando Eduardo Galvão e eu estávamos preparando para pesquisa em Gurupá, à qual nós demos para o nome fictício de Itá em nossas publicações, nossos colegas, funcionários do governo e outros na cidade de Belém, exclamavam quando nós esboçávamos nossos planos de pesquisa. "Então vocês vão estudar os caboclos de Gurupá." Quando nós localizamos Gurupá, nossos informantes e amigos na cidade “olharam atravessado” na primeira vez que nós usamos o termo. Então, eles nos disseram que os “caboclos da beira” (os habitantes de ribanceiras de rio) viviam nas ilhas aluviais do outro lado do canal. Eles excluíram os fazendeiros que viviam no planalto, em terra firme; o caboclo era um coletor de borracha que cultivava só um canteiro para colheitas rápidas na várzea anualmente inundada, para complementar a sua provisão de comida oriunda da caça e pesca. Eles riram e nos contaram histórias do comportamento rústico dos caboclos; eles chegavam na cidade sem sapatos ou sandálias e reclamavam das ruas duras (elas não eram pavimentadas). Depois de passarmos um tempo nas ilhas viemos a saber que eles chamavam caboclos para designar aqueles com quem não se identificavam. Eles apontaram ao norte em direção à Guiana brasileira. “Há caboclos lá", eles explicaram, "e eles são nus e caçam com arcos e setas." Em resumo, para eles o caboclo é o índio nativo. Darrel Miller em seus estudos afirma corretamente que o termo é ligeiramente pejorativo. Nossa experiência em Gurupá indica que o termo é usado por segmentos da população Amazônica em relação àqueles de menor status sócio-econômico que eles próprios. Ninguém, até mesmo o índio inocente, usa o termo para se identificar. Na história da Amazona, o termo caboclo foi usado para se referir primeiro o ameríndio. Quando a miscigenação aconteceu, referiu-se à descendência de europeus com mulheres índias (sinônimo de “mameluco"). Finalmente, na metade do século XIX, veio a designar o homem rústico rural.

53

Lima (1999) identifica no discurso coloquial amazônico basicamente dois usos para o termo caboclo, um objetivo e um relacional. O uso objetivo é mais restrito, aparecendo na mídia, na ficção literária e nos discursos políticos, quando designa a população rural indígena amazônica. Apesar de se referir a uma população concreta, esse uso está associado a uma avaliação subjetiva e ambivalente da população rural. Tanto na literatura quanto no discurso regional, o retrato do caboclo vai de um fracasso humano, um tipo preguiçoso e atrasado, a um indivíduo sábio e racional, perfeitamente adaptado ao meio ambiente social e ecológico da Amazônia. [...] Um fator comum a essas visões opostas é a questão da pobreza do caboclo. O estereótipo caboclo e as opiniões que se têm sobre as qualidades do meio ambiente são usados para explicar a pobreza humana e o subdesenvolvimento da Amazônia (LIMA, 1999, p. 20).

Quando se refere à posição de inferioridade em relação ao interlocutor, explica Lima (1999, p. 7), o termo caboclo é empregado como categoria relacional: Os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial incluem as qualidades rural, descendência indígena e “não civilizada” (ou seja, analfabeta e rústica), que contrastam com as qualidades urbana, branca e civilizada. Como categoria relacional, não há um grupo fixo identificado como caboclos. O termo pode ser aplicado a qualquer grupo social ou pessoa considerada mais rural, indígena ou rústica em relação ao locutor ou a locutora. Nesse sentido, a utilização do termo é também um meio de o locutor ou a locutora afirmar sua identidade.

No entanto, esclarece a autora, nem a natureza conceitual nem a relacional do termo são explícitas. Como resultado, “o uso coloquial do termo leva à suposição de que existe uma população concreta que pode ser imediatamente identificada como cabocla e carrega a identidade de caboclos” (idem, p. 7). Na comunidade amazônica pesquisada por Wagley (1985), por exemplo, o termo era usado com dois significados específicos: um indicando e status social e outro as características físicas, às quais eram associados estereótipos comportamentais como “são tímidos e preferem viver como animais”, “são traiçoeiros”, “são ótimos pescadores e caçadores”, “são preguiçosos” etc. The term as still used in Gurupá has a double meaning – one indicating low social status and another indicating American physical characteristics. Along with such terms as branco (white), preto (black),

54 moreno (mulatto), the term caboclo (sometimes the synonym tapuia) was used to describe a person’s physical appearance. The caboclo has straight black hair, bronze skin, and little body hair. As with the other physical types there are behavioral stereotypes associated with the caboclo physical type. Caboclos are thought to be timid because they prefer to live by themselves “like animals”. They are suspicious and tricky. They are excellent hunters and fishermen. But they are lazy – “they do not plant gardens but live from the sale of a little rubber and by fishing for their meals.” Yet these stereotypes are aimed not only at those of caboclo physical type but also at all rural collectors. […] Much of the confusion in Amazonia as to who is a caboclo derives from the changing meaning of the term over time and the segment of the population to which it refers8 (WAGLEY, 1985, p. vii– ix).

Estas imagens estereotipadas, analisa Lima (1999), dizem respeito ao arquétipo do caboclo, composto de traços culturais que distinguem seu modo de vida de uma existência branca e urbana. De fato, a existência de uma população rural que tem um estilo de vida distinto, em estreito relacionamento com a floresta, justifica que ela seja agrupada como uma categoria social específica. Além disso, as políticas coloniais iniciais induziram à criação de uma classe amazônica subalterna, com a qual a categoria social caboclo está intimamente associada (LIMA, 1999, p. 13).

A autora concorda com Wagley, no entanto, no sentido de que o conceito regional do caboclo é mais que uma referência a essa população rural ou ao seu estilo de vida, incluindo um estereótipo que caracteriza esse habitante da Amazônia como “preguiçoso, indolente, passivo, criativo e desconfiado. E os mesmos traços culturais que distinguem os caboclos [...] são tomados como evidência de inferioridade, pois são vistos como primitivos” (LIMA, 1999, p. 13). Brondízio9 (s.d.) faz referência à dificuldade de categorização do termo caboclo também com relação a classificações étnicas na antropologia, apontando como errônea a generalização de caboclos como sinônimo de agricultores, em razão deste termo englobar duas outras categorias na Amazônia brasileira: 8

O termo como ainda é usado em Gurupá tem duplo significado: um indicando baixo status social e outro indicando características físicas americanas. Da mesma forma que termos como branco, preto e moreno, o termo caboclo (às vezes sinônimo de tapuia) era usado para descrever a aparência física de uma pessoa. O caboclo tem cabelo preto liso, pele bronzeada, e pouco pelo no corpo. Como com os outros tipos físicos há estereótipos de comportamento associados com o tipo físico do caboclo. Pensa-se que os caboclos são tímidos porque eles preferem viver entre si "como animais". Eles são desconfiados e traiçoeiros. Eles são excelentes caçadores e pescadores. Mas eles estão preguiçosos - "eles não plantam jardins, mas vivem de pequenas vendas de borracha e pescando para as suas refeições". Estes estereótipos não são somente dirigidos ao caboclo tipificado fisicamente, mas também a todos os coletores rurais. […] Muito da confusão na Amazônia sobre quem é um caboclo deriva da variação do significado do termo com o passar do tempo e do segmento da população ao qual se refere. 9 Texto obtido em endereço eletrônico.

55 colonos migrantes da zona rural e habitantes da periferia urbana que cultivam pequenas agriculturas de subsistência como complemento de renda. Diferenças óbvias entre os caboclos amazônicos e os novos colonos, segundo ele, tornam desnecessárias elaborações sobre as suas particularidades sócio-culturais e históricas, deixando claro que tal definição não dá conta da especificidade histórica do caboclo e o seu modo particular de produção, baseado em conhecimento adaptativo do seu ambiente. Lima (1999, p. 17) também enfatiza a necessidade de distinção entre os colonos e os “verdadeiros” caboclos. Segundo ela, embora não seja possível precisar o quantitativo de migrantes que adentraram a região, “foi grande o suficiente para prover uma clara distinção entre o caboclo e as populações nordestinas durante a primeira metade deste século.” A maneira de lidar com o ambiente amazônico e o comportamento econômico do caboclo são componentes centrais do seu estereótipo, o que na avaliação de Lima (1999), ajuda a explicar o simbolismo masculino do termo, atrelado ao papel dos homens em tares de subsistência como caça e pesca, ligadas à natureza. A mulher cabocla, apesar de desempenhar um papel importante nas atividades de subsistência da família, é mais freqüentemente associada ao estereótipo feminino da sensualidade e da disponibilidade sexual, herdado da imagem da mulher índia divulgada pelos colonizadores. Torres (2003) acrescenta que o jeito introspectivo da mulher “caboca” 10 da zona interiorana do Amazonas é freqüentemente interpretado também como “rudeza do tipo brava, amuada, sonsa, calada e arredia”, sem considerar que os nativos amazônicos, de modo geral, têm esse comportamento silencioso, um tanto arredio, que tem a ver com a vida calma do interior e a estreita relação do caboclo com esse ambiente, traduzindo-se como uma expressão cultural desse povo. O uso objetivo do termo caboclo pretende especificar uma categoria social à qual falta um termo próprio de autodenominação e aponta para o processo histórico de sua constituição. Para reconstruir o percurso problemático da 10

Forma utilizada pela autora.

56 aquisição de uma possível “identidade” para o mestiço amazônico, então, é preciso recorrer à história das diferentes origens do mesmo termo "caboclo". Para isso se faz necessário considerar as raízes do termo e o contexto nos quais foi modelado ao longo do tempo, e comparar com o que significa hoje ser "caboclo". Embora não seja possível neste estudo afirmar a existência de uma identidade cabocla, de acordo com os critérios étnicos, teoricamente pode-se reconstituir o processo de elaboração dessa denominação como “identidade simbólica”.

2.1 A propósito do termo “caboclo” De acordo com Torres (2003, p. 109), a primeira versão escrita desse termo aparece no Alvará Régio de 4 de abril de 1775, no qual uma autoridade portuguesa proibia o uso do termo cabocolos “ ou outro semelhante, que se pudesse tomar por injurioso” aos vassalos casados com índias. Tal proibição faz deduzir “que o termo “cabocolo” estava associado a algo pejorativo, de característica negativa, a ponto de ser proibido o emprego desse termo para designar o colono matrimoniado com a indígena.” Com o passar do tempo, a palavra “cabocolo” foi ganhando outros significados e evolução. Na acepção de Teodoro Sampaio, estudioso dos índios tupinambás, o termo é “caboclo” e não “cabocolo” e é originário do tupi-guarani caá-boc, que significa “homem procedente do mato”. Especialistas em lexicologia e lexicografia colocam em dúvida a origem do termo “caboclo”, sugerindo este não é indicativo somente de pessoas descendentes de índios e brancos, mas é também aplicado ao português degredado, enviado à Amazônia para prover a sua subsistência (TORRES, 2003). A construção social denominada “cabocolo”, ou caboclo, que em Portugal causava horror e repugnância, “estava associada aos párias e até mesmo aos “apirus, que nas antigas línguas, como o ugarítico, era um termo que se aplicava aos grupos marginais de pessoas como os bandidos, mercenários, sem-terra e pobres” (GALLARES apud TORRES, 2003, p. 110).

57 Essas pessoas eram discriminadas em Portugal pelo status social que ocupavam. Os “cabocolos” incluíam os sem-terra, os desempregados e as pessoas de “má-índole”. De acordo com a autora (p. 110), em razão do caráter duvidoso desses indivíduos, “o termo “cabocolo” assumia uma conotação pejorativa, sendo conveniente ‘exportar’ esses indivíduos para o Brasil ou para o “quinto dos infernos”, que correspondia ao quinto reinado de Portugal, sob a coroa de D. João VI” (TORRES, 2003, p. 110). É possível supor que tenha havido uma modificação da palavra caboco para caboclo, justamente para conferir um tom de sofisticação e intelectualização a um termo estigmatizado e segregado. Observe-se que o termo do tupi-guarani é caá-boc, sem a letra L, daí pensarmos que essa mudança queira sugerir uma divisa\o de classes. Assim, o termo original caboco é mais indicado para designar o homem interiorano da Amazônia, pertencente a estratos sociais baixos, de característica rudimentar e de sotaque regionalizado. O termo caboclo, modificado possivelmente pelos espanhóis no século XVII, é utilizado para designar os indivíduos descendentes de brancos e índios que se ocidentalizaram e que pertencem a estratos sociais médios e altos (idem, p. 110).

Lima (1999) pondera que as etimologias relacionadas à palavra caboclo são especulativas, mas entre a de Parker, que sugere a origem do termo da palavra tupi kari’boka, que significa “filho do homem branco”, e a de Teodoro Sampaio, que afirma ser caboclo derivado do tupi caa-boc, que quer dizer “o que vem da floresta”, a segunda, na sua opinião, tem mais probabilidade de estar correta. Isso porque, na Amazônia, caboclo foi inicialmente usado como sinônimo de tapuio, termo genérico de desprezo que os povos indígenas usavam quando se referiam a indivíduos de outros grupos. Em tupi, de acordo com Veríssimo (1970[1878]:14, a palavra tapuio significa o hostil, o inimigo, o escravo. Após a colonização, o termo foi usado para designar o ameríndio assentado e trazia as mesmas conotações de desprezo que tinha quando usado entre os índios (LIMA, 1999, p. 9).

Assim como tapuio naquele contexto, hoje o termo caboclo é também usado no sentido de desprezo em relação ao outro, e tal significado de alteridade é encontrado na segunda etimologia citada. Na opinião de Lima, essa designação poderia ser tomada como alusão a uma espécie de expatriação com referência a um outro cuja origem é selvagem (o que vem da floresta). Por analogia, a utilização atual do termo caboclo é similarmente caracterizada por uma referência

58 ao outro e à exclusão. Por isso, na maior parte das vezes o termo é rejeitado por aqueles que designa, sendo apenas em algumas instâncias usado como um termo de auto-atribuição. Nesse último caso estão os grupos indígenas que usam, eles próprios, o termo caboclo para autodenominação, utilizando-o como um recurso de oposição aos brancos: [...] o uso da palavra caboclo como termo de autodesignação por alguns grupos indígenas está sempre ligado ao contexto de sua oposição e conflito interétnico com os brancos. [...] É somente no contexto local de contato interétnico entre populações indígenas e brancas que o termo caboclo é reconhecido como um rótulo de identificação e/ou um termo de autodenominação para os grupos indígenas (LIMA, 1999, p. 12).

Segundo a autora, a não utilização de caboclo como um termo de autodesignação está relacionada, em primeiro lugar, com a conotação pejorativa do termo e o significado de “índio domesticado” (e não o de uma raça cruzada entre branco e índio), que ele transmite entre a população rural”. Explica ela ainda que: Quando caboclo é usado por certos grupos ameríndios como termo de autodesignação, a conotação pejorativa está subentendida. Como afirma Cardoso de Oliveira (1972a), o uso de caboclo como termo de auto-identificação é uma maneira de os índios assumirem uma posição social inferior em relação aos brancos. Discutindo o uso do termo entre os ticuna, Cardoso de Oliveira afirma que é uma identidade negativa (ou seja, a do índio que se vê do ponto de vista do branco). Por essa razão, os índios que individualmente migram do alto rio Negro para a cidade de Manaus não reproduzem sua identidade cabocla através das gerações, mas apenas a usam para si (LIMA, 1999, p. 21).

Lima alerta para a importância de enfatizar a natureza conceitual do termo, considerando que caboclo é uma categoria de classificação social empregada por estranhos, com base no reconhecimento de que a população rural amazônica compartilha um conjunto de atributos comuns, mas não é uma categoria social homogênea nem absolutamente distintiva. Segundo ela, “existe o perigo de tomar-se o termo caboclo como uma identidade e desse modo criar fronteiras absolutas para um grupo social que não é encontrado na vida real. Ao contrário, o termo caboclo deve ser entendido como uma categoria geral de referência e identificação” (LIMA,1999, p. 8).

59 A natureza do termo caboclo é portanto conceitual e consiste em uma categoria social de pensamento analítico. Sendo uma categoria social, o termo é uma abstração, uma unidade de um sistema de classificação social projetada para retratar as diferenças entre as pessoas na sociedade. Em contraste com um grupo social, uma categorial social consiste em uma agregação artificial de pessoas baseada na identificação de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam necessariamente em um relacionamento social em razão dessa similaridade. Os atributos que definem uma categoria social podem ser biológicos, sociais ou culturais. Um grupo social, por outro lado, consiste em uma agregação humana real, que é definida por interações estreitas e relacionamentos pessoais (LIMA, 1999, p. 9).

Na Amazônia brasileira, de acordo com a autora, o termo caboclo é amplamente utilizado como uma categoria de classificação social. No discurso coloquial a definição da categoria social caboclo é complexa, ambígua e está associada a um estereótipo negativo. Na antropologia, a definição de caboclos como camponeses amazônicos é objetiva e distingue os habitantes tradicionais dos imigrantes recém-chegados de outras regiões do país, Ambas as acepções de caboclo, a coloquial e a acadêmica, constituem categorias de classificação social empregadas por pessoas que não se incluem na sua definição (LIMA,1999, p. 5).

Existem no Brasil outras categorias populares de raça mista, tais como o mulato (o filho do branco e do negro) e o cafuzo (filho do índio e do negro). Mas, enquanto tais categorias raciais não se associam a uma região brasileira específica, os caboclos, sim. E, em contraste com outros tipos regionais, o nome caboclo também é usado como categoria de classificação social (LIMA, 1999).

Atualmente, no médio Solimões, a população rural é ainda chamada de caboclos. [...] O caboclo é mencionado sempre que “o homem amazônico típico” está em discussão. Embora o termo seja às vezes aplicado aos pobres das cidades, a imagem desse “amazônida típico” é essencialmente rural e ribeirinha. [...] O termo evoca a figura de um homem associado com o meio ambiente amazônico (LIMA, 1999, p. 12).

Em seu estudo sobre uma comunidade amazônica que ele chamou de Itá, Wagley (1977) observou que os conceitos do povo local sobre o tapuia ou caboclo, identificado pelo tipo físico do ameríndio, eram menos favoráveis que os do negro, carregando duplo sentido, um significando baixa posição social e outro

60 indicando as características físicas do ameríndio, sobressaindo os conceitos depreciativos:

O caboclo é considerado preguiçoso: “Não plantam roças, vivem da venda de um pouco de borracha e pescando para comer”. Diz-se que o caboclo é tímido porque vive isolado na floresta. “Preferem viver como animais, longe dos outros, no fundo das florestas”, disse certo homem. Entretanto o caboclo é considerado manhoso e extremamente desconfiado. [...] As pessoas descendentes do ameríndio, ao contrário dos negros, não gostam que se mencione sua ascendência indígena. [...] Na sociedade amazônica o índio, muito mais freqüentemente do que o negro, era o escravo da sociedade colonial. [...] Hoje em dia, as características físicas de índios são, portanto, um símbolo não só de descendência escrava como também de origem social mais baixa, nos tempos coloniais, do que a do negro (WAGLEY, 1977, p. 149).

Silva (1996) explica que a expressão qualificativa “caboclo brasileiro”, em Galvão11, é o signo diferenciador deste personagem social (o caboclo) face ao índio. É a diferença estabelecida entre aquele personagem tipicamente brasileiro, forjado ao longo da história deste país, e o índio que não se acaboclou. Este pertence à categoria sócio-cultural índio, ou seja, é um ser de origem histórica que tem sua identidade étnica no povo indígena em que se constitui. No processo colonizatório também o “branco” acaboclou-se ao penetrar neste mundo social diferenciado. No convívio com o índio e o ex-índio, foram engendradas as condições, com base em fatores biológicos e culturais, para a emergência do mestiço resultante da miscigenação, e do “branco” tornado caboclo, de acordo com os condicionantes implícitos no processo (SILVA, 1996). Em alguns casos, o índio deixa de ser índio e não se torna um “branco”, ou seja, objetiva e subjetivamente, não é mais um ser tribal, mas também não ingressou no meio urbano, nem passou a viver com o mínimo de dignidade, em meio à escala social, no meio rural ou na cidade; não se sente como um partícipe da cultura e da sociedade dos “brancos”, em igualdade com estes;. na passagem, se cabocliza e, com freqüência, torna-se um marginal na sociedade estranha; resta à margem do mundo dos brancos, como um ser decadente e alienado. O “branco” penetrou neste mundo social e acaboclou-se. Ao juntar-se ao índio ou ao ex-índio, originam-se as condições, no convívio, para as conjunções biológicas e culturais, dando origem, por um lado, ao mestiço, e, por outro, ao “branco” que se tornou caboclo, em um processo que, também, assume tonalidades diversas, face aos diferentes condicionantes (idem, p. 300).

11

Eduardo Galvão é autor de várias obras sobre a cultura amazônica, especialmente sobre a cultura cabocla.

61 Branco ou mestiço, conclui o autor, o ser “acaboclado” acaba perdendo a referência dos elementos biológicos e culturais de origem indígena que constituíram a sua singularidade social, tornando esse ser distinto do índio e do branco, passando a ser um alter em relação aos elementos originários que influenciaram em sua formação. “... poder-se-ia dizer que o caboclo é a própria ‘consciência infeliz’. Fracionada sua personalidade em duas, ela bem retrata a ambigüidade de sua situação total...” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, p.83). Diz ainda o autor (idem, p. 82) que o “caboclismo” está estreitamento relacionado à natureza da organização política imposta e reflete a sujeição, habitual e sem perspectiva, ao branco. “Dentro do caboclismo é impensável qualquer movimento coletivo de rebeldia à ocupação da sociedade nacional...”. Com referência a esse “acaboclar-se”, Parker (1985) fez um estudo a propósito da transformação do ameríndio na Amazônia, atribuindo a esse processo de “caboclização” parte da responsabilidade pela destruição da sociedade indígena americana, processo esse desencadeado pela intervenção religiosa na Amazônia no início do século XIX. […] the process of “caboclization” in the Brazilian Amazon, the events and conditions that in large part destroyed Amerindian society, transformed the Amerind and resulted in the emergence and solidification of caboclo class and culture in Amazonia by the early 19th century. The caboclization of Amerindians will be shown to have been accomplished in three distinct but related stages: (1) the early settlement period (16001655) in which settler slaving expeditions exated and enormous toll upon Amerindian populations, general chaos prevailed, and the problem of sufficient labor first appeared; (2) the years of Jesuit dominance in Amazonia (1655-1755) during which Amerindian were “missionized” and converted from subsistence to commodity producers; and (3) the rule of the Directorate (1755-1799), under which a set of policies and regulations were promulgated intended to convert and Christianize Amerindians and hence make them full-fledged members of Portuguese society but which in fact served primarily to complete the transformation of the Amerindian to caboclo12 (PARKER, 1985, p. 3).

12

[…] o processo de "caboclização" na Amazônia brasileira, os eventos e condições que em grande parte destruíram a sociedade ameríndia, transformaram o ameríndio e resultaram no aparecimento e solidificação de uma classe e cultura caboclas na Amazônia no início do século XIX. A caboclização dos ameríndios pode ser vista como tendo sido efetuada em três fases distintas, mas relacionadas: (1) o período inicial de estabelecimento (1600-1655), no qual as expedições colonizatórias exacerbam em perversas investidas sobre as populações de ameríndios, o caos prevalece e o problema de trabalho adequado aparece pela primeira vez; (2) os anos de domínio jesuítico na Amazônia (1655-1755), durante os quais o ameríndio foi "catequizado" e convertido de subsistência a produtor de mercadorias; e (3) as regras do Diretório (17551799) sob as quais um jogo de políticas e regulamentos foi promulgado, pretendia converter e cristianizar os ameríndios e conseqüentemente convertê-los em membros da sociedade portuguesa, mas na realidade serviu principalmente para completar a transformação do ameríndio em caboclo.

62 Parker refere-se ao termo como designativo do resultado de um processo de exploração e enquadramento dos indígenas ao sistema estrangeiro, modificando

costumes

e

induzindo-os

a

uma

adaptação

forçada

que

descaracterizou a sua cultura original e deu margem à emergência de uma categoria híbrida e despojada culturalmente. What emerged from this destructive period were caboclos: disenfranchised and culturally deprive Amerindians and mixed-blood offspring engaged in desultory subsistence activities and collection of forest products. […] The caboclo was a solitary economic actor upon the regional stage, relatively self-sufficient and very often completely isolated. MacLachlan (1972:386) noted the Amerindian, stunned culturally and psychologically, readily abandoned village, and at times family, to pursue his existence and livelihood alone. He now wore European-style clothing, perhaps spoke rudimentary Portuguese in addition to lingua geral, and retained only vestiges of his former social and cultural self 13 (PARKER, 1985, p. 35).

Por sua vez Galvão (apud SILVA, 1996), vê também por outro ângulo, destacando o encontro das culturas indígenas e européias na origem da cultura cabocla. Por caboclo entendemos não apenas os descendentes de cruzamento entre índios e alienígenas, mas também os brasileiros de outra procedência, notadamente maranhenses, que aí se fixaram motivados pela exploração econômica dos recursos naturais e que absorveram e adotaram algo do modo de viver indígena, sobretudo a tecnologia primária. Entretanto, seus padrões sociais e culturais se orientam pelo modelo urbano e rural brasileiro (SILVA, 1996, p. 225).

Lima (1999, p. 26) ressalta que, embora a referência ao termo caboclo possa evocar vários significados, o sentido pejorativo predomina na maioria deles, “decorrente da representação negativa do indivíduo ou grupo que ocupa uma posição social inferior.” Os principais sentidos atribuídos estão relacionados a “noções geográficas (Amazônia, interior, rural), de descendência e “raça” (indígena, mestiça), das hierarquias e relações sociais (conquista ibérica, submissão, a relação de dívida e de crédito no aviamento, o par patrão e freguês) – todas ligados à história da ocupação européia da Amazônia. 13

O que emergiu deste período destrutivo foram caboclos: desprestigiados e despojados culturalmente ameríndios e descendentes miscigenados engajaram-se em atividades de subsistência inconstantes e coleta de produtos de floresta. […] O caboclo era um solitário ator econômico na fase regional, relativamente autosuficiente e muito freqüentemente completamente isolado. MacLachlan (1972:386) nota que o ameríndio, culturalmente e psicologicamente atordoado, prontamente abandona a aldeia, e às vezes a família, para procurar sozinho garantir a sua existência e seu sustento. Ele agora usa o estilo de vestir europeu, talvez fale um português rudimentar além da língua geral, e reteve somente vestígios da sua própria formação social e cultural.

63

Embora haja também uma valoração positiva – no folclore, que retrata o caboclo como “o homem da terra”, e em cultos de possessão, em que aparece como “espírito forte” – o estereótipo predominante é negativo. Corresponde a figuras como o “matuto” e o “caipira” do interior sulista. Por esse motivo, qualquer referência ao termo não pode ser inteiramente inocente, pois sempre remete à conotação pejorativa – de domínio público, apreendido pelo senso comum -, ao ponto do nome mesmo não ser senão excepcionalmente usado como autodenominação. A forma singela e humilde de por a mão no peito e anunciar, como reconhecimento de inferioridade. “eu sou apenas um caboclo” dirige-se especificamente a um interlocutor branco, rico ou de outra região que não a Amazônia (LIMA 1999, p. 26).

Surgido no contexto de uma estrutura social altamente hierarquizada, a sociedade amazônica colonial, ao longo do processo em que se formou o segmento camponês amazônico, o nome caboclo carrega uma história particular, tendo sido criado não só para referir a essa classe inferior, como para definir suas qualidades e seu valor (LIMA, 1999). Vimos como a palavra inicialmente denotava o índio genérico, destribalizado, passando posteriormente a significar o híbrido, o miscigenado. Que o termo tem a função de classificar categorias e definir posições sociais é comprovado pelo fato de a palavra ter sido mantida, apesar da evolução da composição étnica da população que nomeia. A manutenção do nome implica que, embora seu significado pareça ter mudado [...] ele é na verdade uma categoria de referência para a posição inferior na estrutura social do meio rural principalmente (idem, p. 27).

Para Galvão (in SILVA,1996, p. 229), o caboclo amazônico, com “sua cultura de segunda ordem – em termos historicamente seqüenciais -, em seus componentes indígenas e não indígenas, é um dos seres que constroem, com sua participação pessoal e direta, a identidade do brasileiro.” Galvão advoga a idéia de que o caboclo é consciente de sua condição sócio-cultural. Os critérios adotados para a identificação do caboclo, em Galvão, são de naturezas diversas (biológicos, culturais e econômico-estruturais) e servem a análises distintas dessa figura sociológica característica. No conjunto de sua obra, o caboclo referencial, na comparação com o índio e com o “branco”, é o ser que está inscrito como um elo social e cultural, em alguns casos biológico, entre o ser índio e o ser não-índio; entre as culturas indígenas e a cultura ocidental. Da perspectiva do estudo de mudança cultural, o caboclo é um signo desta passagem (idem, 299-300).

Silva (1996, p. 230) ressalta que diferentes expressões vocativas com o uso do termo “caboclo” podem exprimir tanto preconceito “racial”, colocando o mestiço (caboclo) em uma categoria inferiorizada e de menor prestígio social,

64 quanto serem empregadas com um sentido extremamente afetivo e carregado de simpatia

“nas

relações

informais

entre

pessoas,

interrelações

que

se

estabelecem, preferencialmente, no interior de cada segmento de classe social, porém, podem também ter lugar entre pessoas inseridas em classes distintas.” As qualificações negativas, de acordo com Lima (1999, p. 14), também se relacionam ao fato de que os caboclos são considerados pobres: Como no caso do termo caboclo, pobreza também é um conceito cultural. O caboclo não é só pobre em relação a padrões de vida urbanos ou internacionais, mas também em relação a uma expectativa elevada para a performance econômica e social deste neobrasileiro na Amazônia.

No entanto, no interior do Amazonas, informa Torres (2003, p. 110), o termo não tem conotação pejorativa sendo frequentemente empregado para indicar, com orgulho, “o tipo de homem que possui capacidade para vencer os perigos e desafios da floresta e dos rios; é o homem que tem um comportamento meditativo, calmo, silencioso, sem vexames, pressa ou afobamento.” É verdade, reforça a autora (p. 123), que os nativos não se preocupam com o dia de amanhã, como também não se preocupam em deixar bens materiais para os filhos, o que não significa que sejam preguiçosos. O comportamento meditativo, calmo e silencioso do homem amazônico e o seu modo “despreocupado” de conduzir a vida, são devido a um condicionamento histórico e têm a ver com as características indígenas latentes, “mas também estão associados a uma sabedoria de vida e a uma estratégia de sobrevivência. É uma questão culturalmente arraigada ao seu modo de ser...”.

2.2 A cultura cabocla Na concepção de Silva (1996, p. 223) “o que caracteriza o caboclo não é o caráter genético-biológico, o tipo físico, mas sim, a cultura – cultura cabocla - , produto da ‘amalgamação’ das diferentes contribuições fundadoras”. De acordo com Wagley (1977, p. 56), na época da independência do Brasil, os habitantes do vale amazônico eram predominantemente mestiços, e o modo de vida dessa

65 população era mais adequado aos padrões europeus (de Portugal), embora sofrendo fortes influências das culturas aborígines e do ambiente amazônico. “Formara-se uma cultura regional, fundamentalmente européia em suas principais instituições, mas profundamente influenciada pelo ambiente típico da Amazônia e pelas culturas nativas da região”. Assim, juntamente com os padrões ibéricos impostos e ensinados à população campesina do Amazonas por seus conquistadores europeus, persistiu na cultura rural de toda a Amazônia brasileira uma coleção de padrões aborígenes. Estes fundiram-se na estrutura da cultura predominantemente ibérica, formando um modo de vida e uma cultura típica da região, perfeitamente adaptados ao ambiente particular da Amazônia (WAGLEY, 1977, p. 59).

A formação da chamada cultura cabocla, de acordo com Galvão (1976, p. 114), foi um processo contínuo que teve início com a chegada dos europeus no século XVII, por meio da “aculturação seletiva da sociedade mista de colonos portugueses e índios, condicionada pela configuração e pelos padrões peculiares a essas duas culturas que entraram em contato, e à situação de dominância da primeira.” O autor enfatiza a dificuldade de compreensão, a não ser em linhas gerais, da complexidade desses processos de aculturação e mudança cultural sofridos tanto pela sociedade nacional quanto pela tribal, considerando que a “especificação do fenômeno requer o estudo detalhado de períodos históricos ou de áreas geográficas e culturais em que os fatores mais induzentes da mudança de uma ou outra sociedade possam ser melhor analisados” (GALVÃO, 1979, p. 261). Tal dificuldade é devida, segundo o autor, ao fato de que as mudanças ocorridas na sociedade tribal não decorreram de um processo gradual. O ritmo ou a penetração da mudança são resultados de transformações que operam na sociedade nacional. O processo de aculturação intertribal, iniciado antes da conquista portuguesa, sofreu um aceleramento progressivo, porém irregular na medida em que se desenvolveu o dispositivo de ocupação e fixação da frente pioneira nacional em território indígena (GALVÃO, 1979, p. 267).

A formação da cultura regional amazônica, na análise de Galvão, pode ser vista a partir de etapas de um fenômeno progressivo, mas não uniforme, uma vez que os períodos históricos mais ou menos delimitados foram caracterizados ora

66 por mudanças e desenvolvimento lento, ora por rápidas transformações. Segundo ele, existem grandes contrastes referentes às configurações culturais da Amazônia, evidenciados em padrões de povoamento, de organização familial ou outras formas mais complexas de padrões e práticas religiosas, diferenças essas originárias da forma como os indígenas reagiram à influência dos “brancos” no processo colonizatório. O crescente envolvimento dos grupos tribais pela expansão das frentes pioneiras, ou o seu cerco pela população rural, aumentou e acelerou o ritmo das modificações da cultura dos grupos indígenas. Não se trata mais de um processo rápido de destribalização dos índios, ou um recíproco dar e receber entre índios e brancos. Defrontando-se com um novo meio, os colonizadores do século XVII, portadores de uma cultura rural européia relativamente simples, adotaram muitos dos costumes e conhecimentos indígenas, principalmente os que tinham relação direta com o uso do ambiente físico, como as técnicas de horticultura, as plantas cultivadas, os métodos de caça e pesca, as técnicas de construção de casas, as artes, a farmacopéia, a cura pela pajelança e a adoção de idéias religiosas [...]. Os índios, por sua vez, passaram a utilizar armas de fogo, utensílios de ferro e roupas, adotaram valores sociais e conceitos religiosos, e adaptaram suas economias fechadas e auto-suficientes a sistemas de intercâmbio e de comércio, o que resultou em mudanças na sua organização social. Hoje em dia suas mudanças são unilaterais, no sentido de que a cultura mestiça do brasileiro contemporâneo teve saturada, por assim dizer, a sua capacidade de receber influência indígena. A distância cultural aumentou, então, com um considerável decréscimo na comunicação e na troca (GALVÃO, 1979, p. 275-6).

Em suas obras Galvão enfatiza a importância de que sejam enfocadas e compreendidas as forças atuantes no processo de formação da cultura do caboclo, reiterando a atuação do indígena nesse processo: O índio não teve um papel simplesmente passivo de continuar em suas sociedades nativas ou de adotar traços da cultura lusa para somar aos seus já tradicionais. O aborígene foi destribalizado e forçado a aceitar os padrões e instituições européias, dada sua situação de inferioridade como escravo, ou sob as contingências de uma população dominada. Sua contribuição à cultura da sociedade que então se formava foi importante por se referir sobretudo aos meios de controle do ambiente físico, como seja a agricultura, alimentos, meios de transporte, material e construção da habitação e uma infinidade de técnicas, que significavam os métodos essenciais para adaptação a um ambiente geográfico peculiar – a floresta tropical – desconhecido do colono português (GALVÃO:1976, 114-15).

A despeito da ampla contribuição ameríndia, observa o autor, a cultura e a sociedade emergente desse contato entre “índios” e “brancos” foram norteados pelos padrões ibéricos, inclusive nas atividades de agricultura, na seleção de plantas para cultivo e técnicas de plantio. A cultura original em formação foi também permeada pelas crenças e práticas religiosas dos colonizadores e,

67 embora as crenças religiosas dos indígenas tenham sobrevivido, foram dissociadas do seu contexto original e integradas ao catolicismo ibérico. As crenças religiosas que têm origem nas culturas indígenas do vale e são hoje parte do patrimônio caboclo, modificaram-se sob a influência do cristianismo e do folclore europeu. Sob nova forma difundiram-se e integraram-se na cultura regional. Constituem parte tão essencial da vida religiosa, quanto as crenças católicas e respondem a necessidades emocionais condicionadas pelo ambiente e pelo grupamento social (GALVÃO, 1976, p. 115).

Embora a dominância do caboclo na Amazônia geralmente induza a estereótipos, tais como a consideração do moderno habitante da região como “índio”, Galvão considera um equívoco a atribuição à cultural regional amazônica uma qualidade de “indígena”: O caboclo não tem orgulho ou vergonha do ancestral que habitava as malocas, simplesmente ignora ou não se preocupa com esse fato. [...] A cultura dessas sociedades tribais dificilmente influenciará, no sentido de contribuir com elementos novos, o modo de vida do caboclo, principalmente porque seus traços culturais mais passíveis de adaptação já de há muito foram assimilados pelo mestiço luso-índio, que os tomou de culturas indígenas hoje extintas (GALVÃO, 1976, p. 127-8).

Segundo Silva (1996), Galvão vê o caboclo, independente de suas características somáticas, virtualmente inserido na sociedade de classes, como um trabalhador explorado e marginalizado, mas que vive, trabalha, comporta-se na sociedade e tem uma visão de mundo segundo padrões da cultura híbrida cabocla. A sociedade cabocla – estudada por Galvão -, nas gerações sucessivas, constrói um modus vivendi, formas culturais (caboclas), que instauram universos sociais específicos e estáveis, persistentes, com códigos culturais próprios, híbridos – pelas vertentes indígenas e “brancas” constitutivas -, presentes nos mitos, nos rituais, no xamanismo, na religiosidade sincrética, na tecnologia de produção de mercadores com variados fins, nas relações com o meio ambiente, enfim, nas atitudes face à vida e à morte. Porém, no conjunto da categoria social dos caboclos como um todo, ressalta-se um traço comum: a marginalidade e a dominação, condições a que todos estão submetidos na sociedade (SILVA, 1996, 301).

Wagley (1977) ressalta que as razões de uma suposta condição de “atraso” atribuída à cultura cabocla são decorrentes da história da Amazônia e da forma peculiar com que tem sido processado o seu povoamento:

68 Desde o décimo sexto século a região amazônica tem sido uma área colonial, primeiro pertencente a Portugal e, a seguir, do próprio Brasil que, durante mais de três séculos, foi um produtor de matérias-primas para mercados distantes, sem uma justa compensação para esses produtos. [...] Permaneceu em toda a região um sistema rígido de discriminação de classes que se baseia em critérios econômicos, familiares e educacionais. O Vale Amazônico continua a ser uma das áreas coloniais do mundo (WAGLEY, 1977, p. 278-9).

A forma de vida das populações tradicionais da Amazônia, segundo Castro (1997), é concebida a partir de sua relação com o ambiente. Conservam na linguagem, por exemplo, imagens dos rios e igarapés, assim como da mata, e as suas concepções de natureza definem tempos e lugares de suas vidas. Essas práticas são consideradas simplórias e vistas como improdutivas pela sociedade moderna que, incessantemente, dirige novos apelos “modernizantes” para induzir essas comunidades a mudanças consideradas mais adequadas à atual lógica de mercado. Na concepção de Parker (1985), muitos estudiosos falham precisamente em reconhecer no modo de vida tradicional do caboclo, a qualidade adaptativa do seu sistema produtivo e a sua contribuição para a economia e o desenvolvimento regional, enfatizando a flexibilidade do caboclo ao lidar com as influências externas. Segundo o autor, muitas afirmações e generalizações sobre a cultura cabocla estão baseadas em indícios insuficientes ou incompletos, resultando em um “conhecimento” limitado e fragmentário: […] our knowledge and understanding of Amazon caboclo culture is limited and fragmentary. Less colorful and exotic than their tribal cousins, caboclos have not enjoyed the attention that Amerindinas have heretofore enjoyed. Ignored, overlooked, and at times casually lumped together with migrant populations, caboclos remain largely unstudied despite their central role in the human environment of Amazonia. […] many assumption and generalizations about caboclo culture are based upon insufficient or incomplete evidence14 (PARKER, 1985, xliii).

Silva (1996) considera que os estudos sobre o caboclo da Amazônia podem ser objetivados em dois planos: um se encontra no próprio nível das subjetividades, das identidades sociais e das atitudes e julgamentos nas relações grupo a grupo, pessoa a pessoa, na sociedade. Outro passa pela lente das 14

[…] nosso conhecimento e entendimento da cultura do caboclo amazônico é limitado e fragmentário. Menos coloridos e exóticos do que os seus primos tribais, os caboclos não desfrutaram a atenção que os ameríndios antes desfrutaram. Ignorado, negligenciado, e eventualmente marginalizado junto com populações migrantes, os caboclos permanecem desconhecidos em grande parte, apesar do seu papel central no ambiente humano da Amazônia. […] muitas suposições e generalizações sobre a cultura cabocla são baseadas em evidências insuficientes ou incompletas.

69 interpretações teóricas em relação aos fatos observados nas sociedades específicas. Estes dois planos se entrecruzam. [...] o ser caboclo amazônico, por seus componentes biológicos (miscigenação), culturais (encontro de culturas) e sociais (está distribuído em diferentes segmentos da população), é uma configuração sociológica específica, que pode ser analisada sob diferentes ângulos teóricos articulados com a observação das situações concretas na sociedade (SILVA:1996, 230).

Para Parker, foi no século XIX, precisamente entre 1800 a 1850, que o caráter e a qualidade da classe cabocla tomaram a forma que persiste até a atualidade. A despeito da natureza de sua atividade econômica, o isolamento cultural e todos os fatores que conspiraram contra a sua organização como grupo social, o caboclo efetivamente acabou por tornar-se o legítimo representante cultural

da

região,

atingindo

naquela

época,

um

contingente

bastante

representativo do total de habitantes da área.

It was during the 50 years between 1800-1850 that the character and quality of caboclo class and culture took shape and which have persisted to the present day. The nature of their economic activity, the cultural deprivation experienced, and the resultant settlement pattern all militated against further social articulation of caboclo life. The caboclo had indeed become the cultural representative of Amazonia – the dominant cultural and economic agent throughout the region. The true Amerind was limited to the far flung corners of the basin and deep within the unpenetrated reaches of the forest. Their very existence depended upon evading contact and communication with all non-Amerindians, including caboclos. […] The proposition that caboclos were the cultural representatives of the region is lent support by estimates of the regional population in 1850 which may have been as much as 75 percent caboclo at time15 (PARKER, 1985, 36).

Na atualidade, pelo menos no âmbito urbano, não é comum se falar na existência de uma “cultura cabocla”, exceto nos meios acadêmicos ou em eventuais menções na mídia, associadas neste caso ao folclore regional. A idéia no senso comum faz relação com práticas típicas do estilo de vida simples do homem interiorano, particularmente o ribeirinho, mas restringe-se ao modelo 15

Foi durante os 50 anos entre 1800-1850 que o caráter e qualidade da classe e cultura cabocla tomaram a forma que persiste até o presente. A natureza da sua atividade econômica, a privação cultural experimentada e o padrão determinante daí resultante, tudo militou adicionalmente contra a articulação social da vida do caboclo. O caboclo tinha, entretanto, se tornado o representante cultural da Amazônia - o agente cultural e econômico dominante de toda a região. O verdadeiro ameríndio foi arremessado às áreas remotas da bacia e profundamente dentro dos limites da floresta impenetrável. Sua existência mesma dependia de evitar o contato e a comunicação com todos os não-ameríndios, inclusive os caboclos. […] A proposição de que os caboclos eram os representantes culturais da região é apoiada por estimativas de que a população regional em 1850 era constituída em 75% de caboclos.

70 estereotipado consagrado no imaginário da maioria dos brasileiros, inclusive no da população citadina local. Informalmente falando, pode-se dizer que existe um estilo caboclo de ser, ou seja, uma forma de resolver as questões, de se comportar, um jeito meio “apático”, meio blasé, de encarar a vida. Chama-se leseira, segundo Souza (2001), essa maneira amolentada do caboco16 conduzir as coisas, mas que não corresponde ao sentido dicionarizado e sim a um estilo de resistência e sobrevivência às pressões externas, na opinião do autor uma demonstração de superioridade cultural. Caracteriza esse comportamento a expressão “leseira baré”, criada por Souza para identificar o que ele chamou de uma “prática existencial poderosa”, uma forma de resistência contra políticas intervencionistas que insistiam em fazer da Amazônia palco de experiências desenvolvimentistas arbitrárias: Mas o que é leseira? Como identificar tal estilo de resistência. Quando um nativo da Amazônia se olha no espelho, ele vê lá no fundo de seus olhos um sinal de que não foi feito para obedecer certas leis, especialmente econômicas. Por isso, a leseira é elusiva, pode ser uma forma aguda de esnobismo ou uma ironia. [...] a leseira é uma prática existencial poderosa – e foi a única arma que se mostrou eficaz para impedir que muitos projetos da ditadura militar fossem totalmente implantados – que ainda vai livrar a região de tanta solidariedade não solicitada, pois há uma exata medida de leseira em todos os escalões, em todas as classes sociais, em todas as almas (SOUZA, 2001, p. 162).

O termo leseira, entretanto, que Souza intentou cunhar como indicativo de um comportamento culturalmente superior acabou se tornando mais um vocábulo no acervo de termos depreciativos com que são referidos (ou se auto-referem) os habitantes de Manaus. Por outro lado, na forma como o exemplificado pelos autores referidos, não se identifica localmente na atualidade práticas sociais suficientemente delineadas a ponto de configurarem o que poderia se chamar de uma verdadeira “cultura cabocla”. Exemplo disso é o uso da expressão “é típico de caboclo” que, invés de caracterizar a cultura local, na maioria das vezes tem cunho depreciativo.

16

Tal qual Torres (2003), o autor prefere usar esta grafia.

71 2.3 O caboclo na história (ou a história do caboclo?) Comparando as definições apresentadas por vários autores, Lima (1999, p. 20) observa que “o caboclo é uma construção de quem é o nativo num dado momento da história. O amazônida típico da época é sempre definido em contraste com aqueles que são migrantes recentes e os povos indígenas, de um lado, e o grupo social identificado como branco, urbano e rico, de outro.” A definição social de caboclo “implica uma série de oposições: pobre versus rico, selvagem versus civilizado, floresta versus cidade e, na avaliação moral, indolente versus empreendedor.” Zaccaria (s.d.)17 acredita que a aproximação etimológica permite a reconstrução da história do caboclo pelos significados que, desde seu primeiro aparecimento (século XVI) foram de tempo em tempo a ele atribuídos. Cada significado tem um referente preciso que reflete o contexto no qual foi forjado. Faz-se necessário, para isso, voltar à época da Conquista e percorrer o caminho que foi trilhado para a formação de um mundo mestiço a partir da destruição do mundo ameríndio, podendo ser distinguidas algumas etapas18 fundamentais. No século XVI, conforme a autora, as conquistas brutais resultam na destruição física de várias etnias ameríndias. Aquelas que não foram destruídas tiveram os seus integrantes geralmente reduzidos a escravos, recrutados para a extração de produtos da floresta, sobretudos os conhecidos como “drogas do sertão”. Como o braço nativo não era suficiente, foi necessário recorrer à força de trabalho externa, desencadeando a importação de escravos negros da África.

17

Texto obtido por meio eletrônico. XVI secolo. Conquista brutale e distruzione fisica di molte etnie amerindie. Quelle che non sono annientate sono spesso ridotte in schiavitù, reclutate nell'estrazione dei prodotti della foresta, soprattutto del legname e delle cosiddette "drogas do sertão". XVII - prima metà del XVIII secolo. Con l'arrivo dei Gesuiti in Amazzonia (1610), si dà avvio a quel sistema che, in più di un secolo, avrebbe condotto i gruppi indigeni radunati nelle missioni, alla perdita delle loro tradizioni e cerimonie, quindi della loro identità. II metà del XVIII secolo. Con l'espulsione dei Gesuiti dal Brasile (1755) e la fine del sistema delle missioni, una nuova epoca ha inizio. Il ministro portoghese Pombal instaura il Diretorio dos indios (direttorio degli indios) (1755-1789), che prevede l'assimilazione pianificata di indios e meticci nella società coloniale, attraverso la loro incorporazione nell'economia regionale. Nel corso del XIX secolo, quando per caboclo si intende ormai il contadino amazzonico, nato da padre bianco e da madre india, due eventi fondamentali contribuiscono ad imprimergli una fisionomia precisa e a conferirgli un qualche senso di identità come gruppo. Questi avvenimenti determinanti per la defini7ione del caboclo quale egli è attualmente, sono la rivolta del Cabanagem (18341836) ed il Boom del caucciù (1850-1920), con la conseguente migrazione di contadini poveri dalle zone aride del Nordest ( 1877) verso la lussureggiante foresta. 18

72 Na Amazônia, no entanto, tal aporte se revelou pouco adequado à economia extrativa, evidenciando-se a dificuldade do negro em adaptar-se a um ambiente tão diferente do seu, considerando-se a sua inexperiência desses lugares. A apropriação colonial na Amazônia foi instável nesse período, limitada a breves incursões de fazendeiros e pequenos extrativistas, fato que não impediu o início de um intenso processo de "cruzamento" físico-cultural. Nesse contexto o termo “caboclo” (se for aceita a derivação do tupi “caa” = “floresta” e “boc” = “aquele que vem dela”, ou “aquele que vem da floresta”) indica o índio puro. Este termo é usado pelos tupis da costa para referir-se aos seus inimigos de dentro da floresta (ZACCARIA, s.d.). Na primeira metade do século XVIII, com a chegada dos Jesuítas na Amazônia, é dado início ao sistema que, em mais de um século, teria conduzido os grupos nativos à perda de suas tradições e rituais, conseqüentemente de sua identidade. Agrupado nas missões, o caboclo se representa no índio aculturado ou mameluco, ou o mestiço nascido pelo pai europeu e mãe nativa. Então, se no período missionário permanecem a organização de comunidade e a coletividade dos meios de subsistência, os outros aspectos do passado tribal desaparecem ou são esvaziados do seu significado, contribuindo para conferir à cultura cabocla, um quase intrínseco senso de "vergonha de si mesma" (idem). Em meados do século XVIII, com a expulsão dos jesuítas do Brasil (1755) e o fim do sistema de missões, uma nova época teve início. Pombal, ministro português, estabeleceu o Diretório dos Índios (1755-1789), que programou a assimilação planejada de índios e mestiços na sociedade colonial por meio de sua incorporação na economia regional. A língua geral, proibida por Pombal, se fundiu com o português, originando a linguagem característica do caboclo amazônico; caboclos e índios destribalizados, indispensáveis pelo conhecimento do ambiente, foram inseridos no sistema de depredação dos recursos naturais que persiste até hoje, enquanto outros foram reduzidos a escravos pelos administradores e colonos que penetravam mais e mais na Amazônia (ZACCARIA, s.d.). A expulsão dos jesuítas, de acordo com Parker (1985), foi uma reação ao sucesso de sua empreitada: eles conseguiram o domínio econômico da colônia com a transformação os índios em agricultores de subsistência, controlando

73 efetivamente o trabalho dos ameríndios, mantendo, entretanto, relativamente intactos muitos dos seus costumes originais. O caboclo, de acordo com a autora, tornou-se um trunfo para os jesuítas no jogo de forças com a Coroa portuguesa, que reagiu expulsando os religiosos e estabelecendo um Diretório de índios, por meio do qual o processo de “caboclização”, iniciado com os jesuítas, foi completado. O objetivo do Diretório era criar suficiente mão-de-obra para o desenvolvimento econômico da região amazônica, no entanto os ameríndios “caboclizados” não serviram a esse propósito, pois os caboclos se dispersaram e foram literalmente cuidar de suas vidas. The Crown reacted to Jesuit successes by expelling them from the region and assuming responsibility for Amerindian affairs. The promulgation of the Directorate in 1757 provided the mechanism through which the caboclization of the Amerindian was completed. […] The goal of the Directorate was to convert and Christianize Amerinds and by so doing make them full fledged members of Portuguese society. Such transformation of the Amerindian populace would constitute a major assault upon their cultures and societies. However, the ultimate aim of the Directorate was to create a sufficient labor force for the economic development of the Amazon region. Caboclos, the transformed Amerindians, did not serve this purpose. Though “detribalized”, the caboclos dispersed throughout the interior of Amazonia engaged in subsistence activities predicated upon indigenous resource perceptions and technologies19 (PARKER, 1985, 38).

A integração em uma economia de mercado diversificada permitiu aos caboclos o retorno àquela mobilidade espacial que o sistema de missões os havia privado. Eles retornaram aos seus grupos de origem na floresta, tentando restaurar a forma de vida tribal, e aqueles que se dispersaram ao longo das margens dos rios, constituíram os primeiro grupos com um modo de vida livre e adaptado ao ambiente, que caracteriza o modo de vida caboclo (ZACCARIA, s.d.).

19

A Coroa reagiu ao sucesso dos jesuítas expulsando-os da região e assumindo a responsabilidade pelos negócios dos ameríndios. A promulgação do Diretório, em 1757, proveu o mecanismo pelo qual a caboclização do ameríndio foi completada. […] A meta do Diretório era converter e cristianizar os ameríndios e assim torná-los integralmente membros de sociedade portuguesa. Tal transformação da população ameríndia constituiria a principal agressão em suas culturas e sociedades. No entanto, o objetivo final do Diretório era criar mão-de-obra suficiente para o desenvolvimento econômico da região amazônica. Caboclos, os ameríndios transformados, não serviram a este propósito. Embora "destribalizados", os caboclos dispersaram ao longo do interior da Amazônia, engajando-se em atividades de subsistência baseadas em idéias e tecnologia indígenas.

74 Durante o século dezenove, quando por caboclo se entende o amazônida rural, nascido de pai branco e mãe índia, dois eventos fundamentais contribuíram para imprimir uma fisionomia precisa e conferir a ele algum sendo de identidade. Esses eventos determinantes para a definição do caboclo como ele é atualmente foram a Cabanagem (1834-1836) e o boom da borracha (1850-1920), com a conseqüente migração de colonos pobres do nordeste árido para a floresta. O movimento denominado Cabanagem, em especial, marca talvez o delineamento de uma possível “identidade” cabocla. Na opinião de Zaccaria (s.d.), mesmo que não seja possível conferir à Cabanagem a conotação de "luta de classe ou raça", porque é difícil identificar uma sólida base ideológica, não se pode considerá-la uma simples insurreição rural de massa, podendo esse evento ser visto como um momento fundamental para a tomada de consciência, pelo caboclo, da possibilidade de constituir para ele uma identidade própria. Por outro lado, na opinião de Parker (1985) a Cabanagem serviu para evidenciar a natureza pouco convincente do caboclo como revolucionário. Restringindo seus interesses a assuntos locais, ele mostrou-se incapaz de sustentar uma forte e contínua oposição ao poder econômico dominante. The true nature of the caboclo would only appear after the acid test of revolution, the cabanagem, revolt of 1835-1836 which plunged Amazonian society into a bloody confrontation between the rural caboclo and the urban seat of power. The molding of the caboclo into a revolutionary was a slow and imperfect process which ultimately failed. The caboclo proved to be a poor revolutionary, committed to only short range local issues, and unable to forge a sustained attack against those who controlled much of his economic foundation20 (PARKER, 1985, p. 51).

O fracasso do movimento, na visão desse autor, foi principalmente devido à mentalidade individualista do caboclo e à falta de uma base ideológica forte: The inability of the cabano leadership to mold the individual local bands into a united fighting force also reflected the emphasis on the individual. Local leaders, local groups, local grevances, all further reinforced the multiple focus of the Cabanagem. It was no wonder at all 20

A verdadeira natureza do caboclo só se apareceria depois do teste decisivo da revolução, a cabanagem, revolta de 1835-1836 que mergulhou a sociedade amazônica em uma confrontação sangrenta entre o caboclo rural e a base urbana do poder. A moldagem do caboclo em um revolucionário foi um processo lento e imperfeito que, no final das contas, falhou. O caboclo provou ser um revolucionário pobre, comprometido somente com assuntos locais, e incapaz de forjar um ataque contínuo contra aqueles que controlavam a maior parte de sua base econômica.

75 that the Cabanagem was characterized by a total lack of ideology or theoretical construct. In fact, the very nature of the individualist caboclo mentality doomed the cabanagem to failure as a change-producing mechanism. Individualism set the tone of the Cabanagem and mandated its demise21 (PARKER, 1985, p. 83).

Por seu turno, Souza (2001) considera o movimento um evento histórico singular e de grande importância na história do Amazonas, mas que não teve o devido relevo na ótica dos analistas. Os acontecimentos políticos e militares que constituíram a Cabanagem foram uma clara demonstração de que os agentes sociais da Amazônia estavam não apenas experimentando a desmontagem final do projeto colonial, mas que algo de muito profundo havia acontecido em seu componente humano e apontava para o nascimento de uma civilização original: os cabocos. Infelizmente, o pouco conhecimento da Cabanagem, a bibliografia excelente mas reduzida sobre o assunto, até mesmo uma ênfase na fase colonial e um certo viés conservador nas análises fizeram com que um fenômeno histórico tão importante, de natureza única nas Américas, fosse reduzido a um simples hiato de anarquia social das massas incultas, perdendo-se assim um dos fios da meada do processo histórico da Amazônia (SOUZA, 2001, p. 142).

O autor assevera que o movimento “transbordou como uma grande enchente nas margens conhecidas da luta política e fez renascer o orgulho de uma Amazônia indígena, que saiu de sua letargia para dar o troco de dois séculos e meio de atrocidades” (SOUZA, 2001, p. 143). O ciclo da borracha, na segunda metade do século XIX, introduziu na Amazônia uma massa de pequenos agricultores pobres provenientes de zonas áridas do nordeste do país, sobretudo do Ceará, de origem branca ou africana, modificando sensivelmente a estrutura do mundo caboclo e contribuindo para definir sua atual configuração. Nesse contexto, observa Cardoso de Oliveira (1978), a menor produção do índio é talvez o fator primordial que marca sua situação de caboclo, caracterizando-o, assim, como mão-de-obra menos qualificada:

21

A inabilidade da liderança cabana para moldar os grupos locais em uma força lutadora unida refletiu a ênfase no indivíduo. Líderes locais, grupos locais, dissidentes locais, tudo reforçou os focos múltiplos da Cabanagem. Não é de se espantar que a Cabanagem tenha sido caracterizado por uma falta total de ideologia ou construto teórico. Na realidade, a verdadeira natureza individualista dominante no caboclo sentenciou a cabanagem ao fracasso como um mecanismo produtor de mudança. O individualismo fixou o tom da Cabanagem e determinou a seu fim.

76 O branco “classe alta” fundamenta sua objetivação do caboclo no prejuízo que este lhe acarreta no cumprimento das atividades de produção; o branco “classe baixa”, baseado nas mesmas evidências de baixa produtividade, estigmatiza o caboclo com termos similares, todos expressando a diferença essencial entre seringueiros de etnia diversa: “o caboclo trabalha mal porque ele é mais pra bicho do que pra gente”. E muitos alardeiam que seu trabalho vale o de dez caboclos (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, 106).

Por outro ângulo, Weinstein (1985) endossa a opinião de Morán quanto à relevância do caboclo no período anterior e posterior ao boom da borracha na região amazônica. De acordo com esse estudioso, o caboclo tornou-se a figura central naquele período precisamente por sua flexibilidade no trato e absorção dos migrantes nordestinos: One might argue that this process of “caboclization” occurred only after the collapse, in response to a drastically different set of economic circumstances, and has little to do with the boom period itself. Yet I think it is more tenable to construct the opposite argument, even though it may involve some speculation: that the work rhythms, world view, and socioeconomic relations that we associate with the caboclo community before and after the rubber boom, actually had a direct impact on the boom period itself. I am not alone in this opinion. In the words of the noted Amazonianist, Emilio Moran (1974:139), “the caboclo became the chief figure in this sixty-year ‘rubber period’, both because of his ability to labor in the forest, and because of the caboclo culture’s ability to absorb the many migrants that came from the Northeast”22 (WEINSTEIN, 1985, 90-1).

Naquele contexto, aponta Weinstein, os seringueiros se constituíram como um grupo de pessoas ligadas em um mesmo sistema de relações de produção, visão de mundo e modo de resistência, independente das diferenças étnicas ou culturais originárias. No fundo era a figura do “caboclo” que sobressaía. Whether “indian”, “caboclo”, ou “nordestino” in origin, the seringueiros displayed certain common features as a class – that is, a group of people who stand in the same relation to the means of production – and developed a common world view and mode of resistance that had greater significance than the obvious differences in ethnic or cultural backgrounds. Combining production for the market with subsistence activities, following a semi-migratory existence, organizing production around the individual or femily unit, becoming dependent upon a patrão but 22

Alguém poderia argüir que este processo de "caboclização" só aconteceu depois do colapso, em resposta a um jogo drasticamente diferente de circunstâncias econômicas, e tem pouco para ver com o próprio período do boom. Eu ainda penso que é mais sustentável construir o argumento oposto, embora isso possa envolver alguma especulação: que os ritmos de trabalho, visão de mundo, e relações sócio-econômicas que nós associamos com a comunidade cabocla antes e depois do boom da borracha, de fato teve um impacto direto no próprio período de estrondo. Eu não estou só nesta opinião. Nas palavras do “amazonista” notável, Emílio Moran (1974:139), "o caboclo se tornou a figura principal nos sessenta anos do 'período de borracha', tanto por causa da habilidade dele para trabalhar na floresta, quanto por causa da habilidade da cultura do caboclo para absorver os muitos migrantes que vieram do Nordeste".

77 struggling to maintain some form of autonomy, the tapper became, or remained, a caboclo23 (WEINSTEIN, 1985, 105-6).

Além do boom extrativista, outro evento que marcou época na vida dos caboclos amazônicos foi, segundo Miller (1985), o projeto governamental de colonização em larga escala, a partir da abertura de rodovias. Com a Transamazônica, por exemplo, seria facilitada a emergência de comunidades ao longo da estrada, incrementando em conseqüência a ocupação regional. Miller estudou os impactos causados por essa estratégia desenvolvimentista na comunidade de Itaituba, que também sofria os efeitos da exploração nos garimpos, que atraíram não somente a população cabocla, mas também os índios mundurucus e um crescente número de imigrantes. A maioria dos depósitos minerais era fluvial, e os caboclos tiveram um papel chave no processo de extração e na descoberta das minas. No entanto, o sistema de trabalho nas minas, na relação patrão-empregado, era semelhante ao da borracha, caracterizando-se pela espoliação da mão-de-obra cabocla. A exploração mineral, reforça o autor, foi apenas um acréscimo na longa história de exploração econômica a que tem sido submetido o povo da floresta, forjando a constituição de uma única cultura reconhecidamente adaptada: a cultura cabocla. Apesar de uma sensível diminuição do conhecimento relativo à natureza e o incremento de técnicas predatórias, na opinião de Zaccaria (s.d.), o boom da borracha não parece haver tocado a natureza profunda do caboclo. Os nordestinos, por sua vez, se “caboclizaram” em vários âmbitos: depois de uma fase nas zonas de extração do látex, eles adotaram o comportamento nômade dos caboclos, seus meios de subsistência e parte de seu universo ideológico, adaptando-se a uma ambiente natural antes percebido como estranho e hostil. Mas também o caboclo, por meio da intensa fusão física e cultural, recebeu alguns elementos externos que deram à sua cultura o caráter profundamente sincrético da qual ela é hoje portadora. 23

Fossem “índios”, “caboclos” ou “nordestinos” na origem, os seringueiros exibiam certas características comuns como uma classe - quer dizer, um grupo das pessoas que se colocam em uma mesma posição relativamente aos meios de produção - e desenvolveram uma visão de mundo comum e modo de resistência que têm maior significação prática do que as óbvias diferenças étnicas ou culturais. Combinando produção para o mercado com atividades de subsistência, seguindo uma existência semi-migratória, organizando produção ao torno do indivíduo ou unidade familiar, tornando-se dependente de um patrão, mas lutando manter alguma forma de autonomia, o seringueiro se tornou, ou permaneceu, um caboclo.

78

2.4 O caboclo hoje O moderno caboclo amazônico revela em seu tipo físico, como na sua cultura, o caldeamento de elementos de origem ibérica e ameríndia, entrando nessa composição, em proporção menos significativa, também o elemento africano. A preponderância dos dois primeiros elementos foi condicionada por fatores peculiares ao ambiente amazônico, fazendo da Amazônia uma área ímpar no Brasil. Nesse personagem, segundo Galvão (1979) estão presentes os caracteres somáticos, seus componentes biológicos e culturais, alguns estereótipos que circulam na região a seu propósito e as subjetividades identitárias do caboclo e do habitante na cidade, associados à não valorização do contributo indígena na formação das respectivas sociedades. Quanto à forma como o índio e, por extensão, o caboclo, são vistos nas comunidades urbanas, Silva (1996) reporta-se à existência de um “mecanismo psicológico”

inconscientemente

utilizado

pelos citadinos

na

tentativa de

obscurecer a condição de mestiço, traduzido na prática por uma suposta (e forçada) valorização do índio como ancestral, não por consciência valorativa, mas por sua condição de personagem histórico, numa posição idealizada e distante da realidade social. A “identidade cabocla”, ao inverso, insiste em impor-se na evidência dos traços somáticos: No que tange aos valores que transitam no meio urbano, nos quais se pode registrar “uma tendência para valorizar o ancestral e as tradições tapuias” estas atitudes valorativas, na realidade, mascaram a rejeição e o preconceito do homem urbano ou urbanizado em relação ao índio, cujas ancestralidade e tradições são valorizadas apenas e só porque os índios são personagens da história, portanto, distanciados e idealizados (e deformados) no tempo histórico, e/ou se encontram, espacialmente, muito afastados da floresta. Por diferentes razões, este vínculo identitário é recusado e rejeitado na subjetividade de muitos e na ação prática de outros. [...] A ação prática pode concretizar-se em atitudes anti-índio, na difusão de idéias estereotipadas a seu respeito e/ou, por interesses econômicos, buscar subtrair-lhes direitos (SILVA,1996, p. 228).

79 As lentes pelas quais os indivíduos são vistos na Amazônia e classificados numa ou noutra categoria étnico-cultural, segundo esse autor (p. 231), têm suas origens constitutivas, por um lado, nas culturas (e nos estereótipos que nelas estão contidos) e, por outro lado, nas posições de classe do indivíduo que julga (e do grupo de semelhantes a que ele pertence) e do indivíduo julgado e classificado com esta ou aquela identidade.

Na opinião de Torres (2003, p. 25), no passado a imagem dos indígenas como canibais e seres degradados serviu como pretexto para legitimar a escravidão e naturalizar a inferioridade étnica, e hoje serve para justificar a ausência de políticas públicas condizentes com as reais necessidades regionais. Desde a conquista até os dias atuais, ao lado de processos intensos de exploração do território amazônico, índios e cabocos24 foram e continuam sendo considerados como “grupos sociais acomodados, passivos, preguiçosos e de baixa estatura moral.” Lima (1999) reforça essa proposição sobre a estereotipia como forma de mascarar a dificuldade de compreensão do universo amazônico, que se traduz em concepções contraditórias sobre a natureza e os seus habitantes, representados pelo caboclo. Segundo ela: O termo constitui uma categoria intermediária no sistema de classificação social, situada entre categorias sociais opostas. Inicialmente a oposição era designada exclusivamente em termos de raça. Agora, a definição do caboclo implica uma série de oposições: pobre versus rico, selvagem versus civilizado, floresta versus cidade e, na avaliação moral, indolente versus empreendedor. [...] O meio ambiente amazônico em si é outra fonte de desacordo e é definido ora como abundante, ora como agressivo. [...] O estereótipo caboclo e as opiniões que se têm sobre as qualidades do meio ambiente são usados para explicar a pobreza humana e o subdesenvolvimento da região (LIMA, 1999, p. 20).

Do estereótipo étnico do ameríndio, por sua vez, vem a idéia de que os caboclos são culpados por sua má situação social. Seria, assim, a bagagem cultural indígena responsável pela mesma “indisposição” para esforços pesados atribuída aos índios. Oposto ao ideal de produtividade estabelece-se a “preguiça” do caboclo, suposta herança da ociosidade indígena. 24

Grafia pela qual a autora optou para referir-se ao “caboclo” em sua tese de doutoramento.

80 Conjugada à idéia de preguiça vem a de indolência e acomodação (no sentido de conformismo), tendo como justificativa as poucas conquistas econômicas do caboclo, evidenciadas principalmente pela modéstia de sua habitação e hábitos de vida. No entanto, pondera Lima, não são consideradas suas condições de vida, no exuberante e complexo meio ambiente amazônico. Essa decantada indolência, particularmente, é analisada por Souza (2001) por ângulo totalmente contrário à acepção comum. Como anteriormente mencionado, o autor chama de leseira a um comportamento que, segundo ele, não corresponde ao sentido ordinário do termo, mas traduz um conceito filosóficoexistencial específico do povo caboco, usado como mecanismo de sobrevivência após as frustrações e decepções historicamente vivenciadas e que culminaram com o fracasso do movimento da Cabanagem. Souza faz coro aos opositores a essa imagem negativa do caboclo atrelada freqüentemente justamente à imagem de indolente. Viana Moog, por exemplo, citado por Oliveira Filho (1979), exalta as qualidades adaptativas do caboclo, o único capaz de vencer as dificuldades que um ambiente de grande complexidade ecológica como a Amazônia apresenta, qualidade esta também enfatizada por Miller (1985). Lima (1999, p 18) também cita a consideração de Moog quanto ao caboclo como “um bom equilíbrio racial”, no qual “as qualidades das raças índia e branca são combinadas e produzem uma raça híbrida bem adaptada, capaz de conviver com o meio ambiente social e ecológico amazônico”: E embora Moog confirme a falta de ambição do caboclo, é só para exaltar o fato de que essa qualidade lhe deu meios para levar a vida no vale amazônico. Enquanto muitos migrantes nordestinos retornaram para casa depois do colapso da economia da borracha, o caboclo permaneceu, apesar das condições econômicas desfavoráveis. “Se não fosse pelo caboclo sem ambições, não teria sido difícil prever o futuro da população amazônica. Graças ao [caboclo]... a civilização amazônica continua sua marcha” (idem, p. 18).

Álvaro Maia (apud SANTOS, 2002) reforça essa idéia, atribuindo ao caboclo o “desbravamento” da Amazônia, pois foram eles que serviram de guias para a entrada na região, por seu conhecimento das florestas e dos rios, rejeitando ferozmente os atributos de “indolente” e “covarde” a ele impingidos.

81 Além disso, coube também ao caboclo, segundo o autor, em meio a uma natureza selvagem e hostil, a tarefa de descobrir as formas de trabalho possíveis. Para Alcarde (1962), o nativo da Amazônia chega a ser um herói anônimo, um indivíduo de extraordinária resistência física e moral. O seu defeito, confundido com indolência, é não ter ambição. Lima (1999, p. 18-9) diz que é possível observar tanto na literatura amazônica quanto no discurso regional exaltação às qualidades do caboclo, particularmente no interior do Amazonas. “Na idealização positiva, o caboclo é designado como alegre e sábio, como se diz, porque se satisfaz com a pura existência e é, portanto, capaz de aproveitar a vida com mínimo esforço”. Na literatura acadêmica também se encontram avaliações positivas como a de Morán (1990), entre outros, que tem a cultura cabocla como o sistema humano adaptado mais importante da Amazônia. Na opinião de Silva (1996, p. 231), as diferentes formas de perceber o caboclo são complementares entre si e expressam a complexidade deste ser social, nas diferentes formas como ele se constitui, no interior do processo de construção da sociedade amazônica, na dinâmica das relações entre as classes, ao longo do tempo histórico, na sua inserção na sociedade de classes como trabalhador braçal e nas subjetividades identitárias, que exprimem, na vida social, por um lado, o ego, o si, o mesmo, e por outro lado o outro, a alteridade.”

A concepção de “caboclo” é referida por ele como uma construção subjetiva, que implica em “sentir-se” como tal: O ser caboclo implica em ser objetivamente sentido porque é subjetivamente constituído. O homem urbano ou urbanizado, qualquer que seja a classe social em que se insira, mesmo quanto possui caracteres somáticos similares aos do caboclo, não se sente caboclo, tem consciência de que é detentor de outras expressões de cultura, ainda que nestas possam estar – e na Amazônia estão – traços de origem indígenacabocla (SILVA, 1996, p. 229).

É a percepção empírica desse (não)-ser caboclo nos dias de hoje, no contexto local, que se afigura indistinta e repleta de ambigüidades, observando-se que a prática nas relações cotidianas, na maioria das vezes, contraria o discurso dos sujeitos sobre o assunto, ou seja, até mesmo aquele de diz “ser” caboclo freqüentemente evidencia não se “sentir” como tal.

82

O exercício interpretativo a seguir pretende promover uma articulação dialética entre as instâncias básicas - nível das subjetividades e dos fatos empíricos e o das interpretações teóricas - nas quais, segundo Silva, estão assentadas as possibilidades de estudos sobre o caboclo da Amazônia, tendo por base a realidade de Manaus, com o propósito maior, inerente à praxis acadêmica, de ampliar um pouco mais o campo de discussão a respeito de tema tão instigante.

3. RECOLHENDO FRAGMENTOS: UMA PERSPECTIVA DE COMPREENSÃO DAS REPRESENTAÇÕES

Em princípio, o espelho reflete a imagem que sobre ele se debruça, como uma espécie de duplo do real... (...) sabemos que a imagem refletida depende do olhar de quem contempla e, como tal, o espelho pode operar de forma invertida e deformante.25 25

Sandra Jatahy PESAVENTO, em O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre.

83

É

fato que qualquer proposta de estudo sobre o caboclo amazônico corre o risco de se instaurar, desde a sua gênese, em bases movediças. Não somente pela carência de um saber científico estruturado sobre o assunto,

mas também porque é um objeto que remete a amplas e diversificadas possibilidades de elaboração e interpretação e inúmeras outras conexões teóricas nas quais se faz necessário “escorar” o pensamento. Alguns construtos teóricos, portanto, são indispensáveis para a tarefa analítica e interpretativa que se pretende na composição deste estudo, sendo fundamentais as noções de imaginário, cultura, estereótipo, alteridade e representações para a articulação teórico-prática a ser empreendida. A teoria das representações vem contribuir, pela via cognitiva, para a integração do estranho em familiar e mesmo, readequando o passado ao presente, conforme Arruda (1998, p. 43) “ ... estranhar – elementos até então familiares.” Na proposição de Moscovici (1978) essa integração é feita pelo processo de ancoragem, pelo qual se procura encontrar um lugar para encaixar o nãofamiliar, em razão da tendência generalizada de rechaço ao estranho, o diferente, assim como de informações, sensações e percepções que possam causar desconforto. Na maior parte das vezes esse movimento implica juízo de valor, pois a ancoragem pressupõe uma classificação dentro de alguma categoria que historicamente comporta esta dimensão valorativa. Castoriadis (1982, p. 375) diz que a representação “não pertence ao sujeito, ela é, para começar, o sujeito”, referindo-se a esta como a apresentação perpétua, o fluxo incessante no e pelo qual o que quer que seja se dá. [...] A representação não é decalque do espetáculo do mundo; ela é aquilo em que e porque ergue-se, a partir de um momento um mundo. Ela não é aquilo que fornece “imagens” empobrecidas das “coisas”, mas aquilo do qual certos segmentos aumentam de um índice de realidade e se “estabilizam”, bem ou mal e sem que esta estabilização seja jamais definitivamente garantida (idem, p. 375).

Um traço distintivo do ser humano é, sem dúvida, a capacidade de verbalização. Pela fala o indivíduo, no seu meio social, é capaz de transformar o

84 outro e ser ao mesmo tempo transformado. Segundo Lane (1994), a linguagem é um produto da coletividade e reproduz por meio dos significados das palavras e frases os conhecimentos e valores associados às práticas sociais. Esta proposição nos induz à idéia de que a representação social é em grande parte construída

no

processo

de

comunicação,

implicando

a

sua

análise

necessariamente na análise do discurso do indivíduo (no sentido lato, não como técnica interpretativa) que, por meio de suas escolhas e verbalizações, contradições e lacunas, manifesta a sua visão de mundo e de si mesmo. A linguagem é também considerada por Minayo (1996) como uma medição privilegiada para compreensão das representações sociais: As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama para as relações sociais em todos os domínios. Bakhtin chama a atenção para o fato de que cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discursos, determinado pelas relações de produção e pela estrutura sócio-política. Portanto a palavra é a arena onde se confrontam interesses contraditórios, veiculando e sofrendo os efeitos das lutas das classes, servindo ao mesmo tempo como instrumento e como material (MINAYO, 1996, p. 174).

Por sua vez, a linguagem expressa a elaboração de um pensamento que evidencia uma determinada forma de enxergar a sociedade e suas relações internas e externas, pensamento esse que não é homogêneo, mas uma sucessão de consensos, com predominância de determinada formação ideológica em determinado momento, mas sempre sendo adaptado, alterando a sua trajetória conforme as variações do meio. A predominância de uma determinada concepção social, de acordo com Weigel (2000), vai depender de constante negociação e equilíbrio mutante. A explicação

e

interpretação

desse

pensamento

são

possibilitados

pela

hermenêutica, pela qual, defende Minayo (1996, p. 220), se pode alcançar mais do que uma interpretação literal ou averiguação de sentido das expressões verbais, mas “a compreensão simbólica de uma realidade a ser penetrada”. Pela via reflexiva da hermenêutica dialética, nos moldes propostos por Minayo (1996) como um “caminho do pensamento” tenta-se alcançar neste trabalho uma compreensão mais aproximada quanto possível desse pensamento social sobre o caboclo no contexto atual. Como enfatiza a autora, em

85 concordância com o pensamento de Lukács, nossos conhecimentos são apenas aproximações da realidade sendo, por isso, relativos, mas também são absolutos por representarem a efetiva aproximação da realidade objetiva existente independente de nós, formando, portanto, uma unidade dialética. Mas, questiona Minayo (1996, p. 238), “como podemos garantir a desejada coincidência entre o pensamento sobre a realidade e a própria realidade?” A resposta a essa indagação pressupõe um campo aberto de debate que engloba não somente a produção empírica, mas a própria concepção da “realidade” a ser estudada, pois o que é ou não “real” é uma construção subjetiva. Dentro da perspectiva dialética da validade da pesquisa, a prática não pode ser pensada apenas como atividade externa de transformação, mas é importante incluí-la como compromisso social, e enfatizar a dimensão interior, ontológica do ser humano enquanto criador, e da realidade sócio-histórica como construção humana objetivada. Em relação ao saber, é necessário abranger teoria e prática enquanto aproximação da realidade, e teoria capaz de incluir e compreender a transformação social: critérios ao mesmo tempo internos e externos que provam a lógica e a sociológica do conhecimento (idem, p. 246).

A opção por este método para a análise de conteúdo é devida, também, à idéia de que desvendar e entender melhor o caboclo na sua dimensão sóciohistórica e psicológica é entender também a nossa história pessoal e social, nossos condicionamentos e condicionantes. Ensina Ricoeur (1978, p, 18) que “toda hermenêutica é, implícita ou explicitamente, compreensão de si mesmo mediante a compreensão do outro” e por meio dessa compreensão o que o intérprete persegue é a ampliação da compreensão de si próprio enquanto ser social. Tal proposição tem reforço em Castoriadis (1982), para quem a busca em elucidar o ontem e o depois da “humanidade” só tem sentido como forma de elucidação existencial própria. Diz ele que o fato de que não possamos compreender o outrora e o alhures da humanidade a não ser em função de nossas próprias categorias [...] não traduz simplesmente as condições de todo conhecimento histórico e seu enraizamento, mas o fato de que toda elucidação que empreendemos é finalmente interessada, é para nós em sentido efetivo, porque não existimos para dizer o que é, mas para fazer ser o que não é [...]. Nosso projeto de elucidação das formas passadas da existência da humanidade

86 só adquire sentido pleno como momento do projeto de elucidação de nossa existência... (CASTORIADIS, 1982, p. 197).

A dinâmica do processo de construção social, por sua vez, em ininterrupto movimento, tem na visão dialética um enfoque perfeitamente ajustado à necessidade de analisar um objeto que não pode ser imobilizado no tempo e no espaço e está intimamente associado a outros objetos e fenômenos. Entende-se que as representações do caboclo se insiram nesta perspectiva, principalmente pelas suas determinações históricas. Em concordância ao pensamento de Engels, afirma Lakatos (1986) que existe uma ligação intrínseca e necessária entre elementos tanto da natureza quanto da sociedade, ambos compostos de objetos e fenômenos em estreita ligação, dependência e condicionamento recíprocos. Segundo ele, o método dialético considera que nenhum fenômeno da natureza pode ser compreendido fora dos fenômenos circundantes, pelos quais é condicionado. Todos os aspectos da realidade (da natureza ou da sociedade) prendem-se por laços necessários e recíprocos. Essa lei leva à necessidade de avaliar uma situação, um acontecimento, uma tarefa, uma coisa, do ponto de vista das condições que os determinam e, assim, os explicam (LAKATOS, 1986, p. 97).

A união da hermenêutica com a dialética na concepção de Minayo (1996, p. 227), conduz o intérprete ao entendimento da comunicação oral ou escrita como resultante de um processo social e de conhecimento, cada um com seu significado específico, fruto de variadas determinações. O texto ou fala “é a representação social de uma realidade que se mostra e se esconde na comunicação, onde o autor e o intérprete são parte de um mesmo contexto éticopolítico...”. Como a fenomenologia, a hermenêutica traz para o primeiro plano, no tratamento dos dados, as condições cotidianas da vida e promove o esclarecimento sobre as estruturas profundas desse mundo do dia-a-dia. [...] Ela se introduz no tempo presente, na cultura de um grupo determinado para buscar o sentido que vem do passado ou de uma visão de mundo própria, envolvendo num único movimento o ser que compreende e aquilo que é compreendido (MINAYO, 1996, p. 221).

O estudo das representações sociais impõe a necessidade de utilização de técnicas de coleta e de análise de dados que possam recuperar da melhor maneira possível os elementos constitutivos da representação ou seu conteúdo,

87 conhecer a organização dos seus elementos e as relações entre os seus constituintes, dentro de um contexto sócio-histórico no qual estejam inseridos. Sendo as representações do caboclo amazônico o que importa interpretar, empreendeu-se a tentativa de partir do aparente “caos” das informações recolhidas no campo para fazer delas expressão da visão social de mundo do segmento “caboclo” em relação à sociedade dominante, revelando, ao mesmo tempo, sua especificidade de concepção e de participação no contexto circundante. Considerando que não é possível conceber a interpretação como uma verdade absoluta, uma vez que não existe uma única interpretação, a tentativa de análise aqui esboçada é um exercício de reflexão sobre as representações emergentes dos discursos com a utilização de um modelo explicativo, que pressupõe concepções teóricas que direcionam o curso dessas interpretações. A interpretação dialética nos faz ver que as concepções sobre o caboclo são resultado de condições anteriores e exteriores ao grupo entrevistado, mas ao mesmo tempo específicas. Elas são fruto de condições dadas, mas são também produtos de sua ação transformadora sobre o meio social e devem ser entendidas como resultantes e como manifestações de condicionamentos sócio-históricos que se vinculam a tradições culturais, concepções dominantes e veiculadas e a interrelação de tudo isso. Essas representações constituem um fenômeno social não apenas por que expressam socialmente, mas também porque são manifestações da vida material, dos limites sociais e do imaginário coletivo. A escolha das representações do caboclo amazônico como objeto de pesquisa foi feita em razão do interesse despertado em vista de evidências empíricas quanto à existência (ou resistência) de estereótipos fortemente arraigados na cultura local relacionados ao termo, especificamente na cidade de Manaus. Considerando que o complexo urbano reúne indivíduos de diferentes procedências, tanto do interior do Estado quanto de outros estados brasileiros, especialmente do nordeste, considerou-se o contexto da capital um locus privilegiado para a realização deste trabalho de pesquisa, pressupondo-se a

88 heterogeneidade e diversidade de relações, como um dado capaz de evidenciar a força e o grau de enraizamento de determinada idéia. Jodelet enfatiza os suportes pelos quais as representações são veiculadas e sedimentadas na vida cotidiana: Esses suportes são basicamente os discursos das pessoas e grupos que mantêm tais representações, mas também os seus comportamentos e as práticas sociais nas quais estes se manifestam. São ainda os documentos e registros em que os discursos, práticas e comportamentos ficam institucionalmente fixados e codificados. Finalmente, são as interpretações que eles recebem nos meios de comunicação de massa que dessa forma retroalimentam as comunicações, contribuindo para sua manutenção ou sua transformação... (JODELET apud SÁ, 1998, p 73-4).

É fato reconhecido que a região Norte do país, não somente pela distância geográfica, é vista de maneira estereotipada pelos habitantes do outro extremo. Tal afirmação é facilmente comprovável em situações de contato entre pessoas do sul com as do norte, especialmente do Amazonas, em vista do nível de desconhecimento que se evidencia “dos de lá” em relação “aos daqui”. Com seu fantástico poder de penetração em todos os níveis sociais, a mídia nacional cumpre com grande eficiência o papel que na época da conquista coube aos cronistas: disseminar e reforçar os estereótipos e preconceitos, entendendo-se “preconceito” não com a conotação negativa com que é comumente usado, mas na sua acepção mais objetiva de “conceito antecipado” e “opinião sem base séria”.26 Verificar até que ponto esses estereótipos e preconceitos relativamente ao caboclo estão presentes entre a população local, constitui, assim, o objetivo maior desta investigação, considerando que tem havido nos últimos tempos uma certa “movimentação” no sentido de “resgate” e valorização das chamadas raízes culturais amazônicas. A Amazônia na última década, por sinal, virou quase que um modismo, em razão da onda ambientalista que tomou conta do planeta. Apressou-se então a administração pública em incentivar a “cultura de raiz”, injetando recursos em manifestações folclóricas tipo exportação como o boi 26

Cf. Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss.

89 bumbá de Parintins, por exemplo, além de outras ações de menor vulto, voltadas para o artesanato, música etc. De uns tempos para cá tem havido como que uma tentativa de “retorno às raízes”, uma espécie de chamamento “de sangue”, no caso, sangue indígena. Mas, até que ponto essa re-valorização (se é que a cultura indígena foi algum dia, valorizada na região) é real? Não seria essa valorização das origens uma “tradição inventada”27? Ou seja, está mesmo havendo um processo de conscientização cultural, no sentido de que a população de Manaus, em grande parte resultante de miscigenação com antecedentes indígenas, está voltando seu interesse e agregando valor às coisas “da terra”? Será mesmo que os produtos e produções “típicos” estão significando para os amazonenses mais do que significam para os “gringos”, ou seja, produtos exóticos? Nesse caso, não haveria para o nativo como empreender uma viagem de “resgate” às origens culturais sem situar-se como caboclo. Não seria possível ignorar esse “elo”, esse “quase”, esse híbrido chamado caboclo que, a despeito da forma como tem sido visto e tratado, permanece como “marca d’água” no pano de fundo da história na Amazônia brasileira. No contexto citadino, pelo menos, o que sobressai é um alheamento desses valores culturais, e o caboclo, como referência identitária ou categoria social, parece ter deixado de existir. Os jovens evidenciam com mais nitidez esse afastamento das origens, não somente nas expressões cotidianas, nas posturas, nas comunicações, mas também no silêncio e na ausência de definição pessoal. Por isso foram os jovens os escolhidos para constituir a amostra na pesquisa de campo, por constituírem uma categoria específica como indivíduos em um momento particularmente importante, tanto na elaboração quanto na concretização de conceitos. Ao mesmo tempo em que, teoricamente, estão abertos a variadas influências, os jovens costumam expressar de forma mais transparente e espontânea suas opiniões e estão em fase de maturação dos 27

Eric HOBSBAWM e Terence RANGER, no livro A invenção das tradições exploram o tema. A expressão é aqui utilizada em sentido aproximado à idéia de que, com vista a determinados fins, faz-se a utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições, podendo haver o enxerto dessas novas tradições “inventadas” nas velhas (originais), usando-se a história como legitimadora das ações e como “cimento da coesão grupal”. De acordo com os autores, quanto os velhos usos e costumes se conservam, não é necessário recuperar nem inventar tradições.

90 conceitos apreendidos, assumindo, em alguns casos, de maneira mais autêntica suas próprias idéias, formatadas na convivência familiar e social. Como estudantes de nível médio, eles em tese estão se preparando para encarar uma etapa mais séria da vida, uma opção profissional, o que implica em capacidade de escolha e discernimento. Além disso, de acordo com as novas orientações curriculares, a questão regional é obrigatoriamente enfocada no processo educacional. O instrumento selecionado para abordagem dessa amostra foi uma entrevista semi-estruturada, elaborada de modo a tentar obter dados relevantes sobre idéias, crenças, opiniões e condutas do indivíduo, assim como possíveis razões conscientes e inconscientes dessas construções. E também revelar, dentro das limitações do instrumento, sistemas de valores e normas e as representações do grupo na qual o indivíduo está inserido, nas condições sóciohistóricas e culturais específicas do momento. O roteiro da entrevista foi feito a partir dos elementos que emergiram no grupo focal, composto por nove voluntários, alunos de nível médio da Escola Estadual Ernesto Penafort, na zona leste de Manaus, sem distinção de gênero ou idade, convidados a participar de um “papo” sobre cultura amazônica. Com a aquiescência da direção da unidade, a reunião foi feita na cantina da escola, no horário de aula, enquanto os outros alunos estavam em sala, e durou pouco mais de uma hora. Foi informado a eles que aquela atividade integrava uma pesquisa acadêmica, e que não tinha finalidade de avaliá-los ou instruí-los, mas somente de coleta de dados preliminares. Os estudantes pareciam estar à vontade, na medida do possível, mas sempre com uma margem de reserva pelo fato de saberem que estavam sendo observados. O início da abordagem foi dificultado pelo receio de não suscitar uma discussão proveitosa. A opção foi por um assunto que mobilizasse o interesse do grupo e provocasse a emergência dos dados espontaneamente. O “carnaboi”, uma criação que une as coreografias das apresentações do boi bumbá com ritmo de carnaval, foi a opção escolhida, tendo sido questionado de início o que eles achavam do evento como manifestação cultural. As respostas foram na maioria

91 favoráveis, e as palavras “cultura”, “resgate”, “tradição”, “identidade” e “indígena” foram recorrentes. Progredindo na discussão, o termo “caboclo” foi naturalmente introduzido, quando alguém disse que gostava de boi porque tinha “sangue caboclo”, sendo contestado por outro que alegou que o “povo amazonense era descendente de índio, não de caboclo.” Emergiram da discussão as associações mais comuns, como: homem do interior, homem da roça, descendente de índio, ribeirinho, pescador, matuto, mestiço, preguiçoso, homem rural, pessoa da terra, pessoa sem estudos, pessoa ignorante, mateiro, traiçoeiro, homem feio etc. Um dado relevante observado foi que, sempre que instigados, havia uma certa resistência a falar no assunto, como se não interessasse. “Não tem muito o que falar sobre caboclo”, disse um deles, “porque isso é coisa de gente do interior”. O roteiro da entrevista foi elaborado, assim, considerando as dificuldades de acesso às informações pretendidas por via direta, tomando por base também alguns dados para direcionamento das perguntas como, por exemplo, qual a imagem física que eles têm sobre o caboclo, nível cultural e intelectual, capacidade produtiva etc. Procurou-se, então, de acordo com as orientações de Jodelet (1998), além das questões objetivas sobre o contexto sócio-familiar do entrevistado, incluir perguntas relacionadas mais concretamente às suas experiências cotidianas, passando sutilmente a questões envolvendo reflexões mais abstratas e julgamentos, de forma a encaminhar a entrevista para os conteúdos que não são revelados espontaneamente e que, muitas vezes, nem são verbalizados. Esse “não dito”, na opinião de Jodelet, geralmente é o principal conteúdo da representação. A classificação dos dados foi feita a partir do material recolhido, em relação com o embasamento teórico dos pressupostos e hipóteses estabelecidos a partir de leitura exaustiva e repetida dos textos (leitura flutuante), com o fim de apreender as estruturas de relevância dos atores sociais e as idéias centrais que buscam transmitir. As categorias analíticas teoricamente estabelecidas para

92 norteamento da investigação foram relacionadas às categorias empíricas, buscando-se as relações dialéticas entre elas. Foram constituídos, com base nessa classificação, unidades de registro ou significação, considerando o conteúdo empiricamente manifestado. A partir dessas unidades, confrontando os conteúdos empíricos com as variáveis teóricas já esboçadas, procedeu-se ao “enxugamento” da classificação com vista ao aprofundamento do conteúdo das mensagens, discriminando-se os temas mais relevantes e reagrupando-os em torno de categorias centrais entre si concatenadas.

3.1 Conhecendo o terreno: o real e o imaginário nas representações Conforme mencionado, os sujeitos da pesquisa são 30 jovens estudantes do ensino médio de duas escolas públicas de Manaus. Em princípio pretendeu-se restringir a faixa etária de 15 a 18 anos, em razão de ser esta a média de idade de estudantes deste nível de ensino. Constatou-se, entretanto, que esta delimitação não seria viável porque a participação seria voluntária, e em escolas da rede pública essa faixa é bastante flexível. Na Escola Estadual Francisco Albuquerque, localizada na rua Joaquim Nabuco, no centro da cidade, foram entrevistados alunos do primeiro ano, turno noturno. Um bom número de alunos da turma na qual foram feitas as entrevistas, tinham idade acima de vinte e cinco anos, havendo, inclusive, alunos com mais de trinta anos. Foi esclarecido, então, que a pesquisa propunha uma faixa de idade específica, tendo esta sido estendida para até 20 anos, tendo em conta a realidade ali evidenciada, onde jovens que já poderiam estar cursando a universidade iniciavam o ensino médio. A escolha dessa escola se deu em razão de sua localização: por estar situada no centro da cidade, teoricamente a sua clientela seria constituída de indivíduos de bairros diversos, possibilitando uma amostra mais heterogênea. Quinze outros alunos, do terceiro ano, foram entrevistados na Escola Estadual Ernesto Penafort, na zona leste de Manaus. A escolha de uma escola

93 desse bairro periférico da cidade foi feita por conta das características físicas predominantes nos moradores, em grande parte evidenciando os traços somáticos indígenas mais conhecidos, ou seja, cor morena, cabelos lisos, rosto arredondado, olhos pretos etc. O interesse neste aspecto particular era saber se um indivíduo que fisicamente poderia ser apontado como caboclo se identificaria como tal, dado considerado importante para algumas elaborações teóricas previamente esboçadas. Na transcrição resumida das entrevistas foi feita uma numeração seqüencial de 1 a 30, sendo os primeiros 15 entrevistados os alunos do primeiro ano da Escola Estadual Professor “Francisco Albuquerque”, e os 15 subseqüentes os alunos do terceiro ano da Escola Estadual “Ernesto Penafort”. Para efeito de melhor visualização e para facilitar a explanação, foram discriminadas em um quadro-resumo as informações gerais sobre o contexto dos entrevistados (sexo, idade, cor, naturalidade, local de moradia, nível de instrução e ocupação dos pais) e, adicionalmente, um dado considerado importante para este estudo, relativo às fontes de informação mais utilizadas, além da escola. O dado quanto à “cor” dos entrevistados também foi destacado como relevante em virtude da pesquisa estar voltada para uma categoria cujas características somáticas constituem base para um dos estereótipos a ela atribuídos: a predominância dos traços indígenas nos caracteres físicos.

Quadro Resumo – Informações Gerais N º

Natur al

S exo

I dad e

1

AM

F

2

MA

3

Cor

Onde reside

Instrução pais

Ocupação pais

Fontes informação

17

more na

Petrópoli s

Pai nv. fund. Mãe fund. incpl..

Pai mecânico e mãe doméstica

Quadrinhos e TV (MTV)

F

20

negr a

Alfredo Nascime nto

Mãe fund. incompl.

Mãe doméstica

Revistas e TV

MA

F

20

more na

Grande Vitória

Pai e mãe nível fundamental

Pai garimpeiro e mãe vendedora

Bíblia, jornal e conversa

4

PA

M

20

more no

Nova Conquist a

Pai e mãe fundam. Incompl.

Pai agricultor e mãe doméstica

Livros diversos, TV (jornalísticos)

5

AM

F

19

branc a

São Francisco

(Pai separado)

Mãe industriária

Romances TV (filmes,novela

94 Mãe nível médio

s)

6

RO

M

16

negro

Jorge Teixeira

Pai fund. incompl. Mãe ensino médio

Pai lanterneiro e mãe pintora

Revistas e TV (novela, desenho)

7

AM

M

19

moren o

Educandos

Pai alfabetizado Mãe fund. incompl.

Pai pescador doméstica

Revista Veja e TV (desenho)

8

AM

M

19

moren o

Compensa

Pai e mãe nv. fund.

Pai comerciante Mãe doméstica

Revistas e TV

9

MT

F

20

moren a

Japiim

Pai e mãe nível fundamental

Pai vendedor doméstica

Bíblia e televisão (jornal e novela)

10

MA

M

19

branc o

Novo Israel

Mãe fundamental

Mãe cobradora

Televisão ( filmes)

11

AM

F

18

branc a

São Lázaro

Pai médio incompl. Mãe fundamental

Pai “faz tudo” e mãe vende roupa

Televisão

12

AM

M

15

pardo

São José Operário

Pai nível médio Mãe md. incompl.

Pai eletricista e mãe dona de casa

Revistas e televisão

1 3

AM

M

18

branc o

Campos Elíseos

Pai e mãe nível superior

Pai administrador e mãe func. Pública

Revistas e televisão

1 4

AM

M

17

more no

Jardim Petrópoli s

Pai e mãe nível médio

Pai téc. administr. e mãe doméstica

Rádio e TV (progs. policiais)

1 5

AM

M

15

pard o

São José

Pai e mãe nv médio

Pai aux. administr. e mãe artesã

Jornal, livros de poesia, TV

1 6

AM

F

17

more no

São José dos Campos

Pai nível superior Mãe nível médio

Pai contabilista e mãe dona de casa

Revistas e TV (filmes,desenh os)

1 7

AM

F

17

more na

São José II

Pai nível médio Mãe fundamental

Pai soldador e mãe dona de casa

Livros de química e TV (novelas)

1 8

AM

M

17

more no

Tancredo Neves

Pai médio incompl. Mãe fundamental

Pai motorista e mãe dona de casa

Jornais e Tv (filmes, desenho)

1 9

AM

F

17

branc a

Cidade de Deus

Pai e mãe nível fundamental

Pai e mãe comerciantes

Romances, televisão (novela)

2 0

AM

M

19

more no

São José

Pai e mãe nível médio incompleto

Pai e mãe vendedores

Revistas e TV (filmes e novelas)

2 1

AM

F

18

more no

Tancredo Neves

Pai e mãe nível fundamental

Pai vendedor e mãe dona de casa

Revistas e televisão

2 2

AM

F

19

branc a

São José II

Pai e mãe nível fundamental

Pai autônomo e mãe dona de casa

Livros literatura, jornais, TV

2 3

AM

M

19

more no

São José I

Pai fundamental Mãe nv. superior

Pai fotógrafo e mãe professora

Televisão (jornais,progra mas)

2 4

PA

F

16

branc a

Novo Aleixo

Pai e mãe nível fundamental

Pai comerciante e mãe dona de casa

Rev. educativas e TV (noticiário)

2 5

AM

F

18

more na

São José III

Pai e mãe nv. médio

Pai oper. máquina e mãe revisora

Revistas variadas, TV prg. educativos

2 6

AM

M

16

branc o

São José III

Pai nível médio Mãe falecida

Pai funcionário público

Palavras cruzadas, TV (filmes)

2 7

PA

F

18

more na

Zumbi I

Pai nível superior Mãe nível.

Pai empresário e mãe tec. enferm.

Televisão (filmes e novelas)

Mãe

Mãe

95 médio 2 8

AM

F

19

more na

São José I

Pai nível médio Mãe fundamental

Pai aposentado e mãe serv. gerais

Livros literatura e religião e TV

2 9

RR

F

18

pard a

Comunid ade de Deus

Ambos nível fundamental

Pai autônomo doméstica

Revistas diversas, jornal, TV

3 0

AM

M

20

more no

Tancredo Neves

Pai fundamental Mãe nível. médio

Pai segurança Mãe doméstica

Mãe

Livros, revistas, TV

O quadro pretende sintetizar o plano da realidade objetiva quanto ao grupo amostral, esboçando a conjuntura sócio-econômica e cultural na qual o grupo se insere e sua participação enquanto ator social; condições de renda (no caso familiar), moradia e distribuição geográfica, além dos recursos informacionais aos quais o grupo tem acesso, de maneira a subsidiar o estudo das condições de produção e circulação das representações sociais. Interessa saber quais as relações que a emergência e a difusão das representações sociais têm com valores, modelos culturais, comunicação interindividual, institucional e de massa, contexto ideológico e histórico, inserção social dos sujeitos etc. Do ponto de vista histórico, a postura interpretativa dialética [...] toma como centro da análise a prática social, a ação humana e a considera como resultado de condições anteriores, exteriores mas também como práxis. Isto é, o ato humano que atravessa o meio social conserva as determinações, mas transforma o mundo sobre as condições dadas (MINAYO, 1996, p. 232).

De acordo com a orientação de Minayo, no caso das representações sobre o caboclo, é necessário entendê-las como frutos e manifestações de condicionamentos sócio-históricos, interrelacionando tradições culturais e as concepções dominantes veiculadas. A identificação dessas representações como um fenômeno social, é feita não apenas por que expressam socialmente, mas também porque são manifestações da vida material, dos limites sociais e do imaginário coletivo. Assim, as concepções sobre o caboclo são resultantes de condições anteriores e exteriores ao grupo entrevistado, em grande parte de condições dadas, mas são também produtos da ação dos sujeitos sobre o meio social. De acordo com Guareschi (1997, p. 20), “é quando as pessoas se encontram para

96 falar, argumentar, discutir o cotidiano, ou quando estão expostas às instituições, aos meios de comunicação, aos mitos e à herança histórico-cultural de suas sociedades, que as representações sociais são formadas.” Um dos pressupostos metodológicos estabelecidos por Minayo (1996) é que o pesquisador tem que aclarar para si mesmo o contexto de seus entrevistados, porque o discurso expressa um saber compartilhado com outros, do ponto de vista moral, cultural e cognitivo. O pesquisador só pode compreender o conteúdo significativo de um texto quando está em condições de tornar presentes as razões que o autor teria para elaborá-lo, tendo em conta que o texto reflete a relação existente entre o sujeito que comunica e aquele que interpreta como personagens, em última instância, do mesmo tempo e da mesma história social. Quem são, e como vivem os sujeitos da pesquisa? Os entrevistados são em sua maioria amazonenses: dos 30 participantes, apenas 8 não são naturais de Manaus (24%), e 5 desses 8 são da região norte (Pará e Roraima). São jovens em maioria provenientes de família de baixa renda, haja vista a ocupação dos pais, e o baixo nível de instrução. A fonte de informação preferencial é a televisão. O que este contexto pode significar relativamente à produção de representações sobre o caboclo, ainda não é possível inferir, mas é possível pressupor a existência de condições desfavoráveis ao desenvolvimento de consciência crítica e mesmo de capacidade analítica em relação à sua realidade social. Não significa supor, no entanto, que “pobre” não pense e não critique, ou que possua pouca capacidade de entendimento e discernimento, mas que as condições sócio-econômicas menos privilegiadas, por si só, já restringem e condicionam as práticas sociais, principalmente quanto à aquisição e expansão de conhecimentos. A faixa etária dos primeiros quinze entrevistados, alunos da primeira série do nível médio, é significativa neste sentido, já que apenas dois alunos (um de 15 e outro de 17 anos) estão em idade considerada mais adequada ao que se poderia esperar para uma evolução normal na “carreira estudantil”, evidenciando nos demais um “atraso” na trajetória para aquisição de um requisito indispensável para o acesso ao mercado de trabalho, que é a conclusão do nível médio.

97

Além disso, além da escola, é na televisão preferencialmente que esses jovens vão buscar informações, e as revistas mencionadas são as que divulgam “fofocas” de TV, com raríssimas exceções. Como formar opiniões em jovens cujo acervo informacional não parece incluir elementos que dêem base para a constituição de debates e o raciocínio crítico? O discurso dos entrevistados, visto a seguir, mostra esta lacuna e configura um vazio conceitual que pode vir a constituir (ou já está se constituindo) em terreno fértil para a reprodução de atavismos pouco favoráveis à cultura local e à formação pessoal dos entrevistados. Morin (2001, p. 16-7) alerta para a dispersão do saber em unidades informacionais, fazendo coro a T. S. Eliot quando este questiona: “Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”. As informações, ensina Morin, constituem parcelas dispersas do saber e “em toda parte, nas ciências como nas mídias, estamos afogados em informações.” O conhecimento só pode ser assim considerado quando constituído de forma organizada, interrelacionado com as informações e inserido no contexto destas. Os fragmentos de conhecimento só servem para uso técnico e não conseguem conjugar-se para alimentar um pensamento capaz de considerar a situação humana no âmago da vida, na terra, no mundo, e de enfrentar os grandes desafios de nossa época. Não conseguimos integrar nossos conhecimentos para a condução de nossas vidas. Daí o sentido da segunda frase de Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?” (MORIN, 2001, p. 16-7).

O autor afirma que a reforma do pensamento é necessária e fundamental para a mudança de paradigmas, mas ela não se dá de maneira simples e instantânea, e sim à custa de um processo que começa no início da vida escolar, pois a cultura também se ensina e se reproduz na escola, em processo contínuo, assim, só poderemos começar a reforma do pensamento na escola primária e em pequenas classes. [...] é nesse nível que devemos nos beneficiar da maneira natural e espontaneamente complexa do espírito da criança, para desenvolver o sentido das relações entre os problemas e os dados. Sempre nos deparamos com este problema de fundo, o fato de que a reforma do pensamento só pode ser realizada por meio de uma reforma da educação (MORIN, 1999, p. 34).

98

Na opinião de Torres (2003, p. 274), “como formador de opiniões e visões de mundo, o processo educativo desempenha um papel fundamental na construção das representações sociais dos indivíduos.” De acordo com a autora, a resistência do preconceito ao tempo e às transformações sociais ocorre “porque sua desconstrução não foi incorporada pelo processo educativo”.

3.2 Analisando os fragmentos: o dito e o não-dito O que os jovens entrevistados sabem (conjunto de concepções) sobre o caboclo amazônico e como representam esse saber? No desdobramento do processo de classificação e ordenamento dos dados empíricos, foram separadas e agrupadas as respostas dos entrevistados a cada pergunta, com o intuito de facilitar a percepção dos pensamentos expressados pelo grupo. Inferindo sobre o seu conteúdo, procede-se à análise dos processos de sua formação e sua lógica própria, contradições e convergências e de sua eventual mutação, tendo como objetivo encontrar nesses textos uma significação particular e um papel revelador do todo. Isso implica também considerar na análise interna, como parte das representações, conforme orienta Minayo (1996), os signos (substantivos, verbos, adjetivos etc), com a certeza das contradições ocultas e de idéias existentes não expressas. Nesse “instante hermenêutico”, apenas para fins analíticos o material de representação social será provisoriamente tomado como um conjunto separado, a ser tecnicamente trabalhado e cuidadosamente analisado. Neste trabalho primeiramente estão elencadas perguntas em relação mais estreita e, a cada conjunto de respostas, procede-se uma análise preliminar, com vistas ao posterior estabelecimento de categorias gerais de sentido. Na composição do roteiro de entrevista procurou-se “cercar” o tema com questionamentos de ordem geral – Amazônia, Amazonas, índios, homem amazônico – contextualizando o tema principal, o “caboclo”, de maneira a permitir a identificação de dissociações entre esses elementos, fato por si só merecedor de análise.

99

Tabela 1 A Amazônia é um assunto que interessa a você? Tem informações a respeito? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Não, nem tem informações.

2

MA

F

negr a

Sim, e tem informações sobre “os rios, a mata as pessoas”.

3

MA

F

more na

Um pouco, mas não tem informações.

Tabela 1 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

4

PA

M

more no

Sim, principalmente pela exploração dos recursos.

5

AM

F

branc a

Sim, tem algumas informações gerais.

6

RO

M

negro

Sim, interessa-se pela preservação e exploração dos recursos naturais.

7

AM

M

more no

Sim, “pelos rios, matas, fauna e flora”.

8

AM

M

more no

Não, e não tem informações.

9

MT

F

more na

Sim, por questões gerais.

10

MA

M

branc o

Sim, pela questão da biodiversidade.

11

AM

F

branc a

Não muito, nem tem informações.

12

AM

M

pardo

Sim, pelos aspectos de ecologia e cultura.

13

AM

M

branc o

Sim, pela ecologia e preservação.

14

AM

M

more no

Não, nem tem informações.

15

AM

M

pardo

Sim, pela ecologia.

16

AM

F

more no

Sim, pela geografia e cultura.

17

AM

F

more na

Sim, pelos aspectos econômicos.

18

AM

M

more no

Sim, pela floresta.

19

AM

F

branc a

Sim, pela flora e fauna.

100 20

AM

M

more no

Sim, pelo turismo e vegetação.

21

AM

F

more no

Sim, pelo desenvolvimento da região.

22

AM

F

branc a

Sim, pela organização social e econômica.

23

AM

M

more no

Sim, pela fauna e flora.

24

PA

F

branc a

Sim, por assuntos econômicos.

25

AM

F

more na

Sim, pela natureza e riquezas.

26

AM

M

branc o

Sim, assuntos gerais.

27

PA

F

more na

Sim, pelo desenvolvimento ambiental e ecológico.

28

AM

F

more na

Sim, pela biodiversidade.

29

RR

F

parda

Sim, em todos os aspectos.

30

AM

M

more no

Sim, pelos aspectos geográficos, humanos e culturais.

Tabela 2 Você se interessa por questões relativas ao Amazonas? Tem informações? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Não, nem tem informações

2

MA

F

negr a

Sim, pelas festas, música, festivais etc.

3

MA

F

more na

Um pouco, mas não tem informações.

4

PA

M

more no

Sim, um pouco.

5

AM

F

branc a

Sim, pois tem orgulho de onde mora.

Tabela 2 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

6

RO

M

negr o

Sim, pela política, educação e patrimônio histórico e cultural.

7

AM

M

more no

Sim, pelos rios, matas, fauna e flora.

8

AM

M

more

Não, nem tem informações.

101 no 9

MT

F

more na

Não, nem tem informações.

10

MA

M

branc o

Sim, pela cultura e segurança.

11

AM

F

branc a

Não muito. Não tem informações.

12

AM

M

pard o

Sim, pelos aspectos de ecologia e cultura.

13

AM

M

branc o

Sim, pela preservação.

14

AM

M

more no

Não, nem tem informações.

15

AM

M

pard o

Sim, pelo futuro dos animais e plantas.

16

AM

F

more no

Sim, pelas condições do povo.

17

AM

F

more na

Sim, pela política, desemprego etc.

18

AM

M

more no

Sim, pelos povos indígenas do passado.

19

AM

F

branc a

Sim, pelas questões sociais.

20

AM

M

more no

Sim, pela política.

21

AM

F

more no

Sim, pela história.

22

AM

F

branc a

Sim, pela organização social e política e aspectos econômicos.

23

AM

M

more no

Não, nem tem informações.

24

PA

F

branc a

Sim, por toda as questões.

25

AM

F

more na

Sim, pela história e natureza.

26

AM

M

branc o

Sim, pela história, a Zona Franca etc.

27

PA

F

more na

Sim, pelo crescimento e desenvolvimento do Estado.

28

AM

F

more na

Sim, pelos acontecimentos gerais nos municípios.

29

RR

F

pard a

Sim, por política, violência, emprego, municípios etc.

30

AM

M

more no

Sim, pelas cidades e história.

102 Tabela 3 Você conhece a história do Amazonas? Qual(is) a(s) fonte(s) de informações? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Não.

2

MA

F

negra

Sim, por meio da escola.

3

MA

F

more na

Sim, por meio da escola e falado às vezes em casa.

4

PA

M

more no

Sim, por meio da escola.

5

AM

F

branc a

Sim, por meio da escola.

6

RO

M

negro

Sim, por meio da escola.

7

AM

M

more no

Sim, por meio da escola.

Nº.

Natur al

8

AM

M

more no

Sim, por meio da escola.

9

MT

F

more na

Um pouco, por meio da escola.

10

MA

M

branc o

Não.

11

AM

F

branc a

Não.

12

AM

M

pard o

Não muito, por meio da escola.

13

AM

M

branc o

Sim, por meio da escola.

14

AM

M

more no

Não.

15

AM

M

pard o

Sim, por meio da escola.

16

AM

F

more no

Um pouco, por meio da escola.

17

AM

F

more na

Um pouco, por meio da escola.

18

AM

M

more no

Um pouco, por meio da escola.

19

AM

F

branc a

Um pouco, por meio da escola.

20

AM

M

more no

Um pouco, por meio da escola.

Tabela 3 (cont.) S exo

Cor

Respostas

103 21

AM

F

more no

Sim, por meio da escola.

22

AM

F

branc a

Sim, por meio da escola.

23

AM

M

more no

Não.

24

PA

F

branc a

Quase nada.

25

AM

F

more na

Um pouco, por meio da escola.

26

AM

M

branc o

Um pouco, por meio da escola.

27

PA

F

more na

Sim, por meio da escola.

28

AM

F

more na

Sim, por meio da escola.

29

RR

F

pard a

Um pouco, por meio da escola.

30

AM

M

more no

Sim. por meio da escola.

Sobressai nas respostas sobre a Amazônia a idéia de “natureza” (no sentido genérico do termo), expressa nas palavras recorrentes ecologia, preservação, biodiversidade, riquezas, recursos, fauna, flora, vegetação. O ideário sobre a natureza amazônica, alimentado e disseminado pelos viajantes, possivelmente aliado ao globalizado “mito da natureza intocada”, criticado por Diegues (1997), é o que aparentemente prevalece na mentalidade dos sujeitos. Talvez uma idéia abstrata e global das potencialidades da natureza como um patrimônio a ser protegido e preservado, em lugar de uma real consciência do valor intrínseco do patrimônio genético e da biodiversidade regional. Esse mito da natureza intocada e intocável reelabora não somente crenças antigas, mas incorpora também elementos da ciência moderna, como a noção de biodiversidade, das funções dos ecossistemas, numa simbiose expressa pela aliança entre determinadas correntes das ciências naturais e do ecologismo preservacionista. [...] Isso apesar de evidências científicas crescentes de que, nas diversas centenas de milhares de anos de vida humana, os homens de uma forma ou outra interferiram, com maior ou menor intensidade, nos diversos ecossistemas terrestres, hoje restando muito pouco de natureza virgem intocada (DIEGUES, 1997, p. 316).

Essa noção generalizada e não atualizada, segundo Arruda (1998), funda suas raízes no processo brasileiro de colonização, quando o imaginário já

104 instalado sobre o novo mundo produziu representações que omitiram a relação da sociedade com a natureza, encobrindo tanto uma quanto a outra, sendo esta última emblematizada, transformada em essência inalcançável. Essa idealização ofuscou a presença humana e contaminou com o exotismo o pensamento sobre a região. O imaginário coletivo dos europeus, segundo Costa (2000, p. 122), situou a Amazônia no século XIX atrelada a uma imagem de exuberância, diversidade e exotismo: A idéia de Amazônia como Inferno ou Paraíso marcou o pensamento de uns ou de outros, conforme a experiência por eles aqui vivida, cruzou com o conteúdo de suas bagagens, em termos de expectativas, preconceitos e visão de mundo. De certa maneira, quase toda a literatura produzida sobre a Amazônia expressava essa dicotomia.

Sabe-se que nas últimas décadas foram levantadas bandeiras, sobretudo pelos movimentos ecológicos, nas quais a região amazônica é invocada como reserva mundial de energia, pulmão do mundo; celeiro ou santuário da biodiversidade mundial e por aí afora. A Amazônia pode ser considerada atualmente a “marca” brasileira mais conhecida (e vendida) não somente no exterior, mas também em outras regiões do país, que só conhecem a sua face exótica. Os efeitos dessa ótica reducionista são perversos em todos os sentidos, por reproduzirem, nos próprios brasileiros, o “estranhamento” dos colonizadores em relação ao paraíso/inferno verde; por desconsiderarem o homem nesse cenário; por obstaculizarem avaliações realistas e investimentos políticos mais pertinentes e adequados à região e até mesmo a o avanço de estudos científicos sobre o componente humano desse cenário e os seus saberes. Essa distorção instaura, segundo Diegues (1997), um neomito, segundo o qual o mundo natural tem vida própria, é objeto de estudo e manejo, aparentemente sem participação do homem. O saber moderno se arvora não só em juiz de todo o conhecimento, mas até da proteção de uma natureza “intacta”, portadora de uma biodiversidade sobre a qual a ação humana teria efeitos devastadores. Não é para menos que em todas as áreas naturais protegidas, a pesquisa científica é permitida, mas não o etnoconhecimento, pois esse exige a presença das comunidades

105 tradicionais, do saber, das técnicas patrimoniais e, sobretudo, de uma relação simbiótica entre o homem e a natureza (DIEGUES, 1997, p. 339).

Tal

reducionismo,

reproduzido

no

discurso

dos

entrevistados,

é

parcialmente extensivo à visão sobre o Amazonas, pelo qual a grande maioria manifestou interesse. O uso de frases de efeito como “crescimento e desenvolvimento”, “organização social e política”, “patrimônio histórico e cultural”, “história” e “cultura”, ao invés de significarem um dado positivo, possivelmente denotam a reprodução de um discurso com base no processo educacional, pois é a escola a fonte onde os sujeitos extraem o que dizem conhecer sobre a história do Estado. Não é propósito deste estudo adentrar em um assunto tão complexo quanto a educação no estado brasileiro, podendo até soar como leviano fazer inferências ou tecer considerações críticas nesse âmbito, mas abstrair da questão ao tratar da produção do discurso dos indivíduos que, neste momento preciso, estão envolvidos no processo educacional, seria ignorar parte do contexto no qual eles estão inseridos. Opta-se, então, por seguir a linha do pensamento de Morin (2001) quando insta aos educadores pensar o problema do ensino tendo em conta os efeitos deletérios da compartimentação excessiva dos saberes sem que haja, por parte dos estudantes (e possivelmente também de alguns educadores), suficiente aptidão para contextualizá-los e integrá-los, aptidão essa que precisa ser desenvolvida. Assim sendo, considera-se pertinente suscitar questionamento sobre de que forma a questão regional, tão amplamente defendida e divulgada como prioritária nos parâmetros curriculares nacionais e efetivamente materializada nos livros didáticos, tem sido abordada nas escolas. Assim também a validade dessa contribuição para a formação dos alunos, não somente como pessoas que sabem ou conhecem o assunto, porque o sentido de saber ou conhecer pode ser muito vago, em se tratando de conteúdo curricular, mas precisamente como pessoas capazes de pensar sobre o assunto com suficiente clareza e capacidade crítica. Distante dessa visão estereotipada, a Amazônia de hoje, depõe Oliveira (2000, p. 21),

106

é um lugar bem diverso do que era no início do século XX, para não retornar tempos mais remotos, não só porque a floresta, os rios e o solo foram profundamente modificados, mas porque a cultura mudou de modo considerável, a partir da transformação de hábitos e costumes, sobretudo no decorrer das últimas cinco décadas.

Refere-se também o autor às políticas equivocadas de exploração regional, originárias da malfadada idéia da Amazônia como fonte inesgotável de recursos: Esse processo evidenciou que a relação homem-natureza que passou a predominar na Amazônia teve e continua tendo como principal característica a tendência à degradação do homem e da natureza. [...] a verdade é que, a persistência do mito da produtividade ilimitada, apesar do vergonhoso fracasso de todas as iniciativas em grande escala para desenvolver a região, constitui-se em um dos mais notáveis paradoxos do nosso tempo, culminando num emaranhado de ações que determinaram novas mediações nas relações sociais, modificadoras não apenas da natureza, mas principalmente dos modos de vida (OLIVEIRA, 2000, p. 21).

Questiona Busato (s.d.) em quais bases está assentado o ideário sobre a Amazônia, representada em várias instâncias da cultura global brasileira, desde obras literárias a discursos ambientalistas, principalmente nos livros escolares de geografia e história, onde ela é entronada como patrimônio nacional e mesmo patrimônio da humanidade. Um brasileiro “consome” assim sua dose de Amazônia desde a escola primária e não se pode dizer que ela é ou não suficiente, pertinente ou não; mas pode-se supor que é sobre ela que se alicerçam as representações mentais da Amazônia de cada brasileiro; e sabemos que as representações, por sua vez, constituem a base mental dos comportamentos individuais... (BUSATO, s.d., p. 298).

Nas próximas tabelas, tratando da temática indígena e do homem amazônico, a visão idealizada e didaticamente formulada se insinua como maior nitidez. Em vista da aproximação com o objeto de pesquisa propriamente dito, as representações do caboclo, é perceptível certa resistência, ou reserva, por parte dos sujeitos, em abordar o tema. A noção do “outro” começa a tomar forma.

Tabela 4 Você se interessa pela temática indígena? Por quê?

107 Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Um pouco, “quando falam do assunto”.

2

MA

F

negr a

Não muito.

3

MA

F

more na

Sim, “mas não tenho informações”.

4

PA

M

more no

Sim, “porque os índios são nossos ancestrais”.

5

AM

F

branc a

Sim, porque “foram os índios que deram origem ao Brasil”.

6

RO

M

negr o

Sim, porque “demonstra como crescemos aos olhos preconceituosos de muitos”.

7

AM

M

more no

Sim, porque “é bom saber”.

8

AM

M

more no

Não, “não tenho interesse”

9

MT

F

more na

Não, porque “não gosto”.

10

MA

M

branc o

Não, “não tenho interesse”.

11

AM

F

branc a

Não, “não tenho interesse”.

12

AM

M

pard o

Não muito, porque “acho que ninguém avalia muito a cultura indígena”.

13

AM

M

branc o

Sim, porque “é uma cultura a ser estudada”.

14

AM

M

more no

Não, “não tenho interesse.

15

AM

M

pard o

Sim, porque “sou um índio e me interesso pela minha cultura”.

16

AM

F

more no

Sim, porque “traz um grande aprendizado”.

17

AM

F

more na

18

AM

M

more no

Sim, “para adquirir mais conhecimentos”.

19

AM

F

branc a

Sim, porque “faz parte da nossa história e a raça indígena é discriminada”.

20

AM

M

more no

Não, porque “não me interessa”.

21

AM

F

more no

Sim, porque “é muito importante que conheçamos as nossas origens”.

22

AM

F

branc a

Sim, porque “praticamente tudo o que possuímos é herança indígena”.

Sim, porque “o indígena faz parte do nosso passado e não devemos esquecê-lo, pois foi um dos primeiros a entrar na Amazônia”.

108 23

AM

M

more no

Não, porque “é um assunto que não me chama a atenção”.

24

PA

F

branc a

Não, porque “não desperta interesse”.

25

AM

F

more na

Sim, “acho interessante”.

26

AM

M

branc o

Sim, “porque se trata de nossos antecessores”.

27

PA

F

more na

Sim, “porque meu pai é índio e sua cultura está sendo esquecida”

28

AM

F

more na

Sim, “pois faz parte de nossas raízes, e as tribos estão sendo extintas”.

29

RR

F

pard a

Sim, porque “faz parte da minha cultura, da minha origem”.

30

AM

M

more no

Sim, pois “gosto de saber sobre esses povos”.

Tabela 5 Você tem informações sobre o homem amazônico? Tem interesse por este assunto? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Não. Só se interessa “quando passa na televisão”.

2

MA

F

negr a

Poucas, “não tenho muita curiosidade”.

3

MA

F

more na

Algumas. Tem interesse porque “sou estudante e preciso estar informada”.

4

PA

M

more no

Algumas. Interessa-se “pelo tipo de vida”.

5

AM

F

branc a

Não, “nem me interessa”.

6

RO

M

negr o

Algumas, no “aspecto histórico”. Tem interesse porque “é a nossa história”.

7

AM

M

more no

Algumas, mas “não me interessa”.

8

AM

M

more no

Não, “nem me interessa”.

9

MT

F

more na

Não, “não tenho interesse”

10

MA

M

branc o

Sim, sobre “o tipo de vida”. Interessa-se porque “é uma forma de aprender a viver na floresta”.

11

AM

F

branc a

Algumas. Interessa quando é abordado na escola.

12

AM

M

pard o

Algumas, mas “não interessa muito”.

13

AM

M

branc o

Não, “não tenho interesse”

109 14

AM

M

more no

Não, “não tenho interesse”

15

AM

M

pard o

Sim, de que “ele adora peixe”. Tem interesse porque “sou um homem amazônico”.

16

AM

F

more no

Sim, “sobre a vida e a cultura”. Interessa-se porque “é sempre bom saber dessa história que vivemos e que é interessante”.

17

AM

F

more na

Sim. Tem interesse porque “temos que estar por dentro”.

18

AM

M

more no

Poucas, sobre “cultura e costumes”. Interessa-se porque “é importante estarmos por dentro”;

19

AM

F

branc a

Sim, sobre costumes, mas pouco interesse pelo assunto.

20

AM

M

more no

Algumas, mas não tem interesse.

21

AM

F

more no

Algumas sobre “costumes e cultura”. Tem interesse porque “vale a pena conhecer a sua origem”.

22

AM

F

branc a

Sim sobre “costumes, crenças e religião”, e acha importante “para compreender melhor a formação populacional do Estado em que vivo”.

23

AM

M

more no

Não, nem interesse, porque “é um assunto que não me chama a atenção”.

24

PA

F

branc a

Sim, mas não tem interesse porque “acho algo banal”.

25

AM

F

more na

Não, nem interesse.

26

AM

M

branc o

Não, mas se interessa “pela sua cultura”.

27

PA

F

more na

Sim, e também interesse, porque “meu pai e meu tio são ligados a uma organização indígena”.

28

AM

F

more na

Sim, e interesse porque “estou inserida nesta cultura”.

29

RR

F

pard a

Sim, e tem interesse porque “faz parte da minha cultura, da minha origem”.

30

AM

M

more no

Sim, e interessa saber “como vivem e o que fazem”.

Tratando de representações sociais, Ramos (1997) considera que uma de suas funções é justificar os comportamentos adotados por um determinado grupo. Convivendo em sociedade o indivíduo incorpora costumes, valores, crenças, condutas e práticas institucionalizadas no cotidiano, tecidas pelas relações objetivas da sociedade e modifica-se a partir de um conjunto de objetivações vinculadas ao contexto histórico-social em que está inserido.

110 Realidade e ficção, abstrato e concreto, se misturam no habitus, forjando no individuo um modus vivendi vincado na sua existência social. Na sua relação com o mundo, reforça Jovchelovitch (1997), o sujeito constrói um novo mundo de significados, desenvolve uma identidade, cria símbolos e se abre para a diversidade de um mundo de outros. A questão da diferença é tratada por Arruda (1998) relativamente ao confronto cultural quando da chegada dos colonizadores à América, tendo o elemento índio como o representante máximo da alteridade, e como se configurou a necessidade, por parte dos conquistadores, de construir representações para, na terminologia de Moscovici (1978), “ancorar” o desconhecido: O advento da colonização representou um fato crucial para a história da civilização, ao abrir a fenda na unidade essencial do gênero humano, institucionalizando, com a conquista da América, a questão: O outro é humano? [...] A alteridade serviu de fermento para a renovação de repertórios mentais. Urgia formular um novo senso comum que incorporasse a natureza tropical e as populações indígenas (ARRUDA, 1998, p. 19-21).

Quando foi questionado o interesse dos entrevistados pela temática indígena, um terço demonstrou total desinteresse (8 amazonenses, 1 paraense e 1 maranhense), parcela significativa para uma amostra de 30 sujeitos. O desinteresse pelo indígena por parte de indivíduos provavelmente ligados a eles por herança genética, reforça a idéia da existência de um sentimento de não pertencimento a essa categoria tão aviltada histórica e socialmente. A fala de uma entrevistada, natural do Pará, exemplifica bem esse sentido de não pertencimento: ela alega interesse pela temática indígena por conta de sua filiação: “porque meu pai é índio e sua cultura está sendo esquecida”, no entanto não parece se incluir nesse universo. É a cultura do seu pai e não a sua que está sendo esquecida. Outro entrevistado, amazonense, se posiciona da mesma maneira quando se diz interessado, mas se ausenta do objeto de interesse: “gosto de saber sobre esses povos”. Por outro lado, emergem da fala dos sujeitos os clichês amplamente conhecidos e divulgados nos livros didáticos, como “os índios são nossos

111 ancestrais; “foram os índios que deram origem ao Brasil”; “o indígena faz parte do nosso passado”; “é muito importante que conheçamos as nossas origens”; tudo o que possuímos é herança indígena”; “pois faz parte de nossas raízes”; “faz parte da minha cultura, da minha origem”; etc.

Quando o tema passa a ser “o homem amazônico”, esse sentido de alteridade se acentua, aumentando o distanciamento dos interlocutores. Essa negativa de pertencimento é traduzida pelo desinteresse da metade dos entrevistados e por aqueles que dizem ter interesse por precisam ficar “por dentro” do assunto porque é uma exigência escolar. A denominação genérica “homem amazônico” neste trabalho foi proposital, com o intuito justamente de propiciar a emergência espontânea de ranços e preconceitos que pudessem eventualmente estar sendo inconscientemente camuflados. Poder-se-ia esperar que os estudantes vissem na categoria “homem amazônico” um reflexo de suas histórias e contexto vivencial, pelo menos do ponto de vista geográfico, do tipo aquele que vive no mesmo habitat, embora de forma diferente da minha. No entanto, as respostas fazem parecer que o tal “homem amazônico” é persona non grata no ambiente, remetendo à idéia do intruso no paraíso, impressão passada por inúmeros viajantes e naturalistas que percorreram a região amazônica a partir do século XVII. Naquele caso era o índio o elemento estranho no ambiente paradisíaco idealizado; neste caso o indígena é de certa forma reintegrado ao seu habitat, na qualidade de habitante legítimo, e o “homem amazônico” surge como o estranho. De fato, o elemento indígena assume hoje um papel de destaque no cenário mundial: é motivo de debate, questionam os seus direitos, tem espaço na mídia com porta-vozes famosos, tem visibilidade. Em parte porque faz parte intrínseca do “pacote Amazônia” tipo exportação, por outro lado porque integra o discurso científico internacional, o que garante a preocupação do governo federal com a criação e implantação de políticas exclusivas em seu benefício. Se tudo isso é real ou imaginário, é questão a ser explorada, mas o fato é que esse status confere pelo menos ao “personagem” índio uma situação favorável aos olhos do homem comum.

112

Ao contrário, pondera Busato (s.d., p. 312) que o homem amazônico se apresenta com falhas que a cultura popular dificilmente integra: no caso do índio (as centenas de tribos primitivas, vivendo muito longe dos modos e modas modernos ou vivendo da assistência do Estado), a fantasia se transforma quanto mais em compaixão quando ele se aproxima; contraste tanto maior pelo fato que, no seu estado de natureza, o índio representou uma espécie de ideal, ou de utopia, para muitos modernos, e que ainda hoje ele é considerado com simpatia por essa alma coletiva chamada massa ou opinião pública.

Torres (2003, p. 83) chama atenção para o fato de que essa formação de idéias no contexto social tem a contribuição de vários mecanismos sociais, e em se tratando de sociedades onde há manifestação de preconceitos raciais e étnicos, as noções de diferença e de hierarquia raciais são inevitavelmente adquiridas na família, na escola, na rua e nas instituições religiosas. Devese notar, também, que uma idéia sobejamente valorizada e positivada pelo fascínio com que é levada ao público contribui, efetivamente, para a formação de opinião.

Nas tabelas seguintes adentra-se diretamente no objeto de pesquisa, a representação do caboclo, primeiramente fazendo referência ao “termo”, sugerindo uma realidade fora do contexto do entrevistado, para depois estabelecer relação com um questionamento mais direto, sobre as características físicas do caboclo, personificado. A palavra caboclo é uma representação e, segundo Baktin (1979), a palavra é o primeiro meio da consciência individual, e representação é o modo pelo qual vemos as coisas. A realidade da palavra constitui o material semiótico da vida interior, da consciência, do discurso interno, e tem sua origem no consenso entre indivíduos. Lima (1999, p. 27) ressalta que o exercício de poder nomear as coisas é uma forma de expressar a dominação, passando essa nominação a influir no curso da formação do grupo nomeado: “A definição dos nomes das classes, privilégio dos grupos que ocupam posições superiores, reflete e configura a

113 estrutura social. [...] o próprio termo caboclo tem na sua etimologia o significado de alteridade (aquele que vem do mato)”.

Tabela 6 O termo “caboclo” é familiar? Você tem informações a respeito? Este tema interessa a você? Por quê? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

É familiar, mas não tem informações a respeito. Não se interessa pelo assunto porque “não me chama a atenção”.

2

MA

F

negr a

É familiar porque é falado na escola que “o caboclo é mistura de raças”. Não se interessa pelo assunto.

3

MA

F

more na

É familiar, mas não tem informações. Não se interessa pelo tema.

4

PA

M

more no

É familiar, mas não tem informações. Tem interesse no assunto porque “faz parte da nossa vida”.

5

AM

F

branc a

É familiar, mas não tem informações. Não se interessa pelo assunto porque “não tenho paciência com essas coisas”.

6

RO

M

negr o

É familiar; sabe que “os primeiros caboquinhos amazonenses nasceram do cruzamento do indígena com o branco”. Tem interesse pelo tema porque “é o começo da nossa história”.

7

AM

M

more no

É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto.

8

AM

M

more no

É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto.

9

MT

F

more na

É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto porque “tenho coisas mais interessantes pra fazer”.

10

MA

M

branc o

É familiar, refere-se a “pessoas que nascem no meio do mato”. Não se interessa pelo assunto.

11

AM

F

branc a

É familiar; sabe que “o caboclo é um indígena”. Não se interessa pelo tema.

12

AM

M

pard o

É familiar; sabe que tem relação com “seringueiros”. Tem interesse pelo tema porque “tem a ver com a história e o passado”.

13

AM

M

branc o

É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto.

14

AM

M

more no

É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto.

15

AM

M

pard o

É familiar; sabe que os caboclos são “um povo de respeito”. Não tem interesse pelo tema.

16

AM

F

more no

É familiar; tem informações sobre cultura, religião etc. Tem interesse no assunto porque “temos parte nessa

114 história”.

Tabela 6 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

17

AM

F

more na

É familiar; o caboclo “um homem que mora nos interiores e que ganha a vida através de peixes e colheitas”. Tem interesse no tema porque “o caboclo faz parte da nossa cidade”.

18

AM

M

more no

Não é familiar; não tem informações a respeito. Tem interesse pelo tema “para aprender mais”.

19

AM

F

branc a

É familiar; sabe da “questão da discriminação”. Tem interesse pelo assunto porque “qualquer informação é favorável”.

20

AM

M

more no

É familiar; tem algumas informações. Tem interesse “pela cultura”.

21

AM

F

more no

É familiar; tem algumas informações. Tem interesse pelo tema “por fazermos parte dessa origem”.

22

AM

F

branc a

É familiar; o caboclo é “a miscigenação do índio com o branco”. Tem interesse pelo assunto porque “é interessante pra poder entender como duas culturas distintas se formam”.

23

AM

M

more no

É familiar; sabe sobre “sua origem e sua mistura”. Não se interessa pelo assunto porque “não acho que a sociedade julga importante e não atiça o meu interesse”.

24

PA

F

branc a

É familiar, tem poucas informações. Tem interesse “para ter uma informação a respeito.”

25

AM

F

more na

Não é familiar; não tem informações a respeito. Não tem interesse.

26

AM

M

branc o

Não é familiar e não tem informações. Não tem interesse pelo assunto porque “não é abordado atualmente”.

27

PA

F

more na

É familiar; como “homem da terra”. Tem interesse para “saber mais sobre ele”.

28

AM

F

more na

É familiar; tem algumas informações. Tem interesse pelo tema porque “minha família e eu somos caboclos”.

29

RR

F

pard a

É familiar; tem algumas informações. Tem interesse porque “tem a ver com a minha história”.

30

AM

M

more no

É familiar; tem algumas informações. Tem interesse porque “nós aqui do norte somos denominados assim”.

Perguntados se o termo caboclo soava familiar, a grande maioria respondeu que sim, com exceção de três entrevistados, todos amazonenses, que alegaram desconhecimento. Desses, dois opinaram sobre as características físicas daquele que diziam desconhecer. Doze pessoas disseram que era familiar, mas não tinham informações a respeito; dezesseis disseram não ter interesse.

115 Desta vez a metade dos entrevistados manifestou desinteresse pelo tema “caboclo”, o dobro dos desinteressados pela temática indígena. Nesse momento a figura do índio aparece em maior relevo que a do caboclo, quando aquele soa mais familiar do que este, e se poderia supor o inverso, pelo fato de que o mundo indígena é efetivamente muito mais distante e diferenciado da realidade do homem amazonense da cidade do que o mundo caboclo. Isto, mesmo tomando como referência a imagem estereotipada do típico amazônida que mora em choupana ou palafita, se locomove de canoa e cultiva a sua horta de subsistência.

Tabela 7 Quais as características físicas do caboclo? Você acha bonito o tipo físico? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Cabelos negros, moreno escuro. Não acha bonito “por causa da pouca higiene”.

2

MA

F

negr a

Moreno, alto, cabelos lisos e olhos pretos. Acha bonito porque “é diferente”.

3

MA

F

more na

Tipo físico “normal”. É “mais ou menos bonito”; “tem uns bonitos e outros feios”.

4

PA

M

more no

Forte, geralmente cabelo preto liso. O tipo físico é “normal”.

5

AM

F

branc a

Características “iguais de todo mundo”... “bonito ele não é”.

6

RO

M

negr o

Características de “uma pessoa que tem traços indígenas e brancos”. Não tem opinião sobre o tipo físico.

7

AM

M

more no

Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

8

AM

M

more no

Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

9

MT

F

more na

Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

10

MA

M

branc o

Baixo, cabelos lisos, forte, moreno. Acha bonito porque “já acostumei”.

11

AM

F

branc a

Negro, cabelos espetados e olhos puxados. Não acha bonito:“é muito diferente”.

12

AM

M

pard o

Moreno, cabelos lisos, olhos amendoados. Não acha bonito: “ninguém merece”.

13

AM

M

branc o

Moreno, tipo indígena. Não tem opinião sobre o tipo físico.

14

AM

M

more

Não saber dizer as características nem tem opinião sobre

116 no

o tipo físico.

15

AM

M

pard o

Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

16

AM

F

more no

Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

17

AM

F

more na

Magro, cabelos “tensos”. Não acha bonito o tipo físico.

18

AM

M

more no

Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

19

AM

F

branc a

Mestiço, olhos negros ou castanhos. Acha bonito: “são pessoas humildes”.

20

AM

M

more no

Moreno, forte e corajoso. Não acha bonito o tipo físico.

21

AM

F

more no

Homem “parecido com indígena na fisionomia, jeito etc”. Acha bonito porque “são diferentes e usam pouca roupa”.

22

AM

F

branc a

Altura mediana, traços indígenas, pele morena. Não acha bonito o tipo físico.

23

AM

M

more no

Características “do homem amazônico”. É bonito: “não tenho porque não achar”.

24

PA

F

branc a

Moreno, cabelos lisos, forte. Acha bonito “algumas vezes”.

25

AM

F

more na

Estatura média, pele parda, olhos e cabelos escuros. Não acha bonito o tipo.

26

AM

M

branc o

Características de “mulato”. Não é bonito porque ‘vivem fora da sociedade”.

27

PA

F

more na

Características “de pessoa normal, mas com costumes diferentes”. Acha bonito.

28

AM

F

more na

Características “de indígena”. Não acha o tipo físico bonito.

29

RR

F

pard a

Robusto, forte, trabalhador. Acha o tipo físico bonito.

30

AM

M

more no

Cabelos lisos, moreno, ombros largos, estatura mediana. Acha bonito o tipo porque “se nós não acharmos, quem vai achar? “

Solicitadas a apontar os traços do caboclo, sete pessoas disseram não saber precisar suas características físicas, das quais apenas uma não era amazonense. Dos seis amazonenses, um era pardo e os outros todos morenos, com características físicas semelhantes às descritas pela maioria, tipificando o padrão com que o amazônica é conhecido (e reconhecido) - moreno(a), cabelos lisos, olhos escuros – semelhante ao tipo indígena. Quando à questão de “beleza”, as opiniões foram variadas. Algumas chamaram atenção pelo sentido oculto nas palavras. Por exemplo, uma entrevistada, amazonense, branca, disse achar bonito o tipo físico dos caboclos

117 porque “são pessoas humildes”. A mesma pessoa apontou como informações que tem do caboclo “a questão da discriminação”. Tal opinião remete à idéia do branqueamento proposta por Martius como a “salvação” da raça indígena, e traz à lembrança a visão do colonizador “penalizado” diante da inferioridade dos índios em oposição à superioridade da raça caucásica. Um entrevistado justificou que o caboclo não é bonito porque “vive fora da sociedade”, atrelando o seu conceito de beleza à condição “inferior” do caboclo por viver, na sua concepção, de modo diferenciado do seu. Essa mesma idéia foi expressa por Spix e Martius quanto aos índios, que viviam, pela ótica etnocêntrica, fora da sociedade humana, sendo equiparados a animais. Outro, parecendo tomar pra si o estereótipo do “caboclo feio”, ao mesmo tempo reage a essa avaliação discriminatória. Ele acha o caboclo bonito porque “se nós não acharmos, quem vai achar?”, interroga.“ Essas aparentes contradições são explicadas por Minayo (1997) pelo fato de que as representações traduzem um pensamento fragmentário, limitando-se a certos aspectos da experiência existencial, que por si já é contraditória. A visão de mundo dos indivíduos e grupos, de fato, é uma expressão dos conflitos e contradições presentes nas condições em que foi engendrada, o que não elimina a capacidade de se traduzir, com relativa claridade e nitidez, em relação à realidade. Castoriadis (1982, p. 318) contribui para aumentar a angústia do pesquisador, quando diz que representação é “inanalisável” e nos dá apenas a “multiplicidade inconsistente”, sendo os aspectos captados “nunca são mais do que transitórios”. “O que não se encontra numa representação” – complementa ele - “pode talvez nela se encontrar.” O “viver fora da sociedade” referido pela entrevistada pode ser entendido também com relação à idéia de localização geográfica do caboclo em um cenário específico. Segundo Lima (1999) é freqüente em cidades como Belém e Manaus a referência aos caboclos como a população do interior do Estado. Já nos municípios, caboclos são os habitantes rurais. Por sua vez a população rural rejeita o rótulo, transferindo-o aos índios. A classe urbana das cidades também

118 pode referir-se aos mais pobres como caboclos, sendo comum a rejeição ao termo por aqueles por ele referidos, em razão do sentido depreciativo a ele agregado. Por outro lado, pode ser considerado um recurso explicativo a existência de um arquétipo do caboclo, referido por Lima como um composto dos traços culturais distintivos do modo de vida do típico amazônida, refletido numa arquitetura diferenciada, meios de transporte, instrumentos de trabalho, conhecimento e manejo dos recursos naturais, além de hábitos alimentares, práticas religiosas, mitologia e maneirismos sociais, traduzindo um estilo de vida distinto do modo urbano. No entanto, alerta a autora, na verdade o conceito regional do caboclo ultrapassa essa referência, incluindo estereótipos negativos. Independente disso, de modo geral a imagem do amazônida típico é essencialmente rural e ribeirinha, evocando a figura de um homem ligada com o meio ambiente amazônico. Um atributo depreciativo comumente associado ao caboclo é de que ele é “lerdo”, ou “burro”. Outros adjetivos depreciativos, bastante divulgados, são relativos à preguiça e à indolência, retomando as idéias divulgadas pelos viajantes e naturalistas a propósito da suposta incapacidade do nativo de “evoluir” (principalmente em termos econômicos) para alcançar a civilização. É perceptível também em Manaus a existência, embora velada, de uma noção de inferioridade intelectual, não somente por parte de estrangeiros, mas pelos próprios amazonenses, principalmente pessoas mais simples, no sentido de pouca instrução. Um caboclo amazonense chegar a uma posição social privilegiada é motivo de admiração, assim como ostentar títulos acadêmicos, especialmente se for portador dos traços físicos característicos da descendência indígena. Nas tabelas seguintes pretende-se saber se e até que ponto os sujeitos são partidários, conscientes ou não, dessas idéias, e de que forma isso se expressa no seu discurso.

Tabela 8 Você concorda com adjetivos como preguiçoso, ignorante e rude (burro), atribuídos ao caboclo? Por quê?

119 Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Não.

2

MA

F

negr a

Não.

3

MA

F

more na

Não.

4

PA

M

more no

Não.

5

AM

F

branc a

Não, porque “somos seres humanos como qualquer outro”.

6

RO

M

negr o

Não, “porque todos temos capacidade e só precisamos de oportunidade. Temos esse “título” porque os índios tinham tudo o que queriam da selva, sendo que o que eles precisavam só era ir pegar”.

7

AM

M

more no

Não tem opinião a respeito.

8

AM

M

more no

Não tem opinião a respeito.

9

MT

F

more na

Não tem opinião a respeito.

10

MA

M

branc o

Não, porque “não é um que faz o todo e a maioria é muito inteligente”.

11

AM

F

branc a

Não.

12

AM

M

pard o

Não, porque “são eles que cultivam a borracha”.

13

AM

M

branc o

Não tem opinião a respeito.

14

AM

M

more no

Não tem opinião a respeito.

15

AM

M

pard o

Concorda com o atributo de “preguiçoso”, porque “somos um povo calmo pra tudo”, mas não de “rude” e “leso”, porque “somos espertos e independentes”.

16

AM

F

more no

Não, porque “não somos melhores que ninguém e não devemos desconsiderar os outros”.

17

AM

F

more na

Não.

18

AM

M

more no

Não.

19

AM

F

branc a

Não.

20

AM

M

more no

Não, porque “isso é preconceito. Os caboclos são muito trabalhadores”.

21

AM

F

more no

Não, porque “hoje eles têm escola e estão mais inteligentes”.

22

AM

F

branc

Não, “se fôssemos preguiçosos Manaus não seria o que é

120

23

AM

M

a

hoje. Basta freqüentar as faculdades para constatar a nossa sabedoria”.

more no

Não, “basta sair nas ruas pra ver as pessoas trabalhando arduamente pra manter seu sustento, além de que as pessoas estão procurando se habilitar mais ainda, tanto pra aumentar o conhecimento, como no trabalho”.

Tabela 8 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

24

PA

F

branc a

Não concorda com o atributo de “preguiçoso” porque “os caboclos são pessoas que trabalham para o seu próprio sustento”, mas acha que são “um pouco rudes”, porque “o grau de escolaridade dos caboclos é muito baixo”.

25

AM

F

more na

Não, porque “as pessoas nem conhecem e vão falando coisas”.

26

AM

M

branc o

Não, “os caboclos são pessoas dignas. Estão desmoralizando nossos traços”.

27

PA

F

more na

Não, porque “se fosse verdade não teria cultura amazônica”.

28

AM

F

more na

Não.

29

RR

F

pard a

Não, “as pessoas não devem deixar que os outros os agridam”.

30

AM

M

more no

Não, “muito pelo contrário, o caboclo é muito trabalhador, e isso é pura discriminação”.

Questionados sobre os atributos negativos imputados ao caboclo, apenas dois disseram concordar parcialmente, um com a pecha de “preguiçoso”, porque em sua opinião “somos um povo calmo pra tudo”; outro com o adjetivo de “rude” (no sentido de ignorância), porque “o grau de escolaridade dos caboclos é muito baixo”. Vale notar que, mesmo os que declararam não conhecer o termo e não ter interesse no assunto foram veementes em discordar daquela atribuição negativa.

Tabela 9 Pessoas inteligentes e cultas podem ser classificadas como “caboclas”? Por quê? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Não sabe dizer.

2

MA

F

negr a

Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

3

MA

F

more na

Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

121 4

PA

M

more no

Sim, porque “o caboclo também estuda”.

5

AM

F

branc a

Sim, porque “são iguais a todo mundo”.

6

RO

M

negr o

Sim, porque “ser caboclo não quer dizer nada”.

7

AM

M

more no

Não sabe dizer.

8

AM

M

more no

Não sabe dizer.

9

MT

F

more na

Não, porque “é uma ilusão da cabeça das pessoas”.

10

MA

M

branc o

Sim, porque “caboclo é raça”.

11

AM

F

branc a

Não, porque “não tem nem comparação”.

12

AM

M

pard o

Sim, porque “todo mundo tem no sangue”.

13

AM

M

branc o

Sim, porque “são pessoas sábias”.

14

AM

M

more no

Não. Não tem opinião sobre o porquê.

15

AM

M

pard o

Sim, porque “os caboclos são inteligentes”.

Tabela 9 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

16

AM

F

more no

Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

17

AM

F

more na

Não, porque “são pessoas diferentes da vida de um caboclo”.

18

AM

M

more no

Não, porque “os caboclos não têm muita capacidade”.

19

AM

F

branc a

Não, porque “não têm esse tipo de nível”.

20

AM

M

more no

Não, porque “não tem nada a ver”.

21

AM

F

more no

Sim, porque “nas veias deles corre sangue de caboclo, por mais que não aceitemos”.

22

AM

F

branc a

Sim, porque “não é a raça que faz a sabedoria de um povo”.

23

AM

M

more no

Sim, porque “apesar da discriminação, toda regra tem exceção”.

24

PA

F

branc a

Sim, porque “não depende da raça”.

25

AM

F

more na

Sim, porque “depende da origem da pessoa”.

122 26

AM

M

branc o

Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

27

PA

F

more na

Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

28

AM

F

more na

Sim, porque “têm suas raízes e cultura”.

29

RR

F

pard a

Sim, porque “inteligência não apaga a cultura nem a origem”.

30

AM

M

more no

Sim, porque “basta ter conhecimento, para qualquer pessoa, de qualquer raça”.

Sobre a possibilidade de chamar de caboclos a pessoas cultas e inteligentes, muitos responderam que sim. No entanto quatro pessoas que haviam discordado dos adjetivos preconceituosos (nºs 11 e 17 a 20), agora afirmam não ser possível essa relação, porque “não tem nem comparação”; “são pessoas diferentes da vida de um caboclo”; “os caboclos não têm muita capacidade”; “não têm esse tipo de nível”; “não tem nada a ver”. Essa contradição não é a única que aparece; outros entrevistados, afirmando uma coisa revelam outra, como aqueles que dizem que “o caboclo também estuda”; “nas veias deles corre sangue de caboclo, por mais que não aceitemos”; “apesar da discriminação, toda regra tem exceção”; “depende da origem da pessoa”, na verdade estão expressando justamente o contrário do que querer dizer ao responderem que caboclos podem ser inteligentes e cultos sob determinada condição. Spink (1997) orienta que o distanciamento cronológico é importante e necessário para que o pesquisador possa se aproximar dos conteúdos do imaginário social, conseqüentemente dos componentes mais estáveis das representações: Quanto mais englobarmos em nossa análise o tempo longo – e, portanto, os conteúdos do imaginário social – mais nos aproximaremos das permanências que formam os núcleos mais estáveis das representações. No sentido oposto, quanto mais nos ativermos ao aqui-eagora da interação, mais no defrontaremos com a diversidade e a criação. [...] Ao aprofundarmos a análise do senso comum, deparamo-nos não apenas com a lógica e com a coerência, mas também com a contradição (SPINK, 1997, p. 122-3).

123 Goffman (1975), por seu turno, chama atenção para o cuidado que se deve ter na tentativa de compreender uma representação. Em razão da característica de impulsividade própria do ser humano, devemos estar capacitados para compreender que a impressão de realidade criada por uma representação é uma coisa delicada, frágil, que pode ser quebrada por minúsculos contratempos. A coerência expressiva exigida nas representações põe em destaque uma decisiva discrepância entre nosso eu demasiado humano e nosso eu socializado. Como seres humanos somos, presumivelmente, criaturas com impulsos variáveis, com estados de espírito e energias que mudam de um momento para outro (GOFFMAN, 1975, p. 58).

Essas orientações se mostram perfeitamente adequadas, na medida em que as questões são colocadas aos entrevistados e as suas respostas oscilam entre ver-se dentro e fora da categoria caboclo, de acordo com a dimensão pessoal ou social que está sendo realçada.

Tabela 10 Os caboclos estão inseridos em todas as classes sociais? Predominam em qual? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Sim. Predominam na classe pobre.

2

MA

F

negr a

Sim. Não sabe em qual predominam.

3

MA

F

more na

Sim. Predominam nas mais humildes.

4

PA

M

more no

Sim. Predominam nas mais pobres.

5

AM

F

branc a

Sim. Predominam nas sociedades ricas.

6

RO

M

negr o

Sim, sem predominar em nenhuma.

7

AM

M

more no

Não sabe dizer.

8

AM

M

more no

Não sabe dizer.

9

MT

F

more na

Não sabe dizer.

10

MA

M

branc o

Sim, sem predominar em nenhuma.

11

AM

F

branc

Não. Não sabe em qual predominam.

124 a

Tabela 10 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

12

AM

M

pard o

Sim, sem predominar em nenhuma.

13

AM

M

branc o

Sim, sem predominar em nenhuma.

14

AM

M

more no

Sim. Predominam “na classe pobre do interior do estado”.

15

AM

M

pard o

Sim, sem predominar em nenhuma.

16

AM

F

more no

Sim. Não sabe em qual predominam

17

AM

F

more na

Não. Predominam “nas classes baixas”.

18

AM

M

more no

Sim. Não sabe em qual predominam

19

AM

F

branc a

Não, estão somente “na de baixa renda”.

20

AM

M

more no

Sim. Predominam na classe “pobre”.

21

AM

F

more no

Sim. Não sabe em qual predominam

22

AM

F

branc a

Não. Predominam “nas classes mais baixas, como operário ou como simples patrão, devido à discriminação que sofre”.

23

AM

M

more no

Sim. Predominam na classe “dos inferiorizados pela sociedade”.

24

PA

F

branc a

Não. Predominam na “classe baixa”.

25

AM

F

more na

Sim. Não sabe em qual predominam.

26

AM

M

branc o

Não, porque “são da floresta”.

27

PA

F

more na

Sim. Não sabe em qual predominam.

28

AM

F

more na

Sim. Não sabe em qual predominam

29

RR

F

pard a

Sim. Predominam na “classe média”

30

AM

M

more no

Sim. Predominam “nas de baixo nível financeiro, porque é uma classe que sofre preconceitos”.

125 Em resposta à pergunta sobre a inserção social do caboclo, um número significativo de entrevistados reforçou a secular associação do caboclo à pobreza, situando-o predominantemente nas classes “de baixo nível financeiro”, de “baixa renda”, “pobre”, “nas mais humildes” etc. Lima (1999) alega que a “pobreza” ligada ao termo caboclo é um conceito cultural, relacionado a uma expectativa de vida e performance econômica e social mais elevada do que a experimentada pelo chamado caboclo, expectativa essa originada na intenção colonial de estabelecer um campesinato na Amazônia, tida como um celeiro de riquezas a serem exploradas materialmente. Daí a grande frustração em relação à “improdutividade” do caboclo em meio a esse manancial, estendendo-se a ele os preconceitos relativos à ociosidade, em oposição a produtividade, e indolência, relativo às suas modestas condições econômicas e de moradia. É possível inferir nesse desdobramento temporal do preconceito o processo de objetivação concebido por Moscovici, por meio do qual uma representação é cristalizada. Nesse processo, de acordo com Sá (1998), noções abstratas são transformadas em imagens e seu conteúdo, descontextualizado, compõe um núcleo figurativo pelo qual as imagens são transformadas em elementos da realidade, ou seja, uma abstração torna-se algo quase físico no processo de objetivação. Percebe-se, então, que o atributo de “preguiçoso”, assim como a noção de “pobreza” ligada ao caboclo, têm uma dimensão muito maior do que simples “xingamento”. Envolvem processos sócio-econômicos e políticos históricos, e trazem a marca da visão discriminatória do colonizador em relação ao colonizado que

não

se

enquadrou

nas

suas

expectativas,

revelando

concepções

engendradas em uma época determinada que perduram subliminarmente no imaginário atual. Essas representações, segundo Minayo (1997, p. 174), são mais abrangentes em termos da sociedade como um todo e revelam a visão de mundo de determinada época, são as concepções das classes dominantes dentro da história de uma sociedade. [...] elas são uma mistura das idéias das elites, das grandes massas e também das filosofias correntes, e expressão das contradições vividas no plano das relações sociais de produção. Por isso mesmo, nelas estão presentes elementos tanto da dominação como da resistência, tanto das contradições e conflitos como do conformismo.

126

Essa hipótese é reforçada por Spink (1997, p. 122), quando afirma ser consenso entre os pesquisadores da área a idéia de que as representações sociais, enquanto produtos sociais, “têm sempre que ser remetidas às condições sociais que as engendraram, ou seja, o contexto de produção, definido não apenas pelo espaço social em que a ação se desenrola como também a partir de uma perspectiva temporal”. Lima (1999) aponta a equivalência entre o termo caboclo e o termo índio, e ressalta a validade de estabelecer analogia entre os conceitos, na tentativa de compreensão do porquê o termo índio ganhou sentido concreto e foi aceito por quem o recebeu, e o termo caboclo é amplamente rejeitado, considerando que ambos são essencialmente rótulos de identificação, podendo ser ou não usados para a auto-identificação. A explicação, em sua opinião, pode vir do fato de que o caboclo possivelmente representa a desilusão de uma Amazônia civilizada, estando o tema da pobreza diretamente associado com o caboclo, enquanto o índio não é julgado pobre. Assim como o termo caboclo, o termo índio foi atribuído como uma categoria genérica de identificação utilizada pelos não-índios, sem relação com os povos indígenas referidos, não tendo até pouco tempo a sentido político de hoje. Também o ameríndio, segundo Lima, foi muitas vezes tido como preguiçoso ou “inapto para a civilização”, mas essas características eram explicadas por sua distinção étnica, que justificava um comportamento econômico diferente do comportamento do branco. A diferença étnica foi, e em muitos locais da Amazônia ainda é, vista em termos evolutivos, quando a tal “indolência” do ameríndio é considerada resultado do “primitivismo” de sua raça, visões essas antigos constituintes do imaginário sobre esses povos. Para Castoriadis (1982, p. 192) não se pode compreender o que foi o que é a história humana, fora da categoria do imaginário, pois o simbolismo escolhido em cada sociedade tem implicações que ultrapassam o real e o racional, repousando nas elaborações imaginárias muitas respostas acerca das questões sobre a identidade coletiva, o que indica a necessidade de buscar a compreensão

127 do lócus, espaço do imaginário onde cada sociedade se constrói e se espelha. “Não podemos compreender uma sociedade sem um fator unificante, que fornece um conteúdo significado e o entrelace com as estruturas simbólicas.” Também Torres (2003) refere-se à importância do conhecimento do imaginário para a compreensão do mundo e da cultura dos atores sociais, ressaltando a interrelação entre os níveis subjetivo e objetivo nessa composição. Segundo ela: O mundo social-histórico é um espaço prenhe de significações simbólicas. Há um verdadeiro entrelaçamento do mundo concreto resultante de processos históricos, materialmente determinado, com o mundo subjetivo construído pelas representações do imaginário, também históricas. É possível que em determinado momento a realidade vivida e experimentada nas e pelas consciências dos sujeitos, se choque com os dois níveis do seu mundo imaginário: o subjetivo e o objetivo. [...] Em vários momentos a história e o imaginário se confundem. Pode-se dizer que o imaginário se situa no campo das mediações entre a concreticidade da vida real e as representações que os sujeitos produzem de si e do mundo (TORRES, 2003, p. 57).

Essa construção mediada entre a vida concreta e a representada pessoal e socialmente à qual se refere Torres é, mais uma vez, insinuada nas respostas sobre a existência, ou não, de atitudes discriminatórias para com os caboclos em Manaus. Isso com relação aos próprios moradores da cidade, sem discriminação de origem, e por parte dos “de fora”, pessoas de outros Estados brasileiros ou mesmo estrangeiros.

Tabela 11 Existe discriminação para com os “caboclos” em Manaus? Por que você acha isso? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

More na

Não.

2

MA

F

Negr a

Sim, porque dizem “que aqui só tem índio”.

3

MA

F

more na

Não.

4

PA

M

more no

Sim, porque “as pessoas do sul se acham superiores”.

128 5

AM

F

branc a

Sim, “por parte das famílias ricas, porque são pessoas mesquinhas”.

6

RO

M

negr o

Sim, mas não sabe explicar por que.

7

AM

M

more no

Não.

8

AM

M

more no

Sim, mas não sabe explicar por que.

9

MT

F

more na

Não sabe dizer.

10

MA

M

branc o

Sim, porque “os caboclos são discriminados pela aparência”.

11

AM

F

branc a

Sim, mas não sabe explicar por que.

12

AM

M

pard o

Sim, “pelos estrangeiros”, porque “eles se acham melhores”.

13

AM

M

branc o

Não sabe dizer.

14

AM

M

more no

Sim, “de vários tipos”, porque “os caboclos são tratados mal”.

15

AM

M

pard o

Não.

16

AM

F

more no

Sim, porque “tem muitas pessoas que se acham melhores e não reconhecem que também fazem parte disto. Hoje muitas já perderam a sua dignidade”.

17

AM

F

more na

Sim, “como pessoas analfabetas”, porque “muitos deles vêm dos interiores e não têm estudo”.

18

AM

M

more no

Não.

19

AM

F

branc a

Sim, “pela falta de condições dos caboclos”.

Nº.

Natur al

20

AM

M

more no

Sim, “por causa do racismo” e porque “não dão oportunidade”.

21

AM

F

more no

Sim, porque “as pessoas tomam as terras que eles têm direito”.

22

AM

F

branc a

Sim, porque “muitas pessoas negam suas origens e valorizam só o que vem de fora. Os caboclos são mal vistos pela sociedade e muitas pessoas acreditam que pessoas do interior são limitadas de conhecimento, e que só sabem plantar e colher”.

23

AM

M

more no

Sim, porque “a sociedade separa os bons dos maus”.

Tabela 11 (cont.) S exo

Cor

Respostas

129 24

PA

F

branc a

Sim, porque “existe muita ignorância das pessoas e os caboclos sentem dificuldade ao procurar emprego com alto grau de intelectualidade”.

25

AM

F

more na

Sim, porque “são pessoas com origem e costumes indígenas e a sociedade não sabe que não precisa ser igual pra ter seu valor respeitado”.

26

AM

M

branc o

Sim, “por causa da sua raça e do seu comportamento”.

27

PA

F

more na

Sim, porque “há muita gente irônica e racista que não se conforma com sua origem”.

28

AM

F

more na

Sim, “de alguns”.

29

RR

F

pard a

Sim, como “índio, burro e outras coisas, porque as pessoas nem sabem o que significa o termo”.

30

AM

M

more no

Sim, “por causa da aparência. Já vi caboclos inteligentes perderam o emprego por não ter aparência do tipo branco, olhos claros etc.”

Tabela 12 Você acredita que há preconceito por parte dos “de fora” para com o caboclo amazonense? Por que você acha isso? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Sim, “pelo tipo de roupa que usam” (os caboclos).

2

MA

F

negr a

Sim, “falam que aqui só tem índio”.

3

MA

F

more na

Sim, “criticam as diferenças”.

4

PA

M

more no

Sim, “falam mal do caboclo”.

5

AM

F

branc a

Sim, “pessoas de fora acham que somos tudo índio”.

6

RO

M

negr o

Sim, “nos acham inferiores”.

7

AM

M

more no

Não sabe.

8

AM

M

more no

Sim, não sabe dizer de que tipo.

9

MT

F

more na

Não sabe.

10

MA

M

branc o

Sim, “acham que todo caboclo é burro por causa do passado”.

11

AM

F

branc a

Não.

12

AM

M

pard

Sim, “eles se acham melhores”.

130 o 13

AM

M

branc o

Sim, não sabe dizer de que tipo.

14

AM

M

more no

Sim, “são tratados mal”.

15

AM

M

pard o

Sim, “não dão valor ao caboclo”.

Tabela 12 (cont.) Nº.

Natur al

16

AM

17

S exo

Cor

Respostas

F

more no

Não sabe.

AM

F

more na

Sim, “acham que os caboclos amazonenses são analfabetos”.

18

AM

M

more no

Sim, “acham que todo mundo é índio porque não estão ligados no nosso dia-a-dia”.

19

AM

F

branc a

Sim, não sabe dizer de que tipo.

20

AM

M

more no

Não.

21

AM

F

more no

Sim, “acham que os caboclos ainda usam arco e flecha”.

22

AM

F

branc a

Sim, não sabe dizer de que tipo.

23

AM

M

more no

Sim, porque “sabem apenas sobre sua cultura e sua tecnologia e somos discriminados pela cor”.

24

PA

F

branc a

Sim, não sabe dizer de que tipo.

25

AM

F

more na

Sim, “pensam que só porque são de fora são melhores”.

26

AM

M

branc o

Sim, “por causa da sua raça”.

27

PA

F

more na

Sim, porque “eles não têm senso”

28

AM

F

more na

Sim, “eles pensam que na Amazônia só existe índio”.

29

RR

F

pard a

Sim, “pensam que somos todos índios, e ainda por cima sem inteligência”.

30

AM

M

more no

Sim, “eles acham que aqui só existem bichos pelas ruas, malocas e índios, pois é isso que é divulgado da região”.

Pode-se dizer que as questões sobre discriminação mobilizaram bastante os entrevistados, mesmo aqueles que disseram não ter interesse pelo assunto, e até alguns que haviam dito não conhecer o termo caboclo. Estereótipos ligados à

131 idéia de pobreza, pouca inteligência, má aparência (ou feiúra mesmo), classe social inferior etc, podem ser facilmente identificados, no caso como provindo de outros, que não os sujeitos da pesquisa. Apenas dois não opinaram, e cinco acreditam que não exista discriminação, tendo a grande maioria afirmado que os caboclos, incluindo-se ou não eles próprios na categoria, são discriminados de alguma forma. Quanto à discriminação ou preconceito pelos “de fora, o resultado foi semelhante,

observando-se

nesse

caso

predominância

de

comparações

negativas com relação à inferioridade intelectual e a classificação aos caboclos na categoria de índios, soando com um sentido de rebaixamento. Vale ressaltar que essa grande maioria que antes havia se colocado em posição distanciada da categoria em foco, agora inconscientemente nela se insere, contrapondo-se imediatamente à identificação como índio, rebaixado a um status inferior ao depoente. O índio idealizado deixa de existir e a “triste figura” do nativo detratado pelos naturalistas, hoje desarticulado de suas tradições e confinado em reservas, parece se sobrepor. Sobressai pelo que parece, uma necessidade de incorporar o papel social mais vantajoso no momento, o que é explicado por Goffman (1985) como uma tendência comum quando o indivíduo se apresenta diante dos outros. Nessa situação seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade. A propósito, Torres (2003, p. 90) observa a existência de um conflito, e mesmo de vergonha quanto à assunção de uma identidade étnica na Amazônia: Assumir a identidade étnica e viver a condição humana de índio, caboco, negro e mulher na Amazônia – onde a dominação e as relações de poder têm endereços bem definidos – implica enfrentamento com as estruturas de poder. [...] A espoliação dos povos indígenas parece ter levado os nativos a vivenciarem duas situações: a primeira está relacionada a uma atitude crítica frente às relações de poder por parte daquelas pessoas que assumem a sua identidade étnica. A consciência de si, de sua raça e de sua condição social possibilitam ao sujeito uma percepção mais abrangente em relação à sociedade e à história, e vai aclarando à medida que se caminha nessa história. A segunda vincula-se ao aspecto de vergonha que muitos nativos têm de suas origens. E não cause espanto constatar que a vergonha étnica atinge um universo significativo na Amazônia.

132

Na construção de identidades, reforça Castells (2000, p. 24), utiliza-se “matéria-prima fornecida pela história, geografia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais”, sendo os significados em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social. [...] em linhas gerais, quem constrói a identidade coletiva, e para quê essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como de seu significado para aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem.”

Essa forma de enxergar, de ver o outro como alguém que nada tem a ver com a gente, quando na verdade “a alteridade atravessa o que somos” (JOVCHELOVITCH, 1997, p. 81), poderia ser interpretada, talvez, como uma forma de distanciamento ou não-reconhecimento em si mesmo de semelhanças com esse outro socialmente estigmatizado. As tabelas 13 e 14 mostram as respostas sobre valorização social e pessoal.

Tabela 13 Você acha que o caboclo amazonense se sente socialmente valorizado? Por quê? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Não, “as pessoas de fora acham que não temos educação”.

2

MA

F

negr a

Sim, “porque têm a sua própria cultura”.

3

MA

F

more na

Sim, não sabe explicar porque.

4

PA

M

more no

Não, não sabe explicar porque.

5

AM

F

branc a

Não, porque “há discriminação”.

6

RO

M

negr o

Não, não sabe explicar porque.

7

AM

M

more no

Não sabe.

133 8

AM

M

more no

Não sabe.

9

MT

F

more na

Não sabe.

10

MA

M

branc o

Sim, porque “tem escola, hospital, trabalho...”.

11

AM

F

branc a

Sim, não sabe explicar porque.

12

AM

M

pard o

Não sabe.

13

AM

M

branc o

Não, não sabe explicar por que.

14

AM

M

more no

Não, não sabe explicar por que.

15

AM

M

pard o

Não, não sabe explicar por que.

16

AM

F

more no

Não, “geralmente eles são desvalorizados pelos outros”.

17

AM

F

more na

Não, não sabe explicar por que.

18

AM

M

more no

Sim, não sabe explicar por que.

19

AM

F

branc a

Não, porque “os caboclos não têm valor social”.

20

AM

M

more no

Não, “por causa das diferenças”.

21

AM

F

more no

Não, porque “ainda hoje discriminam muito as pessoas por achar que deviam morar no mato”.

22

AM

F

branc a

Não, porque “é difícil encontrar alguém do interior ou daqui em uma classe social elevada”.

23

AM

M

more no

Não, “a prova tá aí, no dia a dia”.

24

PA

F

branc a

Não, “porque na sociedade se tira somente a sua cultura, mas seus valores como pessoas são negados”.

25

AM

F

more na

Sim, porque “está ganhando respeito”.

Tabela 13 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

26

AM

M

branc o

Não, “porque não podem mostrar sua capacidade”.

27

PA

F

more na

Não, “porque é cada vez mais esquecido com o passar dos anos”.

28

AM

F

more na

Não, “porque a valorização é financeira, e isso não tem”.

29

RR

F

pard a

Não, “porque são tratados com descaso, com ironia”.

134 30

AM

M

more no

Não, “porque vive numa região pouco divulgada e valorizada”.

Tabela 14 Você acha que o caboclo amazonense se dá valor pessoal ou socialmente? Por quê? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Não, não sabe explicar por que.

2

MA

F

negr a

Sim, porque “têm a sua própria cultura”.

3

MA

F

more na

Sim, não sabe explicar por que.

4

PA

M

more no

Não, porque “acostumou achar que é inferior”.

5

AM

F

branc a

Não, “as pessoas têm vergonha do que são”.

6

RO

M

negr o

Não, “porque muitas vezes ele nem admite o que é”.

7

AM

M

more no

Não sabe.

8

AM

M

more no

Não sabe.

9

MT

F

more na

Não sabe.

10

MA

M

branc o

Sim, porque “não se rebaixam nas opiniões”.

11

AM

F

branc a

Sim, não sabe explicar por que.

12

AM

M

pard o

Não sabe.

13

AM

M

branc o

Sim, não sabe explicar por que.

14

AM

M

more no

Não, não sabe explicar por que.

1 5

AM

M

pard o

Não, não sabe explicar por que.

16

AM

F

more no

Depende, “alguns se dão valor, outros não”.

17

AM

F

more na

Sim, “porque falam mal dele e ele tenta provar o contrário”.

18

AM

M

more no

Sim, “eles são muito esforçados”.

19

AM

F

branc

Sim, “porque trabalha para seu próprio sustento”.

135 a 20

AM

M

more no

Não, “por causa das diferenças”.

21

AM

F

more no

Não, “porque se acha discriminado e esconde sua origem”.

22

AM

F

branc a

Sim, “muitos tentam mostrar que são capazes mesmo em meio ao preconceito”.

23

AM

M

more no

Sim, “porque luta pra mostrar o seu valor à sociedade”.

24

PA

F

branc a

Sim, “eles tentam de alguma forma mostrar que são pessoas que querem e devem ter os mesmos direitos que as outras”.

25

AM

F

more na

Sim, “está ganhando respeito”.

26

AM

M

branc o

Sim, “porque lutam para sustentar sua família”.

Tabela 14 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

27

PA

F

more na

Não, “porque as pessoas de fora discriminam e tem gente que prefere não ser discriminado”.

28

AM

F

more na

Sim e não, “depende do seu esforço para trabalhar e estudar”.

29

RR

F

pard a

Sim, “muitos estão tentando se valorizar mais”.

30

AM

M

more no

Sim, “porque cumpre bem com seus deveres e regras”.

Questionados sobre se acreditavam que o caboclo se sentia valorizado socialmente, a grande maioria respondeu que não, o que reforça a inferência de que, neste momento, alguns entrevistados provavelmente estão se colocando no papel de caboclos. Uma entrevistada do sexo feminino, cor branca (nº 19), amazonense, que anteriormente disse achar os caboclos bonitos porque eram “pessoas humildes”, e nas respostas subseqüentes parece ter reforçado esse “olhar colonizador”, agora reafirma esta posição (tabela 13), ao afirmar que os caboclos não são valorizados socialmente porque “os caboclos não têm valor social”. Sendo as características físicas um forte indicativo de distinção social em nosso meio, a diferença de cor da pele pode significar um “salvo-conduto” para fora de uma classificação que estigmatiza e é socialmente desvantajosa. A tese

136 do branqueamento como forma de aperfeiçoamento racial, tem eco na supervalorização do padrão ariano como ideal estético que ainda vigora no país, a despeito dos esforços em sentido contrário. Diz Torres (2003, p. 111), que é importante ser lembrado que a idéia de raça “brota de uma construção mental forjada para fundamentar um novo padrão de poder, o poder mundial de padrão branco. Raça, etnia, povo, população são conceitos convergentes que engendram relações de poder.” Não se pretende tomar a entrevistada como bode expiatório e exemplo de racismo, mas evidenciar um tipo de preconceito que existe efetivamente aqui como em qualquer lugar do Brasil, e se fortalece insidiosamente nas relações cotidianas. Complementa Torres que: O racismo é adquirido muito cedo na infância e implica na classificação de categorias raciais: índio, caboco, mameluco, negro, cafuzo... Desde cedo, as crianças são levadas a perceber similaridades e diferenças nas pessoas e essa percepção desencadeia um processo de categorização. O problema não está na categorização, pois vivemos num país que inclui no seu espaço territorial diferentes nações. A questão central consiste em perceber a base do racismo construída na família, onde a aprendizagem do mundo social se dá através de um processo educativo de nomeação dos indivíduos e coisas (TORRES, 2003, p. 112).

Sobre a auto-valorização do caboclo, a metade acredita que o caboclo se valoriza, ou pelo menos tenta se valorizar. Sobressaiu nas respostas positivas a imagem de alguém que “luta” pra mostrar seu valor, pra melhorar sua condição intelectual e econômica, que não se rebaixa etc, como uma espécie de reação emocional a um sentimento de opressão. Nas tabelas 15 e 16 procurou-se identificar se o termo é de uso comum no contexto dos entrevistados; como eles vêem ou o fazem uso do mesmo.

Tabela 15 Você já viu alguém se sentir incomodado (a) por ser chamado de caboclo (a)? Qual foi a reação? Nº.

Natur al

1

AM

S exo F

Cor more

Respostas Não.

137 na 2

MA

F

negr a

Sim, “reagiu agressivamente”.

3

MA

F

more na

Sim, “a reação foi ruim”.

4

PA

M

more no

Sim, “não ficou satisfeito”.

5

AM

F

branc a

Sim, mas não lembra a reação.

6

RO

M

negr o

Sim, mas não sabe explicar a reação.

7

AM

M

more no

Não.

8

AM

M

more no

Não.

9

MT

F

more na

Não.

10

MA

M

branc o

Sim, “a pessoa saiu do local”.

11

AM

F

branc a

Sim, “a pessoa ficou agressiva”.

12

AM

M

pard o

Sim, “ficou aborrecido”.

13

AM

M

branc o

Sim, “ficou com raiva”.

14

AM

M

more no

Não.

15

AM

M

pard o

Sim, “ficou ofendido”.

16

AM

F

more no

Sim, “várias pessoas”; a reação foi de agressividade.

17

AM

F

more na

Sim, “ficou triste, de cabeça baixa”.

Tabela 15 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

18

AM

M

more no

Sim, “reagiu com violência”.

19

AM

F

branc a

Sim, “reagiu com raiva”.

20

AM

M

more no

Sim, “ficou com raiva”.

21

AM

F

more no

Sim, “teve uma reação explosiva”

22

AM

F

branc

Sim, “a pessoa ficou com vergonha”.

138 a 23

AM

M

more no

Não.

24

PA

F

branc a

Não.

25

AM

F

more na

Não.

26

AM

M

branc o

Sim, “a pessoa ficou magoada”.

27

PA

F

more na

Não.

28

AM

F

more na

Sim, “ficou zangado”.

29

RR

F

pard a

Sim, “já vi várias pessoas ficarem zangadas”.

30

AM

M

more no

Não.

Tabela 16 Você já usou o termo caboclo no sentido pejorativo? Tendo sido usado, por que e em que sentido? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Sim, mas não lembra o sentido.

2

MA

F

negr a

Não.

3

MA

F

more na

Não.

4

PA

M

more no

Não.

5

AM

F

branc a

Não.

6

RO

M

negr o

Sim, “pra xingar uma pessoa”, porque “somos todos preconceituosos”.

7

AM

M

more no

Não.

8

AM

M

more no

Não.

9

MT

F

more na

Não.

10

MA

M

branc o

Sim, “para humilhar a pessoa”, porque “estava com raiva e não me controlei”.

11

AM

F

branc a

Sim, mas não lembra o sentido.

139 12

AM

M

pard o

Sim, “por brincadeira”, no sentido de “rebaixar um pouco a pessoa”.

13

AM

M

branc o

Sim, “para humilhar”.

14

AM

M

more no

Não.

15

AM

M

pard o

Não.

16

AM

F

more no

Não.

17

AM

F

more na

Não.

18

AM

M

more no

Não.

Tabela 16 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

19

AM

F

branc a

Não.

20

AM

M

more no

Não.

21

AM

F

more no

Não.

22

AM

F

branc a

Sim, “pra fazer raiva”.

23

AM

M

more no

Não.

24

PA

F

branc a

Não.

25

AM

F

more na

Não.

26

AM

M

branc o

Sim, “pra desmoralizar a pessoa”

27

PA

F

more na

Não.

28

AM

F

more na

Não.

29

RR

F

pard a

Sim, “sem querer”.

30

AM

M

more no

Não.

Dois terços dos sujeitos, inclusive alguns que negaram a familiaridade com o termo, afirmaram já ter visto alguém se sentir incomodado ou ofendido por ter

140 sido chamado de caboclo, confirmando o uso pejorativo do termo de que fala Lima (2003) e outros estudiosos. As reações foram de raiva, vergonha, mágoa, tristeza, aborrecimento e até revide, o que atesta o conteúdo ideológico que o termo ainda carrega, mobilizada pelo interlocutor como um instrumento de agressão ao outro. Quanto ao uso do termo pelos entrevistados no sentido pejorativo, a maior parte alegou não ter feito uso do mesmo desta forma, e aqueles que o fizeram, declararam a intenção de “humilhar”, “rebaixar”, “xingar” e “desmoralizar” o interlocutor. No uso pejorativo, a palavra traz consigo toda a carga secular de preconceito que tem sido lançada contra o ameríndio pelo simples fato dele “existir” fora dos padrões concebidos e institucionalizados como os melhores e mais adequados a uma forma social de vida conhecida como “civilização”. Esse “outro” aparece aqui numa relação de alteridade que não se refere ao objeto visado em sua essência, mas sim como uma qualificação que lhe é atribuída do exterior, em termos de tipificação desvalorizante e estereotipada do diferente. Nessa construção, analisa Jodelet (1998, p. 51), “se movem interesses que servem à comunidade, no interior da qual se define a identidade”. Para ela, a passagem do próximo ao alter implica o social, através da pertença ao grupo que é o palco dos processos e práticos da transformação em alteridade... [...] É levando em conta os processos, simbólicos e práticos, de marginalização que se pode estudar a alteridade como forma específica de relação social, superando a sua definição puramente negativa de que o outro não é o mesmo (JODELET, 1998, p. 51).

Lima (1999) se reporta à etimologia considerada por ela mais adequada ao termo, chamando a atenção para os aspectos históricos que hoje definem o sentido de alteridade, pois na Amazônia da época da colonização caboclo foi inicialmente usado como sinônimo de tapuio, termo genérico usado pelos próprios índios para referir-se a indivíduos de outros grupos no sentido de desprezo. Tal como tapuio, o termo caboclo expressa uma espécie de expatriação, de banimento, de exclusão.

141 Tabela 17 Alguém já chamou você de caboclo(a)? Como você se sentiu ao ser chamado(a) assim? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Não.

2

MA

F

negr a

Não.

3

MA

F

more na

Não, “porque não sou”.

4

PA

M

more no

Sim, “não me incomodei porque sou da terra”.

5

AM

F

branc a

Não.

6

RO

M

negr o

Sim, “não me senti à vontade porque causou uma impressão de inferioridade”.

7

AM

M

more no

Não.

8

AM

M

more no

Não.

9

MT

F

more na

Não.

10

MA

M

branc o

Sim, “mas não me incomodei porque sei que isso não é feio”.

11

AM

F

branc a

Não.

12

AM

M

pard o

Sim, “não me senti ofendido”.

13

AM

M

branc o

Não.

14

AM

M

more no

Não.

15

AM

M

pard o

Sim, “achei normal”.

16

AM

F

more no

Sim, várias vezes. “Me senti à vontade porque faço parte”.

Tabela 17 (cont.) Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

17

AM

F

more na

Não.

18

AM

M

more no

Sim, “fiquei constrangido”.

19

AM

F

branc a

Sim, “achei normal”.

20

AM

M

more

Não.

142 no 21

AM

F

more no

Sim, “mas não liguei”.

22

AM

F

branc a

Não.

23

AM

M

more no

Não.

24

PA

F

branc a

Não.

25

AM

F

more na

Não.

26

AM

M

branc o

Não.

27

PA

F

more na

Não.

28

AM

F

more na

Não.

29

RR

F

pard a

Sim, “fiquei com raiva, mas não sabia o que significava na época”.

30

AM

M

more no

Não

Perguntados se já tinham sido referidos pelo termo, a maioria declarou que não. Outros consideraram normal serem chamados pelo termo e poucos disseram ter sentido incômodo com a referência. Um dos entrevistados (nº. 6), que havia usado o termo para “xingar” uma pessoa, se sentiu “inferiorizado” quando foi tratado dessa forma, reforçando a afirmação de Lima (1999), compartilhada por Wagley (1985), sobre o uso freqüente do termo como categoria relacional, podendo ser aplicado a qualquer grupo social ou pessoa, indicando uma consideração de status inferior para quem é referido e uma afirmação de identidade superior para quem está falando. Relacionando as respostas com aquelas sobre preconceito e valorização, pode-se inferir a possibilidade desse tipo de ocorrência estar sendo camuflado, pelo fato de que, assumindo ter sido referido dessa forma, implica em ser identificado socialmente como tal, o que seria uma admissão de desprestígio, considerando a carga negativa do termo. A nominação, como a nomeação, é um ato de definição de identidades e atributos sociais. No caso de uma palavra com sentido de exclusão como caboclo (em muitos aspectos o pária da sociedade colonial

143 amazônica), o nome atribui uma identidade que prende o grupo e os sujeitos a uma imobilidade social. A permanência do nome restringe as possibilidades de emancipação (LIMA, 1999, p. 27).

As tabelas 18 e 19 mostram a quem os entrevistados atribuem a “identidade” cabocla, se a um tipo específico ou a todos os amazonenses.

Tabela 18 Que tipo de pessoa você identifica como sendo um “caboclo”? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

“Minha mãe”.

2

MA

F

negr a

Não sabe dizer.

3

MA

F

more na

“Os habitantes da terra”

4

PA

M

more no

“O homem do interior”.

5

AM

F

branc a

“Todos nós”.

6

RO

M

negr o

“Somos todos nós”.

7

AM

M

more no

“Os ribeirinhos”.

8

AM

M

more no

Não sabe dizer.

9

MT

F

more na

Não sabe dizer.

10

MA

M

branc o

“Uma pessoa que trabalha e mora na floresta”.

11

AM

F

branc a

Não sabe dizer.

12

AM

M

pard o

Não sabe dizer.

13

AM

M

branc o

Não sabe dizer.

14

AM

M

more no

Não sabe dizer.

15

AM

M

pard o

“Pessoa de garra, de fibra”.

16

AM

F

more no

“Pessoas que não perderam seus costumes e suas origens”.

17

AM

F

more na

“Pessoa trabalhadora que faz sacrifícios pra sustentar sua família”.

18

AM

M

more

“Aquelas que vestem mal”

144 no 19

AM

F

branc a

“Pessoa simples, humilde, que mora nos municípios”.

20

AM

M

more no

“Pessoa rude, misturado com índio”.

21

AM

F

more no

“Um homem de cor escura e fisionomia diferente dos outros”.

22

AM

F

branc a

“Aquele que não se envergonha dos traços que possui e que respeita a sua raça, sua cultura”.

23

AM

M

more no

Não sabe dizer.

24

PA

F

branc a

“Uma pessoa que nasce dentro da Amazônia e carrega o peso do trabalho desde muito cedo”.

25

AM

F

more na

“Uma pessoa com costumes e raízes indígenas”.

26

AM

M

branc o

Pessoa “com traços amazonenses”.

27

PA

F

more na

Não sabe dizer.

28

AM

F

more na

Não sabe dizer.

29

RR

F

pard a

“Todos do Amazonas”.

30

AM

M

more no

“Uma pessoa que vive numa boa e curte a natureza”.

Nas respostas sobre quem pode ser identificado como caboclo, novamente emergem os conceitos mais conhecidos relacionados à origem e à descendência, assim como a imagem estereotipada do amazônida típico, anteriormente mencionada.

Tabela 19 Em sua opinião, todo amazonense é caboclo? Por quê? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Sim, porque “é mistura de índio com branco”.

2

MA

F

negr a

Sim, porque “são todos indígenas”.

3

MA

F

more na

Sim, porque “são mestiços”.

4

PA

M

more no

Sim, porque “existe uma parte de sangue indígena”.

145 5

AM

F

branc a

Sim, “por causa da origem”.

6

RO

M

negr o

Não, mas não sabe explicar a distinção entre o caboclo e os outros.

7

AM

M

more no

Não, porque “a maioria nasce em Manaus e outros na Amazônia”.

8

AM

M

more no

Não sabe dizer.

9

MT

F

more na

Não, porque “acho isso uma leseira”.

10

MA

M

branc o

Não, porque “pode somente ter nascido aqui, mas não viver aqui”.

11

AM

F

branc a

Sim, porque “são da região”.

12

AM

M

pard o

Sim, porque “é povo”.

13

AM

M

branc o

Sim, porque “somos filhos da terra”.

14

AM

M

more no

Não sabe dizer.

15

AM

M

pard o

Sim, porque “é descendente de índio”.

16

AM

F

more no

Sim, porque “nascemos aqui e temos todos os costumes”.

17

AM

F

more na

Não, porque “caboclos são pessoas que moram nos interiores e não na cidade de Manaus”.

18

AM

M

more no

Sim, porque “somos todos descendentes”.

19

AM

F

branc a

Não, porque “nem todos os amazonenses são totalmente amazonenses”.

20

AM

M

more no

Não, porque “são muitas etnias”; e “caboclo é uma pessoa rude, misturado com índio”.

21

AM

F

more no

Sim, “não é o que dizem, mas é verdade, porque todos temos descendência de caboclos”.

22

AM

F

branc a

Sim, porque “somos a junção de duas culturas”.

23

AM

M

more no

Acho que sim, “por dedução”.

24

PA

F

branc a

Não, porque “há amazonenses que nascem na classe alta, e não no sistema social do caboclo”.

25

AM

F

more na

Não, porque “muitos não têm a mesma origem que o caboclo”.

26

AM

M

branc o

Não, porque “nem todos têm esses traços”.

27

PA

F

more na

Sim, porque “possui uma cultura hereditária”.

Tabela 19 (cont.)

146 Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

28

AM

F

more na

Sim, pois “quer queiram ou não, os que são nascidos aqui fazem parte da história dos nossos antepassados”.

29

RR

F

parda

Sim, porque “descende do índio e do branco, e possui costumes iguais, mesmo não querendo”.

30

AM

M

more no

Sim, “por causa da miscigenação”

Na questão “se todo amazonense é caboclo”, pouco mais da metade (17 entrevistados) respondeu que sim, dois não quiseram opinar e o restante disse que não. Aparecem novamente aqui nas respostas positivas os conceitos standardizados pela escola e os meios de comunicação sobre o caboclo como mistura de raças, produto da miscigenação, mestiço, descendente de índio etc. As negativas reafirmam a diferença, excluindo-se da categoria.

Tabela 20 Você se classificaria como um(a) caboclo(a)? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Sim, “porque sou filha de uma”.

2

MA

F

negr a

Sim, “porque acho aqui tudo interessante e positivo”.

3

MA

F

more na

Não, “porque não me sentiria bem”.

4

PA

M

more no

Sim, “porque sou da terra”.

5

AM

F

branc a

Sim, “porque somos dessa origem”.

6

RO

M

negr o

Sim, porque “nasci de uma mistura”.

7

AM

M

more no

“Não sei dizer”.

8

AM

M

more no

“Não sei”.

9

MT

F

more na

Não, porque “nenhum ser humano deve ser chamado de caboclo”.

10

MA

M

branc o

Sim, porque “já me tornei um”.

11

AM

F

branc

Não.

147 a 12

AM

M

pard o

Talvez, porque “como todo mundo vive aqui, passa a ser”.

13

AM

M

branc o

Sim, porque “nasci aqui”.

14

AM

M

more no

“Não sei”.

15

AM

M

pard o

Sim, porque “Tenho sangue de caboclo sofrido e guerreiro”.

16

AM

F

more no

Sim, “mas quando digo que faço parte não quer dizer que sou cabocla, mas eu nasci aqui e considero muito o caboclo e por isso digo que sou um deles”.

17

AM

F

more na

Sim, porque “já que eu moro no Amazonas e as pessoas dizem que aqui só mora caboclo e índio, eu tenho que me sentir uma cabocla, já que faço parte desta cidade.”

Nº.

Natur al

18

AM

M

more no

Sim, porque “moro no Amazonas e todo amazonense é caboclo para o pessoal de fora”.

19

AM

F

branc a

Sim, porque “sou do Amazonas”.

20

AM

M

more no

Sim, porque “eu nasci aqui e minha família é daqui”.

21

AM

F

more no

Sim, porque “meu pai é descendente de uma cabocla”.

22

AM

F

branc a

Sim, porque “nasci no Amazonas e faço parte dessa miscigenação. Sou cabocla e isso me faz sentir orgulho”.

23

AM

M

more no

Sim, “por causa das raízes, da cor”.

24

PA

F

branc a

Não, “porque o meu aspecto é contraditório ao dos caboclos amazonenses”.

25

AM

F

more na

Não, porque “simplesmente não tenho origem na região”.

26

AM

M

branc o

Não, porque “eu tenho sangue maranhense”.

27

PA

F

more na

Sim, porque “é uma origem hereditária, por mais que seja esquecida”.

28

AM

F

more na

Sim, “sou nascida e criada aqui, tenho a cultura daqui, por que seria de outro modo?”.

29

RR

F

pard a

Sim, “porque sou cabocla, gosto de viver a vida à vontade”.

30

AM

M

more no

Sim, “por todos os atributos (no bom sentido) que se referem ao caboclo”.

Tabela 20 (cont.) S exo

Cor

Respostas

148 Contraditoriamente, na auto-classificação como caboclo, dois terços declaram que se incluiriam na categoria. No entanto, ao invés de se constituírem afirmações de identidade, algumas declarações deixam entrever como que uma obrigatoriedade em se declarar caboclo pelo fato de ter nascido aqui, ser descendente de caboclo e de índio etc. Três respostas, em particular, de amazonenses (um homem e duas mulheres), com traços característicos de descendência indígena, reforçam esta proposição:

A primeira fala como se fizesse uma concessão ao dizer-se cabocla: “quando digo que faço parte não quer dizer que sou cabocla, mas eu nasci aqui e considero muito o caboclo e por isso digo que sou um deles”. Outra fala como se estivesse sendo obrigada pelas circunstâncias e pela pressão social: “já que eu moro no Amazonas e as pessoas dizem que aqui só mora caboclo e índio, eu tenho que me sentir uma cabocla, já que faço parte desta cidade”; outro para se enquadrar a uma classificação imposta: “moro no Amazonas e todo amazonense é caboclo para o pessoal de fora”. Outros entrevistados, naturais do Amazonas, buscam justificativa na origem dos pais ou na cor da pele para fugir à classificação: “simplesmente não tenho origem na região”; “eu tenho sangue maranhense”; “o meu aspecto é contraditório ao dos caboclos amazonenses”. A propósito dessa postura, Silva (1996) considera que: O homem com caracteres físicos europeus e portador de cultura urbana, se sente como um sujeito branco e pode mesmo ver todos os demais amazônidas que têm biótipos não estritamente brancos, nem negros, através do estereótipo que lhes atribui a identidade cabocla (em muitos casos, mesmo independente da classe social em que este personagem esteja inserido). As lentes pelas quais cada ser-homem é visto, na Amazônia, classificando-a nesta ou naquela categoria étnicocultural, têm suas origens constitutivas, por um lado, nas culturas (e nos estereótipos que nelas estão contidos) e, por outro lado, nas posições de classe do indivíduo que julga (e do grupo de semelhantes a que ele pertence) e do indivíduo julgado e classificado com esta ou aquela identidade (SILVA, 1996, p. 231).

Lima (1999) explica esta recusa no sentido de que as pessoas buscam se preservar de um estigma que pesa sobre os caboclos há séculos: a noção de inferioridade, herança da descendência indígena. Diz ela:

149

... as palavras não apenas criam, mas conservam as coisas que criam, como as estruturas e as representações sociais. Porque carrega a história colonial de subordinação, a palavra caboclo compromete o destino de uma população. O efeito do nome sobre a identidade é inegável – o nome condensa a própria essência da identidade. Aceitar o nome caboclo é aceitar a derrogação (LIMA, 1999, p. 28).

Tabela 21 O que é, afinal, ser “caboclo”, na sua concepção? Nº.

Natur al

S exo

Cor

Respostas

1

AM

F

more na

Ser muito à vontade com as pessoas que lhe rodeiam.

2

MA

F

negr a

Uma mistura de raças. Todos nós somos caboclos.

3

MA

F

more na

Não sei o que responder por que preciso saber mais sobre o assunto.

4

PA

M

more no

Ser da Amazônia.

5

AM

F

branc a

Ter orgulho cada vez mais de ser brasileiro, amazonense, manauara.

6

RO

M

negr o

Ser da terra, ser uma mistura simples e agradável.

7

AM

M

more no

Não sei direito.

8

AM

M

more no

Não sei dizer.

9

MT

F

more na

Sei lá.

Nº.

Natur al

10

MA

M

branc o

Uma pessoa boa, acolhedora, prestativa etc.

11

AM

F

branc a

Não sei identificar.

12

AM

M

pard o

Não sei dizer.

13

AM

M

branc o

Pessoa culta que dá valor às suas origens.

14

AM

M

more no

Não sei definir.

15

AM

M

pard o

Povo guerreiro.

16

AM

F

more

Ser digno, ter sempre em mente o seu povo e sua cultura.

Tabela 21 (cont.) S exo

Cor

Respostas

150 no 17

AM

F

more na

Um homem livre que usa um modo de vida melhor para ele e sua família.

18

AM

M

more no

Gente do interior.

19

AM

F

branc a

Uma pessoa humilde que ficou um pouco restrita na sociedade.

20

AM

M

more no

Um homem que luta pra sobreviver.

21

AM

F

more no

Um homem que se veste diferente da sociedade.

22

AM

F

branc a

É junção de culturas, costumes. É a minha raça.

23

AM

M

more no

Pra mim não importa a raça. Importa saber a diferença de humano e “ser” humano.

24

PA

F

branc a

Nascer e se criar nas proximidades do Amazonas e ser uma pessoa lutadora desde cedo.

25

AM

F

more na

Quem tem o aspecto físico e os costumes típicos da região.

26

AM

M

branc o

Alguém com traços indígenas e que não vive na sociedade.

27

PA

F

more na

Alguém de origem cultural antiga.

28

AM

F

more na

Todas as pessoas que nasceram e moram no Amazonas.

29

RR

F

pard a

Ser valente, livre e feliz.

30

AM

M

more no

Ser o que você acha que é, não o que os outros dizem ser.

Quando solicitados a dar sentido ao termo, poucos alegaram não ter o que dizer a respeito. A grande parte dos entrevistados ressaltou as qualidades positivas do caboclo, projetando, talvez, a forma como gostariam de ser vistos pelos “de fora”. O imaginário de uma época que vê o indígena com os atributos de bom, valente, guerreiro é, em parte, resgatado e integrado aos estereótipos do homem amazônico. As condições que regem a constituição de toda a identidade, de acordo com Lisboa (2002b), são baseadas na afirmação da diferença, sendo constituída a partir de um espaço e de múltiplas relações marcadas pelo confronto com o

151 outro. A identidade é constituída num processo, está sempre incompleta, sempre sendo formada, mas socialmente necessitando ser reconhecida. A identidade, reforça Lima (1999, p. 29), é uma forma de representação dirigida a si próprio. É a visão de si, que em um contexto social diferenciado é relacionada a uma identidade coletiva. [...] A identidade de um grupo não está fora da existência de seus membros, não é algo metafísico ou exterior aos indivíduos, mas sim uma produção coletiva da somatória das contribuições individuais, no contexto de uma formação social particular.

Torres (2003, p. 92) refere-se à constituição da identidade como um “processo histórico-cultural que resulta do esforço do ser social em firmar a sua auto-imagem numa relação entre o eu e o mundo, aos outros e à sociedade.” Em uma parcela da população nativa, segundo ela, é possível perceber a existência de “um sentimento de amazonidade latente”, mas esse processo é prejudicado porque “o estigma da inferioridade e o vilipêndio étnico deixaram marcas indeléveis”, sendo o processo de construção da identidade dos amazônidas profundamente afetado. Nesse momento de retomada à figura mítica do caboclo, há como que uma espécie de ufanismo, uma sensação de pertencimento a uma “raça”, a brasileira. O homem amazônico neste momento parece encarnar o arquétipo indígena que traduz as raízes brasileiras, o dono da terra quando aqui aportou o estrangeiro. Por esse prisma, o caboclo é visto na sua dimensão ontológica: é em si mesmo valoroso, guerreiro, feliz. É o índio bom, portador de virtudes e qualidades de Rousseau. O “ser” caboclo, então, é ser índio na sua melhor acepção, é ser da “raça” brasileira. O “sentimento de amazonidade latente” de que fala Torres (2003), parece emergir espontaneamente do cipoal de contradições e preconceitos no qual se encontra submerso.

152

4. JUNTANDO OS PEDAÇOS: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO CABOCLO “Em que espelho se perdeu a minha face?” Cecília Meireles

A partir do material organizado, sobre o qual foram feitas considerações preliminares no sentido de interpretar o conteúdo explícito e implícito das verbalizações, três categorias28 centrais foram estabelecidas a partir dos dados empíricos para possibilitar análise mais acurada do seu conteúdo. Buscou-se, então, identificar as relações que essas representações guardam com o real, as condições que favoreceram a sua emergência e as discussões que podem ser articuladas entre a sua natureza epistêmica e o saber constituído, de maneira a favorecer uma compreensão teórica da realidade. Essa compreensão mais específica sobre um conjunto de informações a partir da fala e do comportamento dos sujeitos relativos ao tema, de acordo com Minayo (1996), deve trazer à tona as significações mais profundas que a pertinência a um grupo ou classe e uma época histórica determinada conferem a esses sujeitos. Porque cada ser humano, individualmente, em grupo ou sob a expressão histórica de classe é um ser significante. Nunca se pode compreender sua palavra ou seu gesto sem superar o presente ou sem projetá-lo para o futuro. As significações que descobrimos vem do ser humano e de seu projeto e se inscrevem por toda parte, na ordem das coisas e nas relações mediadas pelas estruturas enquanto ação humana objetivada (SARTRE apud MINAYO, 1996, p. 237).

3.1 O caboclo estereotipado: imaginário e representações

28

Conforme orientação metodológica proposta por Minayo (1993), p. 94.

153 Um homem de feições rudes em uma canoa, um rio-mar que se estende infinitamente, tendo ao fundo um horizonte interminável de vegetação. Perdido na paisagem, isolado, a imagem estereotipada do caboclo amazônico traduz em grande parte o seu status no imaginário social do amazonense citadino da atualidade. É uma figura distante da realidade barulhenta e cada vez mais agitada do homem urbano, principalmente o jovem, rodeado de estímulos diversos, cuja visão mais aproximada do paraíso é um moderno shopping center. Essa visão não é de todo negativa, mas encerra em si um reducionismo que circunscreve e inviabiliza maiores aprofundamentos. O horizonte verde que parece infindável reduz-se em si mesmo porque não é um horizonte do e para o caboclo, mas o limite que o encerra e o imobiliza no espaço-tempo. É no imaginário do paraíso amazônico que essa imagem se nutre. Esse homem só existe e é aceito porque se integra à paisagem, não a macula, nem a subverte: ele “é” a paisagem. Assim concebido, subtrai-se da compreensão do caboclo as condições de luta e de sacrifício que determinaram o seu processo adaptativo ao meio ambiente amazônico. O imaginário, nesse sentido, se sobrepõe ao real porque é mais aceitável e mais fácil de ser incorporado na atualidade, porque se abstrai dessa imagem a história perversa de vilipêndios e subjugações a que foi submetido o nativo, para que conformasse a sua vida nesses termos. Mas qual seria a razão de tão longa predominância de um imaginário construído e exportado pelos europeus quase sem retoques, particularmente no tocante à Amazônia e aos amazônidas? Berger (2000) refere-se ao que ele denomina “universos simbólicos” como objetivações sociais nos quais estão contidos toda a sociedade histórica e a biografia do indivíduo, como acontecimentos que se passam dentro deste universo, sendo o homem em sociedade um construtor do mundo. Implicitamente, então, estaria a capacidade humana de “desconstruir” esses universos e de transformá-los à sua vontade. Diz o autor que: Sendo produtos históricos da atividade humana, todos os universos socialmente construídos modificam-se, e a transformação é realizada pelas ações concretas dos seres humanos. [...] A realidade é

154 socialmente definida. Mas as definições são sempre encarnadas, isto é, indivíduos concretos e grupos de indivíduos servem como definidores da realidade (BERGER, 2000, p. 157).

Desta forma, orienta o autor (p, 157), “para entender o estado do universo socialmente construído em qualquer momento, ou a variação dele com o tempo, é preciso entender a organização social que permite aos definidores fazerem sua definição”, o que implica buscar a compreensão de como as conceituações da realidade se tornaram historicamente acessíveis e foram legitimadas até sua aceitação pelo senso comum. Segundo

Castoriadis

(1982,

p.

277),

“o

imaginário

social

é,

primordialmente, criação de significações e criação de imagens ou figuras que são o seu suporte.” É justamente das condições específicas da formação histórica brasileira, afirma Pesavento (1999), que vem essa predisposição para o predomínio do imaginário sobre o real, resultando que a perversidade das condições de realização do capitalismo no Brasil dão margem a um contexto em que a representação assume, de direito e de fato, preeminência sobre o real. O peso do simbólico sobrepõe-se à realidade: o parecer tem o efeito de ser e, como tal, é julgado e avaliado. A credibilidade do imaginário se impõe, mesmo que as condições concretas da existência neguem os discursos e as imagens que sobre a realidade se produzem. A aparência e a fachada têm alta significação e o detalhe é tomado pelo conjunto (PESAVENTO, 1999, p. 160).

Esse estereótipo do nativo amazônico funda suas raízes muito além, em tempo e espaço pretéritos, nas idéias pré-concebidas na Europa sobre a América muito antes dos conquistadores aqui aportarem. E é na Amazônia que eles vão encontrar posteriormente a “mais completa tradução” desse mito do paraíso perdido que permaneceu subliminar, mesmo quando os viajantes confrontaram o inferno no mesmo lugar. Essa é a matéria-prima, segundo Gondim (1994), que vai alimentar os sonhos (e os pesadelos) dos que os sucederam, pois a visão inaugural da Amazônia oferecida pelos cronistas viajantes vai fundamentar, enquanto matéria-prima, as deduções teóricas e, inversamente, estas servem de estofo aos sucessores, cujo estoque de informações impedem e/ou inibem a apreensão da variedade, da multiplicidade, da diferença, em suma, caem na cegueira da confirmação de verdades científicas (GONDIM, 1994, p. 10).

155 Castoriadis (1982), no entanto, chama a atenção para o cuidado quanto à análise

das

significações

imaginárias

sociais

quanto

à

sua

natureza

eminentemente conotativa, ou seja, estas não têm um significado exclusiva e claramente definido e não podem ser tomadas como definitivas. A tessitura dessa rede de significados, interminavelmente remissiva e intrincada quanto à sua ordenação, é um terreno pantanoso para o pesquisador e demanda cautela. O mundo das significações, diz ele, é um magma, isto é, as significações são compostos e não conjuntos. Uma significação é “um feixe indefinido de remissões intermináveis a outra coisa... estas outras coisas são sempre tanto significações como não-significações – aquilo a que se referem ou se relacionam às significações” (CASTORIADIS, 1982, p. 283-4). Assim sendo, continua Castoriadis, é em função de um sistema dessas significações que o mundo social é constituído e articulado na forma de um imaginário efetivo. É dessa forma, segundo ele, que cada sociedade define e elabora uma certa “ordem do mundo”, uma imagem do universo onde vive e do mundo natural, tentando constituir um conjunto significante onde estão inseridos os elementos considerados importantes para a coletividade, e esta própria coletividade. Na sua opinião: A história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva ou criadora, do que nós chamamos o imaginário radical tal como se manifesta ao mesmo tempo e indissoluvelmente no fazer histórico, e na constituição, antes de qualquer racionalidade explícita, de um universo de significações (CASTORIADIS, 1982, p. 176).

É necessário compreender o espaço do imaginário, de acordo com este autor, como aquele no qual uma sociedade se constrói e se espelha conforme o simbolismo escolhido, e essa escolha não pode ser justificada apenas com base no real e do racional, pois esses servem apenas para a organização dos dados, enquanto que as subordinações e significações que vão constituir uma visão mais ou menos estruturada daquela experiência humana vão depender do imaginário. Este elemento, que dá à funcionalidade de cada sistema institucional sua orientação específica, que sobredetermina a escolha e as conexões das redes simbólicas, criação de cada época histórica, sua singular maneira de viver, de ver e de fazer sua própria existência, seu mundo e suas relações com ele, esse estruturante originário, esse

156 significado-significante central, fonte do que se dá cada vez como sentido indiscutível e indiscutivo, suporte das articulações e das distinções do que importa e do que não importa, origem do aumento da existência dos objetos de investimento prático, afetivo e intelectual, individuais ou coletivos – este elemento nada mais é do que o imaginário da sociedade ou da época considerada (CASTORIADIS, 1982, p. 175).

Paiva (2002, p. 24) fala de um “campo imaginário” retroalimentando as representações sociais, fornecedor de representações da sociedade para com ela

mesma, o qual “não deve ser concebido enquanto uma instância produtora de representações que sejam ilusórias ou falsas, mas sim enquanto uma instância fornecedora de um conjunto sistemático de “imagens” geradas pela própria sociedade”. Segundo o autor, a constituição do campo imaginário brasileiro teve a participação efetiva da “inteligência” nacional, a elite da intelectualidade, no final do século XIX. Pensadores do porte de Euclides da Cunha, segundo ele, ajudaram a reforçar a idéia de que um processo de branqueamento da população, via mestiçagem, melhoraria as condições da população brasileira, tendendo à homogeneização, auxiliando conseqüentemente o processo civilizatório nos moldes europeus. A tese de superioridade da raça branca, vista anteriormente, foi defendida fervorosamente pelo naturalista Martius como forma de “salvar” a civilização ameríndia da degeneração a que supostamente estava fadada. Desta forma, muitas idéias distorcidas disseminadas ao longo do tempo foram privilegiadas pelos grupos dominantes, incluindo as elites intelectuais, contribuindo, algumas vezes involuntariamente, para a sua consolidação no imaginário popular. A propósito, Morin (1999, p. 76) alerta para a necessidade de compreensão que o mundo das idéias é absolutamente real, “no entanto, esta realidade depende de nós mesmos”. Segundo ele, “nossas idéias são bárbaras, e nós somos seus escravos, sem nem mesmo compreender que fomos nós mesmos que as geramos”. Até meados do século passado, reforça Arruda (1998, p. 37-8), é precisamente a literatura que vem colocar-se como guia na viagem de regresso às origens do Brasil: O “olhar armado” pela ciência será produtor de identidades através de cortes, como um passe de mágica (que faz desaparecer o que não

157 deve ser visto). A natureza continua a ser o grande biombo das misérias nacionais.

Paiva (2002) acentua que a intelectualidade brasileira dessa época, por exemplo, não somente foi partidária das idéias evolucionistas, como contribuiu para a sua consolidação, reforçando o seu valor científico ao buscar explicar o “atraso” do Brasil em relação aos países europeus por meio dos conceitos de raça e meio geográfico. Tal postura atendia à necessidade dos dirigentes de formulação de um diagnóstico preciso e convincente das reais possibilidades de implementação de uma “civilização” no Brasil, com vistas ao estabelecimento de estratégias para um modelo de modernização política e econômica.

Por outro lado, à medida que o modo de produção capitalista foi estabelecendo sua primazia na região e novas estratégicas de desenvolvimento foram sendo tentadas, a ciência, no sentido do pensamento social dominante (Weigel, 2000, p. 25), que poderia ter representado um canal de discussões e mudanças manteve-se, no entanto, no ponto de mediação homogeneizante, participando decisivamente “na construção dos enfoques que atualmente orientam o pensamento sobre a região.” Weigel (2000) enfatiza que a região sempre foi palco de grande movimentação de interesses e tentativas de ocupação que demandavam constantes adaptações e recriações para fazer frente às peculiaridades locais. O autor também enfatiza a homogeneização que há muito tempo vem sendo impingida aos povos amazônicos, não somente em nível socioeconômico, mas também cultural. Entretanto, mesmo o modo de pensar dominante que se implantou

com

a

chegada

da

“civilização”

capitalista,

voltado

para

o

estabelecimento de modos de produção adequados aos moldes ocidentais, não conseguiu tornar-se predominante: É um modo de pensar de características hegemônicas, que não instala plenamente a sua hegemonia, pelas suas limitações inerentes e pela superioridade localizada de outros modos que com ele se chocam, balizados pela especificidade das interações homem-ambiente e pelo arcabouço cultural subjacente e determinante (WEIGEL, 2000, p. 22-3).

158 Para a compreensão dessa mentalidade, na opinião de Pesavento29 (s.d.), se faz necessária a remissão àqueles autores que se debruçaram sobre “a alma da terra” para explicá-la, e acabaram por inventar um passado e forjar um futuro. A história, segundo a autora, é muitas vezes engendrada a partir dessa dinâmica, pois idéias não têm raízes e viajam no tempo e no espaço, proporcionando sempre novas apropriações e historicizações”. É por este princípio que se torna instigante a constante releitura daqueles autores que desvelaram / revelaram a alma da terra sob diferentes perspectivas. Eles realizaram, com a sua escritura, não só uma explicação do seu presente, mas uma invenção do passado e uma criação do futuro (PESAVENTO, s.d.).

Com relação à Amazônia, Paiva (2002) acredita que sobre ela foi criada, ao longo dos tempos, uma verdadeira “tradição de um pensamento social”, atuando os seus intérpretes de acordo com o tipo de apropriação que dela se fazia, seja econômico, político ou cultural, moldando-a, enfim, aos interesses ocasionais. Segundo esse autor, houve em período determinado, na história do país, um movimento deliberado no sentido da criação de uma imagem da Amazônia que justificasse o seu “atraso” em relação ao restante do país e ao conceito internacional de “civilização”. Por este viés, o trabalho de Euclides da Cunha assume uma dimensão significativa para a compreensão do imaginário sobre a Amazônia no cenário nacional. No entender de Euclides da Cunha, traduz o autor, A presença humana revelava-se frágil na sua compreensão dada a forte exuberância da natureza (“o Homem chegou antes do Gênesis”, afirmava ele ao sugerir a idéia de “paraíso perdido” em relação à Amazônia). Fazia-se necessário, no seu entender, o desenvolvimento de programas de ordem político-administrativa no sentido de promoverem a presença humana na região para consolidar a sua ocupação. [...] podemos afirmar que o ponto de partida de uma interpretação “nova” sobre a Amazônia, patrocinada pelas elite manauaras decadentes, esta ao cargo dos “herdeiros de Euclides da Cunha” (PAIVA, 2002, p,. 68-9).

A imagem da Amazônia mítica, caracterizada pelo exotismo, foi então retocada, e teve no trabalho de intelectuais do porte de Euclides o seu lugar no palco dos debates científicos, assim como a sua legitimação na ordem sóciopolítica e econômica nacional. 29

Texto obtido em endereço eletrônico.

159

Houve, também, um momento histórico de necessidade local de constituir uma “cara” regional em que o imaginário secularmente forjado sobre a Amazônia ganhou reforço e legitimação pelos detentores do poder em duas instâncias chaves, a elite intelectual e a política. O investimento feito pela elite intelectual nesse sentido, foi direcionado para a criação de um folclore amazônico, que teve na obra de Mário Ypiranga Monteiro, segundo o autor, a sua representação máxima. O folclore, então, foi o viés encontrado para o delineamento de uma “identidade regional”, buscando-se realçar especificidades, marcar a diferença para poder “existir”, mesmo como espaço social diferenciado, na realidade nacional. A caracterização da “região” amazônica, enquanto espaço social distinto e diferenciado frente às demais realidades regionais do Brasil [...] constitui-se em um momento político específico da “história regional. [...] O êxito desse redirecionamento, no entanto, encontrava-se na dependência de uma articulação balanceada entre aquilo que seria próprio e específico da “região” e contributivo para a nação. Nesse sentido, a inserção da Amazônia, enquanto espaço social simultaneamente dotado de especificidades e integrante da realidade brasileira dependeu da demonstração da existência de elementos individualizados, próprios e, ao mesmo tempo, aditivos para a identificação de uma mesma “cultura nacional” (PAIVA, 2002, p. 71-2).

É possível depreender da fala do autor, que o imaginário construído pelos europeus e exportado para o Brasil aqui teve os seus legitimadores, tanto em nível nacional quanto em nível regional. Para “fazer parte” da cultura nacional, reforçaram-se na Amazônia as especificidades, conseqüentemente os aspectos que a distinguem mais claramente do resto do país: a conformação geográfica, o exotismo, suas lendas e fantasias. A Amazônia “folclórica” subsiste na atualidade e crescentemente ganha força, servindo de biombo para a realidade reiteradamente ignorada sobre a vida que pulsa por trás dessa cortina fantasiosa. É o imaginário sobre a Amazônia, portanto, como “pano de fundo”, que vai dar conformação à figura do caboclo algum tempo depois. É nesse cenário que ela se forma e aí se fixa, imobilizada no tempo, de forma indissociável. No discurso dos entrevistados se evidencia com nitidez essa relação. Há uma Amazônia “inventada”30, idealizada, à qual a maioria se reporta, que é mais uma 30

Na acepção de Gondim (1994).

160 atualização do mito secular de paraíso. Agora ela é o manancial inesgotável, o celeiro de recursos e potencialidades inexploradas inimagináveis. Assim, o “real”, a Amazônia concreta, na qual vivem esses indivíduos, é percebida pela lente do imaginário, sem filtro de crítica e sem atualização. Por esse prisma o estereótipo do caboclo, então, pode ser entendido como um conjunto de significações, configurando-se, por sua vez, conforme Bardin (1977, p. 51), como uma composição imagética organizada em torno de elementos simbólicos, que serve de orientação ou substituição à informação ou a percepção real e “corresponde a uma medida de economia na percepção da realidade”. Surge espontaneamente, como representação partilhada por membros de um grupo social. Estrutura cognitiva e não inata (submetida à influência do meio cultural, da experiência pessoal, de instâncias e de influências privilegiadas como as comunicações de massa), o estereótipo, no entanto, mergulha as suas raízes no afetivo e no emocional, porque está ligado ao preconceito por ele racionalizado, justificado ou engendrado (BARDIN, 1977, p. 51-2).

É

esse

preconceito

historicamente

enraizado

que

estudiosos

pesquisadores como Galvão (1979), Wagley (1977), Parker (1985) e outros mais recentes, como Lima (1999), ao empreenderem estudos sobre o homem amazônico, detectaram ao longo do tempo a respeito do caboclo. No momento em que os primeiros estudos conhecidos foram realizados, essa imagem era pelo menos mais coincidente com a realidade experimentada por aqueles assim denominados. No entanto, em estudos mais atuais como de Lima, essa mesma construção é observada, assim como a existência de outros condicionantes negativos atrelados ao termo. Neste estudo, embora nos limites estreitos em que se insere a proposta de investigação, é possível identificar esses mesmos elementos arcaicos compondo o imaginário dos jovens entrevistados. É a partir dessa composição imagética que o caboclo ora é excluído, ora incluído, do espaço vivencial desses indivíduos, realizando o movimento dialético de contradição e permanência a que se refere Jodelet quanto à dinâmica das representações. Dá-se, então, a negação dos atributos negativos com a criação do alter, e é nessa figura do “outro”, construída

161 historicamente desde tempos idos, que o caboclo se torna mais visível também na atualidade.

3.2 Caboclo “é o outro”: representação da alteridade É na constituição do imaginário sobre o homem americano e sobre a Amazônia, que vão ser encontradas as raízes desse alter originário que foi sendo consolidado com o tempo. A fenda primordial na unidade essencial do gênero humano foi aberta, segundo Arruda (1998), com o advento da colonização, a partir de quando se questionou a humanidade do outro. Daquele momento histórico de confronto com a diferença, experimentado pelos colonizadores, continua a ecoar a pergunta: o outro é humano? Agora não mais se tratando do humano em relação ao selvagem ou não-humano , mas de um humano como eu, nos moldes nos quais eu acredito estar constituído, de acordo com os padrões socialmente aprovados. Faz parte da nossa herança cultural, na opinião de Laraia (2002), reagir de forma depreciativa em relação àqueles que apresentam comportamentos ou características diferentes dos padrões socialmente aprovados pela maioria da comunidade, e esses padrões, como se sabe, são produtos de múltiplas determinações socialmente constituídas. Arruda (1998) faz menção a esses determinantes que forçam as mudanças nos padrões socialmente aceitos e nas relações sociais: A construção da alteridade e do mesmo se move ao compasso das conjunturas históricas. As mudanças de representações hegemônicas correspondem a novas necessidades coletivas, oriundas da renovação de projetos políticos, econômicos, sociais, de situações culturais e outras. Devem-se à necessidade de estabelecer um novo senso comum com relação a si mesmo e ao outro que dê conta ao mesmo tempo da nova situação em que se encontram e dos novos ângulos que ela ilumina. A historicidade das representações sociais segue esse movimento (ARRUDA, 1998, p. 41-2).

Essa necessidade de estabelecer um ponto de apoio para situar-se no confronto com a diversidade, é também explicada por Berger (2000) como uma

162 forma de apreensão do novo que se relaciona diretamente ao universo simbólico do indivíduo que vivencia esta experiência. Ou seja, para não “se perder” das suas referências originárias, ou não “desorganizar” aquilo que já está constituído e aceito, faz-se necessário construir para o “outro” um universo simbólico que o encaixe e o explique, diferenciando-o do seu próprio. Assim, foi a partir do seu universo simbólico já internalizado que os conquistadores da América puderem distinguir o indígena como diferente: Uma das principais ocasiões para o desenvolvimento de uma conceitualização conservadora de um universo é o que se apresenta quando uma sociedade defronta-se com outra que tem uma história muito diferente. [...] O universo distinto apresentado pela outra sociedade tem de ser enfrentado com as melhores razões possíveis para afirmar a superioridade do nosso próprio (BERGER, 2000, p. 146-7).

Segundo este autor (p. 140), “o universo simbólico também ordena a história. Localiza todos os acontecimentos coletivos numa unidade coerente, que inclui o passado, o presente e o futuro.” Assim, pode-se inferir a constituição de um universo simbólico idealizado originalmente pelos estrangeiros, que foi assimilado pelos nativos, a partir do qual foram sedimentadas as concepções hoje reinantes. Com relação ao passado, estabelece uma “memória” que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. Em relação ao futuro, estabelece um quadro de referência comum para a projeção das ações individuais. Assim, o universo simbólico liga os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido... Todos os membros de uma sociedade podem agora conceber-se como pertencendo a um universo que possui um sentido, que existia antes de terem nascido e continuará a existir depois de morrerem (BERGER, 2000, p. 140).

O preconceito que cerca a figura do homem amazônico, particularmente do caboclo, possivelmente perdura porque passou por um longo processo de enraizamento e cristalização ao longo do tempo, tendo sido reforçado pelo acolhimento puro e simples e pelo fato de que os movimentos em sentido contrário não tiveram suficiente força e poder de abalar suas estruturas ideológicas. A representação do caboclo como o “outro” no presente estudo delineia-se antes mesmo de o termo ter sido empregado, a partir das primeiras questões

163 sobre a temática indígena, e se acentua quando entra em foco o homem amazônico. Observa-se desde esse momento, por parte dos entrevistados, uma postura de reserva, do tipo “não é comigo”: esse de quem se fala é o “outro” – o alter -, pressupondo uma diferença ou distância social, além do sentido de simples diferenciação. Na opinião de Lima (1999), a própria etimologia do termo caboclo já carrega uma história de exclusão, desde que começou a ser usado como sinônimo de tapuio que, para os índios, identificava o pária. Os estudiosos que pesquisaram o caboclo no universo amazônico foram unânimes na menção ao sentido predominantemente negativo do termo, associado à inferioridade social e econômica. A idéia de que “caboclo é sempre o outro” foi identificada por Wagley (1976) em estudo sobre uma comunidade no interior da Amazônia na década de 70, concluindo que o termo era utilizado sempre que se queria referir a uma categoria social inferior a de quem falava, e era sucessivamente transferido até chegar ao indígena. Silva (1996), no estudo da obra de Eduardo Galvão, identifica na visão daquele autor a visão do caboclo como um elo social e cultural (e mesmo biológico em alguns casos) entre o ser índio e o ser não índio. O caboclo é um signo da passagem de um a outro estado, na perspectiva de mudança cultural. Como um híbrido, um ser distinto do índio e do branco que lhe deram origem e influenciaram a sua constituição, esse personagem social diferenciado, sem a consciência dos contributos culturais originários, passa a ser um alter em relação a aqueles. A noção do “outro” se expressa, então, em vários momentos no discurso dos sujeitos, quando se aborda classe social, aparência física, capacidade intelectual etc. Os atributos negativos, mesmo quando não verbalizados ou admitidos, emergem espontaneamente e ninguém quer ser identificado como “feio”, “burro” e principalmente “pobre”, um atributo ligado ao caboclo desde quando o termo começou a ser utilizado. Há momentos em que o outro é simbolizado no índio, mas com tendência a eximi-lo das conotações negativas, então o sentido volta para o mesmo, como numa brincadeira de “manja-pega”. O caboclo, então, é negado, como uma

164 sujeira que se tira da roupa, porque o termo carrega a pecha de inferioridade e ninguém quer ser inferior. Por ausência de análise crítica, no entanto, esse sentido é experimentado, mas não questionado o porquê desse rechaço, desse distanciamento. Afirma Arruda (1998, p. 42), no entanto, que “a construção do outro e do mesmo são indissociáveis”, e que a construção da alteridade “decorre de um espaço de ambigüidade que permanece vivo e presente e que permite reacomodações segundo as circunstâncias.” Ressalta a autora, por outro lado, a importância de que não se perca de vista que uma representação pode encobrir outra. De fato, é um outro representado que aparece quando são abordadas questões como preconceito e discriminação, podendo-se inferir a manifestação de sentimentos de pertença, de inclusão, de “estar no lugar do outro”, ainda que não de forma explícita em muitos casos. Tratando da representação da alteridade, Arruda (1998) faz uso da terminologia proposta por Moscovici para analisar a existência de uma perturbação diante de uma “diferença” que surpreende muito mais pela semelhança: A diferença que surpreende – o inusitado perturbador – busca terreno conhecido para ser incorporado. Ela surpreende muito mais na medida em que, na verdade, o outro não é tão diferente, mas sim um semelhante que não conseguimos situar. É na semelhança que desconcerta: parece familiar sem o ser. Torna-se imperativo, dessa forma, achar o ponto de ancoragem, aquele que vai permitir acomodar o desconcerto, neutralizá-lo de alguma forma (ARRUDA, 1998, p. 20).

Nas falas que traduzem a concepção de caboclo para os entrevistados, é uma outra noção de alteridade que se evidencia, denotando a existência de sentimentos positivos relacionados à descendência indígena e à herança cultural, talvez resultantes do fato de que em Manaus, nos últimos anos, têm se falado muito mais em “cultura local”, “valores da terra” e outros tantos clichês que causam boa impressão pública. E têm sido, de fato, abertos maiores espaços para manifestações culturais diversas, em grande parte no rastro do sucesso que os bois bumbás de Parintins estão fazendo no país e até internacionalmente. Existe hoje no Amazonas, particularmente em Manaus, uma movimentação no sentido de evidenciar os valores artísticos regionais, que aparenta ser uma

165 reedição daquela desencadeada na região, de acordo com Paiva (2002, p. 71), no período de 20 a 50, constituindo um momento político diferenciado na história regional, quando “o pensamento referente à região amazônica voltou-se quase que inteiramente para o seu próprio interior através de um ‘olhar nativo’.” Naquele momento

impunha-se

uma

necessidade

de

fazer

sobressair

elementos

representativos de uma “cultura amazônica”, numa tentativa de transformação de conceitos estigmatizantes relativos à região. A investigação sobre os processos de representação regional, elaborada por um determinado “círculo de intelectuais” no âmbito de um contexto cultural específico, configurou um momento de retomada de singularidades regionais em confronto/associação com aspectos de uma nacionalidade mais abrangente no âmbito de um espaço de ressocialização dotado de particularidades. [...] fazia-se necessário a revelação de aspectos próprios e específicos da realidade amazônica que simultaneamente a diferenciaria das demais regiões e contribuiria para a configuração de uma cultura nacional (PAIVA, 2002, p. 71-2).

Arruda (1998, p. 34) também faz menção a essa iniciativa em nível nacional na qual se privilegiou o exotismo na tentativa de construir um perfil que explicasse a diferença entre o país e as nações civilizadas, da qual o movimento local é tributário, e cujos desdobramentos se fazem notar tanto tempo depois. Ela chama esse momento de “negociação da diferença”. “A compreensão da natureza, dos acidentes geográficos, esclarecia assim os próprios fenômenos econômicos e políticos do país. O Brasil e os brasileiros se explicavam através dessa natureza e das raças que aqui habitavam”. Acrescenta a autora que os processos de construção da representação de si através do encontro com o outro foram de duas ordens, de acordo com o momento histórico: Na chegada do colonizador, o peso do imaginário medieval serviu de ímã para a ancoragem, colorindo a composição do novo panorama por projeção. O diferente se demarcou pela detração, mergulhando no velho – e em funduras do inconsciente. No momento seguinte, sempre no plano “oficial”, tratava-se de usufruir da diferença, ressaltando-a, e as teorias explicativas são o novo que se busca para reacomodar a velha diferença, dar-lhe outra indumentária. Assim, é a representação da alteridade, em ambos os casos, que constitui o mesmo, e se primeiramente ela é encarada sobretudo pelo negativo, mais adiante precisa ser resgatada para compor uma nova diferença, agora com relação aos “outros” nãobrasileiros (ARRUDA, 1998, p. 40-1).

166 Tal como o mencionado pelos autores, nota-se novamente aqui e ali um “quê” de orgulho a cada menção na mídia nacional às festas e ao folclore amazônico, afinal, estar na mídia parece traduzir-se em um sentimento de integração nesta “aldeia global” que é o Brasil. Nessa construção “metamórfica” da alteridade em relação ao caboclo amazônico por parte dos sujeitos, podem ser entrevistos esses processos de que fala Arruda, sobretudo quando o termo preconceito é mencionado. O outro nesse momento é o “de fora”, o estrangeiro, aquele que não faz parte desta realidade e se arvora em julgá-la. A relação simbiótica do homem com o ambiente, criada a partir da visão do estrangeiro quanto ao homem americano, aqui personificado na figura do caboclo, na opinião de Arruda (1998), é parte intrínseca da nossa subjetividade: A relação estreita e ambígua com o ambiente natural – pela mão de um olhar externo – é um dos esteios da construção da nossa subjetividade. Apresenta dois estágios: primeiro, a diferenciação; depois, a incorporação do exótico – o outro de ontem torna-se o eu de hoje – e a valorização dessa incorporação, por meio de um nacionalismo eurocêntrico... Dessa forma, para construir uma imagem de si, extrai-se do outro uma parte do mesmo (ARRUDA, 1998, p.36).

A complexidade em definir “quem é o outro” de quem se fala nas representações do caboclo, confirmam a proposição de Arruda de que a alteridade “não é obrigatoriamente uma construção definitiva. Ela se aparenta a um holograma, uma projeção do mesmo em movimento, mas também mais do que isso. Ela se dilui e evolui no tempo, dando novos contornos a cada um desses personagens” (ARRUDA, 1998, p. 42). Assim, os personagens da nossa história se mostram nesse processo de alternância entre simplesmente atribuir ao outro a designação com a qual não se sentem propriamente identificados, e o sentir-se caboclo, como uma realidade intrínseca à sua condição existencial presente, em que pesem os condicionantes dessa designação. Ou ainda, em certos momentos, uma postura de defesa à assunção consciente de uma identidade como grupo social, com características próprias e valoração positiva.

167 3.3

O caboclo e “eu”: identidade e conflito É nesse processo dinâmico de aproximações e contrastes que se vai tentar

identificar a existência de um sentido de identidade nas representações do caboclo. De acordo com Jovchelovitch (1998, p. 80), o sujeito simbólico não está centrado em si mesmo, mas emerge em relação a algo que lhe é alter, distinto do que ele é. Da mesma forma, esta é a razão pela qual a ordem do simbólico se funda na alteridade. A alteridade, ou a diferença objetiva do mundo externo, fornece ao sujeito social as referências e os significados em relação aos quais a subjetividade emerge, se sustenta e, se for o caso, se defende. A identidade do interno sempre emerge em relação à identidade do externo. É quando o sujeito é capaz de reconhecer, acessar, avaliar e mesmo rejeitar o externo, que ele pode reconhecer quem é. Para ser portador de uma identidade única o sujeito vai precisar, em algum nível, defletir o externo e não permitir ao externo o controle de todos os seus mandatos identificatórios.

Para ser o portador de uma identidade – continua a autora – o sujeito não só precisa reconhecer o que ele não é, como também estabelecer uma relação com esse “não ser”. Supõe-se, então, que a tentativa de encontrar indícios de uma possível “identidade cabocla” neste estudo passe necessariamente pela negação do “ser caboclo”, expressado não só pelas verbalizações, mas principalmente pela não verbalização, pelo não-dito. Em seu artigo sobre a construção histórica do termo caboclo, Lima (1999, p. 8-9) chama a atenção para a sua natureza conceitual, considerando-o como “uma abstração, uma unidade de um sistema de classificação projetado para retratar as diferenças entre as pessoas na sociedade”. Alerta ela para o perigo do termo ser tomado como identidade, e com isso serem criadas fronteiras para um grupo na realidade inexistente e estabelece distinção entre um grupo social, como uma agregação real definida por interações estreitas, e uma categoria social, no caso do caboclo, “uma agregação artificial de pessoas baseadas na identificação de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam necessariamente em um relacionamento social em razão dessa similaridade.” Lima (p. 29) abre discussão sobre a conveniência ou adequação de uso do termo na atualidade, questionando o que deve fazer “se nossa representação do

168 outro entra em conflito com a sua própria representação de si, sua própria identidade?”. Considera ela que a manutenção do uso da palavra demonstra desconhecimento da parte de quem usa o termo, da forma como os próprios caboclos se representam, pois “o nome caboclo vive apenas no discurso que nós fazemos sobre uma outra categoria social”. Propõe a autora, que não se use mais a palavra caboclo ao se fazer referência às identidades rurais na Amazônia contemporânea: [...] essa história da palavra caboclo me faz refletir sobre a pretensão antropológica de subtrair sua carga simbólica consagrada pelo uso popular e supor que pode empregá-la com um novo sentido. Podemos falar em caboclo impunemente, atribuindo à palavra um significado neutro (e no caso pretender também o exercício da nominação)? (LIMA, 1999, p. 29).

De acordo com (Silva, 1996, p. 230), em razão de sua heterogeneidade constitutiva,

agregando

componentes

biológicos

oriundos

do

processo

miscigenatório, elementos culturais diversos e classificação social não rígida, pois pode ser encontrado em diferentes segmentos da população, o ser caboclo amazônico “é uma configuração sociológica específica que pode ser analisada sob diferentes ângulos teóricos, articulados com a observação das situações concretas na sociedade”. O autor se refere, ainda, ao caráter subjetivo da constituição do ser caboclo, que implica em objetivamente sentir-se como tal, tendo ou não caracteres somáticos que evidenciem origem indígena. Castells (2000, p. 22-3) reforça esta idéia, ao afirmar que identidades constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por um processo de individuação. Mesmo quando essas identidades são formadas a partir de instituições dominantes, somente assumem essa condição se forem internalizadas pelos atores sociais, que constroem o seu significado com base nessa internalização. “Entendo por identidade” – diz ele –“o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de hábitos culturais interrelacionados, os quais prevalecem sobre outras fontes de significado.” Segundo esse autor, na história da humanidade a etnia sempre foi uma fonte fundamental de significado e reconhecimento, por tratar-se de uma das

169 estruturas mais primárias de distinção social assim como também de discriminação, em muitas sociedades contemporâneas: Em meio a comunas culturais e unidades territoriais de autodefesa, as raízes étnicas são distorcidas, divididas, reprocessadas, misturadas, estigmatizadas ou recompensadas de maneiras distintas, de acordo com uma nova lógica de informacionalização / globalização de culturas e economias que produzem compostos simbólicos a partir de identidades não claramente discerníveis (CASTELLS, 2000, p. 79).

Nessa perspectiva de reformatação identitária parece se inserir o mencionado por Paiva (2002), em termos de identidade regional, reportando-se ao contexto histórico anteriormente mencionado no qual se forjou, em nível nacional e local, a criação de elementos culturais distintivos, uma “cara” nacional. Assim, a “identidade regional” amazônica passa a ser definida, segundo ele, a partir do confronto com outras regiões brasileiras: Uma determinada região será melhor caracterizada em sua identidade, não em função de elementos próprios e específicos, mas sim em decorrência de um reconhecimento diferenciador destes elementos frente a outras “regiões”. Se os intelectuais amazonenses, ao longo das décadas de 1920 a 1950, elaboraram um certo conjunto de representações acerca da Amazônia, os aspectos e elementos identificadores por eles ressaltados não devem ser percebidos como dotados de uma existência na própria realidade regional, mas sim enquanto aspectos que ganham visibilidade a partir de uma confrontação com outras representações de outras regiões componentes da realidade nacional (PAIVA, 2002, p. 69-70).

Essa questão regional, de fato, faz parte do discurso dos entrevistados como

componente

de

um

imaginário

atualizado

daquele

secularmente

reproduzido, mas igualmente reducionista e equivocado. É com base nesse composto imagético que a identidade amazônica está formada fora daqui (nacionalmente e internacionalmente). Em nível local, a influência desse ideário pode também ser notada. Goffman (1988, p. 117) afirma que tanto a identidade pessoal quanto a social de uma pessoa fazem parte das definições de outras pessoas e, no caso da identidade pessoal, surgem antes mesmo do seu nascimento e subsistem após sua morte. Embora tenha relativa liberdade na sua elaboração identitária, “o

170 indivíduo constrói a imagem que tem de si próprio a partir do mesmo material do qual as outras pessoas já construíram a sua identificação pessoal e social”. A análise de Berger (2000) sobre identidade converge para essa concepção. Segundo ele: A identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais. Uma vez criada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as identidades produzidas pela interação do organismo, da consciência individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a (BERGER, 2000, p. 228).

No pensamento desse autor, forçosamente as teorias sobre a identidade estão sempre encaixadas em uma interpretação mais geral de uma dada realidade, sendo “embutidas” no universo simbólico e legitimadas por este: A identidade permanece ininteligível a não ser quando é localizada em um mundo. Qualquer teorização sobre a identidade – e sobre os tipos específicos de identidade – tem, portanto, de fazer-se no quadro das interpretações teóricas em que são localizadas (BERGER, 2000, p. 230).

Essa estreita relação da identidade com a sociedade na qual ela é constituída é reforçada por Castoriadis (1982), que evidencia o seu caráter “institucional”: A identidade é instituída como regra e norma de identidade, como primeira norma e forma sem o que nada pode ser da sociedade, na sociedade, para a sociedade. [...] Não é apenas pelo fato de que só a instituição social-histórica possa “enunciar”, “formular”, “explicitar” a idéias, o esquema, a efetividade da identidade: somente a instituição socialhistórica faz ser, e isso pela primeira vez na história do mundo, a identidade como tal, fazendo ser o idêntico como rigorosamente idêntico. Nesse sentido a identidade “plena” é, e só é, como instituída. [...] a sociedade faz ser a identidade com um modo de ser impossível e inconcebível em outro lugar (CASTORIADIS, 1982, p. 242).

A identidade social particularmente, acredita Silva (1996, p. 286), “implica no sentir-se semelhante, “idêntico a”. Trata-se de um estado de ser que pressupõe um compartilhamento, em termos coletivos. Neste sentido a

171 correspondência tem um significado de essencialidade.” Assim sendo, mesmo portador de uma identidade individual, cada indivíduo carrega marcas identitárias que o identificam como pertencente a diferentes grupos sociais, que se evidenciam socialmente independente da vontade do portador. “Cada homem, enquanto ser social, um ser político, um integrante de uma coletividade, contém em si uma subjetividade insersora.” Já a identidade coletiva, seja qual for a dimensão quantitativa da coletividade, tem um caráter generalizante, que transcende o individual. Em se tratando de representações, destaca Lima (1999), deve-se ter em mente que elas não são necessariamente identidades e não devem ser assim interpretadas, ressaltando o vínculo obrigatório entre a concepção identitária individual e a identidade coletiva: A identidade é uma forma de representação dirigida a si próprio. É a visão de si, que em um contexto social diferenciado é relacionada a uma identidade coletiva. [...] A identidade de um grupo não está fora da existência de seus membros, não é algo metafísico ou exterior aos indivíduos, mas sim uma produção coletiva da somatória das contribuições individuais, no contexto de uma formação social particular (LIMA, 1999, p. 29).

A propósito, Berger (2000, p. 229-30) fala na constituição de identidades dentro de um mesmo contexto: As estruturas sociais históricas particulares engendram tipos de identidade, que são reconhecíveis em casos individuais. [...] os tipos de identidade são observáveis, verificáveis na experiência pré-teórica, e por conseguinte pré-científica. A identidade é um fenômeno que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade. Os tipos de identidade, por outro lado, são produtos sociais tout court, elementos relativamente estáveis da realidade social objetiva (sendo o grau de estabilidade evidentemente determinado socialmente...).

No caso do caboclo estudado por ela em uma comunidade amazônica, a autora observou não haver uma identidade clara, forte e socialmente valorizada relacionada ao termo, a não ser como uma encenação pré-fabricada, “uma aceitação dissimulada da nomeação que é imputada ao locutor e que este só adota para uma platéia específica: uma que lhe seja (ou que ele considere) superior” (LIMA, 1999, p. 26).

172

Internamente, o indivíduo constrói sua noção de pessoa com outros referenciais, citados acima, como sendo ligados à sua condição social (pobre), à principal atividade econômica (pesca artesanal, agricultura de pequeno porte, coleta de castanha), ao ambiente que ocupa (várzea ou terra firme), aos laços de parentesco locais (as “comunidades” de parentes), à cosmologia e à religião que professa (o mundo dos encantados, o catolicismo popular ou as seitas pentecostais de várias denominações). Essas noções de identidade estão presentes no seu discurso direto, quando falam de si e por si (LIMA, 1999, p. 26).

Assim sendo, continua Lima (p. 27), De maneira geral [...] a palavra caboclo é usada em discursos indiretos, quando se fala de alguém ou de algum grupo. O nome caboclo carrega uma história particular: surgiu ao longo do processo em que se formou o segmento camponês amazônico, no contexto de uma estrutura social altamente hierarquizada, como foi a sociedade amazônica colonial. E surgiu não só para referir a essa classe inferior como para definir suas qualidades e seu valor. Vimos como a palavra inicialmente denotava o índio genérico, destribalizado, passando posteriormente a significar o híbrido, o miscigenado.

Lima considera uma prova de que o termo tem sido usado principalmente para classificar categorias e definir posições sociais é o fato de que a palavra ter sido mantida, apesar da evolução da composição étnica da população que nomeia. Ela acredita que a recusa de auto-designação como caboclos por parte indivíduos da comunidade estudada está indissoluvelmente ligada à idéia de inferioridade, porque o termo está atrelado à história colonial de subordinação. Como é inegável o efeito que o termo causa à identidade, a aceitação do nome caboclo implicaria também em incorporar o estigma de fracassado e derrotado. Na presente análise, sem a pretensão de aprofundamento em termos conceituais, toma-se a noção de identidade mais precisamente no sentido de pertencimento a um grupo social, no caso o de “amazonenses”, stricto sensu e “amazônidas” lato sensu, tendo em conta as implicações históricas e os determinantes sócio-políticos e culturais que isso acarreta. É estabelecida, assim, para efeito de interpretação, uma relação estreita entre o ser caboclo, o ser amazonense e o ser amazônida, buscando-se perceber e compreender as conexões e rupturas ocultas e visíveis na representação dessas concepções pelos sujeitos e o que isso pode significar para o entendimento da sua realidade atual.

173

É possível inferir das representações dos jovens entrevistados quanto à existência de uma noção de identidade cabocla, uma convergência para a proposição de Silva (1996) com relação ao sentir-se caboclo de acordo com situações concretas na sociedade, e com a conveniência dessa autodenominação a partir do paralelo que possa ser traçado entre essa referência e um contexto específico ou imagem associada. Sentir-se caboclo, por esse prisma, seria sentir-se semelhante ao caboclo na concepção socialmente construída, mas essa concepção só é utilizada para auto-atribuição quando internalizada e aceita pelo indivíduo, e isso só acontece quando é favorável a ele. Melhor dizendo, parece não existir um ser caboclo, e sim um estar caboclo, ou sentir-se caboclo em diferentes momentos dos discursos, relativamente ao contexto enfocado. É, portanto, uma noção subjetiva, mas calcada em valores da coletividade. Pode-se dizer que a identidade de caboclo não é consensual enquanto grupo de amazonenses (ou amazônidas, já que o número de entrevistados que não é da região é mínimo): alguns amazonenses se dizem caboclos e outros não. Mas existe consensualmente uma identidade de caboclo atribuída a outro grupo, no caso o que reúne os estereótipos mencionados e encontra-se imobilizado ora em um tempo histórico, ora em um espaço geográfico específico, ou em ambos simultaneamente. Quando a referência ao caboclo situa o entrevistado no mesmo universo, onde é possível ser estabelecida uma comparação entre os sujeitos (no caso o caboclo e o sujeito da pesquisa), impõe-se uma distância às vezes traduzida pelo silêncio, pela negativa em opinar, como se, ao falar sobre o assunto, corresse o risco de se revelar. A negativa de uma identidade como caboclo, acredita-se, não é a negativa de uma identidade amazônica propriamente, mas rechaço a uma carga histórica de negatividades que há séculos tem sido utilizada para discriminar e oprimir o homem amazônico. O termo caboclo, infelizmente, tem sido o “portador” preferencial dessas estereotipias.

174 Por carência de conhecimento aprofundado sobre identidade, esbarra-se na dificuldade de ampliar a discussão quanto à possibilidade da existência de uma identidade cabocla, pelo risco de incorrer em leviandade e superficialidade no trato de uma questão tão complexa, principalmente quando autores como Lima (1999) atestam a impossibilidade dessa existência. Para essa autora, o termo caboclo é uma abstração e refere-se a uma categoria social, não devendo ser entendido como uma referência identitária. No entanto, mesmo dentro deste limitado espaço interpretativo é possível cogitar da existência de uma identidade cabocla “virtual”, uma identidade que efetivamente não se realizou, mas ainda é passível de realizar-se. Mesmo na negativa de assunção de uma identidade que se configura socialmente muito mais como um “rótulo” indicativo de inferioridade, os indivíduos entrevistados evidenciam a latência de um desejo de identificação, de pertencimento a uma classe, uma necessidade de estabelecer laços sociais significativos, de integrar um grupo, quando se posicionam a respeito da visão depreciativa “dos outros” sobre o caboclo. Existe, sim, uma negativa implícita e explícita, por parte dos entrevistados, a uma categoria social desprestigiada e estigmatizada, mas esta multifacetada abstração que é o caboclo comporta possibilidades outras que se nutrem também no imaginário, mas vivem no espaço das contradições: o mesmo imaginário que imobiliza, porque constituído de elementos que demandam atualizações para se transformarem, revela as raízes de um povo cujos valores latentes só precisam de espaço para vicejar.

175

REFLEXÕES FINAIS A condição humana está marcada por duas grandes incertezas: a incerteza cognitiva e a incerteza histórica. (...) Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza. 31

E

is que esta viagem labiríntica parece ter chegado ao seu termo. Como um remador que driblou por muito tempo a correnteza e o emaranhado de galhos nas veredas intermináveis dos igapós e que, ao desaguar no

rio, acredita ter chegado a um lugar seguro, assim pensa o pesquisador, ao abandonar o terreno movediço das análises e interpretações, ter chegado a, pelo menos, algumas “quase” certezas. Mas o que se abre àquele que busca, assim como para o remador, é um rio-mar incomensurável, cujo horizonte se perde de tão distante. Um rio-mar de dúvidas e indefinições e apenas uma certeza: esta é uma viagem que recomeça a cada nova paisagem. Nas

últimas

falas

deste

breve

“diálogo

com

a

incerteza”,

os

questionamentos que lhe deram origem subjazem às respostas que se esperava ter encontrado. No início dessa jornada, questionava-se sobre as origens do imaginário sobre o caboclo, pressupondo-se as ligações ancestrais com o ideário delineado na época do descobrimento, tendo em conta a literatura dos naturalistas e dos viajantes que tanto enfatizaram essa imagem mítica, que

31

Edgar Morin, em A cabeça bem feita.

176 contrapunha à natureza idilicamente idealizada a imagem de seres tidos como selvagens e primitivos, beirando a animalidade. Essa concepção é até certo ponto compreensível, em se considerando os universos simbólicos tão contrastantes daqueles povos que ali se defrontavam em momento histórico peculiar. Aqueles estrangeiros, antes de chegarem ao Novo Mundo, já traziam a imaginação povoada pelos elementos míticos que desde tempos imemoriais vivem no universo onírico do homem; afinal é ali que o desconhecido encontra existência real. Diante da incompreensão daquela realidade tão diversa (e adversa), a explicação foi buscada nas histórias reproduzidas pelos antigos sobre povos estranhos e grotescos em meio a uma natureza fantástica. O pensamento na Idade Média estava fortemente impregnado pela doutrina da unidade fundamental do gênero humano, o que significa dizer que, pela ótica eurocêntrica, a idéia da existência de humanos além das fronteiras geográficas conhecidas na época era inaceitável. A busca por terras desconhecidas, assim, era também a busca do paraíso desabitado, pleno de delícias e beleza, e os relatos dos viajantes que arriscavam suas vidas nesses mundos inexplorados, substituíam os contos maravilhosos que excitavam a imaginação, e exerciam fascínio ainda maior do que aqueles. Ao contato com um mundo inóspito e seres “incompreensíveis”, a miragem tornou-se real, e foi assim que os aventureiros e cronistas encaixaram a paisagem encontrada no modelo já existente, preenchendo as lacunas do que não era explicável com as tintas da imaginação. Em algum momento, e por pouco tempo, o selvagem foi incorporado ao paraíso e visto como o seu complemento, com o manto da pureza com o qual cobriu Rousseau, ou pelo prisma mais racional e criterioso com que o avaliaram Montaigne e Locke. Mas logo os seus modos primitivos o distanciaram dessa concepção e ele passou a encarnar o oposto, aquele que maculava o paraíso com a sua selvageria, para alguns, e sua debilidade para outros: ele era o protótipo da inferioridade, vivia pelo instinto e externava as fúrias fundamentais que a razão científica, a mística religiosa e a lógica civilizatória não poderiam aceitar.

177 Essa lógica moldou a civilização americana a partir daquele momento, adequando aos seus padrões o modus vivendi daqueles seres e forjando novos modelos de vida pelo processo miscigenatório, que não originou apenas novos tipos humanos, mas novas formas de organização social, embora à custa de dolorosos embates e subjugações. O Brasil que hoje se conhece é resultante dessa mescla e de uma longa tradição de dominação e aviltamento das populações indígenas. A proposta integracionista do período colonial brasileiro deu margem a freqüentes práticas genocidas e etnocidas, aniquilando formas sócio-organizadas e culturais que poderiam representar hoje importantes experiências civilizatórias, como é o caso da sociedade cabocla32 amazônica que, ao longo das histórias de conquistas que marcaram a civilização brasileira, é um dos muitos exemplos que podem ilustrar essa dinâmica de reciprocidade, quando são analisadas as influências culturais impostas pelos dominados aos dominadores nas mais diversas situações. É uma história de resistência, em todos os sentidos, que os nativos têm exemplificado ao longo dos tempos. A não-predominância da visão estrangeira no cenário amazônico tem relação direta com a postura do nativo desde as primeiras investidas dos colonizadores. Não foi sem resistência passiva, ou ativa, que os grupos indígenas permitiram a chegada dos estranhos e, mesmo subjugados pela força e poderio bélico dos dominadores e induzidos a modificação de hábitos culturais e modificação drástica de atividades produtivas, com ênfase no extrativismo, não se permitiram à subtração de sua forma peculiar de lidar com o ambiente amazônico, com qual tinham total sintonia. Ao longo do tempo e a despeito da ampliação e fortalecimento do modo de produção

capitalista

superexploração

na

da

região,

natureza,

afluxo

populacional

desmantelamento

de

cultural

outros e

centros,

extrativismo

tecnológico até o esgotamento de recursos, o caboclo restou como símbolo de uma cultura ímpar, de um saber tradicional que hoje é posto em relevo para entendimento da região. 32

De acordo com pesquisadores que estudaram os grupos tradicionais habitantes da Amazônia e consideram o modo de vida caboclo, nos moldes tradicionais, o melhor exemplo de sistema adaptativo ao complexo meio ambiente da região.

178

A história do caboclo, por sinal, começa antes mesmo da “descoberta” da Amazônia, nos tempos em que ela foi “inventada” pelos europeus. É na região amazônica brasileira, mais do em qualquer outro lugar, que o mito edênico se traduz e se perpetua. Enquanto no restante do país a face da civilização vai ganhando contornos mais nítidos via colonização, a Amazônia resta praticamente incólume, resistente ao “progresso” que avança em todos os pontos. É um país dentro de outro, cuja natureza avassaladora ergue barreiras impenetráveis para muitos que tentam alcançá-lo, e, mesmo aqueles que o adentram, não o alcançam em sua complexidade. Nesse universo belo e hostil vivem seres que, para alguns, nem chegam a ser considerados humanos, incompreensíveis na sua maneira de viver uma vida de ócio, selvageria e devassidão33, e inaceitáveis pela sua suposta incapacidade de se adequar aos moldes da civilização. É nessa tentativa de “formatar” o indígena aos interesses dos colonizadores que se vai delineando aos poucos a figura do caboclo, o híbrido que nasce (literalmente) de uma ação profundamente invasiva e autoritária, mas que não se amolda aos propósitos para si estabelecidos, criando uma possibilidade alternativa de vida integrada ao ambiente de forma quase simbiótica. Essa reconhecida sabedoria do caboclo, no entanto, representa apenas um aspecto de uma designação que reúne um mosaico de preconceitos profundamente enraizados, situando o caboclo em um patamar bastante desprestigiado. O caboclo foi alijado da dita sociedade civilizada desde que rejeitou a subordinação imposta pela política colonizatória, que o mantinha refém de práticas produtivas e tentava enquadrá-lo a padrões culturais estrangeiros. Ignorando os atrelamentos econômicos e modelos de vida social, ele desvencilhou-se dos seus algozes e “espraiou-se” pela imensidão amazônica, ao longo dos rios, em pequenos agrupamentos de subsistência, optando por ser dono de sua própria vida ao invés de escravo de interesses alheios. Embora muitas vezes de modo pouco evidente, mostra a história que o espírito guerreiro e livre do indígena, subjugado e espezinhado das formas mais atrozes, nunca 33

Para muitos, como o naturalista Martius.

179 deixou de viver, latente, no caboclo, e o movimento da Cabanagem simbolizou para muitos esse grito de afirmação. O jeito ensimesmado do caboclo típico34, sua maneira rústica de viver, sem requintes, supostamente sem ambições, provendo o seu sustento da natureza, com a qual está em permanente contato, foi (e é) geralmente interpretado como primitivismo, preguiça, incapacidade para progredir e outros tantos estereótipos a ele atribuídos que têm raízes em conceitos semelhantes relacionados aos índios, seus ancestrais. Práticas extrativistas como a exploração da borracha, no entanto, mostraram que havia uma “ciência de viver” nessa forma do caboclo, sem a qual seria impossível o acesso a bens tão cobiçados como a seringa. Os que vieram para a Amazônia, atraídos pelas possibilidades de enriquecimento e que acabaram constituindo uma mão-de-obra especializada naquela atividade, como os nordestinos, não tiveram alternativa senão amoldar-se à maneira típica dos caboclos, que dominavam o conhecimento do meio, e se caboclizaram

35

, no sentido de conformar o seu modo de vida a esse feitio,

enriquecendo a cultura local. O fato é que, a despeito das qualidades que poderiam ser enumeradas a partir de uma breve análise do contexto sócio-histórico do caboclo amazônico, prevalece o imaginário que o coloca e o recoloca sempre numa posição de inferioridade, ou pelo menos no sentido oposto em relação ao que se considera como “civilizado”. Na visão atual, o caboclo aparece até mesmo em posição inferior ao índio, numa inversão que ilustra bem a influência que podem exercer os processos educacionais e os meios de comunicação de massa, subsidiados pela mesma visão homogeneizante que fez cristalizar o neomito que traduz a Amazônia como a cornucópia virtual da humanidade. O índio salta dos livros de história como um personagem idealizado, cujo contorno é reforçado pelo surto ecológico dos últimos anos, que contrapõe à prática predatória que tem levado de roldão os recursos naturais em várias partes do globo, a imagem de uma região que simboliza o baluarte das riquezas, cujo 34

No caso o habitante do interior, cujo modo de vida ainda hoje é semelhante ao de seus ancestrais. A caboclização também é enfocada negativamente, no sentido de que, colocando-se no nível dos caboclos, tornar-se igualmente “inferior”. 35

180 habitante, portador de flecha e arco, é o seu guardião legítimo. Nesse cenário o homem amazônico, personalidade real desta história, é relegado a uma nãoexistência que se traduz em políticas que verdadeiramente ignoram a sua presença. Fato notório de que as políticas desenvolvimentistas não têm em conta o caboclo36, é que os projetos voltados para a região (malogrados em sua maioria) são feitos à sua revelia e sem considerar o seu conhecimento do meio. Ressaltese, também, que muitos fracassos de investidas políticas e econômicas na Amazônia continuam a ser explicados pela velha lógica da supremacia do meio em relação ao homem, pelas noções de terra inóspita, floresta indevassável, solo improdutivo e outros tantos mitos recriados para justificar, inclusive, a longa história de descaso com que a região amazônica, particularmente o Amazonas, foi (e ainda é) tratada em nível nacional pelo poder federal. Tratou-se até aqui quase exclusivamente do caboclo no sentido daquele personagem ao qual o termo imediatamente remete, que tem características físicas remanescentes do ameríndio, circunscrito em um habitat geograficamente idealizado, que envolve rio, floresta etc. Mas os caboclos, no caso os assim identificados pelos outros, já não compõem exclusivamente esta imagem estereotipada (embora subsistam em muitos lugares de forma semelhante). Mesmo o indivíduo a quem pode ser atribuída essa denominação, por sua origem determinada de mestiço de índio com branco, pela tipicidade de suas maneiras e conhecimento do meio, há muito vive também em comunidades urbanizadas e em cidades como Belém e Manaus. Seus descendentes espalham-se na cidade, ostentando nos caracteres somáticos a sua herança. A julgar somente pela aparência física, especialmente nos bairros periféricos da cidade, poder-se-ia dizer que em Manaus predominam caboclos, e eles estão inseridos em todas as classes sociais, estão nas escolas, nas universidades, em carros importados e em ônibus lotados. Este olhar, no entanto, é um olhar “de fora”, já que, ao que tudo indica, tais quais os “caboclos” que Wagley procurou localizar para realizar a sua pesquisa nos idos de 70,

36

No mesmo sentido de homem amazônico.

181 também os “caboclos” modernos não se identificam como tal, e mesmo parecem por vezes negar até mesmo a existência de caboclos no cenário urbano. Foi neste aparente paradoxo que se firmou o interesse que originou esta proposta de pesquisa, pelas evidências empíricas de que o termo continuava a ser rejeitado como auto-referência pelos habitantes de Manaus, particularmente os jovens. Os sujeitos da pesquisa corroboraram essa constatação, ao reproduzirem nos seus discursos todo o ideário conhecido sobre a Amazônia, o índio, o homem amazônico e o caboclo (seu sinônimo), com o agravante de denotarem ignorância de uma história que diz respeito diretamente à sua realidade social, e não demonstrarem (na maioria) consciência crítica a propósito desse desconhecimento. Em princípio se poderia cogitar que o problema é o termo caboclo, talvez já em desuso, mas é pouco provável que assim o seja, porque o termo é utilizado cotidianamente em Manaus, e tem sido reeditado como sinônimo de identidade regional nos investimentos atualmente feitos na área cultural pelo Estado. Políticos de grande influência no Amazonas o utilizam com freqüência nas suas falas, acentuando a referência identitária, e os artistas, músicos e escritores locais utilizam correntemente o termo em seus trabalhos. Nas relações em sociedade, no entanto, o que sobressai é justamente o aspecto negativo do uso, de forma que é comum usar o termo como forma de ofensa a alguém. Poucos ficam impassíveis ao serem referidos como caboclos, e os entrevistados reforçaram esta percepção, quando alguns afirmaram já ter feito uso da palavra no sentido pejorativo, ou terem presenciado o desconforto de alguém ao ser chamado pelo termo. Alguns, inclusive, admitiram tê-lo usado com o propósito de humilhar o outro, confirmando a impossibilidade de uso neutro para uma palavra forjada por um conjunto tão denso de significados.

De fato, realmente há uma negação, por parte do jovem amazonense, de uma possível identidade como “caboclo” e um sentimento de alteridade na forma com que este jovem vê aquele assim denominado. Da análise das falas dos entrevistados é possível inferir a negativa não somente de uma identidade

182 cabocla, mas também de uma identidade amazônica, se isso implica em fazer parte de uma história de fracassos e em desprestígio social. No entanto, paradoxalmente, em oposição a uma “vergonha” originária, é possível identificar também um sentimento de orgulho racial latente, uma sensação de pertencimento que em momentos espontaneamente emerge nos discursos, a despeito do peso dos estereótipos negativos, remetendo à idéia de que possa existir não apenas “uma abstração”, mas uma identidade cabocla “virtual”, no sentido de que potencialmente pode significar um elo de fortalecimento que subjaz aos processos de pulverização cultural. Perguntado se considerava a si mesmo caboclo, um dos entrevistados, de 15 anos, respondeu que sim, porque “tenho sangue de caboclo sofrido e guerreiro”. Outros, por sua vez, questionados sobre que tipo de pessoa identificavam como caboclo, responderam que seria “uma pessoa de garra, de fibra”ou “aquele que não se envergonha dos traços que possui e que respeita a sua cultura”. Uma entrevistada, em sua fala sobre a valorização e autovalorização do caboclo, faz uma reflexão bem adequada sobre a realidade vista em Manaus. Diz ela que “muitas pessoas negam suas origens e valorizam só o que vem de fora. Os caboclos são mal vistos pela sociedade e muitas pessoas acreditam que pessoas do interior são limitadas de conhecimento, e que só sabem plantar e colher”. Foi evidenciado no processo histórico de delineamento do pensamento social sobre a Amazônia, como as ações da elite pensante européia e nacional exerceram influência decisiva na constituição do ideário que hoje conhecemos e vivenciamos na região, constatando-se que todos esses equívocos historicamente engendrados e legitimados continuam a se reproduzir naturalmente, sem encontrar resistência ou oposição, porque encontram terreno fértil na ausência de ações que lhe façam frente. Observa-se, assim, que o peso do imaginário no qual se encontra a imagem deteriorada do caboclo é evidenciado nas representações dos sujeitos da pesquisa, o que assume especial relevância quando se considera que esses jovens fazem parte de uma geração que tem acesso a uma quantidade elevada

183 de informações e estas tendem a preencher o espaço vazio do conhecimento não consolidado. Ou seja, na ausência ou fragilidade de uma orientação ou formação cultural, o que resta senão reproduzir o que já vem pronto (a cultura fast food), que iguala a todos em um mesmo nível de alienação? Volta-se, então, à ênfase na importância do processo educacional na constituição do pensamento social dos jovens amazonenses. Assim, mesmo com o risco de parecer “receita de almanaque”, acredita-se que na educação esteja o primeiro e fundamental mecanismo de reforma cultural, não em bases alegóricas, como foi visto no último quarto do século XX, mas em bases sólidas, em um processo de reformatação identitária a partir da consciência crítica. Não como uma forma de distanciamento da realidade polimorfa e da identidade high tech ditada pela globalização, mas como um distintivo real, de um povo cujas raízes culturais se fincam em um passado longínquo, mas cuja sabedoria cada vez se mostra mais atual. O segundo e igualmente importante elemento de transformação está na ciência. Não a ciência que apenas descobre e cataloga novas espécies da fauna e da flora e pesquisa aplicações práticas para os milhares de recursos naturais que a região oferece, sem desconsiderar a sua importância e relevância, mas a ciência que também pensa o social e o humano desse universo. Que questiona o seu próprio saber quando se descobre assentada em bases movediças, e se concebe como caminho, não como ponto de chegada. É nesse tipo de ciência, norteada pela consciência de que há muito a ser palmilhado para o desvelamento e o entendimento de um universo tão complexo como o amazônico, que se pode também sustentar expectativas de mudança.

A desaguar sem fim num mar sem termo... Na tessitura dessas considerações finais, quando que se percebe ainda tantas interrogações a serem suscitadas, e a riqueza que a temática encerra, aguça-se ainda mais a consciência do “princípio de incerteza”, existente em cada instância constitutiva do conhecimento. Na construção do mosaico de interpretações, em que se pretende que cada peça encontre o seu encaixe,

184 tende-se irremediavelmente à magia das soluções instantâneas, na tentativa de reduzir a complexidade do fenômeno mesmo sabendo dessa impossibilidade. Não há certezas, esta é a conclusão possível e mais palpável ao se vislumbrar o horizonte imenso. A lógica da percepção traduz apenas o que foi visto: o espelho no qual se reflete o caboclo na atualidade, incluindo nesta categoria os amazonenses entrevistados, produz uma imagem distorcida que ele ora estranha, por não coincidente com sua auto-representação, ora reconhece, por realçar aspectos que lhe são familiares. Como o reflexo no rio, é uma imagem fugidia, que ora se apaga, ora se revela, que se emoldura da paisagem e se revela familiar e acolhedora. Que se esmaece na paisagem e se revela distante, indefinida. No mesmo espelho d’água em que se imagina mirando o caboclo, contempla-se a impossibilidade de definir o seu rosto, cujos contornos se confundem com a paisagem. O horizonte é imenso, mas a linha divisória existe e só é preciso alcançá-la.... Mas isto é uma outra viagem.

185

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