TRATACTUS MARGINALE poesia em tempos pop
Wilton Cardoso
TRATACTUS MARGINALE poesia em tempos pop ou diário de uma mente perturbada ou auto-ajuda para desconformes ou as digressões sem a fábula (o romance possível) ou ensaios epigramáticos ou a gnose sem o todo (a religião que resta)
ao bruxo do Deleuze antimestre
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Pensar é fabular com idéias. (F. Átila)
Tem que ser selado, registrado, Carimbado, avaliado e rotulado Se quiser voar (R. Seixas)
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AD-VERTÊNCIA A minha mente é um enorme focinho. Sou um farejador mental. Escrever é uma exploração olfativa das atmosferas, de suas ondas olorosas. Um farejador até que alinhava, insinua conceitos, mas sem consistência. Por isto ele não é um filósofo nem um pesquisador das ciências humanas. Não é nem mesmo um intelectual no sentido forte do termo. Ele percebe e persegue as idéias, explora o ambiente em busca delas como um cão caçador, como um cão carniceiro, como um cão desejando a cadela no cio. Ele segue às cegas, confiando apenas no seu faro sensível, não raro falho, titubeante, vago e anexato. O faro é arguto, mas imperfeito, ao contrário da visão, que é celestial, exata. Ele funciona por rastros e por explorações contíguas e parciais. Já a visão procede por analogias, panorâmicas e totalizações. Ele é incapaz de conceitos, erudições, sedimentações de saber que se precipitam em teorias e sistemas. O faro é rarefeito e intenso. Toda a tensão do cão está na ponta de sua fuça irrequieta, nos mil poros frios do seu focinho molhado. O farejador mental é um cão pensante, um cão pedante. Ao invés da consistência do conceito, o farejador está interessado na sua fecundidade, no cio da idéia. Ele a capta no ar e ela, em contrapartida, o rapta pelo ar contagioso (a mente farejante é fascinada pela face virulenta das idéias). Ele fareja atmosferas, os fios finos e quase imperceptíveis de suas correntes de margens. Está envolto e atento às circulações mentais da sociedade cujos fluxos de pensamentos e afecções perturbam suas ventas. Mas farejar não é uma exploração sem rigor. Não se faz de qualquer jeito, sem tino, sem treino, sem força. É apenas outro rigor, de margem, de aragem, de específico absoluto. O texto é um mapeamento traçado com o faro. Antes, os farejadores eram ensaístas, articulistas ou ficcionistas. Alguns ficcionistas. Aqueles cujas fábulas do romance eram desculpas para as digressões, cuja história do conto era um pretexto para a idéia que se experimentava. Agora que a narrativa escrita tem se tornado cada vez mais inviável, os farejadores textuais se refugiam mais e mais no ensaio, no artigo, na crônica ou, simplesmente, deixam o texto escorrer de suas fuças. A coragem do texto se tecendo sem limites nem textura/estrutura. O texto sem gênero/identidade Fiação embaraçada. A desistência dos pretextos.
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O olfato, o tato e o palato são os sentidos mais materiais, mais baixos e animais do homem. Subumanos. Mas o tato e o palato foram muito humanizados pelas culturas, tornaram-se refinados, educados. O olfato não. Talvez por ser muito fraco no homem, não foi necessária a sua doma. Ele permanece, então, como seu sentido mais animalesco. O olfato é, nos mamíferos e em muitos outros animais, o sentido do prazer, do desejo de prazer, por onde o cio se pronuncia. É pelo faro que a carniça e a cadela seduzem o cão. O canto de sereia que enlouquece o cão pensante são as ondas de odor transpiradas pelas idéias. Pensar com o olfato, escrever farejando é desejar a idéia para o prazer. Luxúria da mente. Texto trança, texto transe, texto transa. 31/01/06
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PRÉ-FÁCIL Um texto em ondas. Atmosféricas, marítimas, energéticas, textuais. Um campo sobre e sob o qual as ondas andam em todas as direções e proliferam em todas as dimensões. Um texto ondeante, andante, tateante. As ondas não são coerentes. Elas vêm com força, depois fracas, médias, em todas as gradações de intensidade. Às vezes são longas e outras curtas. Altas, baixas. Rápidas, lentas. Ferozes, calmas. Condensadas, espraiadas. Todos estes e muitos outros adjetivos e seus antônimos e gradações tentarão captar as ondas. Mas serão sempre insuficientes. Não é parindo pares que um texto irá raptar as ondas. Mas somente se vertendo em onda, se precipitando em miríades. Se dissipando em margem. Porque uma onda é a sua margem, mesmo na crista. Margem com outras ondas. Ela é sempre com outras ondas, um limiar de passagem para as outras. No limite, ela é todo o seu corpo de base: atmosfera, mar, campo de energia. Uma onda de texto tem um tema, entra por outros e não se discerne a sua matéria. Outra onda continua-lhe em freqüências e modulações diversas. Transmutação da matéria que, em outra onda, pode ser aprofundada ou rasurada, adensada ou rarefeita, clarificada ou turvada, confirmada ou contrariada, muitos outros pares... Tantos ares têm as ondas. Que fazer? É a natureza das ondas. As ondas e sua arritmia, seu embaçamento, sua afazia, sua caoxia, sua imprevisibilidade. Ondas se dão por acasos, mas são precisas. São efeito, crista, crise, conflito. Ondas são fugas. Estão sempre às voltas. São limiares. Entre o intelecto e o afeto. Deixam aflito o navegante que transmuda em amante. Vórtice. Ondas são delirantes. As ondas e sua entropia. Só um texto em ondas, tendendo para margem, poderia intentar a margem. Intentar insinuar, porque atingi-la é outra história. A margem é sempre outra história. 08/12/05
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PROGRAMA PARA A NECESSIDADE
1. É impossível construir aos poucos e é necessário que tudo venha de uma vez, pronto, fácil. Mas para se chegar a este fácil há um duro caminho, uma lenta e difícil maturação. Que fazer, além de se lamuriar? As necessidades despertam uma série de inquietações que podem ir da angústia à doença (física, mental), mas estes não são bons caminhos. É preciso arrancar alegria e vitalidade da necessidade, de alguma maneira. Absolutamente impossível fazê-la passar pela gestão ou pela aula. Nem gerente nem professor, nada desse poder e enquadramento relacionados a focos de produtividade, controle e punição. A necessidade deve ser levada a outros domínios criativos, de resistência à ordem social: ciência, filosofia, arte. Mas aí, nestas bordas, impõe-se o problema da força e do tino de quem pratica. Entre estes três campos eis a opção (o tino) pelo texto, algo misto, entre filosofia e arte, meio crítica, meio criação, quase comentário, invenção, inventário. O texto, porque a poesia, que não deixa de ser um texto específico, a poesia dificilmente é praticada com vigor pelos que não são muito jovens. O texto, porque o romance e o conto não respondem mais à época. Mas talvez o texto não deixe de ser uma espécie de fábula, a única possível hoje em dia. O texto, esta coisa sem borda e sem assunto, disfarçado de ensaio, a produção de blocos de linhas e palavras que (se) dizem idéias, sensações, coisas, informações, fábulas, ritmos. Este amontoado anexato e no entanto preciso, rigoroso. É este é o campo, o único possível para a necessidade não se precipitar numa rota suicida nem se conformar às burocracias do serviço público ou da sala de aula. Que seja uma tentativa frustrada, que seja. À puta que pariu a desistência. QUE FAÇO? Faço textos. Mais não ouso dizer. Sou um fazedor de textos. Preciso de algo, de algum escape, uma fuga, uma borda, um flanco. Longamente procurei o regime e a forma desta necessidade, destas idéias que foram, pouco a pouco, se configurando como textuais. Primeiro poéticas, depois puramente textuais, mais e menos que poesia. Agora, 17/08/2004, depois de um longo recesso de textos, um bom recesso, o campo das tentativas está configurado como textual: palavras atrás de
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palavras, nada tão monótono e demodé, nada tão vital. As idéias já se me configuram como textuais. Preciso de algo? crio um texto. QUE TIPO? QUE TAMANHO? Eis duas questões irrelevantes. Os textos podem ser encarados como gênero e, enquanto tais, limitados: um poema, um conto, um romance, um ensaio. Mas há outros modos de encará-los, considerando-os apenas textos, texto. Este não tem bordas definidas e o leitor passa sempre em meio a ele. No limite, nem autoria há nestes casos. A sabedoria de Roland Barthes e sua escritura. Quando Barthes constata a morte do autor, deve-se encarar esta constatação apenas como um resultado inevitável de sua disposição radical de explorar o texto enquanto escritura. Quem (que ente, que subjetividade, que ser), senão Deus, poderia ser o artífice de uma multiplicidade absolutamente coletiva como o texto? Se nos recusamos reputar a autoria dos textos a Deus, a única resposta possível é que não há autor. De resto, por outras vias, a teoria da recepção chega a um resultado semelhante com seus horizontes de expectativas e a noção de construção permanente da obra por meio de suas sucessivas leituras. Talvez os poetas e romancistas sempre soubessem de sua nulidade diante de tal monstruosidade, o texto. Mas isto não cessou sua obsessão por ele, nem os fez mais tristes, muito pelo contrário. PRA QUÊ? Talvez o que Barthes deixe a desejar em seus incríveis textos seja a relação entre texto e vida. Ele afirma, em vários pontos, e com razão, que se tratam de mundos completamente diferentes, cada um com suas naturezas, elementos e regimes próprios. Barthes desmonta as relações de profundidade, causalidade e espelhamento (o texto como representação ou analogia) entre vida e texto, ressaltando as dinâmicas próprias de cada um deles. Mas deixa a desejar quando se trata de explorar as interferências recíprocas de uma cadeia na outra. A escritura de Barthes, apesar de toda a sua energia anti-estruturalista, pouco parece se incomodar com as cadeias de vida. Mas pode ser apenas uma questão de procedimento, de comportamento textual. Barthes nunca foi dado a exageros passionais. Os textos são para a vida, não o contrário, e as cadeias de vida esbarram o tempo todo nas de texto e vice-versa, interferindo-se mutuamente. Campos de energia interativos. Imbricações de atmosferas.
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(Pode-se argumentar que a idéia de vida é imprecisa, confusa. Como definir a vida, que vida, qual vida? A vida é vaga. É um conceito fraco. E o texto também não o seria?) NOVAMENTE O AUTOR Falou-se, aqui, muito de Barthes e de SEUS textos: como o autor poderia ter morrido? É melhor encarar o texto como bifronte neste e em outros aspectos. Provido de autor, limitado e classificável enquanto gênero e, por outro lado, sem autoria, sem margens e plural enquanto texto. Ora salta um aspecto, ora outro, num mesmo texto. 17/08/2004 DA VERBOSFERA
2. Desde muito (talvez desde a emergência da linguagem) há dois usos recorrentes da palavra no campo que chamaríamos da arte: os usos para contar e cantar, fábulas e cantos. Que seja um velho contando causos aos mais jovens ou um cantador com sua viola, que seja o romancista ou o poeta lutando solitário com as palavras dos outros, que seja a canção popular ou o cinema e sua inserção nos negócios das mídias, que seja o teatro. Contar e cantar, obsessões humanas. 2005 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE
3. Escrever coisas necessárias, várias, móveis, imbricadas com a vida e encharcadas de mundo. Estender o texto na carne das cidades, enredá-lo para que seja a viagem pela margem da urbe, para que seja a sua própria margem. Porque é das margens que retiramos os fluidos de que precisamos para continuar a fazer margem com a vida, que só vale por suas bordas. Por isto bordar com palavras, traços, riscos por sobre um papel, uma tela, uma cidade.
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Eis um modo de andar, flanar por sobre ruas e calçadas, em transe: mesmo que não se beba nada, melhor que não se beba nada, não se fume nada: não misturar seu corpo com um corpo alucinógeno, mas precipitar seu próprio corpo em alucinação – lúcida alucinada. Ao invés da conexão por controles pré-estabelecidos, ao lado desta conexão de massa, a conexão aos fluxos de margem, em fuga: um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha, blue jeans e motocicletas, pessoas-cinzas: normais, garotas dentro da noite... revólver: cheira, cachorro! os humilhados do parque com os seus jornais... carneiros: mesa, trabalho... meu corpo que cai do oitavo andar1. 2005 DA LITTERA
4. POÉTICA (para os poemas de agora) a poesia é saúde imagine os poetas sem público imagine os que se tornam obscuros imagine que ninguém mais lê poesia, romances, textos a poesia é doença
uma energia percorre o poema sujo é preciso entendê-lo para além do eu lírico da expressão e da representação dos dilemas da sociedade para além da fusão eu-sociedade depois (ou antes) desta dialética percorre o poema uma energia tensa por entre as velocidades tudo circula neste poema sem profundidades destituído de metáforas limpo até o osso de sua linguagem das dores dos mistérios 1
Belchior, Alucinação. 10
a parte do rio, por exemplo não seria possível pensá-la sem lembrar do rio de cabral aquele rio carnal por entre as carnes da cidade (desta vez são luiz) só que enquanto cabral cobria de pedra o leito do seu rio gullar faz o dele correr como um louco na cidade esguio desobstruindo todo o seu fluxo que mesmo assim (ou por isso mesmo) é tão ou mais cortante há algo de passional no rio do gullar ante a frieza ácida de cabral duma paixão não confessional sem água puro fogo o rio do gullar é apenas mais uma das muitas circulações das muitas atmosferas que se imbricam na de são luiz cidadosfera é preciso entender que a memória no poema sujo não estrutura um sujeito pra ver como aqueles fios descompassados de lembrança mais que uma saudade e uma nostalgia são a agoridade a vertigem (como diria gullar) do agora dos neurônios relançados de seus restos de passado no próximo presente por entre o poema entre poema e leitor circula uma matéria suja uma energia suja uma atmosfera suja de vida de fios de vida vazando por entre as linhas do livro é preciso entender da busca de gullar por uma língua sem nenhum artifício nem mesmo a limpeza concretista para saber de suas velocidades passando por toda cidade 11
são luiz é uma atmosfera feita de linguagem de linhas de linguagem perpassadas por linhas de vida de gullar de cidade engana-se quem vê no poema a representação do coletivo em fusão com o indivíduo um poema sujo não representa e também não se refere a si somente como linguagem ele se compõe de fluxos heterogêneos de vida por entre o seu tecido de palavras interpenetração de atmosferas diversas para compor uma outra uma atmosfera não é una não é ser nem estrutura é uma individuação sem indivíduo sem sujeito inumana feita de muitos corpos imbricados precipitando suas velocidades uns nos outros aliás as velocidades são um problema/tema do poema as dos sistemas de álcool de uma pêra as dos ventos sobre são luiz as dos corpos dos homens a do capital dos gatos da poeira se compondo com a velocidade da memória curta do gullar - eu lírico? sujeito? não, gullar atmosfera com suas velocidades também seus neurônios suas carnes seu nome sua fome fazendo seu texto prenhe de proliferações seu texto veloz compondo com a carne das coisas sua boca suja gullar cagando um monturo monstruoso
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uma atmosfera é sempre vária povoada por miríades não tem centro nem hierarquia nem ser e por conseguinte nem transcendência ou limites o poema de gullar tem tantos centros (os centros são matéria do poema) mas eles não são concêntricos nem ressoam uns nos outros remetendo a um maior - ou melhor ou mais puro são todos provisórios inconstantes espirais de energias dissolventes como redemoinhos de vento movidos a desejo de homens de bichos de massas de capital ou de outros homens ou de coisas ou de caos e acaso (os desejos que circulam nas suas margens) é tão simples o poema sujo sem profundidades nem metáforas sem mistérios tão denotativa a sua linguagem como se a carne da palavra se colasse à carne das coisas sem mediação alguma o poema sujo é um plano composto de fios emaranhados a sua única força é a energia das linhas a fecundidade dos nós a potência com que cada uma se precipita na outra provocando uma outra curvatura a sua ossatura os seus componentes seus órgãos estão todos dissipados neste plano povoado de rotas fluxos sulcos de energia tensionada tão deserto o poema sujo e tão povoado jul/2005
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5. Ler trevas. Nas letras, ler tudo o que de ler não te atrevas. Ler mais. Ler além. Além do bem. Além do mal. Além do além. Horas extras ou etcéteras, adeus, amém. Busquem outros a velocidade da luz. Eu busco a velocidade da treva. (p. leminski)
Leminski, como te explicar? Me explico, não explicar seus textos, de resto inexplicáveis. Mas como dizer para os outros que você, o menor poeta menor (menor ainda que Bandeira) ao despir todo o supérfluo contextual e textual e saturar o que restou com todos os trocadilhos e jogos sonoros que pôde, ao levar o sentido à irresponsabilidade do quase caos do sem sentido, ao rir, ao tornar o dito tão leve e breve e ágil como a velocidade da treva, ao se tornar tão pequeno e rarefeito que seus microtextos não são microcosmos mas anticosmos antiser antitodo antídoto contra as analogias metafóricas do profundo, apenas linhas (que nunca terminam) trágicas cômicas, que vazam todo o existir, ambiciosas proliferantes beligerantes, contaminam todo o escopo do meu discernimento e impregnam de universo o seu verso e por isto mesmo são as linhas mais paradoxalmente épicas que tenho percorrido, apesar de irremediavelmente líricas. Você que desejou todas as fábulas e canções em seu estado essencial de desordem em sua relação promíscua com a vida que você quis como ela é, i.e., sem sentido sem (p)rumo, você quis tanto com o tão pouco do seu texto insano e ao mesmo tempo lúcido como nenhum outro, você que fracassou que venceu que cagou e andou pra tudo isso e mais que tudo andou como anda um louco na cidade à noite. Como te explicar? 27/09/2005 DOS DESCONFORMES E SUAS FUGAS
6. O que resta aos homens desconformes é a fuga. Mas que fuga é possível num globo esquadrinhado pelas malhas implacáveis dos controles, que refúgio restaria senão a fuga, também impossível, numa nave rumo ao vácuo sideral?
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Para fugir não há nenhuma necessidade de se mover no espaço. Aliás, qualquer mobilidade espacial mais longa e desinteressada nos dias de hoje é irremediavelmente turismo, uma das indústrias de entretenimento do capitalismo. A fuga deve se dar no espaço-tempo do dia a dia e tem menos a ver com o que se faz do que como se faz. Porque há fugas e fugas. Na maior parte das vezes a fuga se conjuga com os controles sociais e funciona como uma válvula de escape das pressões que as exigências de produtividade e competitividade impõem ao homem. O modo de viajar que chamamos turismo é uma dessas válvulas de escape, assim como um certo modo de ler, ver filmes e ouvir música que chamamos entretenimento. É preciso escapar pelas bordas destes modos controlados e atingir uma evasão que seja absoluta e criativa. Porque as fugas relativas permanecem sempre nos limites dos controles, subordinando-se a eles. Quando se atinge o absoluto na fuga, os limites do capitalismo são ultrapassados e outro jogo, mais arriscado, começa a ser jogado, com regras muito mais instáveis. Longe de pensarmos que as fugas absolutas colocam em cheque o capitalismo. Este, na verdade, depende delas para viver. Seus agentes de controle aguardam ansiosamente que uma dessas fugas furem os seus limites. Então esta linha de fuga é percorrida por estes agentes e então um jogo de gato e rato começa. O objetivo dos agentes de controle é ampliar os limites do sistema, flexibilizá-lo mais e mais. Aproveitar o rastro de destruição que uma fuga absoluta deixa enquanto constrói alternativas vivas e criativas para se renovar e sugar para os novos limites internos dos sistemas estas mesmas alternativas, agora moduladas por seus controles. No capitalismo há todo um trabalho de absorção e vampirização das linhas de fuga. Mas os desconformes querem escapar desta absorção e desenham linhas cada vez mais rarefeitas, selvagens e perigosas, de rastros venenosos, esperando que pelo menos um pouco do seu veneno, um pouco de sua energia criativa reste depois de serem absorvidas e domesticadas pelos agentes de controle. Este vazamento, este resto, esta mais valia anticapitalista das linhas absolutas vão formar uma espécie de (anti)tradição energética sem hierarquias nem mestres, entrópica, fluida e dinâmica, na qual beberão outros agentes de fuga, outros desconformes. Serão seu alimento para outras fugas, para outros jogos arriscados com o capital. Um dia, quem sabe, as linhas absolutas consigam esmigalhar todos os controles, fazendo dissipar os limites dinâmicos do capital. out/2005
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DOS HOMENS DE FUGA: SUPERIORES? INFERIORES? Há uma mania em classificar os homens em termos absolutos por critérios relativos. Assim teríamos que responder se os desconformes seriam superiores aos outros homens. Ou seriam defeituosos e, portanto, inferiores. Iluminados ou equivocados? Digo apenas que existem homens desconformes. Eles caminham ao lado, nem acima nem abaixo dos outros e, às vezes, em certos aspectos um homem é conforme e, em outros, desconforme. Ele necessita da fuga absoluta e a sociedade precisa de sua fuga, embora seu objetivo seja a destruição da configuração sistêmica desta mesma sociedade. Ele é tolerante com os homens conformes e com seu próprio lado conforme, mas foge deles o tempo todo, subverte seus valores, mas nem por isto se sente o iluminado ou o guia. Ele está nos flancos, sempre, dando suas estocadas, meio invisível, atacando de surpresa e sumindo tão rápido que os controles se desnorteiam. Ele cria novos limites para a sociedade capitalista que irá chamá-lo de Judas, num primeiro momento, e, talvez, santificá-lo, num segundo, tornando-o, sucessivamente, o mais reles e o mais elevado dos mortais. Mas ele nega tudo isto porque só deseja criar, criar e criar. Nem Judas nem Jesus, apesar do primeiro ser muito interessante. Além disso, gostaria que suas linhas criativas não fossem domesticadas e então as torna mais criativas e selvagens ainda. Mas ele sabe que isto é impossível, que elas serão domesticadas e entrarão na circulação comum de consumo dos homens conformes. Mas isto não o abala e ele segue criando suas linhas até o limite de suas forças, até quase a morte: tombei, de tanta vida que criei. out/2005
8. Os agentes de controle nos parecem, muitas vezes, absolutamente criativos. E de fato eles são, dentre os conformes, os mais relativamente desconformes, mas nunca absolutamente. Vejam-se, por exemplo, os homens da publicidade com toda a sua malícia de artesões infernais e sua perícia em surpreender as massas. Toda a criatividade do publicitário, no entanto, é rigidamente vinculada às exigências do capital e sua fuga é sempre dentro de seus limites interiores, por mais peripécias que suas linhas possam fazer. Idem para muita música pop e cinema que são produzidos se curvando às mesmas leis de audiência da publicidade.
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out/2005
9. DE COMO FUGIR NUMA CIDADE Aquele que anda misturado às pessoas. Quem diria que secretamente ele traça, neste exato instante, uma linha de fuga absoluta? Ele vai para o trabalho, mas seu pensamento flana pela cidade. E os prédios, as pessoas, as coisas e as praças revelam-se narcóticas para ele que, no entanto, está mais lúcido do que nunca. Outra cidade se revela, pois ele a corta como se fizesse uma viagem a um mundo estranho. Ele a recorta como se fosse a visão primeira de um mundo novo que precisasse ser organizado ao seu capricho. Para isto, ele anula a sua cidade cotidiana e é preciso uma severa disciplina para não se deixar submergir, distraído, na urbe de todo dia, para não cortá-la apenas preocupado com seus afazeres e problemas cotidianos. É preciso também não deixar que sua fuga absoluta cesse e se represe numa magia doméstica a ser repetida, como escape ameno, quando as exigências do mundo produtivo se tornarem sufocantes para ele. Aquele homem que caminha anônimo é praticante de uma tênue, mas espartana disciplina de fuga. Seu programa é traçar, com vigor e vertigem, suas rotas alternativas pela cidade. Uma da forças do Poema Sujo de Gullar é que entre o seu texto perpassa uma das mais vertiginosas e vigorosas linhas de fuga já traçadas numa cidade. 07/10/2005 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE
10. O FAZEDOR DE TEXTOS Cada vez menos ele pensa em dar aulas ou fazer crítica literária. O crítico, diante do texto, elege ou extrai perspectivas e parte para a análise em torno destas balizas precárias, ora se afastando, ora se aproximando delas. Olha o texto nos detalhes, abstrai, volta ao detalhe, abstrai de novo, raciocina, é meticuloso, conduz o leitor com seus argumentos, pondera, avalia, media: “o poeta
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tal usa tais imagens, se aproxima do mundo assim, é elíptico, é derramado. Quanto à matéria tal é debochado, irônico, nostálgico etc. Filia-se à tradição não sei das quantas, da linhagem dos poetas tais e tais...” Ao contrário do crítico, ele não tem paciência para detalhes e nem argúcia para a dialética da parte e do todo. É muito bruto com textos, executa movimentos grosseiros e nada sutis e gosta de ir ao ponto sem muita explicação. Na vida, sempre se achou muito contemplativo e desejou ser um homem de ação. Mal sabia que no universo textual seria, por vocação, um homem de ação. No mundo textual, odeia vôos contemplativos que tomam distância das obras e as observam com frialdade. Gosta de se misturar aos textos, distorcê-los, fazê-los dizer o que não queriam ou simplesmente fazê-los. E se deixar fazer por eles. Além de tudo lê pouco e desordenadamente. Está longe da erudição. Dorme e baba em cima de textos que acha chatos e muita coisa lhe parece chata. Não é, definitivamente, exemplo pra ninguém. É crasso e preguiçoso demais para professor, intelectual ou crítico. Prefere afiar seus poucos e rudes instrumentos, estudar o mais fundo que puder as suas possibilidades e partir para o ataque. Seu texto é um pesado trabalho textual tendendo para o ímpeto. Ele se move por arremetidas. 11/10/2005 DA CANÇÃO
11. A música brasileira, uma certa música normalmente chamada de MPB, que o aristocrata do Bruno Tolentino chamou de entretenimento da classe média em oposição ao poema literário, o qual, pra ele, é arte no mais alto grau, arrisco a dizer que essa música é tão boa, em termos artísticos, quanto o melhor da poesia escrita brasileira do século XX. Arrisco mais: na ridícula disputa de nações que tanto amamos, é uma arte na qual o Brasil (tal qual no futebol) é o que chamam de top. Poucos países rivalizam com a música pop nacional em riqueza e variedade. Talvez apenas os EUA, Inglaterra e Cuba possam ter produzido artistas e canções à altura, mas ainda assim, mais pobres em diversidade.
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Isso não anima muito os ufanistas, sempre envoltos com seu complexo de inferioridade nacional, porque eles gostariam que o país fosse top em muitos campos, mas não na música pop: “ah se fosse na música clássica, na literatura, na física, na filosofia, mas na musiquinha popular, essa coisa de negros?”. Os nacionalistas pensam, como Tolentino, que a música pop é arte de segunda, ou seja, mero entretenimento. Ao pensar assim eles se filiam a uma concepção de arte própria ao século XIX, na qual, como mostra Adorno, há uma clara diferenciação entre Grande Arte e Arte Popular. Eles crêem que ainda é possível falar em Grande Arte e que tudo o mais que seja estético fora de seus domínios estritos é, no mínimo, arte de segunda que não merece a perda de tempo dos homens cultos. Mas deixemos estes preconceitos de lado e sigamos as observações certeiras dos frankfurtianos. O campo estético do Ocidente sofreu profundas mudanças no começo do século XX. Mais especificamente, o corte entre Grande Arte e Arte Popular deixou de existir e as artes se misturaram sob outro regime que Adorno chamou de indústria cultural. O estético foi reordenado de outra forma, na qual a tecnologia e o capital foram decisivos para a instauração e desenvolvimento de novos modos e gêneros. Uma das artes que surgiram foi a música pop (canção), veiculada inicialmente pelo rádio. Ao longo de todo o século XX ela se desenvolveu e, no seu interior, se criou uma espécie de corte qualitativo entre canção de entretenimento e artística, esta cada vez mais sofisticada. Mas este corte interior nunca foi tão nítido quanto o que separava a Grande Arte da popular e, por isso, entre a canção de arte e a de entretenimento se estabeleceu uma relação promíscua na qual a navegação crítica se torna difícil e desorientadora. Esta ausência de limites claros, ou melhor, claramente convencionados entre o que presta e o que não presta é um problema generalizado do campo estético do início do século XX pra cá, pois na ausência de uma Tradição hierarquizada com seus mestres e obras basilares e de homens doutos inquestionáveis, responsáveis pelas verdades críticas, sem estas escalas qualitativas seguras, como valorar os artistas e suas obras? E o pior é que este novo ambiente estético não permite a construção de uma tradição hierarquizada como a da Grande Arte e é hostil ao surgimento de mestres, ou seja, artistas que distribuem abaixo de si todos os outros de sua época ou corrente. Na verdade, ao afirmar que a música pop brasileira do século XX é tão boa esteticamente quanto à poesia escrita contemporânea sua, cometemos um erro, pois comparamos sem muita mediação duas artes pertencentes a configurações estéticas bem diferentes. Pois a Grande Arte tem seus critérios de valor que servem somente a seu sistema, no qual mestres, autoridades, técnicas
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específicas e certos pressupostos teóricos de profundidade e densidade são essenciais. Se aplicarmos estes critérios a qualquer arte da indústria cultural, chegaremos à mesma conclusão de Tolentino, ou seja, que a música pop não passa de entretenimento superficial para as horas livres da classe média. Então, refaçamos a afirmação. As boas músicas pop, tal como os bons poemas, parecem nos dizer coisas, nos fazer ver o mundo de modo inesperado, surpreendente. Constroem um outro universo (poético? fictício?) paralelo ao ‘real’ e que, no entanto, interfere decisivamente neste real, demolindo-o e reconstruindo-o sob novas perspectivas, liberando fluxos de vida que não suspeitávamos existir. Eles nos levam a uma espécie de transe lúcido, a novas percepções e perspectivas, a um outro tipo de aprendizado sem direção pré-estabelecida de objetivo e utilidade. Neste sentido, música pop e poema escrito são igualmente bons do ponto de vista estético, pois a primeira atingiu, em alguns casos, tanto refinamento artístico quanto a melhor poesia literária. 13/10/2005 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE
12. Sou movido a ódio pelo que os outros deixaram de dizer e deveriam ter dito. Pelo que os textos não conseguiram fazer e eu tenho que fazer. Sem este ódio tudo o mais seria chatice sem fim. Eu não me movo por mim. Nem sei quem sou. 13/10/2005 DA LITTERA
13. Estamos irremediavelmente ligados às circunstâncias, emaranhados de tal modo ao que nos cerca que a nossa visão está sempre turva de aqui agora. Sobrevôos, saltos, altos, foras são ilusões metafísicas dos agoras de cada hora da história. Eis, senão a verdade, pelo menos a idéia mais vigorosa que o homem ousou pensar, embora o torne o mais frágil dos seres — este animal sem instintos e agora sem certezas, que não a de sua morte. Mas é preciso pensar assim. Os historiadores chamam as circunstâncias de contexto. No entanto, mais uma vez, os artistas são, a 20
seu modo, mais incisivos e quando um poeta ousa despir seus poemas do desejo do profundo, do metafísico, do metafórico e do sagrado, então ele pode explorar esta condição de homem desnorteado de um modo impossível aos intelectuais. Eis a força do Poema sujo: colocar em suas linhas toda a circunstância de uma cidade, de uma memória sem identidade. Pois o sujeito que se vê/relembra às voltas com as circunstâncias da sua cidade, ele mesmo é sujeito apenas circunstancialmente. Naquele momento do poema como desvencilhar o sujeito da cidade e ambos da contingência? Sujeito e cidade são atmosferas que se imbricam em poema que, por sua vez, é outra atmosfera que negocia com as outras duas. Como distinguir, de maneira precisa, uma das três atmosferas se os limites de qualquer uma delas, por sua natureza, é indeterminado? Nenhum salto para fora da cidade se realiza com a ilusão de vê-la como ‘realmente é’, pois este ser da cidade, acima de todas as miríades de circunstâncias que a constitui, este ser simplesmente é uma ficção entre outras. Gullar sabe disso e se coloca, desde o começo, em meio às circulações circunstancias da cidade. Ele é guiado pelo tato, pela curta distância de uma perspectiva parcial. Só há perspectivas parciais, envoltas de agora, turvas. Ninguém nunca viu um palmo adiante do seu nariz. Negociemos com o acaso, o aqui e agora, só assim, quem sabe, riscaremos uma rota fecunda. out/2005 DOS BRUXOS
14. Ontem eu vi um documentário em que o Antônio Candido falava, quase comovido, sobre o caipira e seu modo de vida. Depois assisti o filme do Harry Porter com o seu universo paralelo de bruxos que reproduz, ponto a ponto, os leves dramas escolares dos filmes teens de Hollywood, os quais, por sua vez são uma representação idealizada do mundo adolescente. Foi bom porque me fez pensar acerca dos bruxos. É claro que estes não têm nada a ver com os dos filmes, estilizados nos papéis de mestres escolares. Aliás, esta tem sido a redução que o cinema comercial faz deles, a de transformá-los em professores um pouco mais curiosos e magnéticos. Desses dois filmes, o verdadeiro bruxo estava no documentário. Era o afável
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velhinho (disfarçado de professor) que falava mansamente sobre os caipiras, dos quais ele era um. Não há, de fato, nada demais em um bruxo. Ele se casa, tem filhos, trabalha regularmente e até pode ir à igreja, com fé! Nenhum de seus feitiços são secretos, pois estão ao alcance de qualquer um. A vida e a obra de Candido são, definitivamente, um livro aberto. Quem o conhece? “Ah! o senhor é professor? Bom dia professor. O senhor ensina o quê?” Perguntássemos nas ruas brasileiras quem é Antônio Candido e 95% dos entrevistados não saberia dizer e apenas uma ínfima parcela dos 5% restantes o conheceria a ponto de saber realmente o poder se seus feitiços. E nada escapa a ele quando as pessoas estão na sua presença. Mal sabem que podem se transformar em matéria de bruxarias para este arguto feiticeiro de olhar terno e sem compromisso. Eis o bruxo, o único que surgiu na tela da TV na noite de ontem. 17/10/2005
15. Bruxos não têm escalas hierárquicas de homens. Não são e nem se sentem superiores ou inferiores aos não bruxos, salvo por alguma patologia que pode lhes acometer, como a qualquer outro homem. Os bruxos simplesmente se vêem diferentes dos não bruxos em algum momento de sua vida, geralmente guiados por um ou mais mestres. Eles não nascem bruxos, embora a genética possa ser um fator favorável, assim como o meio. Mas eles sabem, com mais ou menos clareza, que o fator decisivo para serem o que são é uma complexa combinação de talento, oportunidades e acaso, principalmente acaso, esse deus dos bruxos. Pode acontecer de haver dois discípulos de um mestre, um muito promissor e outro apenas razoável. De repente o que era muito promissor pára em um determinado ponto ou se sente atraído por outro ofício e o que era apenas razoável dá um salto e atinge, sem mais nem menos, um outro plano de conhecimento. Talvez porque ele se apaixonou ou porque foi abandonado pela amada ou achou outro mestre que lhe abriu todas as portas ou... Quem saberá? Nem ele próprio o sabe com certeza.
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O bruxo inicialmente pode pensar ser um homem superior. Pode ser que lhe ocorra de ser inferior, principalmente em ambientes muitos hostis e duros, pois ele costuma ser uma pessoa sensível e delicada. Mas, com o tempo, ele vê que apenas quer fazer os seus feitiços sem ser incomodado e sem incomodar. O que é muito difícil, pois para isto ele precisa se afastar dos afazeres e opiniões dos homens conformes. Ele precisa de tempo para estudar os mestres e preparar os seus feitiços numa dura e longa formação. E embora haja ambientes mais propícios a isto, não existe nenhum realmente adequado. Mas ele não culpa a sociedade porque sabe que o seu ofício é, por natureza, inadequado a qualquer instituição social. Ele sabe o peso e o custo de sua tarefa e, se decidiu empreendê-la há de arcar com as conseqüências. Como não incomodar se ele não é produtivo e, no mais das vezes, foge das obrigações cotidianas em nome das obrigações de seu ofício? Como as pessoas não o incomodam se elas precisam que ele seja produtivo e atencioso para com seus afazeres de não bruxo. Ele costuma ser um estorvo. Às vezes, por isto, entra em crise. Mas não lhe atribua problemas psicológicos, não se trata disso, pois ele não tem psique. Houve um grande bruxo que inventou esse poderoso feitiço, a psique. E deixou muitos seguidores, mas todos sabem que se trata de um feitiço e não da verdade. A verdade, eis uma coisa que não convém aos bruxos. A verdade é coisa de sacerdotes que a guardam ferozmente em suas instituições, com o nome de sagrado. Bruxos não são sacerdotes e não têm nenhum compromisso com o sagrado. Eles só pensam em magia, em como encontrar formas e fórmulas de fazer e controlar a magia. Só lidam com efeitos e superficialidades do mundo. Nada de causas primeiras e profundas. Os bruxos geralmente não acreditam nestas causas por sob a capa de magias. Para eles há somente camadas e camadas de magias proliferando em todas as direções e dimensões: não há nada mais embaixo, ao lado ou em cima. Alguns bruxos podem até acreditar no sagrado (Deus, o Diabo, plêiade de deidades) e venerá-lo, mas isto costuma contar pouco no seu ofício, mesmo quando incorporado nele. O que vale é como a magia e os feitiços vão redistribuir o sagrado na bruxaria. Aliás, é justamente pelo fato de o sagrado não importar aos bruxos é que eles não se sentem inferiores ou superiores a ninguém. Pois é próprio do sagrado distribuir os homens em importância de acordo com a proximidade da deidade: quando mais perto de sua verdade, mais
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importante é a pessoa. Agora, num universo em que não há um sagrado fixo para servir de referência, mas apenas magias soltas ao vento, como determinar importâncias em termos absolutos? Nem os bruxos sabem, entre eles, quais valem mais ou menos. Apenas traçam provisoriamente uma escala de importância para, mais à frente, a abandonarem. 17/10/2005
16. Bruxos não querem salvar nem destruir o mundo com seus feitiços, embora tenham esperança de interferir nele. Mas sua interferência se dá de maneira tão sutil que quase não se percebe. Pode acontecer de um bruxo morrer e sua bruxaria surtir efeito décadas (ou séculos) depois. É uma atividade cheia de incertezas. Raramente o bruxo sabe se está no caminho certo ou se os seus feitiços vão ter o efeito desejado ou, pelo menos, próximo ao desejado. Isto porque os feitiços, depois de prontos, parecem coisas vivas e tomam rumos que o bruxo nem sonhava quando os criou. 17/10/2005
17. Um engano comum que se comete sobre os bruxos é que eles trabalham em segredo. Isso foi verdade em outra época, quando os bruxos eram proibidos, amaldiçoados e até mortos por conta de suas bruxarias. Os tempos são outros e todos os feitiços do bruxo estão minuciosamente descritos em obras de livre acesso ao público. Aliás, esse é o melhor modo de se encontrar discípulos para este duro ofício. Agora, em parte, o segredo dos bruxos é uma verdade. Pois mesmo as obras estando abertas a todos, só alguns conseguem, de fato, lê-las intensamente como bruxarias e um menor número ainda, a partir dessa leitura especial, chega a fazer seus próprios feitiços. E não é só uma questão de talento, mas também de disposição e possibilidade de enfrentar os percalços do aprendizado e do exercício do ofício. Além, é claro, da sorte de poder dar o salto que permitirá ao aprendiz produzir uma bruxaria realmente interessante. Este salto não é o destino nem a conjunção das esferas celestes que proporciona. Não, apenas o acaso, esse deus manhoso, pode provê-lo.
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Às vezes uma pessoa é muito promissora para a bruxaria, tem tino. Mas algo nela a freia no ofício e a desvia para outro mais cômodo, como o de mestre ou artífice. É que a bruxaria exige renúncias ou disfarces demais, ou ambos. Exige rompimentos (com crenças, hábitos, modos de vida e pensamento) que muitos não estão dispostos a fazer. Isso é compreensível e os bruxos não condenam a desistência, que consideram legítima. Aliás, bruxos não julgam (isto também é tarefa de sacerdotes), não perdem o seu tempo com julgamentos e condenações. Não há honra nem desonra, certo ou errado no universo dos bruxos. Eles estão cagando e andando para a moral maniqueísta. A moral dos bruxos é ágil e fluida como as suas bruxarias. A bruxaria do bruxo é a sua moral, além de ser sua estética, sua ciência e sua prática. Bruxos não são de classificar e hierarquizar seus afazeres. Nem de matutar muito sobre eles, a não ser que isto sirva para feitiços. 17/10/2005
18. É quase uma maldição o destino dos bruxos. Quando alguém se descobre um, ou vê que o único caminho a seguir é inexoravelmente este, quase que devíamos dar-lhe os pêsames. Como seria bom se ele não visse o mundo perpassado, de um pólo ao outro de seus confins, por miríades caóticas de magia. Agora que ele vê, irá ter que haver com essas entidades selvagens que lhe turva as vistas até não poder mais. Ele tem de criar uma disciplina para si, tentar jogar com as magias, fazê-las passar por aqui ou ali, acumular um pouco acolá, deixá-las acelerar ou freá-las, aprisioná-las por vezes, outras vezes cavalgá-las perigosamente. Ele vê coisas inimagináveis, sonha o improvável e pode contar com muito poucos que o compreendam. Mesmo os bruxos mais famosos contam com muito poucos, imagine então os obscuros! Alguns pensam que os bruxos querem a eternidade com seu ofício. Isto não é verdade, pois os bruxos aceitam bem a morte e até esperam tranqüilos por ela. Eles não desejam viver para sempre, nem mesmo em suas bruxarias, que eles sabem serem entes com vida própria e que, depois de muito tempo, do bruxo que as fez trazem apenas o nome, tamanho o seu poder de mutação. O que os bruxos querem é apenas um pouco de tempo para fazer bem o que tem que fazer, porque eles se sabem ligados a uma teia contínua e desconforme, entrópica, à qual seus mestres estavam ligados e seus discípulos vão estar. Chamemos esta teia de tradição. Mas não nos enganemos, pois não se trata da tradição dos sacerdotes, cheia de ordem e hierarquia. A dos bruxos forma miríades de bruxarias construídas em meio ao universo de magias caóticas. Mas a
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construção feiticeira é quase tão entrópica quanto o meio mágico em que se encontra, porque a intenção dessa tradição não é ordenar o caos de uma vez por todas numa unidade sacra, mas explorá-lo perpetuamente, construindo/extraindo dele potências e formas. O bruxo entra no universo mágico como o caçador na floresta, nunca como o agricultor. Os bruxos vivem a tradição para si, mas a tradição vive os bruxos para ela. É uma vampirização de mão dupla na qual os bruxos têm de tomar cuidado para não se entregar unicamente à tradição e esquecer da vida. Eles devem passar entre a tradição que os atravessa. E têm que retornar à vida, outros, e outrificar a vida com suas bruxarias. Isto não quer dizer salvar a vida e o mundo dos homens, nem destruí-los, mas influí-los, fazê-los fluir de outro modo, mesmo que o desvio de curso seja mínimo e o mais localizado possível. 17/10/2005
19. Porque falei de Antônio Candido como bruxo, podem pensar que falo por metáforas, ou por alegoria que, entendida ao modo antigo, é uma metáfora continuada. Podem pensar que falo dos homens de letras ou intelectuais e que onde digo bruxaria e feitiço leiam-se obra e texto. Homens de letras como Candido podem ser bruxos, mas isso não quer dizer que todos os bruxos sejam homens de letras e vice-versa. Um cientista pode ser bruxo, um artista, um filósofo, até um desportista talvez o possa e quem nos dará a certeza que sob a capa do sacerdote não pode haver um bruxo escondido? Tantos disfarces de bruxos podem haver quanto forem os ofícios e até mais. Decididamente não falo por metáforas. Quando falo de bruxos, falo de bruxos e só. 17/10/2005
20. O destino dos bruxos é inexorável. Isso não quer dizer que ele foi pré-traçado desde a eternidade por uma entidade onipotente. Este destino se constrói das circunstâncias muito concretas e localizadas em que eles se movem como homens. Vocação, talento, ambiente, acontecimentos e encontros casuais que por segundos poderiam não se dar e que fazem brotar uma idéia, uma 26
sensação que pode proliferar e tomar a mente do homem, o corpo do homem. Ele se enleia com esta proliferação e passa a persegui-la, a estudá-la, a vivê-la e, de repente, não há outro caminho possível que não o da bruxaria. É inexorável, mas não pré-determinado. Também não há teleologia nem fim inevitável. O seu caminho é, por natureza, sem fins certos nem objetivos precisos. Nenhum bruxo sabe exatamente o que quer, a não ser seguir as proliferações mágicas que os acometem e que ele sabe não possuírem direções certas. A incerteza é a estrada dos bruxos. A vocação mesma, quiçá seja, também ela, um produto das circunstâncias casuais do feto, da infância, do olfato... 17/10/2005
21. Bruxos são pensadores? Pode até ser que sim. Mas há um modo de pensar bruxo. Ele não tem nada a ver com refletir ou contemplar, se distanciar para apreender. O bruxo pensa emaranhado. Ele faz com o pensamento. Pega as idéias e faz feitiço com elas, usando-as como coisas, ingredientes que vão ser misturados, manipulados. O bruxo é muito táctil, tem que saber o ponto certo das suas mágicas e gosta de sentir este ponto na pele, em forma de temperatura, textura, tempero. Ele precisa saber o cheiro das suas porções, ouvir seu borbulhar e ver suas cores, linhas e formas. Bruxos não gostam de abstrações no seu trabalho, sempre concreto e chão, embora muito sutil, às vezes. É um artesão da magia. 17/10/2005 DA LITTERA: profundos, construtores e marginais
22. Embora a poesia marginal tenha surgido na década de 70 em contraposição ao cerebrismo estrutural da via concretista, a marginália é coisa bem mais antiga. É uma atitude poética cujo desejo é atravessar, sujar o poema de vida até que o seu cheiro fique tão impregnado e indiscernível do texto que não seja possível lê-lo sem quase ressuscitar a vida que ele suscita. A marginália evoca a vida pelo poema, ou melhor imbrica vida e poema..
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Não se trata da vida do sujeito que a gerou, o ser subjetivo do poeta (embora isto também possa ocorrer), nem da vida como abstração universal. Não é isso que a marginália evoca e explora, mas esta vida, esta linha específica de vida que atravessou o caminho, raptada, ritmada, ecoada no poema que se torna um gatilho, uma linha de texto-vida pronta para interagir com outra vida, a vida de quem lê. O poema é uma conexão de vida, ele mesmo uma espécie de vida energética fixada como texto. As pessoas (sua vida) reproduzem o poema. Do outro lado os poemas reproduzem a vida dos homens. Prazer, transa, transe, reprodução: trata-se de uma maneira de copular não humana, texto-homem. O poeta, por exemplo, capta as mínimas vibrações de uma tarde, de sua vida interagindo com aquela tarde daquele dia. Ele precisa de um texto. Não para representar a tarde ou sua interação com ela, mas para servir de limiar, de ponte a este momento único e vital. Mas ponte entre este momento e o quê? Ora, ponte com outras vidas e textos. Ponte com um povo que virá, ponte com textos do passado e do porvir. Uma ponte que não sabe nada da outra margem sobre a qual se lança. É como a reprodução de certas plantas que entregam suas sementes ao vento ou aos insetos que são suas pontes até outras terras incertas e ignoradas. O texto é o prolongamento daquela tarde, daquela interação vital do poeta com a tarde. Para isto é preciso ritmar, rimar, ecoar, imaginar, refratar o verbo, significar por entre, de viés, desvairar e variar a linguagem. É preciso evocar a linguagem, negociar com ela um pacto, o pacto de Jakobson: deixá-la se manifestar em sua forma mais rebelde, narcísica e não funcional, como função poética, a mensagem voltando-se a si mesma, referindo-se a seu próprio ser, cessando o seu fluxo sintagmático e utilitário para se erigir em monumento, em forma, em estrutura de linguagem. O poema morde seu próprio rabo, narciso olha no espelho, a medusa olha no olho do texto. Só assim o poema pode prolongar em seus ecos aquele momento vital da tarde, tão leve e rarefeito quanto a atmosfera de um astro mínimo. Não é uma representação, não se trata da estrutura do poema representar a tarde ou a vivência da tarde, mas de prolongá-la. E trata-se de um prolongamento, de uma conexão de heterogêneos, pois o fluxo de linguagem do texto não tem a mesma natureza e funcionalidade dos fluxos da tarde e nem dos fluxos do poeta: imbricação de miríades de fluxões diferidas. Mas se for somente estrutura o poema é inócuo, é uma morfologia sem fisiologia, ou seja, um morto — foi um erro dos estruturalistas pararem aí. Essa forma tem de nascer no mesmo instante que a energia que a percorre, porque só assim ela será um texto que, para além do compromisso com a tradição, a representação, a subjetividade, a estruturação, para além desses compromissos da ordem do ser (que nada sabe da vida) ela se comprometerá com a vida dos homens, com a sua vivência perceptiva, afetiva, intelectual, o escambal. E a vida é fogo e é foda!
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Se os estruturalistas fossem mais longe, perceberiam que, na verdade, o poema não é uma estrutura, mas um tecido felpado, um sistema aberto de feixes energéticos imbricados de um certo modo. Se experimentamos esta imbricação como desejo de ser vemos uma estrutura de linguagem que se refere a si mesma ou que representa outras estruturas: ser, sujeito, sociedade... Mas se a experimentarmos como desejo de ir (de fuga), então nos prolongamos nele e vice-versa, nos enleamos em suas imbricações e podemos explorar suas linhas e campos de força. O poema deve ser narciso, pois o feixe de energia que o compõem tem que tender a um estado de estabilidade tensa, numa espécie de turbilhonamento selvagem. Mas este narciso precário ainda tem que transar com um outro, tem que namorar um outro para se tornar forma viva e se reproduzir mais à frente. Este outro é a vida que atravessa e constitui tão intrinsecamente o texto que nele não se divisa mais ordem formal e vital. O poema torna-se um bloco vivo de texto à procura de pessoas para sua conexão, sua cópula. Pessoas em transe para uma língua tonta. Baco, Afrodite e Orfeu se mani/festando no turbilhão do texto-narciso. 16/11/2005
23. A marginália é uma opção. A opção pela energia, pela vida. Não que os poetas desta via vivam à margem da sociedade e sua poesia seja a representação desta vivência. Não se trata disso, pois há vidas marginais que, por se manifestar textualmente como representação, não chegam a uma poesia marginal, assim como existem as vidas mais burguesas e medíocres que conseguem se alternar para vivências à margem que, por sua vez, se prolongam em poéticas marginais. Isto ocorre porque, para um texto marginal basta uma fina percepção se insinuar por entre a normalidade das conexões padrões da vida. Então, tem-se uma fresta que, vivenciada, percorrida e explorada para aquém da representação e da estruturação, pode resultar num texto sujo de matéria vital: um texto marginal. 16/11/2005
24. Há, hoje, uma dualidade no campo poético. De um lado os adeptos da vanguarda, do experimento, do poema como linguagem, dos rigores do objeto poético: concretismos e afins. De 29
outro os seus rivais encarniçados, os poetas do profundo, do metafórico, do compromisso com a tradição e com o ser (do sujeito, da cultura, de deus). Destes dois pólos a marginália não é síntese nem sincretismo, embora vá beber, de quando em vez, numa e noutra fonte. Mas se bebe é porque ambos os pólos têm o seu cadinho de margem de vida. A marginália passa por entre os dois impérios rindo dos seus impropérios. Ela está cagando e andando para as duas seriedades que se digladiam: a da estrutura e a do ser. Ela é o limiar entre os dois, o terceiro incongruente, o diferencial, a cadela desprezada por ambas as poéticas que, no entanto, necessitam dela para respirar um pouco de vida de vez em quando. A poesia do rigor da construção acha a linguagem da marginália frouxa. Por sua vez, a poesia do rigor do ser acha a marginália muito superficial. E os poetas marginais riem até estourar a pança. Eles viram para os construtores e dizem “sim nossa língua é frouxa como cu de velho”. Viram para os profundos e dizem que a única profundidade que conseguiram penetrar foi a das bucetas das putas. E riem, e gargalham como Baco numa festa. É que os rigores marginais são outros que os do ser ou da linguagem, pois são rigores de limiares, de atmosferas e fluxos de textos-vida. Eles não se preocupam com as hierarquias (profundidades) do ser nem das estruturas (no fim são quase as mesmas, uma é o negativo da outra). Seu rigor tem a ver com surfar ou cavalgar as ondas atmosféricas que se sucedem nas margens (nos limiares), em encontrar textos bons para prolongar estados intensivos que eles garimpam nas atmosferas. Que besteira o profundo e a estrutura. Como pensar nestas coisas se elas não concernem às atmosferas que se compõem por emaranhados energéticos sem centro, topo ou abismo principal? Os poetas marginais são os mais desconformes entre os poetas. 16/11/2005
25. Se há possibilidade da sobrevivência do poema nos dias de hoje, só pode ser pela marginália. A poesia profunda não responde mais à época. Não há sentido em fazê-la quando a perspectiva do ser e da unidade se esfacela ou se junta a perspectivas de controle e autoritarismo sociais. O pensamento da unidade e a representação artística não dão conta mundo. A poesia da estruturação, no lugar de erigir o sujeito individual ou coletivo como utopia ou nostalgia, como fazem os profundos, faz a apologia da linguagem como experimentação, deslocando o desejo da unidade do ser para a unidade estrutural da obra. Por mais fragmentária que seja, há sempre a
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busca da organicidade formal: classicismo pós-moderno. Ambos bloqueiam o diálogo com a vida contemporânea ao impor totalidades refratárias à fluxão entrópica da sociedade. Há que se extrair as possibilidades de vida nova da ausência de unidade da sociedade. De se construir uma via feiticeira que sirva de desvio às rotas pré-traçadas e mapeadas pelos controles binários dos bancos de dados. Só os marginais podem traçar estas vias alternativas. 17/11/2005
26. A marginália é a poesia de maior risco. Ela pode descambar facilmente para o palavrório verborrágico e sem nenhuma necessidade. Freqüentemente os marginais, mesmo os bons, fazem coisas de se jogar no lixo. É que no afã de querer passar a vida por entre os textos eles não fazem o pacto de Jakobson, se esquecendo de fazer o poema parar de pé. Isto não quer dizer buscar a estrutura ao modo da poesia de construção, mas saturar o texto com as energias minimamente necessárias: só mínimo milímetro preciso. É diferente da forma mínima, pois se trata, antes, de um regime energético das micro-percepções: raptos, ritmos, átimos, lapsos. Não proceder por estruturas formais, mas por atmosferas energéticas de texto-vida. Ser rigoroso numa composição atmosférica é muito diferente da estruturação da linguagem, pois uma atmosfera vaza por todos os seus limiares e estas passagens, estas bordas é que são as fronteiras fluidas da coisa poética que o marginal tem que particularizar como poema. São atmosferas de texto-vida e não somente de texto, porque a fronteira entre linguagem e vida é indiscernível no composto poético, por conta de sua constituição porosa, vazante, aberta, em fuga indefinida. A fragilidade de muitos marginais da década de 70 foi conseqüência de sua recusa (ou impossibilidade) em compor regimes energéticos rigorosos. Um rigor à moda marginal, é claro.
*** Quando falo de marginais e marginália, portanto, não falo dos poetas e da poesia de 70, embora o ponto de partida possa ser as suas afecções contra-culturais: hippies, negras, gays, femininas, musicais, alucinógenas, on the road. A marginalia é o ínfimo infinito que a poesia de 70 percebeu, intentou e raramente efetivou como texto. Mas talvez os poetas de 70 não quisessem
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mesmo o império do texto, ou queriam usá-lo apenas como apoio precário e contingente (como é a choça para o caipira) para a vivência das margens da vida. 17/11/2005
27. O poema é um regime energético de atmosferas. 17/11/2005
28. Por eu ligar a marginália ao mínimo, pode-se pensar que apenas os poemas curtos podem ser marginais. Mas há poemas longos inteiramente perpassados pelas mínimas percepções de margem. Assim ocorre com o Poema Sujo de Ferreira Gullar e Metaformose de Paulo Leminski. Por outro lado há poemas curtos que nada têm de marginália, como a maioria do Lucernário de Alexei Bueno, obcecado com as profundezas. Ocorre que o mínimo não é uma questão de tamanho textual, mas de procedimento poético. 17/11/2005
29. Os profundos são discursivos em seus poemas que, mesmo curtos, carecem de ínfimo e tendem ao prosaísmo. A vida nos seus textos, mesmo concreta, é lançada para abstrações e totalidades, mesmo que perdidas ou por vir. Por isto prezam tanto a Obra, o Sujeito, o Gênio, a Tradição, a Metafísica, o Ser das coisas enfim. No fundo é uma poética do sagrado, religiosa, com deuses, reis, sacerdotes, guerreiros e pobres mortais. É uma poesia aristocrata que reveste de nobreza os seus praticantes. Os atos heróicos ou santos de seus maiores poetas serão admirados e cantados pelos pobres mortais. Até a metade do século XX essa coisa profunda tinha sua razão de ser, pois havia sentido no homem se redimir pela nobreza das letras, embora esta idéia tenha sido clara e duramente combatida desde as vanguardas do início do século. Mas havia sentido, pois a poética do 32
profundo quase se confunde com a própria Literatura como sistema, para falar nos termos Antônio Cândido. Digamos que a base da lírica literária, desde o Renascimento, seja a poética profunda. Base sobre a qual os poetas vão agir, com rebeldia, reverência, ironia, vandalismo... Mas apesar de todas as ameaças à ordem nobre e santa da lírica profunda, os seus praticantes estavam sempre dispostos a absorvê-las em sua tradição. Ela era uma coisa dinâmica, mantendo uma relação de vida com a sociedade. Mas a Literatura como sistema acabou por volta de meados do século XX, pois não tinha mais razão de ser no pós-guerra. Como falar em nobreza, mesmo que literária ou intelectual, num mundo pop como o nosso? Então o texto poético dos profundos ficou prosaico, no sentido de que não tem nada ou muito pouco a nos dizer, pois o sagrado (mesmo difuso) e o lamento metafísico pela perda dos fundamentos do mundo soam como o desejo de uma autoridade que colocasse ordem na entropia da sociedade capitalista computacional. Restou, à poética profunda, um enorme senso de organização e apego a autoridades e instituições. Por isto os nobres profundos estão sempre bem colocados em algum pedaço do Estado, como escribas ornamentais (pois os escribas realmente necessários ao Estado de hoje são os especialistas em direito), vivendo das migalhas destinadas à Cultura. Por isto eles amam tanto as louvações a tudo que é profundo, calmo e ordeiro, pois estão louvando o seu cadinho de ordem e, por tabela, todo o Estado, ordem maior. Mesmo que falem mal do rei, mesmo que cantem o mundo fragmentado, o amor indomável, o sofrimento dos homens, as injustiças da sociedade, mesmo quando se travestem de rebeldes, se aferrem ao seu rigor de densidade poética e resolvam explorar o campo do profundo como artistas de verdade, mesmo assim há o lamento pela ausência do ser, a louvação do ser. Como poderia deixar de ser assim se o rigor a que se aferram (a sua gramática) conduz a isto, de um modo ou de outro? Mas esse rigor da poética do profundo deixou de ser vivo. Ele não responde mais ao mundo e é em vão que os poetas e críticos tentam trabalhar dentro de seu escopo, mesmo que para ultrapassá-lo. Os rigores do profundo não atormentam mais o mundo poético, assim como o ser e seus abismos da verdade não são mais questões do mundo dos homens. O profundo não nos cerca, portanto ele não possibilita mais fugas a traçar, nem retornos a fazer. A nobreza e o sonho aristocrático foram definitivamente enterrados na metade do século XX. Já era tempo! Nossas celas agora são outras. 21/11/2005
30. Os profundos (os que, dentre eles, tendem à crítica) também se encastelaram na universidade, pois ela também proporciona aconchego aos desejos de ordem: uma de suas faces é o repouso e o
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ensino do saber acumulado. A hora dos mestres. E os profundos adoram a mestria, a sua autoridade e eminência, a reverência com que os pobres mortais se dirigem aos mestres. Mas nessa seara eles costumam se digladiar, na maior parte das vezes tacitamente, com os construtores, que também são chegados numa academia. 21/11/2005
31. Os construtores e sua poesia de construção foram uma reação aos poetas profundos. Ela se prenuncia com o simbolismo e vai se tornar uma dissidência clara com algumas das primeiras vanguardas pós-simbolistas. É a poesia dos artífices. Poderíamos argumentar que todo texto clássico é de construção, porque vai privilegiar a razão e o artifício em detrimento da emoção e a expressão. Mas esta oposição entre racional e irracional ocorria no interior da própria poesia profunda. De um e de outro lado da linha da razão os poetas tinham que se haver com os seus abismos onto-subjetivos, desejados, perdidos, prometidos... A poesia de construção é uma novidade do fim do século XIX. É uma extração e um aprofundamento de alguns preceitos mais ou menos dispersos na tradição do profundo, tais como rigor formal, inovação, aversão ao sentimentalismo e às lamúrias. É uma poesia vigorosa, guerreira, dura, irônica. A ironia do romancista foi levada ao poema pelos poetas construtores. O jogo entre a construção e as profundidades foi duro e fecundo. Ele proporcionou a riqueza incomensurável da poesia do fim de século XIX e da primeira metade do século XX. Entre nós, este jogo nos deu Oswald, Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Cabral, os concretos e Gullar, para ficarmos nos mais conhecidos. A construção surgiu como pólo ateu às profundezas do ser. Ela não se aferra à profundidades, mas ao rigor da coisa poética como linguagem. É um pólo de oposição ao metafórico sacro. E entre os dois pólos fluiu uma tensa corrente energética da qual os poetas se serviam, ora tendendo mais a um deles, ora misturando dialética ou sincreticamente ambos. Foi uma festa! Há poetas radicalmente profundos ou construtores, mas também há os que se divertiram (e sofreram) com a mistura em grau variado de ambos os pólos. Bandeira, Mário e Drummond são exemplos do uso e abuso desta mistura.
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A construção, apesar (e por conta) de sua oposição ao profundo, faz sistema com ele. De certo modo a poesia de construção voltou-se a um sagrado, ao levar o pacto de Jakobson muito a sério. Ela erigiu templo e altar à estrutura de linguagem do poema e, em torno deste templo distribuiu os sacerdotes e fiéis mais e menos importantes, venerou uma plêiade de deidades e glorificou os seu heróis. Não chega a ser uma aristocracia das letras, mas é como se fosse uma democracia tecnocrata que, com todo o seu laicismo agnóstico, reveste os especialistas de autoridade. O poeta construtor é o técnico-pesquisador do texto criativo. É por isto que os construtores estão na universidade, pois ela também é lugar para técnicos e cientistas, além de nobres mestres. A construção se desgarrou da tradição profunda como rebeldia, quebra e afrontamento a ela. Mas a sua emergência e diferenciação compôs, por oposição, sistema com as profundezas. O que foi muito fecundo e proporcionou ao sistema literário o seu último e inigualável fôlego. Contra a unidade do ser os construtores oporam a organicidade da estrutura. Ao valor da tradição contraporam o da invenção (novidade). Uma autoridade contra a outra. E tudo o que a literatura sistêmica precisa é de autoridade. Foi uma tentativa de revolução, um jogo de conquista de poder no interior de um mesmo estado, a Literatura. Mal sabiam, profundos e construtores, que este estado se dissolvia. 23/11/2005
32. A poesia, porém, tem uma face permanentemente voltada contra qualquer sistema, estado ou autoridade. Uma face vagabunda e selvagem. Uma face marginal porque se instala nas orlas dos sistemas, de onde os seus guerrilheiros dão estocadas imprevisíveis. A marginália esteve sempre nos lugares mais perigosos da literatura, nos seus limiares, nos seus desertos, nas suas montanhas. Nos lugares onde o clima é inóspito e as terras inférteis. Onde a vida é dura, onde a vida é viva e mortal, onde a vida é vida. A marginália nunca deixou de estar infiltrada na poesia literária, na boa poesia. Diga-me um bom poeta e extrairei de seus textos o seu cadinho de margem, as suas miríades de margem. A marginália emerge agora claramente porque o Estado Literário se derruiu. Ela é o que restou da literatura lírica, o que sempre restou (como veneno, como remédio, como droga) da literatura
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lírica, o que a faz viva, a sua (anti)essência energética, a proliferação textual lúcida/alucinada e suas percepções mínimas: aquilo que o hai-kai foi a vida inteira. Construtor ou profundo, se fez um texto vital para os vivos, é porque traiu o seu sagrado e, vampiro, sugou de sua crença o agnosticismo ou a heresia que o lançou à margem, na qual andou com os homens vagabundos e desconformes. A única e estreita via para a boa poesia é a (auto)excomunhão da igreja do profundo ou da construção. O único santo dos marginais é Judas. Segui-vos os passos. 23/11/2005
33. Dá muito trabalho ser construtor. O poeta deve se vigiar o tempo todo para não deixar o rigor da linguagem fugir por entre os dedos. O poema não deve NUNCA ser prosaico, excessivo ou verborrágico. A lição severa dos inventors jamais abandonada. O lugar comum, se aparecer, deve ser apenas para se renovar radicalmente: make it news. O poema deve ser um bólido duro e tenso contra a vida normal. O poeta construtor não pode jamais ser pego comendo pipoca e assistindo a novela. Ele nos retrucará “mas nós vivemos a vida banal na maior parte do tempo, só que a poesia não pode ser esta banalidade”. É aí que está o engano dos construtores, o de não afrouxar a sua rígida disciplina de linguagem para a futilidade e o relaxo, no dentro mesmo do poema. Porque se isto acontece o poema fica poroso demais, sem dentro, sem osso e sem caroço e a estrutura vai pro beleléu. A poesia construtora é uma poesia macho. Ela tem fobia das bichas. Assim como os homens provincianos, os construtores devem ter toda uma série de condutas e precauções pra não gostar e nem mesmo dar a entender que gostam do outro lado do prazer. Eles nunca desmunhecam. Trejeitos, nem pensar. Voz mole é taca. Andar de mãos dadas, sentar no colo, abraçar são coisas terminantemente proibidas. Beijo na boca, então, é o cúmulo da viadagem! Dar o rabo, só se for para um construto/construtor mais fodão. Obviamente eles esperam descontar a foda no futuro, em construtores iniciantes. Eles precisariam aprender a gozar de formas mais várias. 30/11/05
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34. Os construtores amam certas palavras sagradas: rigor, invenção, concreto (e derivados), (neo)barroco, fabro, estrutura (meio fora de moda dos ritos atuais), concisão. Eles gostam da palavra diarréia. Para aplicá-la aos profundos e aos diluidores dos modernistas e inventors que eles cultuam. A marginália é, para eles, obviamente, uma diarréia (diluição modernista, romantismo requentado...). Eles nunca conseguiram entender como o cu e a merda podem ser fecundos para a poesia. Não sabem nada do prazer do ânus. De como é bom uma grande cagada! São todo falo, todo ereção. 30/11/05
35. A poesia profunda é uma poesia mulher. Daquelas bem crentes, bem caseiras. Bem beatas, bem bonitas. Bem donzelas, bem peruas (depois de uma certa idade). E depois de bem velhas, bem carolas. As mulheres femininas falam mal dos homens machos da sua aldeia. E os homens maldizem das mulheres. Mas ambos formam um inconsútil tecido social, um integrado e rígido sistema moral, mesmo que (ou exatamente porque) os preceitos masculinos sejam opostos aos femininos. Estão enlaçados pela oposição até o último fio de cabelo de sua estrutura profunda. Sem elas eles não são nada e vice-versa. Os profundos devem rezar todos os dias a todos os seus santos e deuses para que os construtores não desapareçam. Idem para os construtores. 30/11/05
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36. Os bruxos, os dionísios, os hermes, as afrodites, os hermafroditas, os exus e pombas-giras, as bichas e putas habitam a margem da aldeia vendendo/doando prazeres proibidos (mágicos e carnais, eles não distinguem estas coisas) aos homens e mulheres da aldeia. Quando um poeta construtor pare uma obra que, como diz um crítico2, está para além do jogo formal e se torna vital para os homens, certamente ele transou com uma das putas ou bichas das margens. Ou então sacrificou mil bois a hermes ou foi ao bacanal, transou com afrodite, levou pinga pra exu. Quando um poeta profundo pare uma obra desgarrada de suas arraigadas crenças no ser e seus abismos e que se torna vital para os homens, certamente ele transou com uma das... 30/11/05
37. Dizem de uma certa marginália que ela é um terceiro, obtido pela dialética, sincretismo ou choque da construção com a profundidade, do objeto com o sujeito. Nada mais enganoso. Estas operações (dialética, sincretismo, choque) entre os opostos produzem apenas seres mestiços dentro de uma mesma sociedade/literatura. E a simples mestiçagem não gera a marginália. (A marginália tem seus próprios meios de a-parição fora dos limites dos sistemas. Infiltrada nos seus domínios e, no entanto, fora) O que pode acontecer é de um ambiente social muito segregado (puritanismo dos pólos) não deixar espaço aos mestiços, empurrando-os para as margens. Ou então um ambiente social muito degradado (promiscuidade dos pólos) soltar demais as rédeas morais de cada igreja. Aí os mestiços encontrarão o verdadeiro terceiro excluído, o diferido, o demônio pestilento de toda a aldeia. É por isto, por excesso ou falta de repressão, que muitos mestiços descobrem mais facilmente as margens de suas tradições aldeãs. Vide Drummond e Bandeira.
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Candido, sobre Rarefato de Frederico Barbosa 38
Alguns construtores e profundos puro-sangue têm uma crônica e irresistível atração pela margem. Então, há o desvio. “Oh! aquele jovem era tão promissor!” Ou então, fecha-se os olhos ao desvio e cultua-se no herói talentoso apenas a pureza da raça. Vide Leminski e Gullar. 30/11/05
38. A poesia marginal é uma poesia moça, daquelas bem quentes, bem putas. Bem beat, bem bar. E, depois de velha, bem bruxa. A poesia marginal quando macha, cai na gandaia da língua gentalha. Tem diarréias, pitis, ereções, gozos e mais gozos por todos os poros com todas as moças e moços e divindades. Transa até com os deuses. Transe até pensando. 30/11/05
39. O discurso dos construtores às vezes se parece muito com os delírios marginais. Falam em desvio, alternativa, mal comportamento, tática de guerrilha, conspiração, namoro com a canção, poesia para vida, poesia contra, maldizem a conformação geral do capitalismo... É que a construção é uma dissidência do profundo. Para isto foi preciso ela passar pela margem da tradição. Traição. Toda dissensão exige uma passagem marginal, atmosférica. Houve um tempo (que talvez esteja na escala dos milésimos de segundo) de margem para a construção. Um tempo fundamental para a sua emergência. Desse tempo provém o seu discurso marginal, a sua tentação marginal. Pois a construção ficou impregnada, desde o seu indeterminado nascimento, de marginália. Um tempo esconjurado até a morte pelos construtores. Um fino fio de tempo por onde se perdem muitos puros-sangues. Os construtores e seu projeto de conquista de espaço literário, de reforma protestante, de revolução comunista, de reordenação da tradição segundo seus preceitos de moral estética, odeiam a margem por onde passaram (odeiam-na mais que aos profundos). Porque as margens não querem nenhum poder. Elas querem a anarquia. Elas querem destroçar todo e qualquer poder.
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As bichas filhadaputas marginais é que carregaram no seu cu ultrafecundo o feto construtor. E os construtores querem agora o matricídio. Mas vira e mexe nasce um puro-sangue construtor apaixonado pela mãe. Que transa com a mãe que pare um monstro desconforme. E não há nada de edípico neste amor. Como haveria se a mãe é uma atmosfera sem psique ou estrutura? Se o próprio construtor apaixonado se auto-excomunga e precipita em limiares? 30/11/05
40. Gullar e Leminski, que de início eram promissores puros-sangues do profundo e da construção, se encontram nas margens no Poema Sujo e no Metaformose. E não foi porque Leminski tendeu um pouco para o profundo e Gullar para a construção. Não foi um caso de mestiçagem. Foi porque ambos tenderam para o que é, ao mesmo tempo, margem da construção e da profundidade (é a mesma margem porque é o mesmo sistema). Foi um caso de possessão. Eles abandonaram as hierarquias e organicidades do profundo e da construção em prol da circulação eólica das atmosferas. Eles precipitaram seus textos em energia de margem. Eles fuderam o texto com a vida. Eles deliraram. Há os regimes sistêmicos (de construção e de profundidade) com seus limites e seu peso: gravidade da matéria estética. E há os regimes energéticos (de margem) com seus limiares, correntes e tensões: campo de entropia da poesia. 30/11/05
41. Há um certo iluminismo democrático na estética dos construtores e profundos. Eles reclamam da incultura das massas, culpam este mundo midiático da banalidade, pregam a educação do cidadão para a poesia, para o texto, para a escrita. “Só assim teremos pessoas e não massas, gente menos inculta que sabe apreciar a boa poesia, que sabe ser crítica e se voltar contra o banal, que sabe viver melhor, enfim”. É claro que essa gente saberá, sobretudo, cultuá-los. Marginais: Ensinem rigor e gosto a todos, bem ensinado, educação cidadã, alternativa, marginal, o escambal. Ensinem tudo isto por mil vias e vieses e depois verão que a esmagadora maioria das pessoas vão ter Paulo Coelho como escritor predileto. 40
Profundos e Construtores: Vocês nos acusam de aristocratas, mas os elitistas são vocês, que não acreditam que a maioria das pessoas têm inteligência e senso crítico suficiente para apreciar a boa poesia. Marginais: Quem disse que se trata de inteligência? Quem disse que apreciar Paulo Coelho e afins é falta de inteligência e senso crítico? Que a sua “boa poesia” é necessária às pessoas? Que os consumidores das mídias estão no obscurantismo e precisam ser alçados às luzes? Quem são os iluminados, vocês? Os Nobres, os Sacerdotes, os Cientistas da Alta Literatura? Que bobagem essa de organizar as pessoas por critérios de conhecimento. O iluminismo democrata dos profundos e construtores é só uma maneira de disfarçar a sua convicção aristocrata e tecnocrata. A massa seria iluminada, aprenderia apreciar a boa literatura. Bem estar espiritual a todos: fraternidade e igualdade. Mas acima das massas estão os iluminados dirigindo o processo, venerados pelos pobres mortais. Estamos num universo que o homem não pode imaginar as quantidades e distâncias, sejam as de escala cósmica ou atômica. Não pode imaginar as durações, micro ou macro. O que será, neste cosmo, o pobre conhecimento do homem? O que o leva a querer tanto a onipotência sobre os outros homens? Os profundos e construtores deveriam abandonar o seminário por uns tempos e fazer um estágio na toca dos bruxos para saber da pequenez de sua condição. Não é uma lição de humildade (isto é coisa de sacerdotes), mas de ceticismo. ignora-os o infinito que nos ignora a nós (F. Pessoa)
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42. O problema das margens é que elas não têm critérios de qualidade. Não têm os rigores rígidos e exteriores da construção e da profundidade. Os rigores marginais são sempre específicos e se
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fazem junto com a exploração das margens. O crítico literário que, ao contrário do teórico, persegue estes veios imprevisíveis, sabe disso. São rigores monstruosos, diferidos, sem controle, delirantes. Não há como conceituá-los. Para discerni-los é preciso sempre considerar caso a caso. Isto é o horror para os profundos e construtores, porque lhes foge ao controle esta proliferação de rigores. Os construtores e profundos também falam (e pregam) de um específico de cada poeta, de cada livro, de cada poema. Mas é um específico relativo, derivativo, sempre em relação legível (aprofundamento, quebra, desvio, ironia) com os rigores estabelecidos de cada Ordem. Os rigores marginais não. Eles atingem um específico absoluto, linha a linha, texto a texto. Um rigor de demônios. 01/12/05
43. Não estou inventando a polaridade entre construção e profundidade: [Parte 1] Você define sua poesia como lírica, no sentido de expressão do sujeito, do eu lírico, e também quanto à temática amorosa. A vocação subjetiva, herdeira da rebelião romântica, contrapõe-se à materialidade cabralina, centrada na visão objetiva das coisas. [Parte 2] Sua opção de mergulhar no mundo interior, nos sonhos e obsessões, afastaram-no da crítica social, sátira política? Acredita ser possível conciliar o mergulho existencial com a reflexão do estar no mundo, ou concorda com Piva de que “todo ato individual é anti-social? http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/cwillerent.htm
A Parte 1 da pergunta de Cláudio Daniel a Claudio Willer é uma clara delimitação entre os pólos do profundo (expressão do sujeito) e da construção (visão objetiva das coisas). É uma instituição social esta divisão. Uma maneira de fazer sistema, de recortar geometricamente o mundo em estruturas. Primeiro corte: a arte da vida. Segundo corte: a literatura das artes. Terceiro corte: a literatura construtiva da profunda. Os profundos e constructors mais modernosos até costumam romper com o segundo e terceiro cortes, enfiando pontes transversais nos dualismos (mestiçagem, o que já é muita coisa), mas o primeiro corte, o principal, jamais é rompido.
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A vida, subjetiva para os profundos, entra na obra por meio da representação: expressão subjetiva. Na leitura há uma interação de almas: alma do autor, da obra, do leitor, da sociedade. Alma-ser, alma-indivíduo, alma-coletividade. Grandes sistemas orgânicos interagindo por representação. A vida, para os constructors, dispara o processo do poema. Mas este se torna uma estrutura independente, ser-linguagem. Na leitura a estrutura do poema opera uma transformação na vida do leitor obtendo resultados pré-modulados pelo fabro. Este deve ter muito controle sobre o material do poema. Emissor, mensagem, código, receptor, estruturas relacionais se comunicando por operações lingüísticas. O fato dos constructors contemporâneos não serem mais estruturalistas não os fez ultrapassar este modelo jakobsiano. Os marginais vomitam ácido sobre as tesouras e réguas dos segmentadores, depois cagam entre os cortes e os vermes que crescem desta bosta proliferam num tecido felpado que vai suprimir os cortes geométricos e hierárquicos para mobilizar um outro regime fabril (febril) de cortes e continuidades, insubordinado, avariado, errante, delirante. 01/12/05
44. Além de sua especificidade absoluta o rigor marginal implica em emprenhar o poema de vida. Cada linha de poesia é transpassada por um fio de vida. Não de uma vida representada nem operacionalizada em linguagem. Trata-se, antes, de encharcar, impregnar, infestar o texto. É uma possessão. A vida fica possessa de texto e vice-versa. A possessão quebra todos os conjuntos pré-articulados. Os sujeitos e estruturas deixam de sê-los para se transmutar em miríades. Delira-se. O sujeito? a estrutura? o texto? Não, os demônios de suas margens. 02/12/05
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45. os profundos são inspirados os constructors são metódicos os marginais pirados o profundo é severo o construtor é avaro o marginal avaria os profundos têm um caso grave de poesia os constructors têm um caso sério de poesia os marginais têm um caso com a poesia os profundos são almáticos os construtores sofrem de construtivite aguda e têm fobia à diarréia em versos longos os marginais não são sãos são todos loucos de pedra 02/12/05
46. A inspiração é negada pelos constructors e invocada pelos profundos. Mas ela pode abandonar um profundo e brotar num construtor. Ela é margem, energia, atmosfera, magia informe que vaga no universo. Ela existe por si, mas é construída. É o próprio paradoxo. É um zen. O poeta a procura, mesmo sem querer. Ele constrói suas armas para capturá-la, dispará-la. Mas ela pode não aparecer nunca, uma vez, várias, muitas. É uma possessão, um delírio que se abate sobre o poeta que volta quase sem vida do embate. No meio dos mínimos cálculos de um experimentalista, eis que ela surge, tenebrosa. Talvez Cabral tenha sido acometido por estes transes no meio dos seus projetos lúcidos. Os cientistas, homens paradigmas do racionalismo ocidental, aceitam melhor que os constructors esta imprevisibilidade, na verdade buscam e torcem pra ela os possuir. Chamam-na de intuição. Eureka! 02/12/05
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47. Razão X intuição, razão X emoção, objeto X sujeito, experimentalismo X conservadorismo, trabalho X inspiração, classicismo X romantismo, construção X expressão, concisão X prosaísmo, engajamento X alienação. Eis algumas dualidades do campo literário. Eis os pólos que vão se misturar ou se depurar ao longo do percurso literário. É muito bom para a didática, mas não serve para as margens. Polaridades são coisas de estruturas e os marginais lidam com atmosferas nas quais as noções de relação dual não têm nenhum valor, ou apenas valores provisórios. A poesia, como fenômeno de margem é quando se traça uma linha entre todas as polaridades. Para fora delas. É quando a coisa poética emerge, monstruosa e inclassificável, dos extratos organizativos. Êxtase. Os profundos falam disso, mas muitos deles sofrem de um classicismo expressivo que oblitera o êxtase. Do tipo que procura o abstrato do ser, as relações sagradas no seu interior. Estruturalistas das profundezas ontológicas, são constructors invertidos. É muito comum esta gente (vide Bruno Tolentino e Alexei Bueno). Falam muito de rigor, mas também de entusiasmo: uma forma clássica com um conteúdo romântico (aliás forma e conteúdo é outra dualidade poderosa). Têm para com a tradição o respeito que um aluno deve ter para com o mestre. Quase não se movem, de tão graves, tão pesados. Acumulam muita gordura ontológica no estômago. 02/12/05
48. Todo poeta ocidental aparece no meio destas polaridades do campo literário. Cercado de classificações prévias. É quase inevitável sua filiação, voluntária ou não, a certas correntes que trazem como rótulo uma combinação de dualidades. Há duas maneiras do poeta fugir deste cerco. Primeiro: ele pode se rearranjar em novas dualidades, caindo em outras correntes ou criando um modo combinatório próprio, individual (mestiçagem). Gullar passou da profundidade existencialista para a concretude experimental e depois para uma poesia engajada. Segundo: ele pode perfurar o tecido de dualismos maniqueístas que o cerca e cair na margem: poesiaatmosfera. Gullar Dentro da noite veloz e do Poema Sujo. 02/12/05
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49. Eis um percurso poético (de escolas): O parnasianismo é racional, objetivo, conservador, trabalhador, clássico, construcionista, prosaico. O modernismo, de cunho marioandradino (porque foi o teorizador desta corrente modernista em que se colocam Bandeira, Jorge de Lima e muito de Drummond), o inverso: intuitivo, subjetivo, experimentalista, inspirado (mas com um pouco de trabalho - mestiçagem), romântico, expressivo, prosaico. O concretismo e derivados, que formam a nova galáxia da construção (ora, direis, ouvir estrelas / abraço de anos-luz), são uma nova recombinação: racional, objetivo, experimental, trabalhador, barroco (nem clássico nem romântico, trata-se de uma oposição mais antiga ao clássico), construtor, conciso. Pouco importa o que estes termos querem dizer de fato. O que o leitor pensar deles já é suficiente. O fato é que estas dualidades são assumidas por teóricos, críticos e criadores da literatura e independente de seu significado elas é que dão consistência às escolas e ao sistema como um todo. É claro que há meio tons, contextos, complicações e mestiçagens. Mas na hora da briga entre as facções literárias, quando o ambiente fica tenso e todos têm que tomar posição, as combinações binárias são realçadas e exaltadas. Aí vemos que elas são o cerne das ordens. E os pares vão e vêm. Às vezes uma corrente ou poeta inventa novos pares ou traveste os antigos. A experimentação, em detrimento da conservação, ganhou novo significado com o concretismo, mudando também o valor e o sentido da poesia a qual eles atribuem, pejorativamente, a qualidade de conservadora (tradicional). Os pares vão sendo paridos no sistema literário, mas não ao ponto de proliferarem (isso já são coisas das margens). Candido, em sua famosa introdução à Formação da Literatura Brasileira¸ viu bem como ela, a littera, formou sistema como instituição social, com seus três pontos de apoio: autores, linguagem e público. Uma tradição que se move no tempo – o velho bruxo, se quisesse ser teórico poderia ter antecipado a estética da recepção em quarenta anos. Mas ele não se dedicou ao estudo do comportamento interno deste sistema, tinha mais o que fazer. Quem explicitou as hierarquias de seus artesões foi Pound: masters, invertors e dilutors (epígonos).
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É provável que alguém já tenha dito sobre o caráter binário da organização interna da literatura, que vai diferenciar ou aproximar as correntes literárias ao longo do tempo (seu desenvolvimento diacrônico) ou numa mesma época (seu estado sincrônico). As combinatórias de dualismos é que dão vida ao sistema, permitindo as delimitações de características de escolas contemporâneas rivais que lutarão entre si, evocando as escolas do passado como ordens santas (a serem retidas ou relidas) ou diabólicas (a serem esconjuradas). Quando um poeta consegue escapar de todo este qüiproquó romanesco ele atinge a margem. Ele estará, neste momento de margem, se lixando para o emaranhado binário dos dramas sistêmicos. A margem tem seu próprio emaranhado, muito mais monstruoso e selvagem. E mais perigoso também. os profundos são metafísicos os constructors são cientistas os marginais macumbeiros os profundos são os físicos teóricos da língua os construtors são os físicos experimentais da língua os marginais são os bruxos da língua (físicos charlatães) 05/12/2005
50. A construção e a profundidade são os recortes binários que se tenta fazer hoje no campo da criação textual: Rodrigo de Souza Leão: O que foi necessário para que um poeta constasse na antologia Na virada do Século - Poesia de Invenção no Brasil? Claudio Daniel - A antologia Na Virada do Século, organizada por Frederico Barbosa e por mim, reúne 46 poetas brasileiros contemporâneos, das mais diversas linhas e matizes, mas afinados com a idéia de invenção, pesquisa estética e rigor. Estão presentes autores como Josely Vianna Baptista, Júlio Castañon Guimarães, Arnaldo Antunes, Glauco Mattoso, enfim, poetas muito diferentes entre si. Agora, multiplicidade não quer dizer "vale tudo". Recusamos muita coisa. Numa época em que certo establishment universitário quer exorcizar o fantasma da vanguarda para afirmar uma poesia fácil, cotidiana e conformista, nós insistimos em defender[1] a escritura poética crítica e criativa, que busca novas formas estéticas.
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Frederico Barbosa Essa antologia não tem qualquer pretensão de "neutralidade". A pretensa "neutralidade" é o refúgio mais comum dos covardes e dos oportunistas. Dizendo-se "neutros", destilam os piores venenos e preconceitos possíveis. Veja-se a "neutralidade" (chovam aspas) com que uma boa parcela da universidade trata a poesia contemporânea. A diversidade de fato marca a poesia presente na antologia, mas as duas vertentes poéticas mais comuns no Brasil contemporâneo foram sistemática e intencionalmente ignoradas: [2] a poesia bem comportada, bonitinha mas ordinária, dos neoparnasianos arcaizantes, que se dedicam a criar requintes postiços e defender o retrocesso e [3] a gratuidade retratista, ingênua e simplista dos neodrummondianos redutores. (http://navirada.sites.uol.com.br/entrevista.html)
Eis a divisão que se estabelece: [1] construtores, [2] profundos, [3] mestiços, dilutors, sub-raças. Como se trata do diálogo entre três construtores, os profundos e mestiços são desprezados. Entre profundos e construtores a diferença é quase igual a que se estabelece entre concretos e modernistas marioandradinos, com a diferença que os primeiros dão uma colher de chá aos segundos chamando-os de reformadores (quase experimentalistas), enquanto que os constructors de hoje xingam os profundos seus contemporâneos de conservadores “neoparnasianos arcaizantes”. Pior é que têm razão em xingar. E não seria difícil um contra-xingamento profundo, chamando a construção de jogo estéril de linguagem estar certo também. Mas tanto das graves profundezas quanto das sérias construções podem proliferar purulências de margem. Isto, nem os constructors nem os profundos vêem, enquanto teóricos do campo textual. Já enquanto poetas, é outra história. Porque para fazer margem em poemas a visão teórica não fede nem cheira, ou melhor, muitas vezes ela cheira mal, erra a mão e é por conta destas avarias que alguns poetas de pensamentos certinhos podem parir monstros de linguagem viva e fazer margem. Mas se a visão teórica dos profundos ou constructors fosse mais táctil e olfativa, e um pouco auditiva, eles podiam fazer margem não só com o poema, mas também com o pensamento a que chamamos de crítico e teórico. Fariam, independente do gênero escrito que adotassem (teoria, crítica, poema), margem textual, escritura (os construtores acham que fazem). Mas se fizessem isso ao pensar não seriam constructors, nem profundos. a profundidade é atemporal a construção é contemporânea a margem é temporã 05/12/2005
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51. Já se falou do específico absoluto da margem e de sua indiscernibilidade com a vida. Outra coisa que concerne a ela é o prazer do texto (bem viu Barthes), tanto para o escriba quanto para o leitor. O perigo é as pessoas confundirem este prazer com o vislumbre da essência do ser ou do centro da estrutura. O que é uma confusão bastante comum. Daí aparecerem textos que nos conduzem aos delírios de margem, mas no exercício da crítica destes mesmos textos, acontece dos críticos ou dos próprios poetas voltarem-se ao catecismo da construção ou da profundidade (ou de uma mestiçagem de ambos). Obviamente quem vislumbra a essência do ser ou o centro da estrutura estaria acima dos pobres mortais. A estes, coitados, resta venerar os iluminados. 05/12/2005 DOS BRUXOS
52. A VIDA INCOMUM DO POETA Antes de tudo era um anjo de Deus. E sem pedir foi enviado ao mundo. Nasceu sem querer numa hora amarga com os estigmas e os delitos dos pais. Depois de sugar seios mercenários nasceram-lhe dentes de roedor, de carniceiro e de mastigador. Apesar disso era manso sem saber por que e já era homem antes da virilidade. Homem feito foi convidado a solenizar sua festa nupcial e a transmitir sua posteridade. deu filhos e deu poemas ao mundo que os não compreendeu nem os aceitou. Mas as suas alegrias sendo outras, seus caminhos, seus amores, sendo outros, foi posto à margem como um serinútil. Não se matou porque um anjo sempre não consentiu, lhe segurando a mão. Mas já havia chagado o seu declínio: Nada conseguiu, nada o contentou.
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Nasceu só, viveu só, vai morrer só. Então caminha para a morte sem surpresa nenhuma, sem saudade nenhuma e também sem recompensa nenhuma. (Jorge de Lima, A Túnica Inconsútil) Vereis que o poema cresce independente e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas, algas e peixes lívidos sem dentes, veleiros mortos, coisas imprecisas, coisas neutras de aspecto suficiente a evocar afogados, Lúcias, Isas Celidônias... Parai sombras e gentes! Que este poema é poema sem balizas. Mas que venham de vós perplexidades entre as noites e os dias, entre as vagas e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre... Qualquer poema é talvez essas metades: essas indecisões das coisas vagas que isso tudo lhe nutre sangue e ventre. (Jorge de Lima, Livro de Sonetos)
[uma parte de mim... outra parte...}
Malgrado o seu catolicismo, não raro carola, este é um bom bruxo. Ele soube extrair margens de suas crenças cristã e profunda. Saltou para fora dos cercos e atingiu limiares de pura energia. Texto atmosfera. Bons feitiços. Sabia dos transes, dos delírios, dos contágios, das vivências de margem, da influência imperceptível e da resignação nem humilde nem autopiedosa dos bruxos. E sabia muito de imagens que deslizam alucinadas por sobre ondas de som fluente, quente, envolvente. Um dos mais fluentes do português. E sabia fazer o metafórico, em vez de mergulhar profundo, precipitar-se em miríades sem fundo. Esse era inspirado. Um crente e um herege. Um louco de deus, dos deuses, dos diabos. 05/12/2005 DA LITTERA
53. Roland Barthes vai dizer que a literatura é o logro consciente, o jogo inventado pelo escritor para fugir do lugar comum, esse monstro que está emboscado na curva de cada signo, de cada palavra. É por isso que a poesia ‘vende pouco’, nada tendo que ver com o universo da comunicação de
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massa: no poema circula uma linguagem rarefeita, uma língua sem traduções nítidas, delírio a dançar o infinito (mesmo que seja só jogo…). Portanto, penso que o poeta não deve se preocupar em excesso com a retórica imbecilizante de toda a comunicação de massa (ela estará sempre presente em todas as mídias, na sociedade do dinheiro/espetáculo, no discurso do mesmo, da redundância): o poeta precisa é afiar as suas armas e gastar a sua energia na produção de uma obra que valha a pena. Pois todo mundo sabe que a arte ajuda demais na construção do sentido/caminho para uma vida mais rica, mais plena. (Afonso Henriques Neto, http://www.revista.agulha.nom.br/ag48neto.htm)
Rodrigo de Souza Leão - Qual o papel do escritor na sociedade? Paulo Henriques Brito - Há vinte anos atrás, eu diria que a principal exigência feita ao escritor era de caráter ético. Hoje, eu diria que o mais importante é de natureza técnica: ele deve escrever bem. O que mudou, além do fato óbvio de que não vivemos mais numa ditadura odiosa, é que me convenci de que a literatura é bem menos importante para a maioria das pessoas do que eu imaginava. A exigência ética, portanto, é mais premente para quem trabalha com televisão e cinema. A literatura afeta uma porção ínfima da população, e a poesia uma parte muito pequena dessa porção ínfima. (http://www.secrel.com.br/jpoesia/r2souza06c.html)
A indústria cultural em particular e o mundo demarcado em geral são os maiores inimigos dos bruxos, que fazem todos os feitiços possíveis contra eles. Mas feiticeiros estão longe de serem os sacerdotes das margens em guerra santa contra os demoníacos sistemas midiáticos. Bruxos não são nem maniqueístas nem homens iluminados. Não estão acima dos outros homens e sabem muito bem disso. Sabem que seus feitiços são (in)fluências mínimas e fazem o seu trabalho o melhor que podem, pouco se importando com O Inimigo. Quem gosta de inimigos e demônios para combater são sacerdotes e nobres guerreiros, profundos e constructors. Bruxos são guerrilheiros sem fins primeiros ou derradeiros. Não querem nem saber de conquistas. Têm mais o que fazer. Pensam apenas em bruxarias e magias. Sábios momentos, estes dos dois Henriques. Se são bruxos? Quem saberá? Nem nós, nem eles, nem ninguém. Daqui uns tempos, quem sabe saberemos... É verdade, Paulo Henriques, que o público da literatura, do texto criativo, diminuiu radicalmente. Mas mais decisivo que isto, ele mudou qualitativamente, pois raramente um não especialista em texto ou em arte lê textos criativos, hoje em dia. É por isto que se pode afirmar que a literatura como sistema já era. O sistema literário, definido nos termos do Candido, não existe mais, por falta de um dos seus tripés de sustentação, o público (mais precisamente, o público leigo). O
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texto criativo, cada vez mais, segue o caminho da filosofia e das ciências naturais e sociais: de uns poucos especialistas para seus pares. O público em geral até que lê bastante: notícias, fofocas, gibis, biografias, ficções de entretenimento com fábulas cheias de qüiproquós e morais da história, livros espíritas e de autoajuda, poesia secretária dos amantes, best-sellers enfim. Não vamos nos encolerizar por isto, distribuindo a culpa entre a elite abstrata e os governos dos outros, “que não dão a mínima para qualquer educação, menos ainda para a textual, cidadã e humanista”. Se dessem, o impacto no campo da criação textual seria o de aumentar os leitores de best-sellers e nada mais. Vide os tão invejados países desenvolvidos, nos quais um dos escritores-mores é o Paulo Coelho made in Brazil. Hoje, em termos de fábulas, as pessoas querem o cinema e o folhetim televisivo, não o romance e o conto. Quanto ao canto, preferem a canção popular e o rap ao poema. Vamos chamá-las de burras ou incultas por conta disso? Não, é uma questão de preferência, que tem a ver com a maneira como a sociedade de hoje recorta o seu estético, maneira que remete, enfim, aos regimes de circulação dos desejos na coletividade . Os profundos lamentam pela tradição esquecida. Os constructors lamentam pela invenção faltante. Eles choram a falta de qualidade, a banalidade do midiático, a brutalidade cultural da nossa época... choram também a falta da estrutura, do seu centro e dos visionários constructors a serem venerados, bem como a falta do ser, do seu cerne e dos visionários profundos a serem venerados (mas não contem isto pra ninguém porque é um segredo que eles não gostam de revelar). Hoje, os leitores dos textos criativos são os próprios criadores, especialistas da universidade, gente das ciências humanas, da mídia e artistas em geral. São pessoas que, além de vivenciar os textos sem fins muito específicos, como faziam os antigos leitores não especialistas da literatura, estão interessadas em usá-los, direta ou indiretamente, em seu ofício. Por isto são, de um modo ou de outro, leitores especializados. O papel que a literatura tinha na sociedade ocidental até meados do século XX é, mal comparado, o que o cinema, a TV e a canção têm hoje. Mal comparado porque não é o mesmo papel nem o mesmo teatro. Se mudaram os atores (de romance e poema para cinema e canção), a dinâmica do teatro também é completamente outra e os parâmetros explicativos da era literária na sociedade moderna não servem para se entender a era audiovisual na sociedade ultracapitalista. Algo de muito feroz e amplo aconteceu no mundo capitalista do pós-guerra: da economia material à espiritual.
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Até as margens transmutaram, a seu modo. Para se fazer margem são outras maneiras, outras barreiras, outras oportunidades. Não é que a literatura é importante para muito poucos, como afirma Paulo Henriques. Na maior parte do tempo ela sempre foi para a minoria da minoria, até por uma questão de analfabetismo das populações. O problema é que o texto escrito não é mais a referência principal em fábulas e cantos para a sociedade de hoje. Mudou radicalmente o modo de interação entre texto literário e sociedade. A própria escrita, mídia da literatura, não é mais a mídia de referência (McLuhan) do capitalismo de agora. Que besteira a choramingança dos escritores e críticos por mais educação textual e mais desenvolvimento da sensibilidade artística dos alunos. O máximo que se conseguirá, em termos de público geral, será um ouvinte de canção mais atento, um espectador de cinema melhor preparado e um leitor de jornais, revistas e best sellers mais arguto. *** Com certeza a prioridade da educação textual será cada vez mais instrumental, de mercado. Mesmo sob a égide da educação cidadã, repousa um instrumentalismo educacional de base. É como as ciências naturais de base e aplicadas. A cidadania é a preparação básica das pessoas para as demarcações gerais da vida na sociedade capitalista: seus direitos e deveres, sua consciência crítica relativa, seu amor à democracia, seu respeito formal pelas diferenças etc etc. Tornar-se um “país desenvolvido” não significa dar uma melhor “formação cultural” ao povo – se esta se traduz numa maior possibilidade de apreciação/vivência da obra de arte por parte das pessoas –, mas aprofundar a cidadania como instrumentalismo de base para uma sociedade capitalista plena, com suas miríades de intrumentalismos aplicados. Os críticos e artistas muitas vezes mistificam o “alto nível de cultura” das populações dos países de primeiro mundo, como se lá a indústria midiática audiovisual fosse menos bruta e hegemônica, em favor de uma suposta força das grandes artes “sérias”. Acreditam na propaganda oficial destes países. Não se quer dizer que os textos literários ficaram impossíveis de se fazer no ambiente atual. Algumas de suas formas, como o romance, talvez até sejam inviáveis, por não responder mais a uma época sem sentido histórico do mundo. O que se quer dizer é que os textos agora estão sob um novo regime de interação com a sociedade, mais rarefeito e imperceptível, mais clandestino. Por outro lado, mais livre também para fazer margem, apesar de todo o cerceamento catecista dos
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profundos e constructors. Alguém precisa ir lá e avisar pra eles que a escrita se fudeu, que o jogo dualista do campo literário já era, que o sistema literário morreu, que não fui eu nem o José Paulo Paes, que os artistas marginais estão defecando e ejaculando sobre o seu cadáver putrefato e que dele estão proliferando vermes e purulências interessantíssimos de se comer e amar. Os criadores textuais e seus leitores de agora são necrófilos incorrigíveis. 05/12/2005
54. Os profundos, principalmente, vão dizer que a literatura não acaba por decreto. Que há alta literatura sendo produzida. A deles, claro. Que as dificuldades atuais dos literatos são as de ontem e todos os tempos. Mas para eles esta entidade sagrada, a littera, é a mesma, eternamente. Não a concebem como instituição social, como um recorte que uma sociedade faz de seu mundo. A littera, para os profundos, é ser sagrado, uno e universal. Como dizia Thomas Kuhn, os novos paradigmas do conhecimento não se estabelecem pelo convencimento racional, mas porque os defensores dos velhos paradigmas vão morrendo sem deixar discípulos. É o que anda acontecendo com os profundos, cada vez mais sem leitores nem autores. Já os constructors, nesta seara, vão com mais fôlego. A construção é uma religião mais nova, aliada das novas mídias e, não raro, da publicidade, esta amante da concisão inventiva. Mas o espaço literário duro e rigoroso que defendem se esboroa também sob seus pés. Ai deles se não souberem fazer margem. Vão ser profundos estruturais, que é a coisa mais certinha e insípida que existe. Porque se tentarem manter o Estado literário com os seus experimentos, vão ter que preservar a sua hierarquia interna (masters, invertors, dilutors). Para quem? Este negócio das hierarquias só funciona se a base inferior da pirâmide for o público. Os reis são os mestres. Os guerreiros nobres e sacerdotes reais são os inventores. Os soldados e baixo clero são diluidores. E o público é o povo. Não há mais povo (não há nem mesmo a possibilidade de projetar um povo a ser conquistado/educado) para a literatura e Estado sem povo é uma falácia.
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Só os bruxos, que nunca precisaram de um povo sob seu pastoreio e que habitam desde sempre a periferia da aldeia literária (os bruxos nunca estão em cima ou no centro das massas, mas sempre em suas margens), só eles é que terão êxito no campo do texto criativo. 06/12/2005
55. Outro corte se esboroa. E desde muito. É o corte dos gêneros. Principalmente o corte epistemológico entre os criadores (artistas) e os mediadores (teóricos e críticos). Ainda hoje, raramente se ousa misturar Barthes e Derrida, Candido e Schwartz com os criadores que eles comentaram. Mas, de uns tempos pra cá, desde o século XX, os comentadores têm sido tão criativos quanto os escritores. Isto tem a ver com a quebra das hierarquias e o embaralhamento das funções no campo literário. Artistas entram cada vez mais na teoria e teóricos ficam cada vez mais inventivos, a ponto de uma obra como Um mestre na periferia do capitalismo ser melhor, como fabulação, que a maioria dos romances de sua época. E chega a ser tão criativa quanto as Memórias Póstumas de Braz Cubas, seu “objeto” de análise. Os críticos eram os capatazes dos senhores dos engenhos literários. Mas acabou-se a escravatura. A quem repassar as ordens? Eles entraram em parafuso, começaram a delirar mais que os seus senhores (os criadores). A brutalidade de suas chibatas voltou-se contra os engenhos e seus antigos patrões. Mesmo quando criam venerar sua memória, a estavam traindo. Algumas vezes atingiram margens tão boas quanto as de seus ex-senhores. Eles, os críticos, sentem vergonha disso. De serem tão bons quanto os criadores. Rogam aos seus leitores para que leiam os textos literários antes de seus pobres comentários, pois as obras são mais importantes, a razão de ser da literatura etc etc. Para um crítico, admitir-se tão bom quanto um nobre ou um santo textual é uma imperdoável falta de humildade. Nem uma igreja literária toleraria tal heresia. É muita soberba. Excomunhão! Excomungado. No entanto, da literatura soçobrada sobraram somente textos emaranhados, sem limites nem hierarquias: escritura barthesiana. 06/12/2005
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56. Quando o crítico criativo começa seu trabalho, ele não tem medo do corpo a corpo com a obra. Isto é sinal de respeito para com ela. Sagrada humildade do crítico: verso a verso, capítulo a capítulo, idéia a idéia. Todas as suas hipóteses devem ser demonstradas no texto comentado. Por mais originais que pareçam elas estavam, na verdade, na obra do autor. Reverência aos criadores. Candido analisando Bandeira, Oswald, Memórias de um sargento de milícias. Schwarz nos desvendado um Machado em sociedade, sociólogo, sob os Machados metafísico, formalista e psicológico. Acompanhamos, ao longo do trajeto crítico, o desvendamento dos até então inexplorados abismos de um autor. Mais uma faceta de sua genialidade, que só pode ser múltipla. Os críticos beijam os pés dos autores. Quando o crítico criativo termina o seu trabalho, muitas vezes não podemos mais ler ou pensar no autor analisado sem nos lembrar da análise. Vemos que há um autor antes e depois do crítico. Ele não desvendou o que estava oculto desde sempre, mas puxou e desenvolveu algumas linhas de energia do emaranhado energético que o autor deixou. As obras dos bons autores não são profundos abismos nem complexas estruturas que encerram para sempre mil faces eternas. Elas são atmosferas de energia com miríades de felpas para serem puxadas e exploradas. Construídas. As felpas são possibilidades de fuga, gatilhos de margem. Os críticos inventivos continuam, por vias heterodoxas e incoerentes, a obra dos autores. Eles a refazem. Eles, literalmente, constroem outra obra e fazem falar outro autor. No limite, fazem sua própria obra ficcional. Sobre textos. Mas também sobre e vida. Traição dos críticos. Os verdadeiramente criativos são discípulos de Judas. Amém. 07/12/2005
57. Bendito seja o Candido, que nos conta toda a formação de nossa literatura. E depois que percorremos o seu livro, acabamos por acreditar em seus engenhosos argumentos. Mesmo se não acreditarmos já na primeira leitura ou depois conseguirmos nos desvencilhar das verdades de sua fábula, nunca mais a história dos primeiros passos da literatura brasileira será a mesma para nós. Porque há um arcadismo e romantismo nacional antes e depois de Candido. Bruxo dos diabos! 07/12/2005
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58. Se a Formação da Literatura Brasileira é uma ficção, então ela é uma farsa e Candido um charlatão? Não. Os historiadores sabem do que estou falando. Não se trata de uma mentira. Pois para haver mentira é preciso que exista a Verdade como referência. Mas talvez não haja verdades e só existam tateios, perspectivas, versões com mais ou menos verossimilhança/consistência. A Formação... é uma perspectiva muito criativa de nossa literatura, talvez a mais engenhosa que há. Toda história é uma estória, um ponto de vista, uma fábula, uma ficção. O que ocorre com o fim da instituição literária é que a fronteira funcional entre os textos se embaralhou. A função da crítica era a de ler, analisar e valorar a obra. Mediá-la entre autor e leitores leigos. Fazer ressoar suas verdades. Explicitá-las e explicá-las. A função da literatura era a de uma vaga redenção do homem. A única que restava com a queda das certezas divinas. Uma sacra redenção leiga, com o perdão do paradoxo. Restituir a nobreza tomada do homem pelos tempos modernos e descrentes. São funções sociais que se realizam por divisões de trabalho textual. Mas no campo literário sempre houve desconfianças a respeito desta função enobrecedora, bem como da existência de uma nobre espiritualidade humana a ser recuperada. Então outra função literária, inimiga da própria literatura como sistema, se desenvolvia clandestina em seu seio. A função crítica, de fuga das redenções e sacramentos. A função sacrílega. E estas duas faces da literatura às vezes se manifestavam num mesmo autor, num mesmo crítico. A mudança do recorte estético do mundo, que extinguiu não só a Literatura, mas todas as Grandes Artes (ó bruxos de Frankfurt), deixou o sistema literário sem público para ser redimido. A função crítica então avultou em todo o campo textual. A desconfiança da função enobrecedora crescia cada vez mais entre criadores e críticos. O ofício do crítico, que sempre foi muito desconfiado, era propício ao sacrilégio, a associações com outros novos campos textuais, como a sociologia, a lingüística e a psicologia. Os críticos começaram então a arrombar a pureza e a nobreza literária, a histocizá-la, a relativizá-la. Os Clássicos, a Obra, o Gênio não são mais eternos, nem superiores ou portadores da Verdade. Os romancistas sempre souberam disso. Os poetas não gostavam da idéia, mas alguns sentiam o seu peso. Mas a função enobrecedora não deixava a sacrílega emergir e todos se curvavam ao grave papel metafísico da literatura, de redimir a nobreza do homem. A littera era o último rincão aristocrático do mundo ocidental. Quando o seu público sumiu e foi ouvir rádio, assistir cinema e TV ou ligar a vitrola, quando a referência do mundo capitalista, em termos de fábulas e cantos,
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passou a ser as artes das novas mídias (cinema e canção), que redenção haveria para ser defendida? Não havia mais fiéis na igreja. Não havia povo no estado. Então a função sacrílega dos bruxos cresceu como erva e tomou conta das ruínas da Igreja literária. Não para conquistá-la, mas apenas para derruí-la com mais energia, porque, ao contrário dos sacerdotes, bruxos não precisam de fiéis nem de instituições religiosas, só de um campo mágico e de uma choça na periferia da aldeia que possibilite os seus feitiços, que são explorações do campo de magias. Os sacerdotes dizem que amam os cordeiros de deus, mas, se pensarmos bem, bruxos são muito mais benevolentes para com os homens, pois não impõem a eles nenhum catecismo. Bruxos não pastoreiam ninguém. Foi então, exatamente enquanto a literatura morria, que os críticos levaram o sacrilégio às últimas conseqüências e se tornaram criadores tão bons quanto os melhores autores da literatura. Salve críticos e teóricos da littera, bruxos da maledicência! 07/12/2005 DOS BRUXOS
59. Os profundos têm sua visão marginal do poeta. É a do homem incompreendido, colocado à margem do mundo porque viu coisas que os outros não entendem. Até aí vai bem. Mas os profundos pensam que as coisas que este homem vê é o Absoluto, a Essência etc etc. Então revestem-no de santidade. Depois, de sacerdócio. Enquadram suas margem num regime de autoridade. O poeta-santo vai ser Grande, Mestre, Maior. Agora muitos o compreendem. Quem não o compreende sabe que deveria, pois ele viu o Absoluto, as Alturas e os Abismos do Ser. Dentre os homens, pertence à casta mais nobre, superior. A “marginália” dos profundos não desdenha poderes e autoridades. Deseja-os e prenuncia-os. Todas as margens (todas as fugas) são passíveis de serem enquadradas numa autoridade, num sistema. É para isto que existem os agentes mais perspicazes de qualquer sistema (a literatura, o capitalismo). Mas a margem absoluta sempre deixa um rastro de veneno depois de enquadrada, uma mais valia negativa, uns fios rebeldes para a anti-tradição dos bruxos. Os profundos desejariam que nada sobrasse.
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Benditos sejam os profundos que apesar de todo o seu catecismo dos abismos, às vezes muito militante, traíram a si mesmos para fazer margens. Salve o Alencar de Iracema! Salve o Machado pós-romântico! Salve o Raimundo de Anoitecer e Plenilúnio! Nas margens que atingiram, eles não viram o Absoluto nem são Maiores. Deixaram obras-atmosferas indomáveis, apesar de todas as Academias e Títulos de Nobreza que os desejaram e reciprocamente. Enquanto margem, foram bruxos, e dos bons. E bruxos riem de doer a barriga de todas as homenagens prestadas a eles. 08/12/2005
60. Ninguém é bruxo. Bruxo é uma possessão. As pessoas são possuídas de bruxos. Eles baixam, às vezes sem aviso. Mas exigem que a pessoa se prepare. Bruxo não é espírito. Não é ente, não é ser existente por si. O bruxo de cada um é criado. É uma criação em progresso. Chega um momento em que esta criatura toma conta do processo. Daí dizer que ele baixa. O melhor talvez seja dizer que ele flui. O bruxo não é independente se seu criador, embora, às vezes, tenha vontade própria. O bruxo é as miríades de seu criador. É por onde o criador se outra, se prolifera. Por onde ele se conecta com a sociedade. De uma conexão que não é a da subjetividade individual com a coletiva. Bruxos não procedem por subjetividades nem por nenhuma outra totalidade estrutural. Sua conexão é pelas frinchas e felpas, de infiltração e impregnação. Eles disseminam. Eles felpam o possesso desde as entranhas. O delírio é a linguagem se felpar. Pessoa sabia dessas bruxarias. Deleuze e Barthes também. Manoel de Barros se felpou pelo barro e explodiu em pântano: pantanal. Muitos outros... O bruxo serve o criador. Mas precisa ser servido com a vida do criador, pois é pelo bruxo que ele saberá das margens as quais nunca atingiria sendo apenas o demarcado (ou o agente) que é. Mas não deve deixar o bruxo transformá-lo em seu servo, senão não viverá para a vida dos homens. E se ele não viver a vida comezinha dos homens não haverá alimento que dar ao bruxo e o encanto da possessão se desfaz. É uma tensão, uma relação intensa do homem com seu bruxo.
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Os pais de santos do Candomblé sabem bem dos cuidados que se devem ter nesta relação. Pois sua religião não esconjura as margens e seus bruxos, que eles chamam de exu. Mas como se trata de uma religião, o Candomblé tem o seu Sagrado e as suas Autoridades. Seu Absoluto próprio. Ainda que tensionado com suas margens. O criador de texto enquanto bruxo não se curva a nenhuma autoridade. Ele explora, livre do Absoluto, o campo de magia das margens. E deve tomar todos os cuidados que este estado de entropia exige para se sobreviver nele. 08/12/2005
61. Em que momento o criador textual é possuído? Na hora da escrita? Às vezes sim. Mas não se deve confundir a inspiração com o bruxo, embora a proximidade de ambos não seja rara. A possessão do bruxo se dá fora do tempo. Dá-se no espaço da mente, na extensão do corpo do escriba. Dá-se em todos os momentos e em nenhum momento. A cada ação textual o bruxo pode se insinuar com seus feitiços. Quando foi? Quem saberá? Que importa? No criador textual, o bruxo é feito de escrita. É um efeito de escrita. 08/12/2005
62. Mas o Candido é um bruxo de outra época. É um bruxo da modernidade utópica, com sua face de homem voltada para as totalidades e a igreja do engajamento. Os seus textos sem arestas estão cheios de elegância e equilíbrio clássicos. De um classicismo moderno e modernista — iluminista. Ele foi, sem sombra de dúvida, o mestre (ápice) da crítica brasileira. Para que seja fecundo nos dias de hoje é preciso traí-lo, extirpar sua mestria e autoridade. É necessário extrair, a fórceps, as arestas de suas obras, prolongá-las e fazê-las margear com o mundo de agora. Um bruxo não dá a mínima para a traição porque sabe que é assim que se procede nas bruxarias. O Candido Intelectual, Professor, Erudito, Homem de Esquerda e, sobretudo, Mestre da Crítica, pode até desgostar. Mas o bruxo caipira que é, não. 08/12/2005
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PROGRAMA PARA A NECESSIDADE
63. Ao escrever um texto, esquecer de si, que, de resto, não passa de uma ilusão biológica. Esquecer seu nome. Concentrar-se apenas na necessidade de fazer a escrita esbarrar na margem. Pois a margem do texto é exatamente a da vida. É por este limiar poroso que a linguagem não apreende nunca, mas também que a vida comezinha não apreende, é por este limiar indiscernível que vida e texto se vazam reciprocamente. A margem exige uma concentração absoluta. Um abandono absoluto de si (distração absoluta). Uma porosidade sem fim de tudo o que seja totalidade, identidade, individualidade. 12/12/05 DOS DESCONFORMES E SUAS FUGAS
64. Há sempre o amigo de margem, à margem. Aquele amigo que antes de ser uma pessoa é um evento que altera o ambiente, fazendo a atmosfera mudar com seu aparecimento. O amigo hippie, vegetariano, gay, artista, a amada ou amado estranhos, a ama de leite negra, o doido da cidadezinha, o velho desdentado que mora na tapera com suas histórias. O artista desconforme sempre tem um ou vários desses amigos que normalmente não praticam arte. Ou o fazem de forma muito rudimentar e provisória (arte de subsistência), sem a pretensão da realização da obra estética e da posteridade. Às vezes é sua própria vida que se constitui como estética. Eles não têm medo do efêmero nem do esquecimento. Eles vivem em estado de margem. O artista se alimenta tacitamente dessas rotas traçadas pelos seus amigos desconformes. Ele constrói suas margens com eles. É sempre um trabalho de mais de um, junto com os amigos e que vai atingir toda a sociedade, toda sua margem. Junto, ao fim, com todo o campo social. Pois a margem e o campo social são emaranhados inextricáveis. As margens são suas frinchas, os vasos imperceptíveis que irrigam o seu tecido enrijecido. O estético é uma maneira dessas
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frinchas se insinuarem à percepção. E sua aparição pode se dar por obras de arte e de vida. Pelos artistas e por seus amigos desconformes. O bruxo sabe que não é melhor que seus amigos, colaboradores de seus feitiços. E amizade do bruxo com eles importa mais que qualquer feitiço. Os feitiços é que são para a vida e não o contrário (utilitarismo vago e extremo da feitiçaria). Mesmo que toda uma vida de bruxo seja dedicada a eles, é sempre a vida que se mira. É a primeira lição dos bruxos. Para que eles se desvencilhem de todas as vaidades e posições das escolas. Ele não pode ter posições, pois sua busca é o permanente deslocamento (inclusive de si). Ele deve estar atento à lição de seus amigos de margem, a suas rotas de vida. Qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa (Belchior). É simples e banal. Não é elevado nem sutil. É até grosseiro. Mas é assim para os bruxos. É seu único mandamento. É a sua moral. 12/12/05
65. DA LITTERA: engajados Outro cisma que se fez no interior da igreja literária, além da reforma construtora, foi a dissensão engajada. Ela se deu principalmente na prosa de ficção, teoria e crítica literárias. Na poesia é uma igreja fraca e se constitui, com raras exceções, numa prática textual a mais de alguns poetas. Nos mestiços (nem construtors nem profundos puros) o engajamento entra como uma variável adicional de seus textos – Mário, Bandeira, Drummond. Nos puros-sangues ela aparece como a outra face, nunca desgarrada, antes comprometida com os rigores da escola – Cabral e seu engajamento construtor. O engajamento implica num comprometimento com a esquerda política, com os marginalizados da sociedade e, direta ou indiretamente, com o marxismo. Mas este caráter estrito do engajamento tem como base uma perspectiva mais ampla, histórica, que vai possibilitar a percepção da literatura como instituição da sociedade, corroendo as visões
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sagradas e imanentistas dos profundos e constructors. Abertura do engajamento para a desmitificação do literário. Quando ao jogo binário do campo textual, o engajamento é racional, objetivo, não experimental, trabalhador e crítico. Este último adjetivo é sobrevalorado e seu antônimo é utilizado para atacar os inimigos da escola (construtors e profundos) que são taxados de alienados. Outros pares são desprezados pelos engajados que não são nem clássicos nem anticlássicos, nem expressivos nem construtores, nem prosaicos nem concisos. Mas os construtors, seus adversários de novo credo, acusam-nos de sofrerem dos primeiros termos destas dualidades, colocando-os no mesmo saco de farinha dos profundos. Assim, da raiz da literatura profunda brotam, mais ou menos no fim do século XIX, os construtors e os engajados que, juntamente com os primeiros, vão disputar as almas dos fiéis cada vez menos crentes da ruinosa igreja literária. Foi uma queda magnífica. Uma carnificina apocalíptica. Digna das alturas da Littera. Os vermes e urubus da marginália fizeram a festa! 13/12/05
66. EX-LITTERA II (melô da marginália) essa pavana é para uma defunta infanta bem-amada ungida e santa e que foi encerrada num profundo sepulcro recoberto pelos ramos (jorge de lima)
quero gozar nesta defunta mesmo morta eu amo tanto esta vadia esta puta possuída pelos homens quero abraçar as suas carnes podres sentir o cheiro decomposto de todos os seus tecidos já meio misturados com a terra pelo amor dos vermes
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quero beijar principalmente a sua língua carcomida quero o último pedaço dos seus lábios necrosados na minha boca eu quero o bafo da sua boca quero o meu esperma no seu corpo desconforme se multiplicando agora sem ordem numa vida mais fecunda do que quando ela vivia perfumada pelo bares como eu quero esta defunta! fazer ela gozar um gozo sujo fazê-la procriar dez mil demônios povoar a terra inteira de piolhos plantar sua demência nas entranhas deste mundo mapeado como eu quero este coito pervertido para que nasça outra coisa nem humana nem tecido uma coisa gerada no cu do mundo para que as almas de si esquecidas decompostas recomponham uma nova vida sem rancor 30/11/05
67. Se pensarmos o engajamento de maneira ampla, como perspectiva histórica, análise crítica, ironia, desmitificação, o romance moderno foi, desde o seu início, com o Dom Quixote de Cervantes, engajado. É por isto que o engajamento é forte na prosa, romanesca e crítica. Elas são dadas, por natureza genética, à desconfiança e à ironia, maledicências que só no fim do século XIX foram acometer seriamente a lírica literária, com o simbolismo Francês. A poesia, até então, padecia de uma chronica profunditate spirituale.
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Mas o engajamento só vai se diferenciar como escola no final do século XIX, sob os auspícios de Marx, este bruxo que reinventou a historicidade e mapeou o funcionamento das sociedades ocidentais modernas. (O espírito de século XX foi enfeitiçado por dois grandes bruxos judeus-alemães, Freud e Marx. Os alemães, ao invés de expulsar e exterminar os seus judeus, deviam mimá-los, principalmente os bruxos, que levaram a língua ariana a margens jamais sonhadas pelos homens. Estados costumam gostar e se apropriar destas bruxarias poderosas feitas com seu material espiritual, mesmo (mais ainda) quando urdidas por bruxos semi-estrangeiros. Os romanos trataram bem melhor de seus gregos, bem como estes de seus filósofos oriundos do oriente. Coisas inexplicáveis.) Boa parte da função sacrílega (ou crítica) da literatura, que desconfia das profundezas do mundo, da nobreza perdida do homem, do papel da littera como redentora desta nobreza e da própria littera como tradição sacra, boa parte desta função desconfiada deve-se ao engajamento, que ajudou a entender a ruína da igreja literária como acontecimento histórico, sem o profundu lamentu dos profundos. A outra face do engajamento é que ele se organizou como uma poderosa nova igreja mundial. Neste quesito eles se igualam aos constructors e profundos em sua gana pela ocupação de espaços, escolares, midiáticos, estatais. Assim como eles, os engajados têm o seu sagrado próprio (a historicidade) e cultivam também uma hierarquia distribuída entre seus santos/mestres/reis, sacerdotes/acadêmicos/guerreiros e fiéis/ignaros/povo. E eles esbravejam com mais vigor ainda acerca da ignorância do povo, contra elite gananciosa culpada por esta ignorância e a mídia truculenta de nossa época. Um erro crasso, e pior, persistente, que costumam cometer é supor que a literatura se situa no que chamam de âmbito ideológico da sociedade, o qual é sobre-determinado por sua estrutura material. Dessa forma as obras da littera são concebidas como reflexo (representativo) ou efeito da ordem econômica da sociedade burguesa. O profundos e constructors deitam e rolam com um raciocínio tão simplório e adoram alfinetar este calcanhar de Aquiles dos engajados. Eles abriram um veio riquíssimo de exploração das complexas relações entre arte textual, instituição literária e sociedade. Veio que escapa ao discurso profundo da inter-relação entre as almas dos sujeitos individuais e coletivos. Escapa também da idéia de imanência e autosuficiência do texto artístico, o qual é erigido como monumento sagrado, ora à maneira profunda
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(obra clássica), ora construtora (obra experimental). Uma exploração de emaranhados de superfície, descentrada, avariada, que procede por frinchas e vazamentos, infensa às profundezas e estruturas. Engajamento de margem. Este veio exploratório, quando apropriado pelo discurso catecista de escola (engajamento de igrejinha), foi reduzido à relação de causa e efeito entre ordem econômica e ideologia. 14/12/05
68. Há também uma construção de margem, que ocorre quando os constructors param com os seus jogos catecistas de linguagem (que satisfazem apenas os seus mestres avarentos) e vivenciam com raiva e euforia a destruição de fronteiras que seus experimentos podem propiciar. O verbal indiscernível do visual, do sonoro. A litera se misturando com outras artes ou se dissolvendo na canção, no vídeo ou no cinema. Mas a margem só acontece quando a obsessão pelo novo, pelo experimento e pelo rigor é tensionada com a vida, com limiares de vida. Aí o bruxo se apossa das estruturalidades e gelstats tornando-as porosas, atmosféricas, sem centros e topos, forçando-as a uma dinâmica energética, de circulação eólica. É uma traição ao catecismo. Os constructors vão dizer que o que chamo de margem é o que eles chamam de poesia bem realizada com seus preceitos. Mas é bobagem. Quando um membro da escola atinge a margem, o que ocorre é um fechar de olhos para a bruxaria, para a traição que ele cometeu. Depois, há uma apropriação e enquadramento da obra e do autor nas hierarquias da escola: “esse é grande, experimentador radical, linguagem rigorosa, conciso”, “esse é médio, mas vai num bom caminho, é questão de apertar o rigor”, “esse miscigenaou, mas é a época, e até que conseguiu um resultado original” etc etc. Os bruxos? Cagando e andando pra tudo isto... 15/12/05
69. Até os profundos podem arejar sua tradição bolorenta e cair na margem. Eles têm um bom instrumento para isto, a inspiração. Basta desatrelá-la da sacralidade metafísica que faz do poeta por ela acometido um ser superior, nobre, iluminado. Esta capacidade de dar título de nobreza torna a inspiração apenas relativa, restrita ao catecismo profundo. À sua função enobrecedora, é preferível a lubrificante, que a faz absoluta, em estado de fluido, minando a solidez do ser. Jorge 66
de Lima é um profundo, mas a ins-piração a que se abandona leva-o a outros limiares, aquém dos abismos do ser. Delírios de bruxo. Felizes os que escapam da gravidade do buraco negro da igreja profunda. A inspiração relativa conduz ao Ser Absoluto da igreja profunda. A inspiração absoluta de um Jorge de Lima se infiltra no ser e mina-o, até se esboroar em margem, miragem, aragem, atmosfera. 15/12/05 DA MARGEM
70. O que é a margem? o específico absoluto, o desvio absoluto, o nem. Onde está a margem? em todo e nenhum lugar. Quando é margem? sempre, nunca, não há tempo para a margem. Quem é marginal? um qualquer, ninguém. E no entanto esta coisa tão esquiva ao entendimento e temporã não é o sagrado, não é o mistério profundo, nem a banalidade da vida igual. É difícil fazer margem, você a busca e ela não vem. Mas é extremamente fácil, é só se descuidar na estrada. Alvorada, crepúsculo, meia noite, meio dia, meio fio, fio da navalha e da meada sem fim. A margem é vaga e vária, variante. A margem é minha amante. Não há marginais. Ainda mais quando se fala de escrita. Pra dominar a escrita a ponto de poeta é preciso se enquadrar, estudar, se ordenar/estruturar minimamente. A escrita mesma já é uma mídia da ordem, do poder, do sagrado, da permanência. Os seus aprendizes sempre vão habitar as terras demarcadas dos códigos. Depois, do dentro destes cercos, é que alguns vão cair na estrada e levar a escrita para a margem, enfiar nela um cadinho de vida, de verme e de erva. Envenenar a escrita. Contaminá-la. Fecundá-la. Fazê-la gemer, de dor e prazer. Letras do delírio. Ninguém vive inteiramente na (à) margem, a não ser doidos de rua e crianças. Mas estes não escrevem. A margem, portanto, é um devir a ser atingido, construído, contraído. São as frestas por onde se vaza. Há os escribas que tendem mais à margem, os desconformes. E há os que tendem menos, os carolas. Mas há uma diferença entre o poeta desconforme – inclassificável e avesso às marcas de confraria – e o marginal. O desconforme pode até estar mais propício a margem, mas ele não é
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marginal, a não ser por tendência, por magnetismo. Marginal não é categoria nem identidade (nem constituinte dela), mas estado, situação, passagem, limiar, intensidade, outro. O marginal é sempre o outro que se busca. Ou se esconjura. Não há igreja marginal. Nunca houve. Como erguer altares e hierarquias a atmosferas? Altares ao nada ainda são possíveis (é quase só o que se ergue), pois o nada pode ser revertido/abstraído em Absoluto, Uno, Ser, Todo, Verdade. Mas não é possível venerar nem esquadrinhar o específico absoluto, porque ele não é uno nem onipotência, nem ausência nem presença, mas miríades diferidas, impregnâncias. Diferença. Margens são variantes ao infinito. Que catecismo não endoidaria com a simples proximidade da margem? É o diabo. Mil demônios. 15/12/05
71. Margens são avessas a profundezas, a estruturalidades e à historicidade. Elas passam, serelepes, entre tudo isto. E entre qualquer outro sagrado que se erga. São muito velozes. Aquém e além de cercos e gravidades. Nunca estão por dentro (é óbvio, são margens, longes do centro). Margens não têm conserto. São avarias ferozes. São selvagens, sensitivas. Margens não são pra carolas. São caraminholas na cabeça dos desconformes. A margem não educa ninguém. A margem não é uma escola. 15/12/05
72. Margem. Magia. Bruxos cavalgam com seus feitiços um campo infestado em magias. Um vácuo alastrado de atmosferas. Um campo de estrelas. E de vermes. 15/12/05
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73. Arte textual (literatura) é apenas uma maneira, entre tantas, de intentar a margem. Artes, ciências, filosofias, amores, embriaguezes (não só com drogas, também paisagens e outras viagens) e até mesmo religiões são rotas de margens, tão boas quanto as do texto. Alguns o fazem com a própria vida, às vezes meio sem saber — já é margem. A vida mais demarcada pode se desviar, à revelia do sujeito, em limiares. Por um momento, por uns tempos, dias, semanas, anos... Pode ser que depois tudo volte ao normal e a margem fique como marca, cicatriz, saudade, memória cauterizada. Margem domesticada e estruturada em passado: uma adolescência, uma convalescência, uma demência que foi. Pode ser que a vida inteira se transmude e nunca volte a sujeitar-se. Ou pode ser a morte. Sim, muitas vezes é um perigo marginar, o maior dos perigos. É preciso ter cuidado. Precaução, precisão. Doçura e fúria. Frieza e amor. Tesão. Paixão. Vão dizer que ando maneiro, barroco. Apenas estou rouco, roto. Divago gago. Solto. 16/12/05 DAS ATMOSFERAS
74. Os que Pound e concretos chamam de diluidores, a crítica mais tradicional chama de epígonos. Antes, quando as escolinhas se sucediam no tempo, ao invés de disputarem espaço na mesma época, os que surgiam num período de entressafra e não apontavam para o futuro ou não apresentavam voz extremamente singular, seguiam os preceitos dos mestres da escola, de forma automatizada, mecânica. Pipocavam imitadores de Gonçalves Castro Álvares nas entressafras do romantismo e entre este e o parnaso. Também pipocaram neoparnasos na longa e bolorenta atmosfera parnasiana que perdurou até meados do século XX nos rincões remotos da patriamada. Aparecimento de dilutors/epígonos é fenômeno normal, e sistematicamente desejável, na littera. São aspirantes a mestres, pouco acima dos ignaros e, não raro, se tornarão críticos literários e divulgadores da mestria. Os concretos falam que falam deles que, coitados, não têm nem como se defender. Mas para que haja masters e inventors no topo da igreja da construção é preciso que haja dilutors. Depois, é ainda necessário que haja fiéis (o que, convenhamos, anda difícil). Eu diria que não há dilutors, neste sentido hierárquico dos sistemas. Talvez nunca tenha havido, pelo menos do modo categórico como Pound e outros críticos colocam as coisas. Digamos que há poetas que não atingem o ponto de fecundidade. Isto quer dizer que o seu texto não procria, pois 69
não dá tesão em ninguém ou quase ninguém. Ou talvez cause um grande tesão por um certo tempo, mas depois as pessoas chegam à conclusão que o diabo não era tão bonito quanto falavam. Há alguns que não causam tesão nenhum em sua época. Morre o escriba e dez gerações morrem depois dele. Então alguém descobre que o texto é uma delícia, a coisa prolifera, contamina e, então, descobriu-se um injustiçado. Ah! a teoria da recepção, estes filhadaputas sabem como são essas coisas de beleza e destreza. Tudo muda tanto ao sabor do in-vento do momento. Da margem de cada agora. Textos criativos não são estruturas. São rasuras, ranhuras embaraçadas, felpadas, em regime atmosférico. Uma atmosfera não é coisa que se contemple, se descreva ou se explique (é por isto, bartezilda, que não existe a verdade do texto). É coisa pra se conectar e prolongar. Você prolonga sua vida nela, que por sua vez, se prolongará em você (o próprio autor faz isto com seus textos). Mas pra isto é preciso que você a refaça, ou creia refazê-la. Que invista energia de vida nela. Que se mate e ressuscite no seu quando/onde/como atmosférico. Uma boa atmosfera passada, que mereça conexão, sempre vai exigir de você um pouco de morte, um pouco de sua vida, de sua alma e de seu corpo. É um pacto diabólico. Mas para uma vida melhor. A única verdadeira vida após a morte. já me matei faz muito tempo me matei quando o tempo era escasso e o que havia entre o tempo e o espaço era o de sempre nunca mesmo o sempre passo morrer faz bem à vista e ao baço melhora o ritmo do pulso e clareia a alma morrer de vez em quando é a única coisa que me acalma. (Paulo Leminski)
Há atmosferas de época, de lugares, de igrejas e de cultura também. Às vezes, viver numa determinada atmosfera de um tempo presente é que vai te possibilitar uma boa conexão com a atmosfera de um texto que, em outras épocas, foi ignorado: o Modernismo e Gregório de Matos, o Concretismo e Kilkerry. Os epígonos de agora podem ser os inventors de amanhã e vice-versa. É uma questão atmosférica ou, como diziam os teóricos da recepção, de horizontes de expectativas. É por isto que bruxos até traçam suas escalas de valores, pois eles precisam de balizas também. Mas sabem que elas valem tanto quanto as formiguinhas que assaltam a cozinha e são tão permanentes quanto o vento da
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hora. Daí os valores dos bruxos mudarem a todo momento. Os igrejeiros, que seguem ou juram seguir os rigores do catecismo, vão chamá-los de oportunistas, ecléticos sem critérios, sem seriedade, picaretas. Mas os carolas não sabem nada dos rigores de bruxaria e seus regimes atmosféricos, só entendem de estruturas, profundidades e historicidades. O bruxo só quer saber das atmosferas que margeiam as igrejinhas. Ele fica vagando à margem, aragem. Quando dá na telha ele se apossa de um carola. Coitado (do que não foi possuído). 17/12/05
75. Quando o Candido, em sua Formação..., vai falar das obras do romantismo brasileiro que, por si só não se sustentam, ele diz que a coisa romântica foi mais que um período e uma linguagem literários. Foi uma atmosfera. E que, para apreciar a sua força o leitor deve reconstruir/traduzir a sua atmosfera, a vida que borbulhou no seu ambiente e que a linguagem romântica, desligada de suas circunstâncias, não nos comunica (que linguagem comunicaria?). É preciso saber da vida dos autores, dos fatos e idéias que circulavam na época. Que recorramos a historiadores, cineastas, biógrafos, sociólogos, críticos, professores. Que nos deixemos levar pelas ondas atmosféricas dos românticos. Que façamos, na medida do possível, o mesmo pacto que eles. Mas não seria assim com qualquer período, corrente, igreja, escola, linguagem literária? Não seria assim com qualquer autor? Qualquer texto? A tradução não é apenas um exercício translínguístico, mas também transatmosférico, implicando num mapeamento geral de tudo o que há numa atmosfera outra (no tempo ou no espaço cultural), uma transcodificação, em suma, de todos os seus fluxos de desejo. Uma arte textual (qualquer arte) tem que parar de pé. Fazer o pacto de Jakobson com a linguagem, de preferência de forma engenhosa ou, como dizem os constructors, inovadora. Não há dúvida. Mas se isto é a condição necessária para a sua fecundidade, não é suficiente para tal. Isto não basta para a poesia. É preciso que a obra tenha gatilhos/felpas atmosféricas para ser prolongada, que ela se arrisque a tê-los. Ela deve se constituir em atmosfera, em limiares atmosféricos, para além ou aquém de sua estrutura, de sua profundidade ou de sua historicidade, enfim, para algo mais (ou menos) que seu fechamento sistêmico. Mas esta condição limiar não é um fato objetivo (estrutura descritível, profundidade desvendável, historicidade interpretável) do qual se sabe(ria) a verdade, mas apenas um potencial que talvez será desenvolvido, talvez não. Os
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outros homens é que vão dizer, com sua vida, da fecundidade do texto para o qual o escriba deu a vida. Depois de feito, o feitiço não é mais do bruxo que o fez. Ele dá de costas ao seu criador para se criar ao infinito das magias. Ele se procria nos enfeitiçados que se procriam nele. Ele é só efeito, sem nenhuma causa. Bruxos sabem disso. Dão de costas. Vão cuidar de outros feitiços. No limite, o próprio bruxo é um enfeitiçado a mais que se procriou num feixe de feitiços que se procriou no bruxo... Écriture. A margem é um campo de magias e um enxame de bruxos que se prolongam um no outro. 17/12/05
76. Quando se lê a biografia de um autor, sua correspondência e comentários de amigos. Quando olhamos suas fotos ou retratos. Quando alguém nos fala dele, boca a boca, noticiários, comentários, críticas. Quando assistimos a um filme ou documentário sobre ele. Quando outros artistas se referem a ele em poemas, pinturas, canções, citações de qualquer forma, insinuações. Quando, enfim, recebemos um autor, por qualquer meio, inclusive por interditos e desditos, estamos aptos a (re)construir sua atmosfera textual. Os críticos, na sua humildade perante o autor e autoridade analítica sobre os textos dirão: se você não leu A Obra, não conhece o autor no que realmente importa. Mas são literatices de críticos. Pode-se conhecer um autor, a obra de um autor, por ouvir dizer. É o que mais acontece. Presenças atmosféricas. Ele se torna mais vivo com as mitologias que se formam a sua volta. Elas são caminhos para a sua obra enquanto atmosfera. Mal ele começa a ser lido e as camadas atmosféricas começam a se formar em seu entorno. São os gatilhos da obra que estão sendo disparados, disparatados. Mesmo antes de ser lido há atmosferas o envolvendo, de época, de escola, de amigos, de memórias, de outros textos, todas elas interagindo entre si, caóticas, caogenéticas. Campo atmosférico do autor. Ele vai prolongálas em sua obra, transmutá-las em texto, enfeixar os seus fios num tecido textual. Em alguns de seus desdobramentos flagra-se neste tecido uma densidade de alma, uma estrutura de linguagem ou um produto histórico, mas se o percorremos mais, sem muito preconceito, vemos que as dobras não se findam nem se abismam em nenhum destes sistemas. A sistematicidade (estruturalidade, profundidade, historicidade) de uma obra é, do ponto de vista da atmosfera,
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apenas mais um ponto de passagem, mais um conversor energético por onde se enfeixa miríades atmosféricas. Vórtice. A atmosfera do texto se estende no campo social, se imbrica com ele e nela não se distingue o estético de outros recortes da coletividade: ética, opinião, gnoses variadas. São os poros do texto. Mas não se pode traçar um limite claro entre o (suposto) cerne estéticos do texto e seus vórtices. Apenas extensivamente este limite é possível. Exemplo: a obra x do autor y vai da página tal a tal da presente obra completa. Mas intensivamente não é possível. Assim, quando se diz “é um bom autor e o é por isto e aquilo” já não se discerne mais obra (como verdade) e entorno atmosférico (como incertezas). O que a obra? é o que está grafado e se lê ou o que se pensa/diz dela? Ambos. A grafia mesma só chega a seu termo na leitura que, por sua vez, já é um dizer sobre o texto. Ler é o primeiro prolongamento texto-vida que se faz. Mas a conexão atmosférica não é uma ponte entre o conjunto obra e o conjunto subjetividade do leitor (ou o conjunto cultura de uma sociedade). Pensada assim, esta ponte não leva a atmosferas, mas a relações mecânicas entre grandes sistemas: o do texto e o do sujeito. Não, o prolongamento atmosférico se faz por vazamentos, infiltrações, porosidades por onde miríades de fluxos passam uns nos outros. Nas obras há feixes de texto que se lançam sobre os feixes de vida das pessoas. Feitiços. Fisgadas. Cardumes de peixes. Redes. Teias emaranhadas. Ondas de (m)ar entrando umas nas outras. 17/12/05
77. Suponhamos uma atmosfera textual. Os construtores fixam nela uma estruturação de linguagem. Os profundos fixam uma densidade onto-subjetiva (metafísica). Os engajados uma legibilidade histórica. São pontos de abismo, obsessões, fixações, neuroses, mais que neuroses, psicoses paranóicas. Mas estes pontos fixos não são centralidades ou verdades da atmosfera (essas coisas não concernem a elas), mas apenas homogêneses localizadas, pontos de passagem para os feixes atmosféricos. Só os bruxos marginais, ao invés de se fixar em alguns pontos, vão se deixar variar com estes feixes. Percorrer infinitos pontos. Fluxão de margem. Não se deixar demarcar por nenhum Estado, passar por n estados, heterogênese disseminada. Bruxos não têm pontos como alvo. Miram todo um campo de contágio. Fixar um ponto de abismo implica em interromper fluxos, represá-los e fazê-los circular organizadamente, estabelecer preceitos e palavras de ordem. Significa converter um ponto de
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passagem em ponto de referência. Ele passa a ser O Ponto e sob Ele se distribui hierarquias. Estabelecimento de poderes. Em seu entorno se esquadrinha espaços. Estabelecimento de limites, dentro e fora. Ele se transmuta em Centro Sagrado, Motor Imóvel, Abismo Principal, Topo do Mundo. Um rigoroso regime de regras é baixado (catecismo) aos habitantes deste espaço-tempo que se forma. São os seus rigores, seus critérios. As leis que disciplinam os fluxos circulantes em torno do Ponto que se fixa. Então, temos um Sistema, um Vórtice, uma Igreja, uma Escola, um Estado. 17/12/05
78. Quando temos um sistema sempre há uma atmosfera conjugada com ele. Ela faz o seu entorno. São partículas desprezíveis, que não encontraram sua função sistêmica. Mas esta perspectiva da atmosfera como periferia é de quem está muito demarcado pelos códigos sistêmicos. Alguns, mais aéreos e desconformes, vão perceber que nas frinchas dos códigos insinuam-se partículas atmosféricas. Ela é o ar que se respira no sistema. Co-presença do sistema e da atmosfera. Dois corpos simultaneamente no mesmo espaço. Ainda há uma terceira perspectiva. A dos bruxos. Nela só há atmosfera. Os sistemas são vórtices que se processam nela por meio de um ponto de abissal – centro de convergência eólico ou gravitacional Bruxos entram e saem destes buracos negros. São leves e ágeis demais para se deixarem tragar. Nos interior dos sistemas são percebidos como fantasmas, miragens, demências. Mas são muito reais, dum real atmosférico que não comporta o real subjetivo-ontológico, histórico ou construtivo. A realidade dos bruxos é o enxame. É sempre uma coletividade de bruxos que se manifesta. E ela nunca está inteiramente dentro do sistema, pois um enxame é uma rota que se traça entre o sistema e sua atmosfera. É uma fuga. RAstro venenoso. 18/12/05
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79. SISTEMA E ATMOSFERA O sistema é uma concentração (estrutura, sujeito, ser, formação histórica). A atmosfera, por sua vez, é uma proliferação, disseminação, dispersão. É a abertura absoluta dos sistemas. Entropia sistêmica. Sistema aberto. ATMOSFERA E MARGEM A atmosfera é a consistência da margem. Sua insinuação. Ela traduz a margem em aragem. Atmosfera é o que dissipa e embaça. Margem é o que infiltra e escapa. Uma atmosfera é muito rarefeita. A margem nem isto. Atmosferas se constituem por ondas que se formam por limiares em movimento. A margem é o menor limiar, o liame último e intangível dos limiares, oscilação instantânea entre matéria, energia e vácuo. É provocando/aceitando as atmosferas em sua realidade caoforme que se tende à margem. É na margem que a vida pulsa fluida, ínfima, tensa, tesa, tesuda. Margem e atmosfera vazam-se uma na outra. As proliferações atmosféricas disseminam fugas de margem. Reciprocamente, as fugas provocam o desvio absoluto das proliferações. Bruxos agem nisto tudo. São entes que levam a cabo a impregnação margem-atmosfera. São entes atmosféricos. Marginais. SISTEMA, ATMOSFERA E MARGEM Sistemas são apreensíveis. Atmosferas são respiráveis. As margens, você apenas pressente. Sistemas se identificam por sua coesão, seu cerne, sua estrutura profunda (de linguagem, subjetiva, histórica). Num sistema há elementos componentes e relações de composição. Atmosferas não têm identidade, são particularizações precárias que se individuam por seu regime de fluxão. Nelas só existem ondas e limiares. Composição por enfeixamento de fluidos. A margens não se individuam, nem como estrutura nem como regime. Elas se manifestam como específico absoluto, o desvio absoluto de toda individuação. São vazamentos e impregnações infinitesimais de fluxos. Decomposição por escapes. 18/12/05
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DA LITTERA: igrejas
80. Eu tinha dito que não há dilutors nem epígonos, mas escribas pouco fecundos. E que a fecundidade, para além da composição estrutural do objeto estético, implicava em sua composição atmosférica, em sua interação com os leitores, sua recepção. Há uma grande possibilidade de haver falta de fecundidade em um texto carola, de igrejinha. Neste sentido a idéia de pouco fecundo se aproxima da de epígono e dilutor. É por conta dos automatismos, das cristalizações das leis de composição que marcam claramente a obra como pertencente a uma determinada igreja que o texto carola tem muita chance de não fecundar Mas esse negócio de carolice é tão complicado. Machado era um preto véio no romance e no conto. E um carola parnasiano em poesia e em seu papel social de escritor respeitável fundador da Academia Brasileira de Letras. Augusto de Campos é um dos sumos pontífices da ordem religiosa mais vistosa da igreja construtora (dos que não aceitam de jeito maneira nenhuma viadagem do clero), mas no seu Despoesia o homem desmunheca para a margem. Um sumo sacerdote traindo a própria ordem! Igrejas são muito engraçadas. Salve a sua santa hipocrisia! 19/12/05
81. Afirmei acima que infecundidade se aproxima, em certo sentido, da idéia de diluição e epigonia. Mas só em termos. Há diferenças. Em primeiro lugar, como já foi dito, a fecundidade ou infecundidade implica na interação obra leitor e não apenas na estruturalidade objetiva da obra (esta utopia). Em segundo lugar, ao contrário dos diluters e epígonos, que vêm depois e abaixo dos mestres e inventors num sistema literário, sempre retardados em relação a eles, os infecundos aparecem a qualquer tempo. É que estes não estão em relação valorativa e temporal de causa e efeito com os mestres, escribas hierarquicamente superiores e cronologicamente anteriores a eles. Os dilutors/epígonos no sistema literário são fatalmente um efeito com defeito a partir dos mestres. São a caganeira, a merda da mestria. A epigonia supõe um ápice do qual se decaiu. A diluição 76
supõe uma concentração que se dispersou. Ao contrário de ambas, a infecundidade prescinde destes deuses causadores. Ela não é a deficiência de uma eficiência anterior ou mais elevada, mas a insuficiência no campo atmosférico que ela povoa. Uma insuficiência relativa a outras atmosferas textuais em sentido horizontal e não hierarquicamente inferior nem temporalmente posterior a algo. 19/12/05
82. Costuma-se afirmar que a teoria concreta é muito boa, enquanto que a poesia não corresponde. É o contrário. Em seus momentos de margem a poesia concreta e os desenvolvimentos poéticos que ela possibilitou, com o desbloqueio da comunicação entre o textual e o sonoro/visual, nestes momentos de transa verbivocovisual sentimos sua poesia se desestruturar em atmosfera e pressentimos a margem roçar nossas mentes, olhos e ouvidos. Perto dessa poesia furiosa de margem a teoria soa como um catecismozinho bem do vagabundo e unidimensional, que mal disfarça sua vontade de poder, de colocar os constructors no leme do barco literário (vanguarda) pra converter a gentalha ignara e conduzi-la às luzes do paraíso concreto da construção. E de condenar os não convertidos ao inferno romântico-parnaso da expressão. Talvez a teoria tenha servido para unir um grupo, dar ao seu clero força e perseverança para fazer o troço poético acontecer. Para estabelecer um rígido sistema estético, um catecismo bem carola, propício ao ataque da entropia, pedindo para ser estropiado. Bruxos amam fuder estes sistemas. A teoria não presta pra muita coisa mais. A poesia concreta (e pós), em suas recaídas de margem, é uma traição à sua estrutoteoria. É uma perversão, uma bruxaria. 19/12/05
83. No Despoesia de Augusto de Campos tem um poema muito bom (aos poetas // é fácil ver // como se faz a farsa...), que denuncia o patrulhamento facista da crítica engajada. Provavelmente o recado é para o Roberto Schwartz, que baixou o pau no “quis mudar tudo” do Augusto, que faz um tipo de poesia que o Schwartz, com seu catecismo engajado, não vai entender nunca mesmo. Mas este patrulhamento repressivo também é exercido pelos próprios concretistas em suas
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teorias-projetos-pilotos, críticas, depoimentos e, certamente, em suas orientações aos aprendizes que, de vez em quando, sentem o peso do catecismo: o q a gente precisa sempre é combater/debelar alguns interditos e tabus q a poesia concreta instalou, o facismo (vindo de pound, v. queria o q?) da distinção entre inverntors, masters e diluters, por ex. a raça pura, as raças inferiores... esteticismo de campo de konzentration... nesta ala, os inventors... aos fornos crematórios os diluidores... (Leminski, Envie meu dicionário)
Como é mesmo aquele provérbio da trave nos olhos? 19/12/05
84. Qualquer viadagem de expressão subjetiva que os aprendizes constructors ousem cometer (mesmo em pensamento), os sumos sacerdotes da ordem os põem pra rezar quinhentos Pound Nossos e mil Aves Mallarmias. É o cummings da carolice um catecismo desses. Se você é aprendiz profundo e inventa de se misturar com as superficialidades e grosserias dos constructors, ou mesmo com os historicismos engajados, os sumos sacerdotes das profundezas vão te mandar ler todo o cânone do Ocidente e a cada autor que terminar, repetir de joelhos um milhão de vezes: deus eterno, deus eterno, deus eterno... Agora, irmão(ã), se você é profundo, constructor ou engajado e cair na tentação de mexer com bruxarias de margem, não tem salvação. Está condenado(a) ao inferno para toda a eternidade. Amém É claro que as igrejas fecham os olhos para bruxarias cometidas por alguns de seus sacerdotes ou por homens e mulheres por elas santificados. Senão, teriam de fechar as portas, ao invés dos olhos. Mas isto é segredo de confraria, não contem pra ninguém. 19/12/05
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DAS ATMOSFERAS
85. Tomemos um conjunto articulado de sistemas. É bem diferente de um campo de atmosferas. Neste não há hierarquias nem limites precisos e definitivos entre os individuados (atmosferas). Isto quer dizer que numa atmosfera não há uma fronteira clara entre dentro e fora. Depende do percurso, do recorte que se faz no campo, dos critérios que se utiliza. Os sistemas têm critérios principais que vão orientar todos os procedimentos no seu bojo. Assim, quando os construtores fixam uma estruturalidade linguística como critério de recorte (ponto abissal), eles instauram um vórtice no campo atmosférico textual que vai se abismar em sistema. Os rigores da construção vão ser definidos principalmente a partir da estrutura de linguagem do poema e apenas secundariamente por outros critérios. Inclusive a condição de litarariedade textual (o que é ou não um texto literário ou criativo), ou seja, os limites do sistema, vão ser definidos por critérios de linguagem (do deus Jakobson). Dessa maneira fica cômoda a prescrição e a análise valorativa dos textos literários, pois os critérios de avaliação estão ancorados numa baliza fixa, a estruturação de linguagem do texto. O problema dos sistemas é que, queiram ou não os seus defensores, eles colocam questões de verdade. A principal delas é saber se um texto é realmente bom, em que grau e por que. Aí se aplicam uma série de procedimentos críticos e teóricos que vão se orientar principalmente por critérios de linguagem e, depois, por outros critérios, para se chegar à valoração textual. O crítico até admite que pode estar errado em relação ao texto, mas por conta de não ter achado nele o que devia. É uma inexatidão do sujeito que analisa e não do objeto analisado. Mas a leitura crítica nunca dá conta de um texto. E não é porque ele tenha infinitas verdades ocultas (autores não são deuses), mas porque um texto é já uma atmosfera ao nascer. Atmosferas não têm suas verdades fixadas de uma vez por todas. Elas se movem, se procriam, se desviam, se anulam, se disseminam a cada abordagem, a cada geração, a cada mirada. Barthes cansou de dizer isto. Os teóricos da recepção e Derrida também. Não há bom textos. Há os que se tornam (são percebidos/construídos como) mais fecundos, mais verdadeiros para os homens. Um texto com possibilidade de fecundidade é aquele que deixa muitas felpas para serem propagadas em verdades. Mas como definir critérios para descobrir estas felpas de antemão? Não há critérios fixos, não se pode estabelecer isto de uma vez por
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todas. Pois os próprios critérios (desejos) de verdade se movem num campo de atmosferas. Eles são fixos apenas nos sistemas. 20/12/05
86. É por isto que a teoria e críticas textuais, bem como os projetos poéticos de grupo, quando se movem num espaço sistêmico (de estruturalidade de linguagem, para continuar o exemplo) têm um potencial muito limitado em relação aos textos, passados ou por fazer. Seus critérios são rígidos demais em face da flexibilidade das atmosferas textuais, pois apenas se guiam pela referência do ponto abissal (a construção da linguagem). E o sincretismo não ajuda muito, pois quando são acrescidos critérios de outros sistemas (expressividade subjetiva, historicidade), acontece apenas da rigidez se expandir. Um espaço crítico sincrético são sistemas/buracos negros inicialmente diversos convergindo num ponto final de abismamento. Sobresistema. Ao invés de aprofundar um sistema ou juntar vários, é preciso fazê-los fugir para que a exploração crítica seja fecunda. Partir de um sistema (sempre se está em um), tatear, respirar a atmosfera que o impregna, evocar e deixar os bruxos agirem pelas frestas e traçar, no seu rastro, uma rota para o fora sistêmico: atingir sua atmosfera. Aí os sistemas não são mais percebidos como sistemas dotados de pontos abissais como referências absolutas, mas como vórtices num campo atmosférico. Percepção de bruxo. A visada não é mais de a um sujeito crítico (subsistema) sobre um objeto utilizando-se de critérios pré-traçados de verdade. É, antes, a visada de um enxame/onda atmosférico interagindo com outras ondas e construindo critérios específicos e relativos. O próprio crítico (seu pensar) se transmuta em onda – daí podermos afirmar que ele seja um bruxo, embora ninguém o seja efetivamente, enquanto pessoa. Então os textos não serão mapeados por uma mirada panorâmica a partir de um ponto de referência (mapa de satélite, de fotografias aéreas), mas por explorações de superfície a partir de uma posição qualquer (mapas antigos, exploratórios). Leminski tem um poema muito bom sobre o mapeamento exploratório, que fala de um texto morcego. Gullar também toca no assunto no Poema sujo ao se referir à visão da cidade de uma perspectiva aérea (pouco frutífera) em contraposição a uma visão pedestre, vivencial, de exploração dos seus meandros.
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Candido faz isto muito bem. Ele não é eclético, como o seu domínio de várias teorias pode sugerir. Até se utiliza delas, mas para fazer, a cada abordagem crítica, seus pequenos abismos de referência (sistemas sem sistematicidade, critérios específicos e relativos) por onde vai traçando suas balizas precárias. É por isto que ele não nos entulha de nomeclaturas teóricas em seu exercício crítico. Não é só uma questão de elegância e comunicabilidade, mas uma forma de trair os sistemas. Por isto a sua crítica consegue ser complexa sem parecer erudita (simplicidade clássica). É muito intuitivo o Candido. Como um romancista. É um narrador clássico. De idéias. Ele capta a atmosfera do texto, só se interessa por ela. Por isto os constructors têm uma certa birra dele, apesar de saberem que o velhinho sabe se utilizar muito bem dos critérios de estruturação lingüística. E ele usa, mas traindo-os, criando subsistemas lingüísticos estranhos, emaranhados com as atmosferas da sociedade, como em sua análise de Memórias de um sargento de milícias, que ins-pirou o Schwartz a escrever seu maravilhoso romance crítico sobre Machado. Candido parte das categorias usuais de romance, aberto X fechado, picaresco, de costumes, histórico... Divide o livro em duas partes cujas qualidades são desiguais em feitura, descobre/inventa um princípio que organiza o movimento romanesco (ordem X desordem) e o vincula à estrutura social brasileira. Recupera a categoria do malandro como tipo social e romanesco (o homem livre que não tem posses e nem o que fazer) para inventar uma nova categoria de romance, de malandragem, em contraposição ao romance picaresco espanhol. Ninguém dirá que falta rigor à análise de Memórias... Mas que rigor é esse que se vale dos critérios dos constructors (a estruturação do texto), dos engajados (a historicidade) e até mesmo dos profundus (o espírito de uma nação), mas traindo todos eles, deturpando-os, tornando-os rarefeitos demais para serem núcleos da análise. Um rigor que, ao final de seu exercício nos dará um sistema sócio-romanesco: a ordem-desordem social em interação com a romanesca. Não se trata da segunda representar a primeira, sua análise fica aquém (ou além) das causalidades da crítica engajada. E este sistema resultante ao final da crítica é provisório. Trata-se de um dos muitos pontos abissais de subsistência que Candido vai construir ao longo de sua vida de crítico. Ele não vai assentar o restante de sua crítica romanesca em torno das categorias ordem e desordem, pois elas foram necessárias para aquele romance de Manuel Antônio de Almeida, para aquela eventualidade. Candido não é um obsessivo. Um psicanalista diria que ele resolveu bem suas neuroses, pelo menos no plano textual. Mas creio que o velhinho não é freudiano. Ele deve estar rindo disso tudo. Cândido é um caipira de nascença. E o foi a vida inteira. Caipiras não param num lugar para juntar riquezas, eles vão comendo. Sua agricultura é de subsistência, pro gasto. Vão olhando as
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oportunidades, improvisando um choça aqui, outra ali. Palmilhando o terreno, abrindo clareiras, fazendo festas, rezas, papeando com os vizinhos e compadres, pitando um cigarro. Eles vêm na cidade, vendem umas galinhas, uns queijos, compram umas necessidades (poucas), tomam umas pingas. Não querem ficar presos ao comércio nem à vida sedentária dos burgueses, embora negociem com eles. Não são de fazer projetos nem de sonhar mundaréus. Comem a vida pelas beiradas. Comem o texto pelas bordas. Né parceiro? 20/12/05
87. O Barthes, em S/Z, faz um magnífico passeio atmosférico sobre a novela do Balzac, linha a linha. Ele vai recortando a atmosfera textual conforme as balizas provisórias (quase arbitrárias) que estabelece, miríades delas, microvórtices se proliferando. Onde está Roland? aqui, ali, lá. Ele foge, enxameia. O bruxo está solto. Você recorta as atmosferas como bem entender, por critérios que achar melhor. Elas permitem isto porque são enxame de ondas num mesmo espaço desreferencializado. Cada recorte que você faz é uma atmosfera peculiar, um individuado específico. O problema é saber se o seu corte vai sem bom pra alguém, se vai ser fecundo. Por isto a coisa não é sem critério, sem rigor. E é por isto que os cortes de atmosferas têm de considerar os sistemas ao serem traçados. Não porque as atmosferas dependem dos sistemas, mas porque é sempre a partir de um sistema mais ou menos enrijecido que você começa. A escrita é o império dos sistemas, o paraíso dos códigos. As sociedades também. Para que as atmosferas sejam úteis elas devem ter uma inteligibiliadade mínima para os sistemas. Um fio de comunicação que também será por onde o sistema vazará. Fio de entropia. É por isto que, ao recortar as atmosferas você vai construir pequenos vórtices que vão lembrar os grandes (os sistemas). Os cortes e individuações atmosféricas vão remeter aos cortes sistêmicos, mas deturpados, como se a tesoura estivesse em mãos inábeis, trêmulas. Por isto, às vezes a atmosfera recortada será monstruosa (entre o habitual e o absurdo). 20/12/05
88. Os recortes atmosféricos não acontecem sem critérios por outro motivo ainda: porque as próprias atmosferas textuais tem sua tendência de corte. Como se utilizam da escrita e brotam numa dada 82
sociedade, por mais fugazes e rarefeitas que sejam, elas têm seu vórtice atmosférico, seu sistema natal próprio. De um ponto de vista sistêmico este vórtice é objetivamente definível, apreensível. Assim, os construtores o vêem como estruturação de linguagem, os profundos como densidade ontológica ou subjetiva e os engajados como legibilidade histórica. A obra romanesca de Machado é um bom exemplo destas perspectivas. A recepção contemporânea e imediatamente posterior ao autor vê a obra como um desvendamento cético da natureza profunda do homem. Machado profundo, romancista metafísica, filosófico e psicológico. Depois, a sua captura pelos construtores, que vai apontar como elemento principal de sua obra o rigor da linguagem. Machado construtor, artesão da linguagem. E ainda, a visada engajada de Schwartz, a mais criativa delas (não porque seja engajada, mas porque o homem é bom na fabulação crítica), que vai destacar a historicidade da obra. Machado engajado, perscrutador crítico dos meandros da sociedade capitalista, articulador insuperável entre a forma estética e a histórica. Que a obra de Machado tem seu vórtice natal próprio, isso têm. Mas uma perspectiva sistêmica crê que este vórtice seja apreensível por sistemas de captura. É isto que os profundos, constructors e engajados traçam em suas críticas/releituras, sistemas de captura das obras do passado (e para as do futuro, tragadas em seu vórtice antes de nascer – a teoria e a crítica como projetos catecistas). A obra literária é, então, um sistema criativo (interpretável) que será sucessivamente desvendado pelas críticas e teorias literárias, que são sistemas de captura (interpretativos). Mas para uma perspectiva que vê a obra como atmosfera textual, o vórtice/sistema da obras não é apreensível. Pois ele é apenas um enfeixamento de correntes energéticas, um adensamento localizado e provisório na atividade atmosférica geral. Um ponto de passagem. E é um enfeixamento múltiplo, não só lingüístico, subjetivo/ontológico ou histórico. Que miríades de feixes, de vida, de outros textos, de percepções mínimas, de demências, desejos e prazeres não entrariam neste enfeixamento? No limite, o vórtice não se divisa de toda a atmosfera e se compõe apenas de seus limiares. Não há vórtice, a não ser como operacionalidade específica sobre uma atmosfera. O próprio sistema original da obra, que o autor desejou, é apenas uma operação vorticóide a mais da atmosfera textual que ele teceu. O fato de ser o primeiro não quer dizer que seja o principal, nem o verdadeiro. Não é nem mesmo o primeiro, de uma perspectiva radicalmente atmosférica. Pois o autor é mais um operador de atmosferas entre outros. A que ele construiu é apenas mais um recorte que se
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efetuou no campo atmosférico, uma atmosfera (e seu vórtice agregado) a mais sobreposta às outras. O autor como leitor, como crítico de uma textualidade infinita. É isto a escritura de Barthes e a intertextualidade em sentido amplo. Por isto é lícito dizer que não há autores, no sentido de criadores/deuses. Pois o autor opera num campo de atmosferas, recorta com a escrita este campo, individuando uma atmosfera específica. A ela imprime sua assinatura, marca. A autoria é a apropriação de um terreno trabalhado/transfigurado pelo autor. Barthes está certo. Voltando à crítica, uma perspectiva atmosférica não vai diferenciar sistemas de captura (crítica) e criativos (obra). Suponhamos uma atmosfera textual, a romanesca de Machado para continuar o exemplo. Cada uma das leituras que são feitas dela é uma atmosfera a mais que se agrega à da obra. O regime de relação entre a atmosfera “original” e as “de leitura” não é o da interpretação, mas o da conexão, por imbricamento, impregnação, interação de campos energéticos. Se fixarmos a obra de Machado como a primeira (é uma fixação arbitrária) podemos visualizar as atmosferas de leitura de sua obra como agregados a ela. Os vórtices destas atmosferas críticas são, então, totalidades ao lado, que acrescem e deturpam a obra e não que interpretam parte de sua verdade ou inteligibilidade. No final as leituras constituem a própria obra machadiana, cujo texto inicial não é mais destacável de todas as atmosferas textuais (e até mesmo não textuais) que lhe foram acrescidas. Mas podemos não fixar a obra de Machado como primeira ou principal. Aí veremos um agregado atmosférico sem centro e se comunicando com todo o campo de atmosferas. Podemos partir de qualquer uma delas, a de Schwartz por exemplo, e começar a ler Machado por ele, ou só ler o crítico. Então Machado será para nós um personagem muito especial da fábula de Schwartz, um mito do mestre, do bruxo de olhos que penetraram nas misérias da sociedade semi-capitalista brasileira. Nos apaixonamos por Machado junto com seu crítico, antes de ler o autor. Ou então lemos Machado, não gostamos, mas passamos a gostar depois de lermos Schwartz. Ou depois de uma aula apaixonada (por meio da atmosfera de vida de um professor querido), ou depois de nos apaixonarmos por alguém que ama Machado (atmosfera de vida da pessoa amada). Ou acontece ainda de gostarmos mais do crítico que do autor... 21/12/05
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89. Candido se apaixona por Memórias de um sargento de milícias. Ele já está no âmbito das atmosferas, pois a paixão não concerne a sistemas apenas. Como crítico, ele não se contenta em ler. Seu modo de amar se procria em outras atmosferas textuais. Inicialmente o vórtice da atmosfera de Almeida talvez fosse um realismo romanesco em forma de crônicas descompromissadas. Sistema que Macedo também gostava. Depois, Mário, também apaixonado pela narrativa, arrumou-lhe outra atmosfera, cujo vórtice girava em torno do romance picaresco. A Candido estas leitura não satisfaziam. Ele queria acrescer mais, deturpar mais, fazer novas procriações com o romance. Então compôs um vórtice interpretativo que tendia a atmosfera, ao qual chamou Dialética da malandragem, cujo ponto de apoio (olho vortical) era a oposição ordem/desordem. Mas como o vórtice do Candido era poroso demais, fraco demais, o pontos de apoio se prolongava também em linha de fuga. A Dialética da malandragem é o paraíso do catecismo engajado, no qual os agentes se esbaldam, mas também uma oportunidade para os desconformes em busca da atmosfera. Depois de Dialética da malandragem, Memórias de um sargento de milícias nunca mais foi o mesmo romance. O amor foi muito fecundo, muito intenso. Depois do amor, os amantes nunca mais serão os mesmos... (é lugar comum, mas é assim, que há de se fazer?) 21/12/05 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE
90. Porque não usar escritura, intertexto, sistema semiótico ou os conceitos da teoria da recepção para falar dos textos, já que atmosfera tem tantos pontos em comum com estes conceitos já bem estabelecidos? Escritura e intertexto são conceitos excessivamente ligados à escrita, apesar das tentativas de expandi-los para outros domínios. A teoria da recepção e a semiótica, embora explorem domínios mais amplos que os do texto, são muito conceituais e, às vezes, muito rígidas em seu desejo de cientificidade. Confesso que costumo dormir e babar sobre os seus livros teóricos – principalmente os da semiótica, Eco que me perdoe. A escritura e o intertexto são mais divertidos
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(mas também depende, porque tem uns Genettes da vida que cruz credo!). Prazer não faz mal a ninguém, né bartezilda? Atmosfera é uma palavra que todo mundo já sabe o que é. E tem um bifrontismo semântico muito bom. Por um lado são camadas de gases em volta de um corpo celeste. É visualmente imaginável e semanticamente apreensível. Por outro é uma característica de um lugar, coisa ou gente, que apenas se pressente: “este filme me cheira à...”, “tem alguma coisa no ar...”, “o clima tá pesado”, “tô sentindo cheiro de...”, “fulano tem um ar de...”. É um pressentido específico, invisível e incognoscível. Para você captá-lo é preciso construir uma analítica também particular, sob medida para aquela eventualidade atmosférica. Fazer (com a) atmosfera. É preciso ter faro, habilidade de traçar uma conexão química. Investir energia de vida, pois uma atmosfera evoca e dispara gatilhos vitais. Ela pode ser textual, musical, política, caseira, o escambal. Você tem que respirar seu ar, viver nela de algum modo para que ela viva em você. Atmosfera porque acho divertido. Porque prefiro fazer, nem que seja mal acabado, do que estudar bem bonitinho. Reinvento a roda? E torta? Tudo bem. É na sua tortura que me encontro em doçura. É no torto do simulacro que me emborco em olfato. E me roço na margem. E se você quiser. É só sentir o clima. E o frescor da aragem. hoje amanheceu tão fresco não a manhã nem o ar nem esta brisa em mim tão leve amanheceu o dia em mim como há muito não fazia soprou uma brisa breve no meu pensamento fez-me esquecer de pensar esquecer do dia duro por vir esquecer de mim tão leve eu estive esta manhã a alma tão calma tão nova tão alva quase não havia como em menino tudo era descoberta e magia tão fresco amanheceu-me o dia
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91. Mariano José de Larra, em um de seus artigos, intitulado El hombre-globo, faz um percurso que vai do sistema à atmosfera, dos homens conformes aos desconformes. Ele coloca a questão em termos de tipos humanos, que são três: sólidos. líquidos e gasosos. Os homens sólidos, aferrados ao solo, sem mobilidade nem capacidade de discernimento, formam a massa popular ignara. Seriam os homens conformes, agarrados aos sistemas os quais eles nem mesmo problematizam. Se considerarmos os sistemas literários, seriam o povo de uma literatura. Se passarmos ao sistema capitalista, seria o povo trabalhador em geral, ocupado com serviços braçais ou mesmo mentais, mas repetitivos, mecânicos, sem exigências criativas. Os homens líquidos já têm alguma mobilidade e uma certa malícia de pensamento. Formam o que é chamado, paradoxalmente de massa crítica de um sistema. É um bom paradoxo, pois se comporta como massa, mas com capacidade relativa de problematizar os sistemas. Seriam os críticos e professores do sistema literário, além da massa de aprendizes, epígonos e diluidores, aspirantes a mestria. No capitalismo são os agentes de sistema, responsáveis por provocar sua mobilidade relativa (de vez em quando dão uma sacudida nos homens conformes com coisas do tipo cursos de motivação profissional, livros de auto-ajuda, cultos, sermões, uma propaganda criativa e inovadora, reportagens ou artigos bombásticos etc) e conter sua mobilidade absoluta. Este segundo tipo é muito importante, pois os agentes vão ficar com um olho nos desconformes e outro nas fronteiras do sistema. Quando há um vazamento, ou seja, quando um desconforme foge, ele sai no encalço e se apropria da fuga, modulando-a para o sistema, que alarga seus limites relativos. Dizem que o agente impede as fugas ou impõem as regras aos homens conformes. Mas é uma bobagem. Eles fazem a ponte. Sabem o que os conformes querem e entendem relativamente bem os desconformes. Estes não são proibidos de fugir e criar, ao contrário, são até incentivados. O que os agentes fazem é converter e domesticar suas linhas de fugas e conectá-las aos desejos dos homens conformes, dando-lhes uma mobilidade relativa. Assim são os publicitários, jornalistas e artesões da arte midiática comercial, que tornam palatáveis às massas famintas os rastros amargos e venenosos das fugas dos criadores textuais, científicos, artísticos etc.
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Os homens gasosos ou homens-globo (hombre-globo) não têm limites, nada os contém ou segura e seu limite seria o próprio globo (atmosfera). Seriam os desconformes, propícios a atmosferas, sempre perscrutando as oportunidades de fuga do sistema. Eles ficam colados às fronteiras, atentos aos seus movimentos e fazem um jogo de gato e rato com os agentes. Eles evocam bruxos e, quando possessos, proliferam em fugas e adquirem visada atmosférica. Roçam na margem. Larra não fala de categorias ou homens de margens, que remetam a bruxos. Mas são fios (felpas) possíveis de puxar e desenvolver de seu artigo. Ao se referir ao calor que expande as almas dos vários tipos de homens, ele remete à margem e aos bruxos. A alma do homem sólido (conforme) é muito pouco quente, gélida. A do homem líquido (agente) é medianamente quente e a do gasoso (desconforme) muito quente. O calor seria a própria margem intangível, que aqueceria em graus diferentes a alma dos homens. O bruxo, ente em estado de margem que se apossa dos desconformes, mais que ter uma alma muito aquecida, a teria de fogo, o elemento que produz o calor e prolifera. Alma em chamas, enxameada. Antialma tendendo a espírito. Mas Larra coloca as coisas em termos hierárquicos. A alma dos homens gasosos é mais alta e nobre que a dos líquidos que, por sua vez, supera a dos sólidos. É uma visão de sistema, de um bom agente de sistema, que tem uma aguda percepção, mas, por estar ligado à ordem sistêmica, necessita classificar e hierarquizar as coisas, eventos e gentes. Mas não sejamos maldosos com ele. O homem é da modernidade do século XIX, cheia de projetos totalizantes, nacionalismos e cientificismos. E foi uma bela intuição! *** Outro senão é que Larra não coloca o problema das gradações e alternâncias entre os homens sólidos, líquidos e gasosos (e de fogo). Pois há variações de solidez, liquidez e gaseificação de acordo com o grau de aquecimento (fogo). Outro problema ainda: um homem também pode ser sólido num domínio e gasoso no outro. Por exemplo, um artista de talento que roça as margens pode ser um homem cuja vida cotidiana se enquadre muito bem à normalidade sistêmica. 22/12/05
92. Para quem gosta de gnoses ocultistas, ocorreu-me uma idéia curiosa ao reler o Larra. O seu esquema de homens sólidos, líquidos e gasosos, acrescido dos entes de fogo, correspondendo
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respectivamente às regiões centrais mais rígidas dos sistemas, suas fronteiras móveis, suas atmosferas e suas margens, pode remeter à alquimia dos quatro elementos. Conformes terrenos, agentes fluidos, desconformes aéreos e bruxos de fogo. A alquimia até que permite uma interação porosa, emaranhada e sem hierarquia entre estes elementos. Por aí vai bem. Mas como toda gnose mística ela persegue o definitivo, a circularidade e a totalidade. Holismos, abismos do ser. Os movimentos são interessantes, mas a teleologia compromete os resultados, que no seu caso não devem ser parciais. É uma felpa. Deixemo-la aos ocultistas da hora. Prefiro a química, esta alquimia agnóstica. 22/12/05 DOS DESCONFORMES E SUAS FUGAS
93. O Candido é um narrador clássico e tangencia as margens, assim como seu discípulo Schwartz, assim como Bosi e Octavio Paz. Os dois primeiros são da estirpe dos engajados e os últimos da dos profundos. Não é necessário ser pós-modernoso para fazer margem. Os modernos também sabem. Eles normalmente partem de um sistema (ou pelo menos são enquadrados em um) interpretativo consagrado (vórtice de base), mas distorcem-no de tal maneira que constroem atmosferas textuais fecundas, escapando ao bolor das atmosferas carolas, muito aferradas aos sistemas de base e que por isto não procriam. Mas é impossível saber de antemão os critérios e preceitos para a construção de uma boa atmosfera a partir de um sistema consagrado. Só a posteriori vamos saber se o desvio foi frutífero e mesmo assim sem poder identificar objetivamente os motivos. Porque Paz consegue ser tão fecundo para muitos que o lêem? Não se pode saber de uma vez por todas. É preciso criar outra atmosfera textual que se conecte e se prolongue com a dele. Ela vai explicar, dar motivos, sistematizar, fazer vórtices enfim, mas serão totalidades ao lado, agregada ao texto “interpretado”. Há uma coisa interessante nos fabuladores críticos modernos. Eles têm uma ou várias tendências de base (profunda, construtora, engajada). Mas dos que atingem a margem, raros são carolas em excesso, mesmo que sejam santificados à sua revelia por uma dessas igrejas (como Candido o foi pelos engajados).
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Mas a fábula da crítica moderna anda em estado terminal. Ela fazia parte do sistema literário que ruiu. Não responde mais à época, perdeu sua função de mediação entre obra e leitor. A quem ela vai mediar o texto literário? Não há mais fiéis (ignaros, povo) para compor a base da igreja (escola, estado) literária. Não há mais leitores. A fábula crítica de hoje não é mediadora entre texto de arte e leitores e a obra literária não é mais o centro de um sistema, a Literatura. Se antes, a crítica, a partir deste sistema podia atingir atmosferas propícias às margens, a de hoje não têm mais um vórtice literário vivo de onde partir. Se ela insistir em partir de categorias antigas, estará partindo de um sistema fantasma. Tudo bem, pode até procriar, mas por que não admitir o fato de que os textos criativos não têm mais um vórtice principal que os organiza em Literatura? E também, não há mais a quem mediar estes textos, pois os leigos buscaram artes mais magnéticas, como o filme e a canção, e a nenhum deles a consciência pesa (má consciência) por não se ler Alta Literatura. Homens como Wilson Martins e Carpeaux foram muito importantes. Mesmo não sendo fabuladores criativos como Candido, têm uma erudição e uma perspicácia que constituíam balizas seguras para os ignaros do sistema. Tinham sempre o que dizer, o que orientar sobre um livro, um período, uma estética. E também sabiam valorar uma obra, que era justificada por uma análise breve, não muito inventiva, mas que dava pro gasto. Hoje os ignaros não os ouvem. Vão buscar os homens-enciclopédia do cinema e da canção, que tomaram o seu lugar nas mídias. Querem orientações breves sobre coisas tais como uma determinada estética cinematográfica ou as canções de uma época, de um país... A crítica agora se vê num dilema. Ela não é mais mediadora, de jornal. E não há mais como sê-la, por absoluta falta de interesse do público geral. Restam-lhe duas opções. Por um lado ela pode se tornar acadêmica e continuar se construindo meticulosamente como ciência humana, com um grande risco de se burocratizar, ou seja, de se atar aos sistemas de conhecimentos da academia que, não raro, servem principalmente para os exames e a carreira. Seu público leitor seria formado de alunos e profissionais cujos interesses não são apenas o prazer e o conhecimento textuais, mas também a aprovação ou a ascensão acadêmicas. Por outro lado, sendo feita fora ou dentro da academia, a crítica se assumiria como criação literária, como conexão e prolongamento criativos dos “textos literários”, os quais não seriam mais objetos de análise, mas atmosferas de imbricação. Texto literário e texto críticos como campos de energia em interação (pro)criativa. Em ambos os casos a crítica assumiria a falência do sistema literário e a ausência de sua base
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ignara de leitores, o que implica em renunciar à função mediadora. Não há mediação a ser feita quando não mais existe o público leigo, base da pirâmide (sistema) literária. Mesmo se o crítico se decidir pela crítica como criação literária, ainda assim o público que a leria seria especializado (acadêmicos, jornalistas, artistas, publicitários) e na maior parte das vezes ligado a subsistemas da sociedade capitalista, com interesses bem marcados neles. Os leitores seriam, não raro, agentes de sistema, homens fluidos, encarregados das perseguições aos desconformes em rota de fuga. A crítica seria então uma fuga. Teria que apelar aos bruxos e mesmo assim seria ressistematizada, domesticada, massificada por meio de outros vórtices, textuais ou não (sistemas publicitário, midiático, de carreirismo acadêmico, mediações mais indiretas ainda que as da crítica). Mas sempre sobra um rastro venenoso, uns riscos ininteligíveis. São as memórias de margem vibrando no campo de atmosferas. Fios textuais de memória, finos demais, curtos demais, emaranhados demais para serem esquadrinhados, totalizados e absorvidos na memória estruturada dos sistemas. Mais valia negativa, tradição de bruxos a espera de outros feitiços que se juntem a ela por impregnações e contágios. Vazamentos de margem. 22/12/05
94. A crítica e não apenas ela, mas todo texto criativo de agora são artefatos de arte/pensamento feitos para os agentes e desconformes. Para os que estão na borda, vigilantes da fronteira, a serviço das ressistematizações ou das fugas. Os conformes muito, mas muito raramente, se interessam pelo texto criativo a ponto de podermos considerá-los dentro do jogo. Desconformes processam textos que serão proliferados por outros desconformes ou absorvidos por agentes, nos limites estéticos e mentais do capitalismo. Mas entre desconformes e agentes não existe uma clara diferença (na acepção de Deleuze & Guatarri ambos são a ambígua linha maleável, entre a linha dura de segmentação e a linha de fuga). Não são necessariamente pessoas diferentes. Vejamos duas personalidades bem distintas, Schwartz e Augusto de Campos. Ambos têm seus momentos de carolice aguda (agentes), quando se trata de marcar posição de suas igrejas no sistema. Augusto invariavelmente parte para a defesa e imposição do catecismo da construção, enquanto Schwartz, quando se vê diante de obras e teorias dos constructors, se lança ao ataque engajado. Em ambos os casos agem como agentes, sistematizam a criação textual (inclusive a sua) trazendo-a para limites de inteligibilidade medianos e bem marcados, consagrados. Centram os textos. Daí para a divulgação cult na mídia e para o ensino acadêmico é
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um pulo. Tornam-se mestres dos mestres universitários e dos jornalistas, sem falar de sua posição de gurus dos carolas de cada igreja. Mas o Augusto de despoesia e o Shwartz de Ao vencendor as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo, estes são desconformes formidáveis em seus exercícios de fuga para fora das gnoses estabelecidas. Abandonam, nestes textos, os vórtices principais e a clareza didática de suas respectivas igrejas e partem para as deturpações vorticais, rumo ao específico absoluto de cada um de seus enxames de bruxos. Rumo à margem que suas escolinhas esconjuram, mas também propiciam, à sua revelia. São deturpadores, traidores de suas confrarias, não obstante serem, nelas, mestres carolas. 26/12/05
95. Os desconformes e agentes são os únicos públicos dos textos. Mas assim como o público real não está mais disseminado entre os demarcados, também não são quaisquer agentes e desconformes que lêem, mas somente os que lidam, por ofício, com textos, outras mídias e arte em geral. Gerentes, por exemplo, são agentes no capitalismo, mas o campo atmosférico em que atuam pouco interage com o do texto criativo. Normalmente o seu desejo estético se volta para filmes e canções. Se for um agente muito ‘refinado’ vai preferir Bossa, MPB, Jazz e o cinema “de arte”, fora dos padrões de Hollywood. As leituras destes agentes vão se resumir a jornais e revistas, à dita paraliteratura e a textos especializados de sua área. Já os publicitários, jornalistas, acadêmicos das chamadas ciências humanas, artistas em geral (mesmo os das mídias mais comerciais, tais como da indústria do disco), estes são o público potencial, por onde se disseminam, hoje, os leitores reais do texto criativo de agora. São especialistas que necessitam, em maior ou menor grau, da arte textual no exercício de seus ofícios. Não é que leiam por obrigação, mas, como diz o ditado, unem o útil ao agradável. Quem quer fazer/lidar com textos tem que saber dessa escassez incontornável de público ou, aludindo a outro dito, querer ver o que já é óbvio. Não são necessárias pesquisas de opinião sobre o público leitor para saber quem ele é, basta afinar a percepção e farejar o ambiente. E duvido muito que nos países “desenvolvidos” (que oferecem às pessoas uma vida longeva e confortável) a coisa seja diferente. O que pode haver nestes países é uma maior massa critica de agentes (e um pouco mais de desconformes) que necessitam do texto criativo. Conseqüência de uma educação “de
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qualidade” (leia-se cidadã e mercadologicamente produtiva) oferecida a um número maior de pessoas. A única conseqüência positiva para o texto criativo, proporcionada por uma educação capitalista de qualidade é esta, a de propiciar um maior número de agentes (e desconformes) voltados para o texto. É bobagem achar que a educação vai criar, para o campo textual criativo, um público potencial não especializado, o qual seria composto por agentes especialistas em outros campos e, principalmente, por demarcados em geral. Ter toda a sociedade como público potencial não mais está ao alcance da arte textual, mas das mídias tecnológicas audiovisuais: cinema, música pop, tv, internet (por enquanto são estas as mídias/técnicas). A literatura como sistema morreu morreu morreu morreu... (repitam comigo carolas). 26/12/05
96. Um ensinamento de Candido, repetido muitas vezes ao longo das páginas da Formação da literatura brasileira: a realização das boas obras sofre interferência de feitura da estética da hora (ou do grupo), mas sua qualidade independe do grau de aderência a ela. Candido chama isto de talento pessoal. Eu acrescentaria que a capacidade de traçar uma fuga fecunda dos catecismos é que vai dar em bons textos. Isto não decorre necessariamente da novidade ou da impressão de uma marca pessoal, mas da capacidade de desvirtuar os limites do sistema, de provocar sua entropia, de fazê-lo vazar em atmosfera pura, margem. Esta entropia pode se manifestar como invenção (construtividade), como percepção social aguda (engajamento) ou como profundidade subjetiva ou ontológica (expressividade), mas também de muitas outras formas. Diria que principalmente por outras formas, mesmo quando a expressão, o engajamento ou a construção são patentes no texto criativo. Isto porque elas (expressão, engajamento, construção) são grandes estruturas que não conseguem a porosidade suficiente para fazer passar os fluxos de fuga. É por entre elas que eles vazam e se disseminam. 26/12/05
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DAS ATMOSFERAS
97. DOS TIPOS ATMOSFÉRICOS Demarcados, conformes ou enquadrados. Estão nos vórtices (sistemas) atmosféricos, atados à suas leis e categorias. Não cogitam fugas e nem lideranças internas. Veneram o centro do vórtice que, no entanto, é vazio (obra de agentes). Não são enganados, alienados, ignorantes, inferiores ou incapazes. Todas estas categorias que apontam para insuficiências (interiores ou exteriores aos demarcados) são sistêmicas, hierárquicas. Um desejo de ordem e marca move os demarcados que aspiram uma adequação incógnita a padrões de grupo. Mesmo que estes padrões sofram mudanças (o capitalismo as promove o tempo todo em seus vórtices). O que pedem é que as alteridades sejam inteligíveis e os carreguem em meio e junto ao grupo, no qual o demarcado é uma rês a mais – re(s)pública, império, urbe. Agentes, carolas ou especialistas. São responsáveis pela manutenção sistêmica. Líderes do sistema, assumem a voz de sua centralidade. Apresentam-se como interlocutores entre o centro e os demarcados próximos a ele. Mas não se posicionam no centro dos sistemas e sim nas suas bordas internas. É que a centralidade, na verdade, é um vazio de sentido, uma permanente construção que só pode ser efetuada a partir dos limites externos do vórtice, onde o movimento é sem medida e os sistemas querem se desmanchar. Onde há (cri)atividade de vida. Por um lado, a tarefa dos agentes é tornar a criatividade das bordas (inapreensível e dissolvente) mensurável e legível para as atividades do vórtice. Por outro, os agentes devem dar uma mobilidade relativa ao vórtice e sua tendência à inércia. São bi-injetores os carolas. Injetam movimento absoluto de borda na estática do vórtice e vice-versa. Relativizam simultaneamente o movimento e a imobilidade absolutos. Por isto é que falam o tempo todo em nome do centro do vórtice, mas na verdade, se preocupam com (e ocupam) as margens sistêmicas. São como os padres e pastores no encalço dos gays, putas, polígamos, crápulas e hereges. Sempre nas proximidades das margens (do diabo), em nome do centro (de deus) e do seu catecismo. Desconformes, agentes de fuga ou homens de fuga. Querem destruir o sistema, fazê-lo vazar, provocar-lhe hemorragias. Como os agentes, posicionam-se nas margens perscrutando seus movimentos e oportunidades de fuga. Fora ou dentro? É impossível saber exatamente, pois estão se infiltrando e vazando concomitantemente pelos poros dos vórtices. Não reconhecem seus limites, pois têm visada atmosférica. Estão na atmosfera. Não falam em nome de centralidades
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nem têm responsabilidades sistêmicas. Dos códigos do sistema, carregam apenas o suficiente para traçar uma rota para o seu fora e expô-lo ao regime atmosférico. São inimigos mortais dos vórtices e dos agentes, dos quais desejam a destruição. Mas os agentes, em que pese seu ódio sem igual aos desconformes, não procuram destruí-los, a não ser em casos extremos. Eles ficam à sua espreita, esperando uma fuga, um furo, um vazamento provocado. Então, saem no encalço, pois é no rastro das crises provocadas pelos desconformes que os sistemas vão ampliar seus limites e manter seu movimento relativo. Os agentes consideram os desconformes como parceiros rebeldes de ressistematização, tentam resgatá-los (ovelhas desgarradas) de suas fugas alucinadas. E vêem os demarcados como viventes da obscuridade, ignaros (infiéis, povo) a serem iluminados (governados). Os desconformes vêem nos agentes e demarcados entes a serem corrompidos, desmantelados, desestruturados, possuídos de bruxos. (Talvez as atividades dos desconformes se aproximem do que Foucault chama de resistência às tecnologias do poder, postas em ação pelos agentes). Bruxos ou marginais. Estão nas margens. No específico absoluto de cada fuga. No fora absoluto dos sistemas. Habitam as infiltrações e vazamentos, mínimos limiares. Porosidade ao infinito, impregnam a atmosfera de devires. Alastram e contaminam suas populações. Enxames. Estar fora não quer dizer estar longe. Pode ser embaixo do nariz do mais demarcado que um bruxo passa com seu olor virulento. A composição sistema-atmosfera não é como uma galáxia espiral, com seu núcleo, suas regiões internas gradativamente mais distantes do núcleo, seguidas respectivamente de suas atmosferas e margens/vácuo, as quais constituiriam o seu fora. Não é isso, não se trata de distâncias proporcionais, mensuráveis e visualizáveis. A atmosfera não está a uma grande distância do vórtice e nem a margem mais longe ainda. Nem há, objetivamente, o vórtice, os seus limites, a atmosfera e depois as margens. Esta perspectiva cêntrica é de quem está vendo sistematicamente. De uma perspectiva atmosférica, a margem é a impregnância absoluta de todo o campo de energias/magias, ao alcance imediato inclusive dos mais demarcados. As atmosferas e vórtices povoam, emaranhados, um mesmo campo atmosférico, sem noção de dentro ou fora, sem individuações bem marcadas. No campo de magias há apenas zonas mais ou menos densas, tensas, intensas e velozes, imbricadas umas nas outras, liminares. Caosfera. 26/12/05
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DO HIPERSISTEMA O capitalismo é um enfeixamento de sistemas anacrônicos e contemporâneos em um hipersistema modulado, heterodoxo e flexível. Mais que um sistema, é uma sistemática mutável, que não abre mão das centralidades dos sistemas antigos (e dos que ele torna obsoletos), mas precisa das margens (heresias ao centro) mais que nenhum outro. Ele vive de suas entropias de borda. Os sistemas e tipos que consideramos acima são, na verdade, susbsistemas e personas do hipersistema capitalista, que negocia o tempo todo com as atmosferas. Eles só têm sentido em relação ao enfeixamento capitalista, que vai modular todos os vórtices dos subsistemas na freqüência do capital3. E os tipos (demarcados, agentes, desconformes, bruxos) não são pessoas, mas possessões. Os sociólogos diriam que são papéis sociais e os psicólogos que são padrões comportamentais, máscaras. Numa mesma pessoa podem ocorrer várias possessões em gradações variadas. Um casal exemplar para a sociedade (demarcado) pode ter uma vida sexual secreta de margem, cheia de orgias (desconforme). Por outro lado esta sexualidade livre pode sofrer controles de ordem sistêmica, ao se servir de clubes e lojas especializadas, sem falar em demarcações que vão classificar e regular o desejo, tais como tipos de tara e participação em grupos de afinidade (outra demarcação, outro vórtice, outro nicho de mercado). O casal pode inclusive participar, como ativista, de movimentos e eventos para refletir sobre assunto e reivindicar sua legitimidade social, sua familiaridade, nos dois sentidos da palavra (absorção do comportamento desviante na normalidade cidadã, luta por direitos, o casal como agente de um vórtice). A liberdade sexual desejada pela contracultura é uma fuga que está sendo absorvida (sistematizada) pelo hipersistema capitalista. Seus vazamentos mais comprometedores, como o questionamento das demarcações de identidade e a liberação do erotismo contra demarcações de qualquer espécie (viagens do desejo) são abandonados ou reprimidos nesta absorção. São fios que sobram da ressistematização. Rastros venenosos que vão formar a tradição dos bruxos. Voltemos aos tipos. Enquanto os bruxos são possessões infernais, enxameadas, imprevisíveis e incognoscíveis, de forma que não se pode dizer que fulano seja nem esteja bruxo, os outros tipos são mais personalizáveis e localizáveis. Pode-se dizer que em tal domínio fulano é (tende a, o verbo ser é maneira de dizer) desconforme e em outro é demarcado. São possessões próximas aos papéis sociais da sociologia, os quais são apontáveis em uma pessoa num contexto específico.
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No Antiédipo e em Mil platôs, Deleuze e Guatarri atacam muito bem e por vários flancos o problema do funcionamento do hipersistema capitalista. 96
Bruxos não, nem são máscaras nem atores, são motores de fuga, vibrações ínfimas, pulsações de margem, magia em entes, dez mil mentes, dementes. 26/12/05 DA LITTERA
99. O receptor que conta de fato para uma arte é o potencial, não o real. É pelo público potencial que sabemos a sua amplitude. Assim, enquanto a Literatura perdurou como sistema, o seu público potencial coincidia com todos os alfabetizados não rudimentares, ou seja, homens que adquiriam o mínimo da cultura erudita de sua época para se tornarem “homens bons”. Quase sempre este público coincidia com a chamada elite econômica de um país, mas não necessariamente. Muitas vezes a pequena burguesia, o corpo de funcionários do Estado ou mesmo os pobres conseguiam se educar como “homens bons”. No caso do Brasil, Schwartz, ao analisar a obra de Machado, mostra bem como o agregado, homem sem bens e vinculado aos ricos pela complexa relação do favor, podia ter acesso às letras sob a proteção de seu padrinho. O próprio Machado, mestiço de origem pobre, foi beneficiário do favor, neste aspecto. É a famosa função enobrecedora da Literatura e das Grandes Artes, que têm o poder de in-vestir homens da ralé de cavalheirismo intelectual. Do público potencial da Literatura, é provável que poucos a liam de fato e com fartura, mesmo entre a elite. Mas ela exercia sobre estes não leitores um efeito indireto, atmosférico. Ela pesava sobre as pessoas, ora como obrigação, ora como incômodo, pois no seu círculo social sempre havia os que liam, citavam e comentavam os grandes. Muitos podiam, inclusive, dizer que leram fulano e comentar sua obra com argúcia, quando na verdade só ouviram dizer, tamanho o peso da atmosfera literária que os envolvia. Mas o público potencial de uma Literatura não se definia pelos que liam de fato e nem pelos que tinham grande possibilidade de vir a ler em algum momento de sua vida. Menos ainda pelos que tinham aptidão técnica para a leitura (alfabetizados). O público potencial era a massa por onde se disseminavam os leitores reais de tal modo que a atmosfera do sistema se fazia sentir como objetiva (opressiva), como instituição, impondo sua densidade às pessoas. O público potencial não era formado pelos que certamente leriam um dia nem pelos que poderiam ler, mas pelos que
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deviam ler. A leitura literária, para os homens de posse e ou para os bem educados em geral, era uma obrigação, um dever. Como se recusar a enobrecer o espírito? O grande sonho humanista-iluminista foi ampliar, com a educação, o público potencial da Grande Literatura até fazê-lo coincidir com toda a população de um país (ou de um continente). Educação nobre para todos era o ideal dos séculos XVIII e XIX. No século XX é a educação cidadã. Pois os humanistas acreditavam (crença herdada pelos profundos, engajados e constructors de hoje) que a grande massa analfabeta e semi-analfabeta, produtora e fruidora somente de cultura popular, bastava ser educada para se transformar em público potencial da literatura (e de todas as Grandes Artes) – civilização democrática. Na primeira metade do século XX, em alguns países europeus, onde o índice de analfabetismo se tornou muito pequeno, talvez este sonho esteve perto de se concretizar. Mas no pós-guerra, apesar da erradicação do analfabetismo e da universalização da educação cidadã nesses países, o público potencial da Literatura se tornou, em questão de anos, tão irrisório, a ponto do sistema literário não se sustentar mais. Não há leitores reais disseminados em nenhum extrato significativo das populações. Ao contrário, eles rarefaram mais ainda sua quantidade proporcional, se especializaram em textualidade ou atividades afins e se concentraram em recortes sociais específicos: imprensa, universidade, ‘classe artística’, agências de publicidade, mídias audiovisuais. Nenhuma sociedade passa sem fábulas e cantos. A Literatura monopolizou, durante séculos, o fabular e o cancioneiro do capitalismo. O povo, por seu analfabetismo e condição miserável, só lidava com fábulas e cantos da chamada cultura popular, marcada pela oralidade. Mesmo dentre os que tiveram uma boa educação é provável que a maioria não lia a Grande Literatura. Mas o seu monopólio era um fato. Ela impunha sua hegemonia sobre o fabular e o cancioneiro pelo dever ser. O seu público potencial que existia e que deveria ser expandido por meio da oferta da boa educação à ralé, até coincidir com toda a população, devia ler a alta literatura, exigente e enobrecedora. Aconteceu que, em meados do século XX, a Literatura perdeu o monopólio sobre as fábulas e os cantos para as mídias audiovisuais. Estas já nasceram com o público potencial que os literatos sempre desejaram: toda a população. E a forma desta hegemonia não é um dever ser como na Literatura, mas um querer ser. Toda a população deseja a arte das mídias audiovisuais. Elas não são custosas e enobrecedoras, mas magnéticas e entretecedoras. Não exigem uma boa educação, mas são uma ótima distração. Não fundam um espaço de resistência utópica ou reacionária no
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seio da sociedade burguesa, mas se entrelaçam com o capital na forma de indústria cultural. Elas parecem incapazes de crítica e conhecimento, mas, na verdade, são a possibilidade de outro tipo de resistência, outros vazamentos. Tão logo se instaurou, ainda incipiente, a indústria cultural no início do século XX, alguns de seus artistas já começaram a explorar suas oportunidades de fuga, a bolar feitiços audiovisuais. São outras atmosferas, outros modos de margem. 27/12/05 DO CAPITALISMO
100. A boa educação é a solução! Eis o slogan dos especialistas. Estão certos, se o que se mira para um país é o desenvolvimento nos moldes dos países de primeiro mundo. Mas é preciso saber se a sociedade quer. No caso latino-americano é muito provável que queira. Que haja uma predisposição e um desejo para a dura disciplina do desenvolvimento. Pois a educação do jovem é mais que uma série de aprendizados e provações individuais que vai prepará-lo para uma vida cidadã e competitiva. É uma provação para o núcleo familiar, para o Estado e o corpo docente. Para toda a sociedade. A boa educação exige planejamento, avaliações, pesquisas científicas e de opinião, estatísticas, envolvimento familiar e docente, gerenciamento, controles de qualidade, racionalismo, ponderação, perseverança e uma série de renúncias a gratificações imediatas em nome de um conforto futuro. Disciplina do macho adulto branco europeu, a qual foi de fácil adaptação pelos orientais já acostumados com disciplinas de aprendizado mais rigorosas ainda. Exige todo esse mix heterogêneo de ingredientes coordenados pela modulação do capital. Homogênese esquadrinhante. Em sentido restrito a boa educação é a preparação de jovens com capacidade crítica, ou seja, consciência dos direitos e deveres do cidadão (base humanista) e com uma boa base de conhecimentos e habilidades técnico-científicas que lhes dê a capacidade de se tornarem aprendizes permanentes, flexíveis e competitivos ao longo de sua vida, com o fim de se adaptarem bem às exigências do mercado, mutáveis numa velocidade cada vez maior (base operacional). Mas esta boa educação da juventude só será possível de se atingir se a sociedade querer implementar concomitantemente nela mesma a boa educação generalizada. Se se dispor a se preparar para a disciplina de vida que as instituições de ensino vão exigir dos jovens, das pessoas que dão sustentação aos educandos (pais, docentes, Estado) e, principalmente, se a sociedade aceitar se abrir para absorver do jovem egresso das instituições de ensino as
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transformações que ele vai querer fazer nas suas instituições gerais a partir de seu aprendizado, provocando um círculo virtuoso (do ponto de vista dos especialistas) em que a educação restrita alimenta a geral que propicia a restrita e assim sucessivamente. A educação da escola é (deve ser) um microcosmo da educação generalizada do sistema. Ocorre nos países latino-americanos que a chamada classe média já tem um ambiente no qual esta boa educação (a restrita e a ampla) se estabeleceu. E há um grande desejo dos pobres de entrarem nesta ambiência (o seu amor pelos shoppings e outros souvenirs da classe média torna evidente este desejo). Aos Estados bastaria garantir o crescimento, o emprego e melhorar as escolas públicas. Formação massiva de capital humano, que é o tipo de capital que interessa nas sociedades de consumo tecnológicas (chamadas sociedades de conhecimento). Desta base humana altamente disciplinada para os rigores da cidadania e do mercado é que sairão bons técnicos, cientistas, gerentes, formadores de opinião e políticos (massa crítica/agentes). E boas pessoas para serem treinadas gerenciadas e governadas (demarcados). Em troca de sua aplicação para a aquisição da boa educação (restrita e ampla) as pessoas levarão uma vida longeva e confortável. A noção de conforto, também conhecido como qualidade de vida, é muito importante. Ela não quer dizer felicidade ou ausência de sofrimento. Digamos que o conforto se traduza numa série de satisfações dadas ao organismo (material e espiritual). Algumas são muito primárias, mas que só o capitalismo das nações desenvolvidas pôde, pela primeira vez na história do homem, dar a toda a sua população, tal como a ausência de fome e a prevenção e garantia de tratamento mais ou menos equânime das moléstias do corpo. Outros confortos são mais relativos e distribuídos de acordo com o chamado poder aquisitivo do cidadão, tais como ter automóveis e empregados domésticos, comer em lugares caros e sofisticados, poder freqüentar academias de ginástica, viajar a turismo, consultar psicólogos, ter acesso a serviço médico e educacional personalizados e mais qualificados que a média, ter um bom sexo pago, morar em residências amplas, seguras e localizadas em lugares não poluídos etc. O conforto é uma efetuação do desejo. Os homens são fluxos de desejo, poços de pulsões (Freud disse-o claramente pela primeira vez). A própria sociedade é um campo energético de desejo. E o campo de desejo é móvel. As suas proliferações e efetuações, ou seja, as suas formações mudam o tempo todo. O capitalismo tem uma grande vantagem técnica sobre os sistemas sociais do passado, pois seu princípio de funcionamento é também por fluxo, de capital, como nos mostra Marx e Deleuze. Capital que vai se juntar ao fluxo de desejo, se expandir com ele, cavalgar suas fugas, modulá-las e oferecer sua efetuação sob a forma de conforto (prazer do organismo no capitalismo). Mas esta modulação exige que se deseje o conforto e se discipline para a modulação que resultará nele. Exige o exercício permanente da boa educação, tanto a geral quanto a restrita. 28/12/05 100
101. Mas quem deseja só o conforto são os demarcados. Os agentes querem mais. Querem a sua mais valia. Não só em forma de capital, mas de poder, de conhecimento e de reconhecimento. Enquanto os demarcados vivem num regime de carência permanente de confortos por conquistar, os agentes têm conforto em excesso, acumulado. Reservas e mais reservas de conforto. É esta mais valia em algum subsistema que lhes possibilita a mobilidade relativa que os demarcados não têm. Que lhes faculta o poder de instaurar centralidades e se apresentarem como porta vozes do centro. Que lhes dá força para perseguir as fugas dos desconformes, absorver suas energias e sistematizá-las. Os desconformes, por sua vez, rejeitam tanto o conforto quanto sua mais valia. Interessa-lhes (por escolha ou destino?) a subsistência sistêmica (vida desconfortável, o desmonte do conforto) e a mais valia negativa das sistematizações, ou seja, os restos das sistematizações das fugas, que não são absorvidos pelos agentes e formam a tradição dos bruxos. É com a energia da subsistência e dos restos das sistematizações que eles bolam novos vazamentos dos vórtices em atmosferas e tendem à margem. Eles evocam os bruxos que vão proliferar seus escapes em rotas torpes, furiosas e dilaceradas para os limiares mais ínfimos da caosfera. Mas se alimentar dos restos das sistematizações exige um conhecimento razoável delas. É por isto que, muitas vezes, os agentes se precipitam em fuga. Eles cansam das disciplinas dos sistemas e têm todo o conhecimento para traí-los. Entre agentes e desconformes há um jogo de gato e rato, mas também uma permuta permanente entre os papéis. Mas não se regozijem agentes/carolas, pois não é necessário um comprometimento com os sistemas/igrejas para criar fugas. Os infiéis, amadores autodidatas, também podem. Eles observam as igrejas e seu catecismo, sua maneira de sistematizar, seus restos. Seguem os rastros dos restos pelo fio das sistematizações dos carolas, farejam, têm senso magnético. Depois, possuídos de bruxos, vão compor suas forças de subsistências com as sobras do campo de magia e vazar, infiltrar, margear. Como a subsistência dá energia aos desconformes se ela, como modo de vida aquém do conforto, é a carência quase absoluta? Ela só é carência do ponto de vista dos demarcados e agentes que crêem-na ser uma falta que espera o conforto para supri-la. Do ponto de vista desconforme, a subsistência é a própria energia liberada da gravidade sistêmica, é um pleno energético. É o peso mínimo que permite a máxima vibração, a máxima mobilidade e rarefação. A possibilidade de
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vazar e infiltrar, margear. São os que vivem no regime de subsistência que pressentem a insinuação das margens. Sempre haverá um uso da energia da subsistência nas fugas. Suponhamos um carola de uma igreja literária. Ele está numa posição confortável de reconhecimento e poder nesta igreja, acumula mais valia textual e seu organismo goza desse prazer sistêmico. Ele é amado e vive confortavelmente. Mas, ainda assim, se sente deslocado entre os demarcados e agentes. Sente raiva demais dos vórtices, inveja/amor demais pelos desconformes. Ele não tem todo o conforto mas sente-se desconfortável, ou melhor, não tem, em certos desdobramentos vitais e insuspeitáveis, o mínimo de conforto. Ele já leva uma vida de subsistência (ou de carência, depende do ponto de vista), ou seja, já tem gatilhos de subsistência. É uma questão de prolongála, fazê-la proliferar contra o seu vórtice sagrado, traí-lo, fugir. Há várias possibilidades. Ele pode, por exemplo, se refugiar mais na carolice e se afundar no catecismo, revertendo sua energia centrífuga em centrípeta, fanatismo. Ou compensar/superar (são conceito freudianos, sistêmicos) suas carências em outros campos. Se ele se tornar um mestre acadêmico, por exemplo, a energia de fuga pode ser revertida para a burocracia do ensino e os rigores das ciências humanas. Ou pode efetuar a fuga, ligar sua subsistência a rastros de fuga que ele sabe perseguir. Ao invés de sistematizar as fugas e ignorar as sobras, ele pode se interessar por estas últimas, compor sua energia rarefeita de subsistência com elas e vazar. Traidor da confraria. Pode também combinar as alternativas como, por exemplo, afundar no catecismo e provocar vazamentos nele, hipócrita. Alternância simultânea entre carola e desconforme. A subsistência é vista como uma falta, uma insuficiência ou uma infelicidade pelo sujeito do sistema. Mas o desconforme, que está aquém do sujeito, a vê como alegria e energia, oportunidade de vazamento. Pode acontecer (e acontece muito) de o desconforme e o sujeito (demarcado, agente) se manifestarem na mesma pessoa. Energia centrípeta que a percorre mantendo-a demarcada ou agente (a pessoa como subjetividade), em tensão com a energia centrífuga que a dissemina em desconforme e atrai enxames de bruxos. As pessoas são essas miríades energéticas. Atmosferas. 28/12/05
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102. A subsistência é a ausência de abundância ou acúmulo de conforto. O excesso tem um peso, uma densidade que se precipita em vórtices. Vários vórtices de conforto: conhecimento, reconhecimento, posses, poder. Eles vão tender a um sujeito, ressoar numa subjetividade comprometida com estes vórtices. Todos nós os temos. A subsistência num domínio é livrar-se do peso e do comprometimento com seu vórtice. É tender a um peso nulo, à gravidade zero, à rarefação atmosférica. Ela possibilita a fuga, a margem, mas não é suficiente para tal. É preciso efetivar a energia e a mobilidade que ela potencializa. Criar rotas de enfeixamento para suas ondas perdidas no sistema e encaminhá-las ao fora sistêmico, à atmosfera. Ligá-las à tradição dos bruxos (restos, mais valia negativa), compondo estas rotas com os fios restantes de outras fugas sistematizadas pelos agentes. Deleuze chama isso de fazer rizoma ou construir uma máquina de guerra, um corpo sem órgãos. É a construção/contração da margem. Normalmente tendemos desejar o conforto em vários domínios, nos deixar estar neles com conforto e, se possível, com sua mais valia. Pois o conforto é a satisfação das necessidades do organismo. Mas isto não é uma lei natural. Pois o organismo humano e suas necessidades não são ‘naturais’, mas construídos. Criam-se faltas a serem preenchidas, atulhadas de conforto. As necessidades são como pontos de referência estabelecidos na rarefação atmosférica, nas quais o conforto vai ser depositado, adensando o ar. São olhos de vórtices vazios a espera de gravidade. Todos precisam comer, mas comer assim e assado (confortavelmente) é uma necessidade criada culturalmente, como nos mostram os antropólogos. Por isto a ética da subsistência não é o ascetismo, a não do ponto de vista sistêmico. Ela é um ataque às necessidades sistêmicas, aos olhos de vórtices consagrados. A ética da subsistência, de um ponto de vista atmosférico, ao invés de ascetismo é um desregramento, uma alegria, uma consagração da leveza, da superficialidade e da rarefação. É a mais impiedosa crítica ao poder, com suas profundidade e gravidade pomposas, pois desmancha a sua base de ação: a necessidade de conforto. É uma ética que se constitui como absorção sem limites dos vazamentos da mais valia sistêmica e da mais valia negativa da tradição dos bruxos. Mas esta absorção que energiza duplamente o desconforme (duplo vampiro) é toda gasta em sua trajetória de fuga (vampirização inversa, o vampiro se esgota). A possessão dos bruxos é muito cara e o desconforme nada economiza em sua luxúria. Ao fim da fuga sobrará a ele uma mínima energia de subsistência. Ou nem isso, e aí pode ser a morte, a loucura, os trapos. É um risco.
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A fuga é um desgoverno dos sistemas, sociais, subjetivos, textuais... Por isto é um perigo ao sistema. Consideremos um indivíduo. Ele é agente no campo textual e um demarcado em outros campos de sua vida. Como agente, é um professor de literatura muito burguês. De repente, pode se transmutar de agente em desconforme textual, se alastrar em atmosferas neste campo. Ele pode se manter demarcado nos outros domínios de sua vida, mas eles nunca mais serão os mesmos depois daquela desconformidade localizada, pois estes outros domínios irão sofrer o impacto das ondas de fuga provocadas no campo textual. Suas demarcações ficarão mais frágeis, intoxicadas pela peste que vaza por suas fronteiras. Muitas vezes ele será obrigado a reconstruir todos os vórtices, eliminar alguns ou muitos. Não será mais o mesmo sujeito, o mesmo sujeitado. É como uma morte. E um renascer. Ele pode se tornar atmosférico, tender infinitamente ao desconforme em muitos domínios (amor, posses, poder...), quase deixando de ser uma individualidade e se verter em pura atmosfera, ambiência. Ou apenas tender gradativamente, ou de modo tênue. São muitas as possibilidades. Tantas quanto sejam as individualidades. 29/12/05
103. Já falamos de atmosferas textuais clássicas, quando tratávamos de textos críticos. Cândido, Bosi, Paz. Eles traçam seus textos a partir de um ou vários sistemas (igrejas) que vão desvirtuar, mas o pano de fundo sistêmico é visível nos seus textos. Para Barthes, estas são textualidades clássicas (texto clássico), nas quais há o desejo de limitação das possibilidades interpretativas, de seu plural, de suas verdades. Os textos que não desejam o freio de suas verdades, Barthes chama de modernos. São atmosferas textuais nas quais a construção/contração de margem quase não carrega a memória de um vórtice. Pouco lembram dos sistemas de que se utilizaram para vazar. Manoel de Barros faz isto muito bem com sua poética dos deslimites, ínfimos, limos e animalidades a serem contraídos/tendidos pelo homem. Gullar faz isto no Poema Sujo com as velocidades variadas, simultâneas e heterogêneas de uma cidade-homem. Leminski o faz no Metaformose com sua proliferação descentrada e incontrolável de fábulas. Mais que um sistema textual que se distorce em atmosfera, mais que traição a igrejas, são texto-atmosferas sem pano de fundo sistêmico. Textoosferas. Alguns chamam estes textos de pós-modernos. Mas desconfio que por trás do pós-moderno há olhos de vórtices muito contemporâneos. Uma gravidade insuspeitada com desejo de absorver as
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fugas desconformes sem deixar restos (mais valia negativa), engolindo todo escape no seu vórtice. Algo como uma divisão de poder entre as minorias, (e o desconforme é sempre uma minoria). A criação de uma necessidade de conforto sob medida para o desconforme. Um pacto diabólico sagrado e não mais mágico. Uma transformação dos enxames de bruxos em fantasmagoria estatística. Uma tentativa sistêmica muito ousada, a mais atmosférica que já se tentou. Muito porosa, mas também muito vigiada em cada porosidade – blindada. Mas, como toda blindagem, não deixa de ter seus vazamentos e infiltrações. É por aí que os desconformes espreitam e os bruxos infestam. E os demônios proliferam. Os pós-modernos e seu politicamente correto de afirmação das minorias no jogo democrático. Afirmação correlata à criação de nichos de mercado (negro, feminino, gay e outras sexualidades alternativas, música pesada etc), ao cult e às associações em busca de poder político. Correlata a confortos de minoria. A sistematização funciona por malhas, redes lançadas sobre as fugas com a finalidade de captura e absorção. A institucionalização promovida pelo pós-moderno é o estreitamento das malhas do capitalismo na tentativa de sistematizar a contracultura e suas atmosferas delirantes. Uma tentativa de inverter sua ética de subsistência, transformando pontos de passagem em pontos de abismo. Os pontos de passagem ou enfeixamento de fluxos são balizas provisórias das fugas, turbilhões de confluências para novos empuxos atmosféricos. Ao transformá-los em pontos de abismo, instaura-se olhos de vórtice na atmosfera. Estes olhos são vazios, faltas a serem preenchidas com conforto (ética de acumulação), cujo peso vai abismar o olho em vórtice/sistema. Esquadrinhagem das atmosferas contraculturais, dar densidade e inteligibilidade geral às suas ínfimas ondas, prenhes de alta tensão mágica. 29/12/05 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE
104. Mais que à noção de escritura, de intertexto e às idéias da semiótica e da teoria da recepção, a atmosfera deve muito ao pensamento de Deleuze e Guatarri em Antiédipo e Mil platôs, com suas idéias de codificação, sobrecodificação e descodificação, rizoma, corpo sem órgãos, multiplicidade, esquizoanálise etc. Por que não usá-las então, ao invés de tentar outras coisas? Talvez por não serem usáveis. Tais como a escritura de Barthes, elas não formam uma rede
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conceitual aplicável. Pode-se explorá-las, inspirar-se nelas, deixar-se impregnar e remeter-se a elas, conectar-se enfim. Mas não usá-las como base conceitual, malhas de análise. Não funcionam assim. São atmosferas, fugas do pensamento. Se quisermos sua ajuda para entender os textos, a sociedade, os homens, só podemos consegui-la construindo outras textualidades específicas de fuga que componham com sua mais valia negativa. Construir outro campo de energia que vá interagir com os seus. Usar a escritura ou o rizoma como rede conceitual aplicável seria fazê-los abismar em vórtices, sistematizá-los. Uso provavelmente infecundo para tais idéias. Mas a idéia de atmosfera tem muito a ver com outros textos, menos ‘conceituais’. Além do artigo de Larra, as atmosferas estão presentes no Poema sujo. Gullar não usa este termo nem intenta conceitos no poema, mas sua exploração da cidade-homem é uma fuga atmosférica, uma investigação das circulações, das velocidades, dos limiares atmosféricos. Ao escrever suas ‘lembranças’ e ‘digressões’ sobre São Luiz, Gullar se prolifera em tardes, dias e noites, ruas, vaginas, circulações, velocidades, centros, rios, ventos. A memória se torna uma composição sem estrutura, sem abismos. Espraia-se em conexões desnorteadas, dissemina. As digressões não ajustam o pensamento a vórtices consagrados, mas vai no encalço de funcionamentos específicos e imprevisíveis, caóticos e casuais. Gullar não remete sua percepção mágica da cidade ao mistério nem a profundidades subjetivas ou ontológicas. Ele as enfeixa com balizas provisórias e estranhas num moto contínuo de ritmos e pensamento que dispensa a metáfora e se vale de uma simplicidade vocabular extrema. O poema não tem profundidade nem densidade. É um texto muito cru, mas de uma complexidade assustadora, rarefeita, conectiva, atmosférica. Outro texto atmosférico é Metaformose de Leminski, com sua proliferação de fábulas da mitologia grega recontadas de forma breve e alucinada, resgatando e relançando textualmente para o agora, a vida fervilhante e caótica das histórias em sua mídia original, a oralidade. Acompanha esta rememoração desestruturante (como no Poema sujo) uma reflexão em delírio sobre a natureza das fábulas e sua proliferação descentrada. Campo de magias. O que temos é um fabulário caosférico, em ondas, no qual as fábulas procriam (empestiam) sem freio em meio à carniça de outras fábulas. Elas nascem, vivem, apodrecem, refratam-se, transformam-se incessantemente sem uma lógica geral que consiga agarrar ou nortear estes movimentos. Não há limites precisos entre uma fábula e outra, nem entre as fábulas e a vida dos homens. O fabulário é uma escritura que extrapola o puramente textual e atinge as margens do mundo, da vida humana. A idéia de atmosfera deve muito à de fabulário, a qual Leminski não conceitua nem nomeia (ele
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fala de imaginário), mas explora em sua especificidade absoluta. A atmosfera tende ao fabulário. Prolonga-o e se prolonga nele. Compõe com ele. Fabulosfera. 30/12/05 DA LITTERA
105. Há um público que o escriba busca, maior do que o escasso público real de toda a história do texto criativo. Mas não é o público potencial da literatura. É um público evocado. Deleuze fala de um povo por vir. Trata-se de uma utopia, se desejamos efetuar este público como coletividade a ser atingida. Mas pode ser um povo efetuável aqui agora, se o leitor tende a ele, pois este é um povo de margem, que vai habitar os poros da pessoa. Nos poros o sujeito é um povo. Milhões, zilhões. São os contágios de bruxos caotificando as demarcações e carolices de um leitor. É desse modo que o texto criativo é universal, evocando todo mundo, se perdendo em povo por disseminação. Um texto de criação fecundo não é, numa visada atmosférica, conquistador, mas virulento. Não domina e submete, mas contagia e desfalece o organismo. Textovírus. Estar doente tem suas vantagens. 02/01/06
106. Como seria bom não ter que falar mais da littera. Enterrar o assunto com a falecida. Mas se ela morreu, o sobre ela não. E como é bom falar dela sem peias nem cuidados, sem teorias nem responsabilidades, cheirar, lamber, deitar e rolar na sua carniça como um cão apaixonado! Ah! amada apodrecida dos meus fados e enfados! Por onde me deleito apócrifo, necrófilo. Como é bom rir dos que te embalsamam e te amam incorpórea, marmórea ou concretada. Eu te quero excretada dos vermes que te amaram vorazmente, purulenta, sem bolor e pestilenta, tanto amor! Ah! minha littera cediça, minha doce carniça, meu alimento e meu alento!
A literatura em seu aspecto institucional se constituía como uma tradição/sistema apoiada em três pilares: escritores, linguagem estética e público leitor, como nos ensina Candido.
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Internamente este sistema se hierarquiza numa pirâmide, na base da qual se encontra o público leitor não especializado (ignaros). Acima dessa base se assenta, em seu extrato mediano, os diluidores/epígonos, aprendizes e comentadores (críticos e teóricos) literários, serviçais humildes da littera. No topo da pirâmide estão os seus sumos sacerdotes, porta vozes do centro, mestres e inventores, homens iluminados e eternos. Pound nos deu a imagem clara e precisa desta pirâmide (é claro que, para ele, esta imagem tinha força de verdade). Quanto às linguagens literárias ou estéticas, a littera tinha outra forma de organização, em igrejas ou períodos. Desde o renascimento estas igrejas se sucediam no tempo, como períodos literários. Um período é uma estética dominante de uma época: classicismo, barroco, neoclassicismo, romantismo, parnaso, simbolismo. É, além disso, a consciência teórica de um certo número de características que vão nortear a recepção do passado e a construção do presente literários. Até o final do século XIX estes períodos são, apesar de suas diferenças, comprometidos com o profundo: do ser ou do sujeito, ontológicos ou psicológicos. A partir daí as igrejas vão se multiplicar e se engalfinhar: prenúncio do apocalipse (ismos proliferam). Mas podemos agrupálas em duas dissidências principais: construção e engajamento. Da unidade da igreja (católica) profunda vão brotar os cismas construtor e engajado, congregando, cada um, vários ismos e grupos. Esta operação grosseira de agrupamento (congregação) é possível porque os ismos, tais como os períodos, são subsistemas que se identificam por dualidades. E dualidades são sempre agrupáveis num nível superior, são arbóreas. Norton Frye fez uma primorosa anatomia do barroco opondo-o, por meio de dualismos, ao classicismo (e chegou a um grande grupamento dual, espírito clássico e barroco nos quais se encaixariam todas as estéticas literárias). Não é descabido nem reducionista este tipo de operação teórica, pois as igrejas e os períodos afirmam sua identidade e diferença por meio de pares conceituais. Mapear os dualismos de uma igreja ou período literários não é descobrir sua verdade estética (a qual é uma falácia), mas entender o seu funcionamento estético-institucional. É entender os cercos sistêmicos que se impõem aos escritores e leitores de uma época ou igreja literárias. Trata-se de compreender o desejo de estrutura de cada subsistema e o que é necessário para explorar as possibilidades de fuga que oferecem. (Os bruxos vêem vórtices. São flores florindo fugas interditadas. Bruxos se mesclam em polens. Porosos poluem os vórtices. Fecundam. Frutos do interdito brotam por todos os poros. Abundam. Vazam, infiltram, escorrem por fissuras liminares. Babas frutíferas, enxame de bruxos, desconformes desnorteados, no mesmo transe, na mesma transa, no mesmo turbilhão floral). Mas além de se constituir como instituição com escritores, linguagem e leitores; de se hierarquizar em pirâmide e se ordenar por dualidades, a littera instaurou um espaço de reação na e contra a sociedade. Um espaço nostálgico ou utópico, reacionário ou revolucionário. Um
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espaço de crítica e resistência. Uma montanha a ser duramente escalada por leitores e escritores, mas em cujo cume se respirava um ar mais puro e se via mais longe. O cume do nobre vaidoso, mas também do guerreio generoso. É por isto que a literatura é um dever ser, um custo ao leitor, uma exigente disciplina que sempre foi para poucos. Às suas terras é duro de se chegar e se manter. Não é que a littera não proporcione prazer, mas ele deve ser buscado e cultivado com perseverança e coragem. O vórtice literário como enobrecedor se liga aos sistemas de conforto de uma sociedade. Mas como espaço de resistência ele abre possibilidades à ética de subsistência e seus trabalhos de perversão sistêmica, de margem. Mas constantemente este trabalho de margem do desconforme é sistematizado pelo agente. E ambos podem ser a mesma pessoa, como Machado. Ou os agentes são os chamados epígonos/dilutors que vão requentar a obra dos mestres e inventors. O espaço de resistência literária é tecido pela postura crítica diante da sociedade. A crítica intervém como a negação da ordem social. Demolição impiedosa. A partir da negação crítica que tece o espaço de resistência é possível instaurar, concomitantemente ou posteriormente à resistência, um espaço afirmativo, o qual se desenha como nostálgico ou utópico. Muitas vezes este espaço afirmativo é instaurado menos pela obra do que por sua interpretação (mesmo que o comentário seja do próprio autor), agregando totalidades a ela. Pelo fato de os profundos procurarem os primórdios, o seu espaço afirmativo costuma ser nostálgico, reacionário. Já o dos engajados e constructors, comprometidos respectivamente com mudanças sociais e inovações de linguagem, é utópico, revolucionário. Os espaços afirmativos são universais e vagos, pois se tratam de mundos almejados para todos os homens, mas sem um discernimento claro de como estes mundos se organizariam. Este caráter universal e vago dos mundos almejados (povo por vir) é uma faca de dois gumes. Por um lado é um convite à atmosfera que o texto literário faz e a interpretação desenvolve. São os delírios enfeixados no autor se transmutando em coletividade, evocando o povo por vir das margens, contagiando todo o campo de magias. É a ética de subsistência da textoosfera, roçando a margem. A fuga do sistema literário e dos outros sistemas sociais. Por outro lado o universal pode se converter em totalitário, a vagueza ganhar precisão catecista e o povo por vir se encarnar no público potencial (mundo dos ignaros) a ser iluminado, a ser atormentado pelo dever ser da littera. Temos a instauração dos sistemas, das igrejinhas literárias.
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É o recrudescimento sistêmico, a força do vórtice literário se atulhando em conforto. E solidariamente com a força de outros vórtices, pois a literatura e sua sistematização rígida é uma aliada da pátria, dos bons costumes (puritanos ou liberais), da família, das tradições sociais, da boa educação e dos negócios. São sistemas que cantam juntos no coro capitalista. Tens razão, meu caro Deleuze, os vórtices ressoam. As fugas do vórtice literário são a dissonância no coro. A arritmia equivocada. A caoesfera evocada pelos escritores. Hoje, o coro dos vórtices não cessou, apenas a literatura se tornou irrelevante como vórtice. Os sistemas da mídia audiovisual tomaram-lhe a voz e o lugar. O campo do texto escrito talvez tenha se sistematizado novamente, mas nada que se compare à grandiosidade do antigo sistema literário com sua ambição de tornar toda a população leitora das grandes obras (do cânone), de representar uma nação e, em última instância, de atingir e fazerem convergir o universal do humano e do sagrado. Este campo se compõe agora de sistemas/igrejinhas frágeis, dispersas, seitas de iniciados e sem fiéis. Muitas vezes há nele agregados textuais boiando desgarrados de qualquer igrejinha, as quais não têm mais força para sistematizá-las: a obra de Manoel de Barros, por exemplo. Agentes e desconformes perambulam entre estas igrejas e agregados. Os primeiros procuram oportunidades de absorver e sistematizar a criatividade textual, muitas vezes em campos estranhos ao do texto criativo, como cinema comercial, publicidade, mídias de notícias e formação de recursos humanos das empresas. Já os desconformes evocam bruxos nestas ruínas. Transbordam em fugas. Os pequenos vórtices (igrejinhas) literários de agora quase não ressoam a ponto de podermos falar num sistema literário maior que os congregue. A coisa do texto está mais para atmosfera que para vórtices. 02/01/06
107. A diluição e a epigonia, no caso literário, são as sistematizações? Sim e não. Sim porque é uma forma do sistema absorver em seu bojo, por meio do alargamento de seus limites, os trabalhos imprevisíveis das margens. Como os dilutors e epígonos, os agentes, com suas sistematizações, vão rotinizar as invenções ou a originalidade dos grandes. Mas este é um ponto de vista sistêmico, de quem olha a coisa do meio do vórtice.
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Uma visada atmosférica não vai colocar os desconformes num patamar superior ao dos agentes e nem ao dos demarcados. A sistematização das fugas, do ponto de vista do desconforme, é indesejada, mas não significa uma inferioridade em termos absolutos. Dessa mesma sistematização podem brotar outras margens, às vezes a partir de um demarcado ou agente, dos quais se esperava apenas a adequação. A visada atmosférica é da ordem da imprevisibilidade dos ínfimos limiares e não a da probabilidade estatística dos movimentos de conjunto. Ela é emaranhada e não piramidal, abismal ou cêntrica. 02/01/06
108. PROGRAMA PARA A NECESSIDADE Nem sei mais o que escrevi a quatro, cinco dias atrás. Ou melhor, só o sei como vibração, magma fervilhante (magmória) sem contornos precisos, como se todas as explorações anteriores fossem mergulhadas em turbulências turvadoras. O bom disso é que recuperar estas memórias turvas implica em construí-las outra vez, relançá-las em devir ao invés de enquadrar as novas percepções em sistemas conceituais pré-estabelecidos. Usar a magmória para entender novos eventos é puxar suas felpas, construindo outras explorações para cada evento. Derivar a memória continuamente. Este diário é uma corrida, um exercício mental. Os médicos dizem que exercícios ajudam liberar toxinas do corpo. As idéias são toxinas neurais. Preciso excretá-las. Sinto-me mais saudável, menos rabugento. Antes, por exemplo, não conseguia ler o Alexei Bueno e quase nenhum profundo. Estava um pouco atraído pelo catecismo constructor. Ainda não acho bom o Alexei, mas consigo me deleitar com alguns de seus trechos. Voltei a amar Jorge de Lima sem precisar do catecismo profundo. Continuo a gostar de Augusto, Gullar e Leminski. Descubro Torquato e Chacal. Creio que amo agora pelas margens, não pelos vórtices. Destes, não preciso mais. E amo textos oriundos de vários vórtices sem ser eclético, pois a impregnação por limiares de fuga come o tecido pelas beiradas, prolonga felpas variadas, não se trata de encaixes. O encaixamento simultâneo em vários subsistemas concorrentes é que constitui o ecletismo. Ao invés disso, distorcer os vórtices pelas felpas é a possessão, deixar-se vazar em bruxos.
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Será que este diário vai ser fecundo para alguém além de mim? Quem vai saber? É uma expulsão de toxinas, uma doação de excreções. Uma caridade e uma morte Wilton Caridoso Mor(t)e-ira. Uma vida após a morte, com mais saúde, talvez até sem textos. Não deve ser uma vaidade, uma busca de reconhecimento, embora todos nos deleitemos com o conforto da glória. Não devo me preocupar com o desejo de glória. Mesmo que seja acometido por ele, não vale nada para ninguém e o melhor a fazer é dar de costas e continuar a vida. Mandá-lo pastar. Mesmo que venha a glória e o reconhecimento e o eu se tornar vaidoso, dar de costas. O que é Homero senão um nome? É a eternidade de uma pessoa? Que pessoa? É só um signo que vibra. Vibra em ondas. Os mortos estão libertos de toda vaidade, de todo eterno. Até mesmo os textos, apesar de sua estática sistêmica, não são controláveis em suas mutações irrefreáveis. Um homem não perdura num texto, mas muda nele, com ele, continuamente e sem controle, à sua revelia, ao sabor das ondas. Não será nunca o mesmo homem-texto a cada leitura. Por isto são atmosferas os textos, ondas de ar, de mar e magma contra as ondas, hordas, bordas humanas em miríades. Imbricação sem fim de atmosferas, emaranhado inextricável de textos, homens, coisas, mundos. Caosfera. Ah! bruxos do precário. 03/01/06 DAS AMOSFERAS
109. CRÍTICA DESCONFORME Não me levem à sério (leminski). Nem aos tipos atmosféricos. Eles são intercambiáveis. As pessoas possuem vários em muitos de seus campos de vida. Às vezes num mesmo campo se é agente e desconforme, ora sobressaindo um, ora outro tipo. Os próprios campos de vida de uma pessoa não têm fronteiras rígidas (as pessoas entre si não as têm). O campo textual mistura-se com o científico, o da vida diária, o do trabalho... Campos são zonas atmosféricas. Pessoas também.
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Além disso, os tipos variam num continuum, são graus de temperatura e densidade, como intui Larra. No limite não há tipos, nem campos, nem pessoas, apenas, propagação aleatória de ondas, circulações energéticas (Poema sujo), proliferação em tecidos decompostos (Metaformose), decomposição ecossistêmica (Gramática expositiva do chão). O(L) FATO DOS BRUXOS Numa caosfera há zonas (mil zonas, rizomas), estados mais ou menos densos, tensos, quentes, claros... Infinitas escalas de graus infinitos. Nenhuma delas traduzível por qualquer outra, mas interagindo umas com as outras como campos de energias plurais. Heterogeneidade reagente. Fios de energia emaranhados. Fios de memória enlouquecida. Fios desmeados, sem fim, sem nós nas pontas, entremeios de nós embaraçados enfeixando outros fios variados, avariados. Avarias, variâncias, errâncias, acasos, delírios, desnorteios, vazamentos. Caosão caosférica. CRÍTICA DESCONFORME Tipos, campos, pessoas são microvórtices para este caso específico de texto (com texto). Para um uso eventual. A única certeza é o eventual. 06/01/05
110. Cagaste na borda dos vórtices, nas hastes sistemáticas. Vômito, escarro, baba e mijo, porra e pus, lágrima, suor. Toda a excrescência lançada nos cortes sistêmicos, na assepsia dos agentes, na hóstia dos carolas.
Sistema e vórtice são diferentes. Ambos tragam e sufocam, mas se você vive um vórtice é uma coisa, se vive um sistema é outra. Os vórtices são percepções de atmosfera. Já os sistemas são visadas sistêmicas, auto-referentes. Um vórtice é poroso, nebuloso e distorcido. Um sistema é blindado, definido e certo. É a mesma turbulência atmosférica, mas não é a mesma. Pois ela só é (só se efetua) à medida em que você e suas atmosferas reagem com ela (coma a leitura efetua a obra). Por isto ela varia de acordo com a interação, com a abordagem, que pode ser pelas bordas (de margem, resultando em vórtices) ou pelo centro (sistêmica, resultando em sistemas). Pois as zonas atmosféricas (suas turbulências) são um objeto interativo, um encontro de ondas. Só na
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medida em que uma onda se acha num desses encontros é que há efetivamente, para ela, a turbulência que, de acordo com a natureza do encontro, será um vórtice ou um sistema. Não devemos confundir objeto interativo ou encontro de ondas com percepção subjetiva. Nem subjetividade com onda. Pois as próprias pessoas são ondulações enfeixadas, turbulências passíveis de serem vividas como vórtice ou sistema (subjetividade). E cada ondulação se compõe, por sua vez, de mais ondulações. Não que ela contenha estas ondulações, não são sub-ondulações (ou só o são por uma visada sistêmica), não se trata de continente e conteúdo, macro e micro, mas de intersecção parcial de feixes de ondas heterogêneos. Uma onda/ondulação é um feixe de intersecções infinitas. Não há ondas e suas sub-ondulações, mas zonas de ondulação recortadas assim ou assado. Maiores ou menores, por esquadrinhagem ou turbilhonagem, por uns critérios ou por outros... Se nos descuidamos demais nas margens não veremos (viveremos) sistemas nem vórtices. Nem mesmo turbulências. Só ondas selvagens se entrecruzando. Só bruxos habitam as margens. Só eles suportam a ondulação absoluta. Cuidado. Pra não ficar boiando. 06/01/05
111. Vórtice e sistema, sistema e atmosfera, atmosfera e vórtice, margem e atmosfera, fugir e sistematizar, profundos e construtores, profundos e engajados, construtores e engajados são dualidades. Demarcados e agentes, agentes e desconformes, desconformes e bruxos são gradações duais. Eu vivo por dualidades. E meto o pau no dual. Não quero criar dualismos, mas disse-miná-los e distorcê-los. Barro cósmico, barro gósmico. Rouco, rococó, rocio louco. Barroco? Não, que esse troço rótulo barroco, pós-tal, neobarroco não é rota, é catecismo constructor cheio de não me toque um bolero que eu quero é um pós-lero (ou um neo-lero). O pósneo, uma bobagem. O bom da margem são os pós da buceta que cheiro empandorado, adorada pandemia de pares. Um caipira cheirando a buceta da vida. Os oxímoros e desconchavos barrocos e os acasos desembestados que os constructors tanto evocam não se evolam nem se ar-riscam. Enovelam-se em vórtices confortáveis de rigor de
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linguagem. Abismo sistêmico dos carolas concêntricos, concentrados, estruturados. Aprendendo em coro a evitar um mau agouro qualquer e vital e viral do agora bruxuleante. (Podiam deixar um bruxo pingar um pingo de baba na sua estrutura. Estonteio.) Bruxos apavoram carolas. 06/01/05 DO CAPITALISMO
112. Baudelaire ficaria mais tonto do que já era se visse o mundo inteiro desejando as galerias de Paris. Se as visse espalhar pelas grandes cidades, fervilhando. Os shoppings são o paraíso da classe média e o desejo dos pobres que, muitas vezes, vestem sua melhor roupa para freqüentálos. Outras vezes são construídas versões mais populares nas periferias, menos fashion, mas com o indispensável ar condicionado e os banheiros relativamente limpos. Aí, os pobres nem precisam se vestir tão bem. Sentar num café do shopping lotado e abrir os sentidos, principalmente os ouvidos, ao burburinho é estar em meio à massa, à geléia geral de Torquato. Perder-se em meio ao farfalhar estonteante de pessoas, limpas, bem vestidas, misturando todos os estilos da moda, do hippie bem comportado ao executivo, sulcando o espaço em vários sentidos, esfuziantes. Vozes, vestígios de vozes vindos de todas as direções, como se o eu fosse um esquizo em meio ao turbilhão dilacerante, delirante. É quase um êxtase deixar-se estar num café, estático. São ondas, ondas humanas, hordas da classe média risonha. Toda a cidade, todo o país, todo o mundo ali, numa comunhão multiétnica, multicultural de humanos. O shopping é global. Todos o querem. Assim que podem as pessoas vão a ele, as cidades os constroem. E é sempre o mesmo mercado em qualquer lugar que se vá, a mesma assepsia, o mesmo ar condicionado, os mesmos funcionários limpos, uniformizados e bem educados. É uma franquia capitalista que uma comunidade compra, uma porta de acesso ao desenvolvimento, um lugar para se praticar a boa educação, a cidadania plena. Um mercado educado, brilhoso, muitas vezes estonteante e labiríntico em suas múltiplas entradas e profusão de lojas e corredores luminosos. A luz
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combinada com as superfícies lisas e impecavelmente limpas das vitrines, pisos e tetos é fundamental para a clareza perturbadora deste ambiente. No shopping sentimos as massas humanas pulsar em ondas. Seria o espaço-atmosfera do capitalismo? Sim, há uma tentativa de atmosfera no shopping, tal como no pós-moderno. Mas modulada até o último milímetro pelo capital. É aí que vemos como o capitalismo é bom com as ondas. Os antigos impérios mantinham as ondas humanas fora dos seus limites territoriais como bestas bárbaras ou dentro de seus limites, mas longe da classe dirigente, como povo, a pão e circo, ferro e fogo, Roma. O capitalismo não se importa em manter estes foras massivos. Mas também acha interessante incluir em seu bojo flexível as suas periferias, sem deixar que percam o movimento ondulatório. Roberto Piva diz que gostaria de ver retornar um regime imperial à antiga para que os nobres, envolvidos com os jogos de poder, deixassem o povo em paz, massa virgem. Ele sabe que não é mais possível. Se ainda existem massas fora do capitalismo, os africanos, os mulçumanos, os bolsões latino-americanos, indianos e chineses, elas só existem como possibilidade de alargamento capitalista, de sua mobilidade. Como oportunidade de transformar a massa selvagem que se encontra fora em massa interna civilizada, com poder de consumo, ávida de conforto: democracia, cidadania, desenvolvimento, crescimento. Integrar o fora num grande shopping e num imenso parque temático irmanados. Gráficos, cifras, estatísticas, pesquisas, banco de dados mapeando o ínfimo movimento das ondas, captando e respondendo a seus desejos instantaneamente, copular e modular as ondas. O capitalismo não precisa explorar os miseráveis para manter os ricos. Ele precisa da miséria como horizonte de expansão, como fronteira explosiva, velho oeste sem lei, terra cri(se)ativa para os exploradores e aventureiros. Eliminar os índios resistentes, absorver os adaptáveis. Onde havia impérios ou colônias é mais fácil, pois há costumes institucionais, disciplina imperial. Onde havia tribos é mais difícil. Neste caso a eliminação (América) ou o abandono (África) depois da espoliação é o mais indicado. Abandono até que surja um jeito de modular as massas ex-tribais. Quem sabe transformar a África num imenso parque temático com seus seres curiosos? Flora, fauna, culturas. Indústria do turismo. uma espécie de transe preciso em meio a música e luz o piso quadriculado e elas passando medidas desmedidas comedidas o shopping muito lotado o ruído o ar condicionado prolonga o ambiente do carro 116
isopores concreto armado crianças guardas armados cisnes cines e sonhos a música anda a meu lado nado fascinado em transe probabilizado 09/01/05
113. Alguns dizem que o capitalismo é reacionário e puritano (USA). Sem dúvida, a moral protestante do trabalho vai bem com o capital, como observou Weber. Mas os puritanos se queixam da mercantilização da fé e do espaço cada vez maior que a pornografia e os ‘des-viados sexuais’ ocupam na civilização democrática. E o capitalismo também vai muito bem com a pornografia e as minorias sexuais. E muito bem com os negros, mulheres e árabes. O capitalismo copula bem com todas as ondas. Ainda não apareceu nenhuma que ele não possa modular – vibrar na mesma freqüência. Talvez a das drogas, mas mesmo esta se converte num lucrativo mercado negro e num modo de vida underground que oferece algum conforto, mas também uma oportunidade de fuga absoluta. É claro que o preço desta fuga é, muitas vezes, a (auto)destruição: o viciado e sua fuga alucinada, sem volta, mortal para ele e para os que o amam, o drogado demonizado. O que faz o capitalismo ser tão adaptável é sua ausência de vórtice principal (de princípios). Ele gosta de vórtices e incentiva sua profusão pelo campo de atmosferas, mas relativiza todos eles, usa-os como mapeadores provisórios e não como referência inconteste. Sujeitos, estados, culturas, identidades de grupos, associações, religiões proliferam lançando suas redes sobre as ondas da caosfera, mas nunca a ponto de se criar sistemas que contraporiam de forma muito rígida um dentro estrutural a um fora ondulatório. Mesmo que os sistemas se definam por uma teoria da rigidez (seitas, sociedades secretas, grupo de especialistas), eles estão imersos num sistema maior, aberto, porificador. O capitalismo porifica os sistemas que o compõe, obliterando toda impermeabilização de limites e enfraquecendo os centros. Por estes poros os sistemas sugam e sangram, trocam, ondulam-se no movimento geral e modulado do capital. Os impérios desejaram domar toda a caosfera a partir de um centro expansivo que sistematizaria cada palmo conquistado ou anexado. Mapeamento geométrico. O capitalismo também deseja a caosfera. Mas não quer domá-la ou fazê-la dobrar ao capricho de um vórtice, mas disseminar uma modulação a-centrada, dobrando-se com suas ondas. Mapeamento factral. É mais poderoso, mais
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palmo a palmo e milimétrico do que nenhum império jamais imaginou. Não deixar massa alguma de fora. Não há besta bárbara indomável. Por isto os impérios esboroam, por ter limites de identidade, fatores de estruturação que, uma vez violados, solapam seu centro. O cristianismo esfacelando a ordem pagã, a barbárie se infiltrando pelas fronteiras. De dentro pra fora e de fora pra dentro Roma rui aos poucos. O paganismo e a aristocracia eram os limites do Império, princípios fortes sem os quais não haveria mais Roma. No capitalismo o rompimento dos limites é, ao contrário, desejado. Pois gera crises, novos horizontes de modulação. O princípio da porosidade capitalista é exatamente provocar rompimentos constante nos vórtices, fazendo-os esboroar ou mudar de prumo, desviar-se de seus princípios de identidade anteriores. Mudança de paradigmas. O capitalismo não esboroa, ele funciona por esboroamento. 10/01/06
114. Os agentes são os encarregados de esboroar os vórtices e modular as ondas. Na verdade, quem esboroa são os desconformes (são os reais agentes de fuga) que serão perseguidos pelos agentes e terão sua fuga sistematizada ao modo capitalista, ou seja, modulada. Os desconformes normalmente são uns inúteis para o mercado, costumam ser distraídos, preguiçosos e quando fazem algo se esgotam demais em tarefas pouco produtivas, lunáticas. Mas os agentes mantêm sobre eles uma estrita vigilância, pois sabem que são vitais para o capitalismo. É na rota de suas fugas despropositadas e desconfortáveis que a caosfera não modulada vai se abrir ao capitalismo. E é por estes vazamentos destrutivos que os agentes vão reconstruir uma nova modulação e um novo cinturão de vórtices. É porque os desconformes operam diretamente com o desejo (de fuga) das massas que eles são tão importantes para o capitalismo. Eles captam, raptam e proliferam desejos (criam desejos de margem) na massa intra e extra capitalista, traçam uma rota para o desejo selvagem de margem (ética de subsistência) que, depois, vai ser amestrado pelos agentes. Vai ser enovelado em vórtices, compondo todo um sistema de necessidade e satisfação, falta e preenchimento: desejo de conforto (ética de acumulação).
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115. Se os desconformes parassem o capitalismo acabava. Mas eles não param, pois são a própria fuga, o próprio desejo de fuga. Eles só vivem para vazar. Para as margens da caosfera. Aliados e odiados dos agentes, são um risco vital ao capitalismo. Eles sabem que serão sistematizados, que vão possibilitar novas ondas à modulação, novas geléias gerais geradas a partir das atmosferas selvagens do fora absoluto. Seu procedimento não é o de rarefar somente, verter-se em onda, perder-se em ondas (isto seria a morte, a dissipação). Ele se perde traçando uma rota por entre elas, deixando um risco, um rastro de veneno. Um risco tão negro que chega a luzir, tão rarefeito e tenso, tão intenso que chega a tato e olfato. Um risco-energia entre as ondas, do qual vai sobrar, como resto da sistematização dos agentes, uns ciscos, umas felpas, um ínfimo intrincamento. Energia intermitente das margens. Mais valia negativa. Magia. Bruxos proliferam nesta energia como vermes, usam-na como bucho fecundo e como energia em seus buchos. Energia de possessão. Evocada por desconformes. 10/01/06 DA LITTERA
116. Do público potencial da literatura, ou seja, os que tinham um mínimo de cultura erudita adquirida e eram acossados pelo dever ser literário, quantos realmente liam? O mínimo, a julgar pelos comentadores do passado. Mas havia leitores não especializados. Juízes, políticos, advogados, padres, mocinhas ricas, comerciantes e até alguns pobres que lograram uma boa educação. Para muito poucos a alta literatura era uma coisa vital, sem à qual não se podia viver. No entanto, é através destes poucos que a maioria do público potencial (os não leitores) sentia o peso do dever ser literário. Hoje o texto criativo não impõe mais nenhum dever ser, a não ser as cobranças escolares e vestibulares pelas leituras literárias. E quando as exigências se institucionalizam apenas de modo estrito (nas escolas) e não são mais disseminadas por toda a sociedade, é sinal de que o saber exigido perdeu sua força vital. É provável que a proporção de leitores reais, em relação à população, por conta da maior alfabetização, nem tenha diminuído, ou tenha sido pouco reduzida. Mas a littera, como referência em fábulas e cantos e como saber enobrecedor, essa acabou, 119
definitivamente. O seu raio de ação reduz-se a áreas especializadas em textos ou artes. A leitores interessados, por assim dizer. O que conta, neste caso, não é a quantidade absoluta ou proporcional de leitores. Ambas sempre foram muito reduzidas. É só farejar o presente e o passado para constatar este fato. O que conta é como estes leitores eram posicionados socialmente. Antes, eram depositários de um saber privilegiado que todos deviam buscar. Agora são apenas especialistas de um ramo específico que gostam, mas também necessitam do texto criativo para o exercício do seu ofício (intelectuais ou artistas). Ninguém mais sente a obrigação de se espelhar neles, não são mais “homens exemplares”. É provável que muitos escolheram o ofício por gostarem do texto criativo, para se refugiarem numa profissão sem precisar abrir mão da leitura (professores de literatura, jornalistas culturais).
Em todo o caso, os leitores reais do passado não eram movidos pelo dever ser, mesmo que fossem seus pregadores. Do mesmo modo os leitores de hoje, mesmo afirmando desesperadamente ao público a necessidade de se ler (curiosamente, a tática é despertar o prazer da leitura na infância, induzir o prazer para cumprir o dever), não lêem por conta de seu dever. Antes e agora os que lêem a chamada alta literatura, atravessando os seus percalços e dificuldades (ela sempre foi dura para com os leitores), movem-se por um desejar ir. São fujões, desconformes enquanto lêem, aventureiros das margens. Depois (ou ao mesmo tempo), do alto de seu saber, até agem como agentes revestidos de nobreza e da missão de difundir a literatura aos ignaros, ao público potencial que resiste a ela. Ora, desconformes são sempre minoria e os leitores de ontem que consideravam a littera vital para eles eram desconformes (ou agentes próximos ao desconformes e seu desejar ir, prontos a se tornar um deles), assim como os de hoje. Por ser raro, o desconforme não é melhor ou iluminado. Apenas ele gosta do risco das margens, de testar a rigidez dos vórtices. Como agente uma pessoa pode até viver a função enobrecedora da littera, mas como desconforme ele vai vivenciar sua função crítica, que vai impulsioná-lo para fora dos vórtices. Viagem de margem, desejar ir. Muito poucos desejam ir, antes e agora. É um desejo contra o ser. Mesmo que a literatura lida seja a profunda, o desejo do leitor (e do escritor) exigente é sempre pela passagem, pelos limiares, insaciável. A maioria quer o conforto do ser, estar demarcado próximo do vórtice, em segurança. No máximo, ser agente. Desejar ir é perigoso, incerto. Mas não é superior nem enobrecedor. Superioridade e enobrecimento são valorações hierárquicas de ordem sistêmica,
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sistematizações de fugas, coisa de agentes transmutando o desejar ir em dever ser, afirmando autoridade sistêmica onde só havia evasão atmosférica. 12/01/06
117. Desejar ir é um despojar-se de si. Abster-se de alma e conforto. É a própria subsistência em ato. Um encadeamento perpétuo de porquês e comos. Uma curiosidade infantil, impertinente, que se desprende dos vórtices e vaza em atmosfera. Desejar ir é um frescor mental, a alma tão calma tão nova / tão alva quase não havia / como em menino tudo / era descoberta e magia / tão fresco amanheceu-me o dia. O desconforme é um possesso do desejar ir que extravasa os sistemas e suas normas. O desejar ir é um feitiço bruxo. Ele sobra, extrapola, é um excesso de perturbação provocado pela recusa de conforto. Um descomedimento. É uma irritação dos vórtices que vai se disseminar até as suas bordas em busca de margem, de ar fresco atmosférico. Tudo o que ele faz é partir e continuar a ir, fugir. Tudo o que o querer ser e o dever ser dos demarcados e agentes não querem. O desejar ir vibra, trinca, avaria, contagia. É um delírio sistêmico, uma lucidez atmosférica, uma possessão alucinada. (O agente não quer o desejar ir, a não ser para persegui-lo e domá-lo. Mas o desejo de sistematização, de produção de dever ser e querer ser do agente é cambiante e pode se desdobrar em desejar ir. Ele se sente tentado à aliança com o desconforme e sua fuga, em prolongá-la, em prolongar-se em rastros de fuga. Inversamente, o desconforme sente a tentação de refluir em agente e domesticar a si e sua fuga, a si enquanto fuga. Agente e desconforme têm diferenças efetivas (são pólos objetivos), mas seus limiares se desdobram continuamente uns nos outros e tentam-se reciprocamente. Porosidade da polaridade.) 12/01/06
118. Não é só o leitor e o escritor que desejam ir, mas o próprio texto criativo. Barthes dizia que o texto narrativo clássico tem um plural limitado, ao contrário do moderno, que tende a liberar o plural do texto. Limitar o plural é rebater o desejar ir textual em um ou vários vórtices. Enovelar 121
a linha de fuga e baixar-lhe a tensão. No caso da literatura lírica produzida no período que vai do renascimento ao século XIX, o plural é limitado pela tentativa de rebater o desejar ir da poesia no dever ser do catecismo profundo. Rebatê-lo em pontos de abismo subjetivo ou ontológico, os quais resguardariam, em seu fundo, a verdade, o universal, a unidade e a totalidade do texto, do homem e do mundo. Por isto, independente de período ou escola, nesta poesia sempre se perceberá a presença (como nostalgia/lamento, vivência/celebração ou utopia/evocação) do metafórico, da analogia, do sagrado, do circular e do abismal. Universo fechado e perfeito. Paraíso do ser, do sujeito. Mas a lírica escrita (ou lida) sob os rigores dos catecismos engajado e construtor também tenciona rebater o desejar ir da poesia em seus vórtices, no caso, de legibilidade histórica e de estruturalidade da linguagem. Os textos poéticos marginais é que assumem a ética da subsistência e querem vazar completamente por entre os rebatimentos sistêmicos. Desejam ir sem lembrar de vórtices. São, na poesia, os textos modernos de que nos fala Barthes, nos quais o plural tende a (deseja) ser liberado de forma absoluta. 12/01/06 DO CAPITALISMO
119. É muita besteira o que discutem sobre o desenvolvimento. Falam sobre tamanho do estado, excesso de intervencionismo, taxas de juros como se estes fossem pontos relevantes para uma economia nacional se tornar desenvolvida, nos moldes dos países de primeiro mundo. O desenvolvimento é uma situação em que há uma alta renda per capita e uma distribuição de riqueza que permita identificar a maioria da população como classe média, e a maioria absoluta estando acima da linha da miséria (a miséria definida como um extremo desconforto: grau zero da escassez). Para se atingir isso é preciso crescer e distribuir renda. Mais que renda, o que se distribui são necessidades e capacidades relativamente baixas de satisfazê-las. Distribuição de escassez, pois os rendimentos da classe média serão sempre insuficientes para as suas necessidades. A demanda por conforto é maior que sua satisfação.
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Agora, para que haja crescimento e distribuição de escassez é necessário uma disposição do corpo social em se organizar para a disciplina do desenvolvimento. Esta organização envolve o exercício da cidadania, mas também a disciplina da boa educação restrita, oferecida pelas escolas. Formação massiva de um eficiente capital humano. Dessa massa sairão bons agentes e demarcados para o desenvolvimento. Outros fatores são relevantes para o crescimento, tais como o volume da poupança interna e do investimento em relação ao PIB e a produtividade. Mas são fundamentos mais fáceis de se conseguir no médio prazo e que de nada adiantam se não houver a massa bem educada (como técnicos e como cidadãos) para servir de mão de obra qualificada e consumidores exigentes. Esta massa tem que coincidir com toda a população e não apenas se restringir a uma minguada classe média, como ocorre hoje nos países latino-americanos. É por isto que a boa educação escolar, oferecida a todos, é fundamental para o desenvolvimento. Sem ela não há ampliação do número de trabalhadores nem consumidores para a o crescimento e a distribuição da escassez. Então a economia se estagna numa duplicidade típica dos países subdesenvolvidos ou em eterno desenvolvimento: um grande mercado popular, negro, informal, ou de produtos de primeira necessidade, para os pobres e miseráveis; e uma pequena economia de feição desenvolvida, voltada para a minoria da população que compõe a classe média e os ricos. O tamanho do estado e seu grau de intervencionismo, bem como as políticas macroeconômicas são fatores conjunturais que podem, no máximo, retardar ou acelerar o desenvolvimento, de acordo com o ambiente capitalista de cada época e lugar. Há momentos e situações nos quais é positivo para o desenvolvimento que o estado intervenha fortemente em alguns setores, tarife as importações e invista pesado em infraestrutura (estado regulador). Outras vezes não. Estas coisas variam muito com as circunstâncias. É uma questão pragmática de ampliar ou não (e em que grau e a quais áreas) a axiomática do sistema (para usar um termo de Deleuze e Guatari), de saber o quanto e como o vórtice estatal deve, num dado contexto, interagir com o fluxo de capital, para que este se mova mais ou menos fluido, mais ou menos veloz. 13/01/06
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DA CANÇÃO
120. O chamado Rock Brasil da década de 80 foi um movimento rancoroso e, em muitos aspectos, ingênuo. Mas em muitas de suas canções há uma fina percepção (e uma recusa) do padrão de vida desenvolvido como mundo possível que o capitalismo oferecia (e ainda oferece) ao Brasil da abertura política. Como a maioria dos roqueiros eram brancos de classe média, pertencentes, portanto, a um mundo desenvolvido incrustado no subdesenvolvimento brasileiro, eles sabiam bem da rígida disciplina que este mundo exigia de seus sujeitos: Química Legião Urbana Composição: Renato Russo Estou trancado em casa e não posso sair Papai já disse, tenho que passar Nem música eu não posso mais ouvir E assim não posso nem me concentrar Não saco nada de Física Literatura ou Gramática Só gosto de Educação Sexual E eu odeio Química Não posso nem tentar me divertir O tempo inteiro eu tenho que estudar Fico só pensando se vou conseguir Passar na porra do vestibular Não saco nada de Física Literatura ou Gramática Só gosto de Educação Sexual E eu odeio Química Química Química Chegou a nova leva de aprendizes Chegou a vez do nosso ritual E se você quiser entrar na tribo Aqui no nosso Belsen tropical Ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão Ter filho na escola, férias na Europa, conta bancária, comprar feijão Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão Você tem que passar no vestibular Você tem que passar no vestibular Você tem que passar no vestibular Você tem que passar no vestibular
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Não saco nada de física Literatura ou Gramática Só gosto de Educação sexual E eu odeio Química, Química, Química Não saco nada de Física Literatura ou Gramática Só gosto de Educação sexual E eu odeio Química, química, química
Esta letra de canção (não se trata de poema, somente quando acompanhada de sua música/barulho e, principalmente, quando cantada/gritada/rosnada é que podemos sentir sua força estética) se inicia com uma ‘inconseqüente’ rebeldia contra a disciplina dos estudos que tolhe o entretenimento do caprichoso eu lírico juvenil de classe média. Rebeldia que vai se transformar, na sexta estrofe, em crítica à rigorosa disciplina da cidadania e da produtividade, a suas necessidades de conforto e seus deveres. O ritual do vestibular (e da universidade) vai ser, para o sujeito, a passagem da boa educação escolar (aquisitiva) para a boa educação cidadã (produtiva), limiar de uma sujeição para outra. Conexão entre as duas boas educações. (Reconheçamos a habilidade do autor ao tratar do ritual do vestibular e da universidade nas quinta e sétima estrofes, ou seja, antes e depois da estrofe que vai enumerar os confortos e deveres do cidadão do mundo desenvolvido. Vejamos. Na quinta estrofe o vestibular e, por metonímia, a universidade são apontados como rituais de passagem para a conquista da cidadania. Na sexta aparecem, de forma irônica, os benefícios e nobres deveres da condição cidadã. Na sétima estrofe temos, como se fosse um catecismo, a repetição ‘você tem que passar no vestibular’, lembrando ao jovem o sacrifício, ou seja, a dedicação à massacrante boa educação escolar, necessária para se obter as ‘benesses’ da cidadania plena – boa educação ampla.) A letra vincula, em sua crítica, a boa educação restrita (escolar) à ampla (cidadã), apontando a interdependência entre elas na sociedade capitalista do conhecimento. E o eu lírico desconforme rejeita a ambas no mesmo golpe. Odiar química (aos berros) é odiar não só a boa educação escolar, mas toda a boa educação cidadã a ela correlata. Uma rejeição ao desenvolvimento e seus vórtices de conforto e poder capitalista. Os roqueiros de 80 mostraram com clareza o desejo (o projeto) do desenvolvimento, nos moldes das nações de primeiro mundo. E o rejeitaram com ódio e rancor. Não tinham (não conseguiam ver), como alternativa, nenhuma utopia no seu horizonte perceptivo, nenhuma alegria coletiva porvir. 13/01/06
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121. Neste universo perceptivo rancoroso e pessimista, o sexo e as drogas desregrados atuam, simultânea e paradoxalmente, como estimulantes e sedativos (ira e apatia, hiper-atividade e dormência, entusiasmo e tédio, cocaína e heroína), signos de uma paranóia maníaco-depressiva que conduz, às vezes, para a autodestruição. A morte por overdose ou HIV. O desconforme se dissipa. Não apenas os músicos têm problemas. O desconforme que se apossa de jovens não músicos da sociedade capitalista contemporânea também pode rumar à auto-dissipação. O Rock Brasil é uma zona atmosférica de mídia formada de ondas de jovens, tanto produtores quanto consumidores de canções, além das ondas de música e capital midiático. Onda que interage, entre outras coisas, com a desesperança juvenil e o universo das drogas de nossa época. Qualquer um nesta zona atmosférica corre o risco de se desgarrar desenfreado, precipitando-se na doença, no vício irreversível, na morte. As drogas nos rituais tribais são a conexão mágica do espírito com o outro mundo (inconsciente mágico). Na contracultura são o horizonte infinito de novas percepções, novos mundos possíveis e desejados (inconsciente artepolítico). Na desiludida geração pós-contracultural a droga é a porta de um mundo negro e atormentado. Fuga desesperada, com peso na consciência (má consciência), para a doença e a morte. 13/01/06
122. O poema, na sua tradicional feição verbal, canto encarnado na escrita, não é feito pra se dizer em voz alta. No máximo sussurre-o. É através do som que um poema se insinua como coisa, corpo, matéria aérea. Como se pudéssemos, mergulhados na sua matéria sonora, mais que entendê-lo, tocá-lo com a língua e senti-lo nos ouvidos. Barulho, eco, revérbero sonoro. O sentido se coisa no som. O sentido oscila, refrata, rarefaz, desvia-se nas ondas rítmicas do poema, prolifera em outras direções e, principalmente, dimensões inusitadas. Palavra música. O poema é um engenho que maquina uma luxúria sonora. É uma abundância, um excesso descomedido e ritmado de sonoridade. Miríades de felpas de som para se puxar e construir sentidos, suas afecções, sensações, tonalidades, atmosferas, suas dimensões inusitadas enfim. Mas quando se realiza vocalmente um poema, por melhor que seja a interpretação, há um fechamento de suas 126
possibilidades. A execução vocal empobrece o poema, reduz sua abundância, seu desejar ir. Os poemas devem tudo ao som, eles gritam ao leitor do dentro da página branca, mas em silêncio. A exuberância sonora de um poema é toda ela tramada para gritar muda, para se aliar ao silêncio como potência do desejo de som. O silêncio é o horizonte no qual o aparato sonoro do poema se move em turbilhão. Horizonte prenhe de potência. É uma cópula, um emaranhamento amoroso o do som com o silêncio. Não se trata do que não se diz, do tácito e do elíptico, mas da potência de soar do poema em sua porosidade com o silêncio. Apenas deixar o som se insinuar na mente. Som neural. Música silente. Na letra da canção ocorre o contrário. Quase sempre a letra é um péssimo poema. É porque ela não foi concebida para o silêncio. Pelo menos não da maneira que o poema. A letra só chega ao ponto de poesia quando instrumentada e, principalmente, cantada. A execução vocal a enriquece. Ela funciona mais ou menos como o texto teatral e o roteiro cinematográfico que só se realizam como potência estética plena na encenação e filmagem. A voz é que vai proliferar os sentidos da letra. Com seu tom, sua linha melódica, sua oscilação entre música e palavra, canto e fala, ela vai criar, com a ajuda da instrumentação, as atmosferas, as sensações, as afecções do sentido, as suas dimensões inusitadas. Enquanto no poema o som é um pleno mudo, na canção é um pleno vocal e instrumental. 16/01/06
123. Mas a voz que canta a canção não é a da música erudita com seus rigores muito específicos. Um cantor ou cantora populares raras vezes têm talento para o canto erudito. Não por que este exija um talento superior ou seja mais complexo. É apenas uma questão de diferença de exigências. A contrapartida também é verdadeira, dificilmente um cantor erudito se dará bem com canções. Se o canto erudito é considerado maior, é uma questão de prestígio social, por ter sido uma Grande Arte, tal como a Literatura. É o dever ser da ópera ainda ressoando na América, irreversivelmente mestiça e popular em seu cantar, a ‘grandeza’ das artes de Europa. A voz da canção pode até se valer de recursos eruditos, mas ela soa mais informal, menos grandiosa, mais rasteira. É porque ela tem muito de fala, elementos de fala, gírias, sotaques, ironias e até ritmos de fala (atmosfera de fala). As palavras da canção tendem a ser inteligíveis para o ouvinte, o que raramente ocorre no canto erudito, no qual o som palavras se distende até quase a música pura. A palavra na canção oscila entre o canto e a fala, num jogo tenso e sutil. Por
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isto o bom cantor popular não precisa que sua voz seja um quase instrumento, nem que seu talento seja o de manobrar este instrumento com a mesma habilidade dos músicos de uma orquestra (rigor europeu). Ele precisa é saber jogar com o canto e a fala, falar cantado, cantar falando. O que o cantor popular fez com os rigores eruditos do cantar é mais ou menos o que os modernistas fizeram com os rigores eruditos da poesia. Eles afrouxaram as rédeas, aproximaramse dos matizes das falas, ritmos e assuntos cotidianos. Baixaram o tom e deixaram entrar no canto o circunstancial, as miudezas não filosóficas, a filosofia de boteco, as variedades da língua, a musicalidade regional, a conversa fiada da rua, da alcova e da cozinha. Canto coloquial. A diferença é que na poesia modernista a coisa foi feita por eruditos, enquanto que na canção os artistas sempre foram populares. Mais que populares, de mídia. A canção e o rádio estão num mesmo movimento de onda capitalista: indústria cultural. A canção do século XX não é folclórica nem artesanal (embora incorpore o folclore), não é cantada de boca a ouvido para um público restrito e presente. Ela se dá diante de microfones e gravadores, é midiática, industrial, de massa. Talvez o microfone e a sensibilidade cada vez maior dos meios técnicos de captação e gravação sonoras tenham permitido ao canto a sua aproximação com a fala e os sussurros, além do aparecimento de cantores incomuns, sem impostação ou força na voz, muitas vezes portadores de exóticas musicalidades regionais, folclóricas, incorporadas na canção. O fato é que esta nova situação do canto e da música apresentou para os artistas um novo campo de atuação, tão complexo e rico em suas possibilidades estéticas quanto os campos da música erudita e da poesia literária. Quanto ao lugar social destas duas, pode-se dizer que a canção, como música-poesia, tomou-lhes o lugar na sociedade capitalista do século XX em diante, como referência musical e poética. A música e canto eruditos (em suas vertentes clássica ou moderna) e o poema ficaram reduzidos a nichos especializados e incapazes de fazer a sociedade sentir o seu dever ser. As pessoas bem educadas não mais se sentiam tangidas pela responsabilidade de praticar a leitura da Alta Literatura e a audição da Grande Música. Deixaram-se seduzir, juntamente com a ralé, pelo querer ser da canção midiática. 17/01/06
124. A voz na canção não apenas se deixa penetrar pela fala, mas também por todos os sons de que o aparato vocal é capaz, gritos, gagueiras, fanhosidades, uivos, rosnados, animalidades sonoras. O
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canto se torna poroso às mais variadas expressões vocais, inclusive a distorções e refrações eletrônicas, voz sintetizada. Na canção, a habilidade do compositor, do músico e do cantor (muitas vezes são a mesma pessoa) é definida por sua capacidade de jogar com a multiplicidade de possibilidades vocais, musicais e tecnológicas à sua disposição. De fazer a voz dançar entre o canto e a fala, entre o humano e o animal, entre o sentido e o ruído, entre a técnica de um (ou mais) veio folclórico e a erudita, entre o campo e a cidade (no caso do Brasil e EUA), entre o som/sentido da palavra e o fluxo sonoro da música, entre o canto ao vivo e o gravado, entre o artesanato e a indústria. Tal como a escrita, o produto final da canção é fixado num meio. Os seus artífices estão, neste aspecto, numa condição semelhante aos dos escritores. Eles não vão mais dispor da aura de irreprodutibilidade de uma execução (evento irrepetível) ou de um quadro (original único). Mas vão ganhar a possibilidade da cópia sem perda de qualidade, da recepção pessoal e exaustiva que o texto escrito sempre teve. A canção não é a sua letra nem sua escrita musical, nem as duas combinadas, ela é coisa gravada que, depois de fixada num suporte, dispensa letra e música escritas. A canção é a palavra significando e soando em ato na voz do cantor, junto com a ambiência instrumental. É isto gravado num meio técnico reprodutível. A voz conduz a canção, faz a ponte entre a palavra e a música, oscila entre elas, norteia/prolifera o seu processo estético. Ela vai preencher a letra de som e riscar, com sua linha melódico-verbal, a ambiência instrumental. A voz, ao sonorizar a letra constrói a complexidade de som e sentido da canção a partir do texto que, em geral, se trata um escrito rudimentar, simples, preliminar: esboço de poesia. Ela vai se demorar numa passagem, acelerar outras, construir pausas inusitadas e sugestivas, cantar num tom irônico, singelo, emotivo, frio, alegre, triste (ou numa combinação variada). Toda esta maquinação vocal vai extrapolar, e muito, a letra, preenchê-la da complexidade que, no caso do poema, só o jogo com o silêncio possibilita. A canção, enquanto possibilidade estética, não é melhor nem pior que o poema ou a música e canto eruditos. É apenas outra possibilidade, tão complexa quanto as outras. O leitor exigente de poemas não é mais culto, nobre, sábio, sensível, crítico ou conhecedor de ‘cultura’ do que o ouvinte exigente de canções. Poema e canção são variedades estéticas diferentes (cantos diferentes, efetuados sobre mídias diferentes), sem hierarquia de valores entre ambas. 17/01/06
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125. Por mais que um poema evoque a fala ou o canto (ou ambos), por mais rítmico, melódico ou vocal que seja, trata-se de uma evocação apenas. Chamamento em silêncio. O poema se desenrola num mar de silêncio à procura do canto, da fala, do ruído. As partículas fonéticas ecoam umas nas outras, se chocam e se quebram, esmigalham, aceleram, diminuem, andam aos pares, concentram-se, precipitam-se, agitam-se, evolam-se. Tudo em silêncio, no silêncio, nos poros sonoros do poema impregnados do mar de silêncio da página. Por mais que a canção tenda ao sussurro, à pausa e ao silêncio, por mais que se cale e os instrumentos rarefaçam a música, ela se processará como linha de voz numa ambiência instrumental. Sempre se preencherá de sons efetivos. Sua mídia é sonora por natureza. Pleno de som, mesmo evocando o silêncio. 17/01/06 DAS CIÊNCIAS HUMANAS
126. O que caracteriza a filosofia é a criação de conceitos. Para Deleuze e Guatarri a filosofia não se define por um ou mais de seus objetos (Ser, Sociedade, Homem, Sujeito), nem pelo modo de tratar estes objetos e muito menos por sua função, seja social ou intelectual. Ela é criação de conceitos (processo) que leva em conta a rede conceitual já estabelecida (tradição/sistema). É uma boa definição, que vai desembaraçar o conhecimento filosófico do ser das coisas e de procedimentos específicos. Filósofos criam conceitos, cientistas variáveis e artistas variedades. Todas estas criações são enfrentamentos com o caos, modos gerais de recorte do mundo que o ocidente inventou. Uma bela visada de Deleuze e Guatarri. Mas onde ficam as chamadas ciências humanas nesta visada, já que as ciências a que se referem Deleuze e Guatarri são claramente as chamadas naturais (matemática, física, química, biologia)? As ciências humanas, ao contrário da filosofia, parecem se apegar a objetos e procedimentos específicos para se definir. Os estudos literários têm o texto literário como objeto. A história tem os eventos passados, a antropologia a cultura, a sociologia a sociedade, a psicologia a mente e 130
assim vai. Mas a definição por objetos de estudo é inconsistente. A cultura, objeto da antropologia coincide com a sociedade dos sociólogos e historiadores, sem falar que os antropólogos não raro entram no domínio da mente (objeto da psicologia). Os eventos passados da sociedade são objeto, tanto da sociologia, quanto da história. Dizer que os procedimentos de cada ciência sobre estes objetos é que vai caracterizá-las mais finamente não ajuda muito, mesmo porque estes procedimentos mudam constantemente numa mesma ciência. Qual historiador do século XIX levaria a sério as metodologias da história oral e do cotidiano? Procedimentos, aliás, muito próximos aos dos antropólogos e até dos psicólogos. O próprio objeto de estudo se modifica numa ciência. O objeto dos antropólogos era a cultura do outro. Depois achou-se conveniente aplicar seus preceitos na própria cultura do antropólogo que, segundo eles, pode ser tão estranha (tão outra) a seus membros quanto as culturas exóticas. O texto literário é outro objeto cujos limites variam segundo as correntes teóricas e períodos estéticos. O que é um texto literário? O que o diferencia do texto não literário? São questões que permanecem abertas. As ciências humanas têm, todas elas, uma sub-área na qual vão ser tratados os seus dilemas de limites, sua episteme. É sua área teórica, meta-científica, na qual os conceitos de uma ciência são criados e relacionados entre si. São as teorias histórica, sociológica, antropológica, psicológica, literária... Esta área teórica de uma ciência é sua rede conceitual, a qual funciona como na filosofia, como uma filosofia. São os conceitos da rede que estabelecem os pressupostos de uma ciência, ou seja, seus métodos, seus objetos, os aspectos dos objetos que são relevantes, sua perspectiva de abordagem (seu preconceitos, em todos os sentidos da palavra). Mas as ciências humanas têm outras subáreas, para as quais os conceitos da rede conceitual são criados e nas quais são aplicados. É o campo de aplicação de uma ciência, a sua práxis. É a crítica literária, o atendimento psicológico, a prática historiográfica, antropológica, sociológica... A rede conceitual de uma ciência é tecida levando em consideração o seu campo de aplicação. Por sua vez, o campo de aplicação é definido pela rede conceitual. É uma relação de reciprocidade. Para agir no campo de aplicação de uma ciência, o cientista deve dominar e aplicar (corroborando, desviando, contestando) os conceitos de sua rede conceitual. Para se tecer numa rede teórica (pois quase sempre há uma preexistente, tradição), ou seja, para se criar conceitos para uma ciência, deve-se levar em conta o seu campo de aplicação atual. O cientista teórico vai povoar a rede conceitual de uma ciência com novos conceitos (ou conceitos renovados, investidos de novos sentidos), os quais vão redefinir suas perspectivas, seus objetos e respectivos aspectos relevantes, suas metodologias e seus objetivos, alterando os limites
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e características de seu campo de aplicação. Este, assim como a rede conceitual que o define, é movediço, encontra-se em mutação permanente. Daí a precariedade dos objetos, procedimentos, perspectivas e objetivos de uma ciência humana. A criação de conceitos deve levar em conta toda a rede conceitual já estabelecida (tradição), tal como na filosofia. Mas isto implica levar em conta o seu campo de aplicação, uma vez que a rede conceitual existe para defini-lo. Esta é a diferença das ciências humanas com a filosofia a qual não tem campo de aplicação, mas apenas rede conceitual. Não há uma aplicação prevista para os conceitos filosóficos. A práxis da filosofia é a própria criação conceitual. O que define uma ciência humana é a correlação entre sua rede conceitual e seu campo de aplicação. Os conceitos das ciências humanas são feitos para se aplicar, são funcionais. Eles definem perspectivas e objetivos da aplicação, objetos de aplicabilidade e metodologias aplicáveis. As ciências humanas criam e aplicam conceitos. 18/01/06
127. A interação entre a rede conceitual e o campo de aplicação é dinâmica. Os limites entre a primeira e o segundo são efetivos, mas, muitas vezes, difíceis de discernir, embaçados. Numa pesquisa um cientista pode atuar, ao mesmo tempo, como criador e aplicador de conceitos. Na verdade, a aplicação da rede conceitual é uma constante crítica a ela, obrigando, não raro, sua recriação. 18/01/06
128. O que é um texto literário (ou criativo)? Quais os limites do objeto por excelência dos estudos literários. Vai depender da variante da teoria literária (rede conceitual) que se utiliza. O texto literário se define por sua ficcionalidade. Mas o que é ficcional? Se voltarmo-nos para a historiografia contemporânea, qualquer narrativa, mesmo a mais comprometida com os rigores historiográficos, é uma ficção. A versão coincide com a ficção. O mesmo ocorre com o pensamento pós-estruturalista, do qual se pode inferir que até mesmo uma rede conceitual muito bem armada (por textos dissertativos) é ficcional – ficção teórica. Ou ficção é aquilo que autor e leitor, por um acordo tácito, convencionam como tal (um romance, um conto)?
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O texto literário se define pela preponderância da forma, do estético. Mas o que é estético? É o ficcional convencionado e bem estruturado como linguagem? Ou é qualquer texto de linguagem bem armada, mesmo que sua intenção inicial não fosse estética ou ficcional? É o predomínio da função poética? Mas um pensamento bem urdido por uma textualidade (brotado nela) não seria estético? Bloom acha que Freud é um artista do texto. Nietzsche e Barthes seriam? E Candido? Com a proximidade do fim da Literatura como sistema, estas questões vieram à tona com muita força, pois as convenções que separavam claramente (mas não com argumentos claros) o literário do resto da textualidade se enfraqueceram. Este dilema epistemológico não é só dos estudos literários, mas de todas as ciências humanas desde meados do século XX (o tempo do capitalismo avançado e do advento da relatividade absoluta): de que se fala? qual o recorte de mundo que se faz? qual é melhor? e melhor para quê? Estes são exatamente os problemas da correlação entre a rede conceitual e o campo de aplicação de qualquer ciência humana. São questões de pertinência funcional. Da serventia da rede conceitual e da justeza do campo de aplicação para um visada de mundo, para um recorte de caos. 18/01/06
129. Muitos filósofos constroem seus conceitos a partir de problemas levantados pelas ciências humanas. E muitos conceitos filosóficos são absorvidos nas redes conceituais das ciências humanas e acabam por definir seus campos de aplicação. Isto não quer dizer que o filósofo tenha (como o cientista tem) necessariamente que se comprometer com os campos de aplicação das ciências humanas ao criar seus conceitos. Mas há mestiçagens, pensadores que se colocam na fronteira da filosofia com as ciências humanas. Às vezes uma rede conceitual filosófica se envolve demais com uma ciência, acabando por se comprometer com seu campo de aplicação: Marx, filósofo que tende a cientista social (economia, sociologia, ciência política). Outras vezes uma rede conceitual vai extrapolar a sua ciência específica e ganhar autonomia em relação a seu campo de aplicação: Freud, psicólogo que tende a filósofo. Isto ocorre porque toda rede conceitual de uma ciência se organiza como uma filosofia peculiar. Se ela se demonstrar muito fecunda, poderá ser lida filosoficamente, dispensando sua aplicabilidade específica. Reciprocamente, toda rede conceitual filosófica define, em potência, um campo de aplicação que pode ou não ser efetivado por uma ou mais
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ciências humanas. A relação entre ciências humanas e filosofia é promíscua e, não raro, a fronteira entre elas se embaça, tornando-as indiscerníveis. 18/01/06 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE
130. Ontem, numa reunião, o chefe passou um pito no possesso. Reclamou que ele não presta conta de suas atividades. E parece que o chefe desconfia da sua produtividade. E está certo, o possesso anda muito preguiçoso com o serviço, sem ânimo até para falar com superiores. Anda fujão, omisso, evocando bruxos, procurando uma linha de fuga. Está fanático demais com a feitiçaria para deixar agir nele o agente. E o pior é que a natureza de suas funções no aparato é ser foco de poder ou assessorá-lo. E ele não pode sair do foco de poder que detém agora em suas mãos. Dívidas. Tem que suportar pelo menos mais uns seis meses como comandante de escalão menor, o que lhe garante uns trocados a mais. Depois quer procurar um cantinho no aparato onde possa evocar seus bruxos em paz. 20/01/06 DA CANÇÃO
131. O poema soando pelos poros do silêncio da página é o desejo de som em ato, potência sonora. O que faz a riqueza vocal do poema são as miríades de possibilidades sonoras que ele dispara de seu silêncio congênito. O poema provoca a questão: o que poderia ser o texto enquanto voz, enquanto vozes, enquanto fábrica de fala musicada? Eis seu infinito dilema com o silêncio. É nesta questão, é no permanente adiamento de sua resposta que fervilha a vida fonética da escrita poética. E cada vez que se declama um poema é como se muitas outras possibilidades sonoras se fechassem (muitas vozes se calassem). No poema a música da fala não existe na ação de falar, mas no ato de calar, deixando o texto cantar na mente, no corpo silente do leitor. Iaras de mil árias de silêncio me encantam: cio do som. 23/01/06 134
132. A letra da canção é um esboço da poesia que o canto vai efetuar. Depois de gravada, a canção pode se tornar tão rica quanto o poema, em termos de margem atingida. A canção também joga com o silêncio, mas não se encontra mergulhada nele como o poema e sim entrecortada por ele. Silêncio intermitente. A canção vibra no ouvinte. Miríades de atmosferas sonoras proliferam pelo seu corpo e chegam a contaminar a língua. Ele ouve e canta junto, dança, se encanta. A canção é magnética, performática. Prazer sonoro. 24/01/06
133. O campo de aplicação de uma ciência humana é, ao mesmo tempo, a maneira de recortar (aplicação de princípios e metodologias) e o recorte social resultante (objetos e objetivos), no qual se fazem as pesquisas de campo e suas leituras interpretativas. Por outras palavras, o campo de aplicação são os procedimentos (técnicas, métodos, objetos, princípios) em ato de uma ciência e o espaço de atuação que resulta dos mesmos. Como procedimento em ato, o campo é o fazer científico, a prática do cientista, sua atuação como pesquisador. Como espaço de atuação este campo é um recorte da sociedade ou da produção social (pedaço de atmosfera). Potencialmente, toda a sociedade, todos os homens em sociedade e suas manifestações mais diversas constituem o espaço geral de atuação de qualquer ciência humana. Cada uma vai recortar este espaço de acordo com sua rede conceitual específica. Já passou da hora de uma ciência humana ser reinventada (ou inventada) para apreender as manifestações das artes das midiáticas. A história e as ciências sociais têm se demonstrado incapazes de crítica estética. As críticas e teorias de literatura, de música e de teatro, mais bem aparelhadas de malícia estética, não conseguem ver no universo da indústria cultural uma alternativa de arte viável e, com raras exceções, jogam todos os seus produtos no mesmo saco de lixo cultural. O máximo que fazem é reconhecer uma canção e um cinema ‘de arte’, mais bem trabalhados esteticamente, mas longe, segundo elas, da riqueza cultural das Grandes Artes. A crítica de cinema está mais adiantada como ciência humana, mas a canção permanece no campo dos comentaristas de jornal (crítica impressionista). O desenvolvimento de uma rede
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conceitual e um campo de aplicação para a canção (que, em termos de canto, constitui a referência de nosso tempo) é um trabalho por fazer. 30/01/06
134. Por que uma ciência humana para a canção? Certamente não será para incluí-la entre as Grandes Artes. Não se trata de uma conquista de poder, de se conseguir para a canção o mesmo respeito artístico que a poesia literária e a música erudita têm. Não é uma questão de honra (de nobreza). Uma das tarefas desta ciência é justamente se perguntar porque a questão de grandeza estética não faz sentido para a arte midiática. Por que o cinema e a canção não são e provavelmente não se tornarão Grandes Artes? Elas não têm a capacidade de fundar um espaço de resistência como o da Grande Arte do passado. Este espaço era acessível a poucos por seu nível de exigência e, no entanto, impunha um dever ser, um projeto de expansão a toda a sociedade. Uma vez nele, os homens tornar-se-iam indubitavelmente melhores como seres humanos (humanismo e iluminismo estético). Era um espaço nobre, mas também crítico e auto-crítico. Na verdade se constituía pela tensão entre a crítica (função crítica) e a nobreza (função enobrecedora). Quando este equilíbrio tenso pendia demais para a nobreza acontecia a cristalização literária e a perda de mobilidade criadora (neoparnaso brasileiro) Quando a função crítica se impunha, havia o risco do esfacelamento da igreja literária (profusão de margens). Para que o vórtice literário subsista, a função enobrecedora e a crítica devem ter uma relação de atração e repulsão ao mesmo tempo: dependência antinômica entre agente e desconforme. Por um lado só se atinge a nobreza literária por conta do poder crítico do vórtice. Sua implacabilidade e dificuldade, sua resistência heróica à sociedade capitalista coroam de nobreza o literato (leitor, crítico, autor). Mas esta mesma crítica, para se efetivar plenamente não deve poupar o próprio vórtice literário, principalmente sua cristalização como instituição distribuidora de confortos. A crítica deve estar em pé de guerra com a nobreza. No entanto uma se alimenta da outra e nesta interação conflituosa é que o vórtice se sustém e se desenvolve. Trata-se de um desenvolvimento por crises e não raro se percebe movimentos radicais de demolição (invenção, constructors) e seus antípodas, de restauração (tradição, profundos).
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A incapacidade dos estudos literários (e também os musicais) em abordar a canção não decorre tanto da diferença formal dos objetos em questão (poema e canção), mas do fato de que sua rede conceitual e seu campo de atuação foram ajustados para o vórtice literário tal como descrito acima, ou seja, instituído como espaço de resistência na sociedade, crítico e enobrecedor, relativamente independente da caosfera social (a literatura como instituição discernível). A literatura se definiu pela representação e analogia, quando muito pela estrutura. Como instituição tácita, seu espaço de resistência (vórtice) era representante, analógico e estrutural por constituição, mesmo em seus movimentos mais críticos. E os estudos literários desenvolveram todo um esforço para entender estes movimentos reflexivos de grandes conjuntos. Num espaço assim, no qual a relação dos fluxos estéticos de seu vórtice com outros fluxos sociais é altamente mediatizada, uma série de rigores ‘imanentes’ a este espaço foram se desenvolvendo como escala de valores (a serem seguidas, quebradas, desviadas). Estas escalas são como balizas da tradição literária, com as quais o escritor, o crítico e o leitor têm que se haver, mesmo para contestá-las. No caso da canção, cujos fluxos não fundam nem se integram num vórtice geral que se comportaria como espaço de resistência, é mais difícil o aparecimento de valores imanentes independentes do campo social. Os critérios de rigor são mais específicos que na literatura, mais emaranhados com os demais fluxos sociais. Um estudioso muito comprometido com o vórtice literário colocaria as questões: são rigores estéticos? as canções não seriam manifestações éticas, políticas, religiosas etc mais do que artísticas? São questões em aberto, mas não há como negar o peso do fator estético na canção, o que exigirá de uma suposta ciência da canção a manutenção de conceitos estéticos. Mas a questão geral que se coloca é: será que o estético, para se manifestar ao ponto de merecer uma abordagem estética exige a guarida de um espaço de resistência, isto é, exige um vórtice destacado do campo social e no qual haveria imanência independente deste campo, tal como a Literatura? Será que o estético não pode ser ‘crítico’, de ‘resistência’ e relevante como tal fora de um vórtice específico? Será que a canção é quase sempre um lixo cultural ou, quando muito, uma poesia razoável? Ou será que, apesar de sua promiscuidade com o fluxo de capital e outros fluxos sociais, ainda valeria a pena dedicar tempo e energia ao estudo de sua fluxão estética? 30/01/06
135. Talvez o estudo da canção tenha que ser emaranhado também. O estético e os outros fluxos da sociedade mapeados caso a caso, cancioneiro por cancioneiro, autor por autor, canção por canção.
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Sociologia da canção, mas não como na literatura, no qual o vórtice literário se pautava pela representação (relação de conjunto: o literário como representação das manifestações sociais). Seria uma sociologia dos veios, fluida, permeável, porosa como a canção, atmosférica. Socioarteologia. De resto, muito próxima ao espírito da chamada crítica pós-estruturalista, particularmente a de Barthes. Mas a crítica de Barthes só se tornou fecunda porque o próprio campo do texto criativo se transformou com o fim da literatura. Não havendo mais vórtice literário que o trague, o texto se torna escritura, textualidade despida de dever ser e sem espaço de resistência para habitar: fluidos soltos, fiação caosférica. O texto criativo não confere mais nobreza a ninguém, sua função crítica é mais livre, mas também menos perceptível, menos agarrada (comprometida) a vórtices. Em relação ao desprendimento dos vórtices, a canção e o texto criativo se encontram numa situação semelhante. A diferença é que os textos narrativo (romance) e poético (poema) não estão apenas sem o vórtice literário, mas perderam, para o cinema e a canção, a condição de referência social como fábula e como canto da sociedade capitalista. 30/01/06
136. Explorar na canção um desejar ir em tensão com o querer ser. Eis a tarefa de uma crítica da canção. Eis a tarefa que desde o seu surgimento alguns artistas se propuseram. O querer ser magnético da canção é a garantia da audiência, o meandro por onde o fluxo de capital vai se infiltrar e constituir a natureza múltipla da canção. O querer ser é uma fresta para o capital, uma fresta inevitável pela qual sua modulação vai se efetivar. A canção é, por definição, modulada pelo capital. Mesmo que a literatura também fosse dependente do mercado do livro e os índices de vendagem fossem uma imposição, o seu dever ser e seu grau de exigência intelectual eram uma garantia de defesa de seu espaço de resistência contra as infiltrações do capital. O querer ser da canção não é uma invenção musical da cantiga folclórica, da qual o capitalismo se apropriou, mas é o próprio desejar capitalista que a canção juntou com o desejar da cantiga, do cancioneiro popular e folclórico, envolvente e magnético desde sempre. É o desejo de conforto do capitalismo congraçado com o prazer melódico da voz: fluxão de capital e canto. Conforto melódico. Não é à toa que a música ambiente dos shoppings é, não raro, a canção popular de sucesso.
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Mas alguns artistas da canção, de dentro, junto e contra o querer ser midiático (pop) intentam um desejar ir. É aí que o estético de adensa em rastro, em fio de tensão por onde se vaza em atmosferas e margens. É pelo desejar ir da canção que os bruxos infestam. E em muitos casos, na mesma canção disparam-se os gatilhos do querer ser e do desejar ir. A mesma canção capaz de possessões sistêmicas (querer ser de agentes e demarcados) e atmosféricas (desejar ir de bruxos e desconformes). A que transes (magnetismos) uma canção é mais ou menos propensa? Por que meios e em que condições o seu magnetismo se efetiva? Que fluxos da sociedade se mesclam (e como se mesclam) com o estético e o de capital para compor o fluxo geral de uma canção, artista ou cancioneiro? Qual a fecundidade de uma canção enquanto desejar ir? São questões para uma crítica da canção. (Maria Bethânia gravou, com espírito tropicalista, um disco de canções sertanejas, explorando no querer ser da canção de massa o seu desejar ir, efetivando um desejar ir potencial da canção de massa pela regravação, pela releitura, pelo (re)arranjo inusitado. É preciso amar e ironizar (se distanciar, se estranhar com, distorcer) a canção de massa para extrair seu desejar ir insuspeitado, como o faz Caetano com Roberto, Peninha e até consigo mesmo, com o que ele tem de querer ser (agente) enquanto artista da canção. É por isto que a letra não significa tanto, mas sim como ela se arranja com a instrumentação e a voz, como o tratamento sonoro que ela recebe a fecunda de margem e magia.) 30/01/06 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE 137. O amor me move, me demove de confortos, me comove o amor desmedido, desnorteio do meu eu ressentido. Desnorteio do eu, o amor me tira de mim. Meu combustível amor. Fugimos para amar sem peias, desejar amar à margem, injetar amor nas veias. O amor me arrasta no rastro do seu leito imperfeito, se infiltra na vida e vaza nos poros. Astro em risco no espaço infinito. O amor me enxameia. 30/01/06
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138. Parece que há tanto a fazer e o ânimo falta. Não é preguiça. Não planejei confissões para este texto, mas também não planejei seguir nenhum planejamento. Confesso que às vezes (muitas vezes) me pergunto se vale a pena gastar tanto tempo e miolo com esta escrita. Tem horas que ela parece ser desnecessária, do tipo que aborreceria o leitor, tomando seu tempo com besteiras. Dá vontade de largar tudo. Outras horas (cada vez mais raras de umas semanas pra cá) me vêm uma vontade irrefreável de escrever. Onde vai parar/andar o tratactus? Pra que/m servirá? 06/02/06 DA CANÇÃO 139. Uma canção manifesta, nem que seja por referência indireta, um grupo social. Um corpo, uma identidade, um espírito regional, uma coletividade sempre canta junto com o cantor. Mesmo na canção mais cosmopolita há esta referência de grupo. Caetano e Gil e Salvador – a sonoridade negra da Bahia. Belchior, Fagner, Zé Ramalho e os vários sotaques do Nordeste. O Rock 80 e a adolescência masculina e branca de classe média. O samba e os negros do Rio (e de uma certa São Paulo). As músicas caipira e sertaneja e o caipira do interior do Brasil. O forró, o xote, o baião e o nordestino do sertão. O jazz/blues/rock e os negros norte-americanos. A canção foi, no século XX, uma canção de sotaque, não só lingüístico, mas musical, comportamental. Ela veio de um grupo, do querer ser de uma cultura, inicialmente, popular (quando ainda fazia sentido a divisão entre cultura popular e erudita). Depois ela vai sofrer apropriações e miscigenações. Os frankfurtianos sabem como estas coisas acontecem. Quando a cultura popular entra na esfera da indústria cultural ela fica porosa, propícia a miscigenações. Os brancos se apropriando do rock (“o dia que aparecer um branco que cante e dance como um negro...” e surge Elvis) para vender mais. Mas também para infestar mais, pois muitos brancos não têm somente planos mercadológicos ao cantar rock, mas explorar efetivamente a margem dos negros (Beatles). É claro que os agentes gostam dessas ousadias que renegam o capital, na verdade eles torcem por elas. Serão também música de massa ou bons nichos de mercado (Beatles, punk, heavy-metal etc).
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A cultura popular da qual se origina a canção é normalmente uma cultura à margem. Negros, mestiços, analfabetos, sociedades de regiões pobres ou suburbanas. Mas as margens fervilham uma energia de massa que os regimes imperiais pré-capitalistas (e mesmo o capitalismo até o século XIX) sempre desprezaram, mesmo que muitos intelectuais e artistas, principalmente os românticos, alertassem para a sua riqueza. Hoje, o projeto de desenvolvimento de uma nação é o de aproveitar esta energia de margem da cultura outrora popular, juntamente com a erudita, numa descodificação geral de seus fluxos, para uma nova recodificação/modulação capitalista, nas quais ambas vão perder sua identidade forte de origem, passando a compor um mesmo fluxo midiático (indústria cultural). É claro que muito desse novo fluxo midiático vai se prestar à identidade nacional, extraída da mescla das várias identidades regionais originais (processo particularmente forte nos EUA, Brasil e Cuba). A canção é propícia a identidades, mesmo em suas ondas mais desgarradas como o Rock 80 que, de certo modo, representa o Brasil em crise da abertura política. Neste aspecto a canção é representativa, tem uma carga potencial de identificação que provém da antiga potencialidade da música popular de expressar e conferir ao grupo sua identidade particular. E a canção representa, ao mesmo tempo, a minoria de onde provém e a qual se refere (não mais como identidade forte) e a nação na qual se insere. Mas ambas as representações são modos de identidade fracos, porosos a outras mesclas. Ao capital interessa as formações identidades, as representações, pois ele joga com fluxos em permanente fluxão (desconstrutores, dispersores) e refluxão (identificatórios, aglutinadores). Mas não interessa que as identidades sejam fortes, obstrutoras de fluxão. É por isto que as ditaduras não convêm ao capital, ou só interessam temporária ou localizadamente, como resposta a situações emergenciais (guerra fria), como preparação para a cultura de mercado e a democracia e/ou como regime político dos estados periféricos do capitalismo, os quais se encontram, não raro, acossados pelo desejo tácito da democracia. Numa ditadura várias fluxões (informativas, de entretenimento, estéticas, sexuais, religiosas) são obstruídas e convergidas forçosamente para o estado central, ao invés de serem reguladas pelas flexíveis e mutáveis regras formais do direito. Obstrução que cria empecilhos inaceitáveis para o regime de fluxos capitalista. A China está aprendendo bem a lição capitalista. A teocracias mulçumanas resistem (embora haja indícios de que a avidez do povo pela fluxão capitalista esteja crescendo a ponto de minar a identidade religiosa, forte, no caso mulçumano). Voltando à canção, muito de seu fluxo midiático vai se prestar ao movimento contrário ao da construção de identidade. Vai se prestar a fugas e visadas atmosféricas, nas quais as identidades
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são abismos provisórios de energia. É tensionando a fuga das identidades com sua sedimentação anterior que os artistas mais fecundos vão construir o desejar ir (intentar as margens) da canção: Caetano. A entropia do vórtice fraco de identidade e representação é o desejar ir de uma canção. É um movimento anticapitalista por natureza, mas incentivado e ansiosamente aguardado pelos agentes do capital, que vão seguir em seu encalço e tentar sistematizar as atmosferas exploradas (que se tornarão conquistadas) e as margens atingidas (que serão internalizadas). É um movimento que provoca a crise capitalista4, que leva o sistema a se confrontar com suas margens selvagens. No entanto, ele vive de suas margens e crises, daí este movimento de fuga da canção ser, paradoxalmente, capitalista por natureza, e só efetuável em seu ambiente sistêmico. O rock 80 é interessante neste aspecto. Seu recorte social de origem são os adolescentes de classe média destinados a se tornarem machos adultos brancos, ou seja, homens bons da sociedade, prontos para o poder. Suas canções, muitas vezes, são manifestos de negação deste destino e fazem uma crítica amargurada a toda a sociedade brasileira da abertura política, a começar pelo seu ambiente classe média (o álbum “Cabeça Dinossauro” dos Titãs é emblemático neste aspecto, nele, as ‘boas’ instituições, sentimentos e atividades sociais são negadas uma a uma: família, estado, polícia, escola, igreja, fé, trabalho). Mas esta crítica social de largo espectro vai transformar o Rock 80 em representação da sociedade nacional em crise. O rock como representação de duas identidades, a de um grupo social restrito (adolescentes de classe média que se embebem do ritmo de negros estrangeiros) e a da nação. Por outro lado, o rock é a fuga desconforme destas mesmas identidades. É esta tensão criativa que vai, em conjunção com os sistemas midiáticos, tornar o rock um negócio lucrativo e um valor simbólico da sociedade, de crítica e cidadania, de inconformismo relativo com as desigualdades e o conservadorismo das instituições (da família ao estado) nacionais, embora a rebeldia se voltasse também contra a própria cidadania e seu espírito crítico apenas relativo, contra a modernidade classe média, concernente a um mundo ‘desenvolvido’. A fuga dos roqueiros para fora dos sistemas (radical, absoluta, amargurada, sem objetivos específicos ou esperanças utópicas, cética e, não raro, cínica) vai ser internalizada e transformada em fuga relativa e conforme, em afirmação da democracia participante, da distribuição de renda e da cidadania plena. A Globo ama Cazuza. 06/02/06 4
É por estas crises provocadas pelas fugas que a identidade dos grupos/vórtices se tornam fracas. Por isto, o capital precisa dos desconformes e suas fugas para a margem, as quais colocam em cheque as identidades fortes. O capitalismo precisa da entropia sistêmica, pois ela é a responsável pela desarticulação dos códigos estabelecidos (descodificação), a qual irá enfraquecer as identidades dos vórtices. Mas quem ativa/dispara a entropia é a perigosa criatividade dos desconformes que querem a destruição dos sistemas capitalistas. Os agentes, por seu turno, vigiam e absorvem a entropia desconforme, equilibrando-a com as forças centrípetas e inerciais dos vórtices. São agentes de controle e regulação, responsáveis pelo equilíbrio tenso dos frágeis sistemas das sociedades capitalistas. 142
140. A canção é um a questão estética, mas também social, de comportamento, espetáculo e entretenimento. Ela vem acompanhada de um grupo, representando um grupo restrito e marginalizado, mas também de uma atitude. É a afirmação de uma atitude de grupo. E esta afirmação passa pelo espetáculo, pela encenação, pela postura do artista. É o kitch, a estetização da política e da ética. Uma estética de massa modulada pelo capital. Neste sentido, a canção é em comunhão com o capital: prazer sonoro e conforto sistêmico. A canção dispara uma energia de massa. A música folclórica já disparava desde sempre: poesia do povo, cancioneiro. Mas esta energia poética agora é uma questão de mídia e mercado. É um mapeamento capitalista, indústria cultural. A canção extrai a euforia das massas, histeria coletiva. É fácil constatar isto, basta ir a um show de música pop. A canção folclórica atingia uma pequena coletividade em comparação com a canção midiática. No entanto, mais que uma questão quantitativa, a diferença é o modo como esta última opera. Ela faz parte da modulação das massas, da internalização da estética da barbárie no mercado de consumo da indústria cultural. A estética caipira absorvida na música sertaneja, o cancioneiro baiano tradicional no axé music, o samba no pagode. A absorção é duplamente proveitosa. Os já civilizados e sua cultura midiática corrente são renovados com a energia da barbárie de margem. Esta, por sua vez, ao ter sua música de grupo incorporada à estética geral midiática recebe uma certidão de civilidade da sociedade (ingressa no mercado e na cidadania) que reconhece a legitimidade de suas manifestações e necessidades. É o que vem acontecendo com a ‘música falada’ dos rapers negros das periferias, rap, hip hop e até mesmo o funk das favelas cariocas, que substitui o samba (ou muito elitizado e cult ou muito massificado pelo pagode) como afirmação da cultura do morro (às vezes do tráfico e da bandidagem em geral). A Xuxa ama o funk. 08/02/06 DO CAPITALISMO 141. É por isto que as margens da miséria são importantes ao capitalismo. Não é só uma questão de força de trabalho de reserva, mas de um estoque massivo de energias gerais e um campo
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potencial de expansão. Muitas energias estão estocadas intocadas (do ponto de vista capitalista) nas margens: de trabalho, psíquicas, estéticas, comportamentais. São energias criativas que desafiam as centralidades do capitalismo, provocando-lhe crises e subseqüentes soluções de absorção. Os agentes da mídia (e, muitas vezes, os próprios artistas) inventam meios criativos de absorver a música e a cultura da periferia. Os do governo procuram maneiras de estender cidadania aos seus habitantes. São movimentos correlatos de acomodação das margens aos sistemas de mercado. Mas o movimento contrário também é incessantemente produzido, a saber, o de marginalização de largas parcelas da população através de seu empobrecimento, como ocorre nos países desenvolvidos. Ou por meio do adiamento da entrada da maioria da população no ambiente desenvolvido da classe média, caso dos países subdesenvolvidos. É a criação e preservação das margens capitalistas, nas quais a massa bárbara vai estar pronta para alimentar as crises do sistema. E esta massa estará também desejosa de democracia, cidadania e poder aquisitivo, desejosa, enfim, de conforto, da fluxão capitalista em sua plenitude. Nenhuma porção da massa marginal existente no mundo é ainda virgem de capital, ou seja, não há mais populações que se definem por uma cultura sem a referência do ocidente capitalista. Ocidente que é o horizonte de desejo de todas as massas bárbaras de hoje: pobres do mundo desenvolvido e bolsões de pobreza latino-americanos e asiáticos, áfrica negra, mulçumanos. O fato de uma parcela da população islâmica esconjurar o ocidente e afirmar dogmática e, às vezes, violentamente, sua identidade religiosa, apenas confirma a referencialidade e o poder magnético do capitalismo enquanto sistema global implacável. Uma porção de massa bárbara não ser mais virgem de capital implica que ela entrou no seu jogo como margem, como estoque energético e campo de expansão potencial, velho oeste sem lei, terra de índios e aventureiros, fronteira ativa, criativa, violenta, fervilhante de morte e vida, sertão. 13/02/06
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DA CANÇÃO 142. O artista que explora a canção como desejar ir sente o peso da coisa midiática que o engloba, mas também sua energia. Explorar o desejar ir da canção não é uma questão de negar sua força magnética, seu querer ser, em favor de sua conversão em arte maior. Por outras palavras, não significa instaurar um espaço de resistência bem articulado e identificável (institucionalizado), como era o caso da Literatura e seu dever ser em luta contra as banalidades da sociedade capitalista. O desejar ir da canção passa necessariamente pela exploração do seu querer ser, da energia massiva e magnética que a vincula às massas, sejam elas pré-capitalistas (folclóricas, virgem de capital) ou capitalistas. O artista do desejar ir da canção situa-se perigosamente entre a energia massiva da canção de mercado e a forma possível de levar esta energia a uma fuga sistêmica, mesmo que esta fuga seja aguardada/desejada pelos agentes e, mais adiante, absorvida por eles nos sistemas. A Globo e suas novelas amam Caetano. É por isto que Caetano se aproxima e deve muito à canção de massa, como a de Roberto Carlos. Os tropicalistas foram os que explicitaram melhor o problema da interação necessária entre o desejar ir da canção ‘de arte’ e o querer ser da canção comercial. Sua postura em relação a esta última era, ao mesmo tempo, de ironia e amor (amor irônico), sem definir qual destes termos contraditórios tem primazia sobre o outro. Para se explorar o desejar ir na canção deve-se relativizar, com a ironia (mas também com a comicidade, o rancor ou outros afetos), o querer ser conforme da canção comercial. Mas também se deve amá-lo, desejá-lo, querer ser junto com a massa, deixando a sua energia impregnar os poros perceptivos e afetivos do artista. É um trabalho de fluxão emaranhada. Estética de arte embaraçada com a estética de massa da canção, a qual não funda, como na Literatura, um sistema de resistência, nostálgico ou utópico, à sociedade capitalista. É por isto que não há grandes na canção, pelo menos não no sentido literário de mestres que se colocam (são colocados) nas posições hierárquicas superiores do sistema. Não há sistema para se implementar hierarquias. Há artistas geniais, como Caetano, Gil, Chico e Raul Seixas, mas não são grandes, nem mestres. Daí os limites entre canção de arte e de massa serem tão tênues e difíceis de se traçar. Na ausência de um sistema da canção, que discipline a sua fluxão num vórtice, que excluiria, por suas leis de identidade, o que não é arte, os fluxos correm anárquicos e misturados. Mas há resistência na canção, há estética de arte, desejar ir. É preciso explorar caso a caso, achar a linha de fuga de cada canção, artista ou movimento (onda), estudar suas interações com o querer ser,
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bem como seus modos de desvios, de escape que vai se precipitar num desejar ir. Depois é necessário estudar as reabsorções sistêmicas (elas sempre existem) e ver o que sobrou delas como energia de margem, antitradição dos bruxos. É com esta antitradição que outros artistas da canção vão se ligar (além do conúbio com as energias magnéticas de massa) para traçar novos desejos de ir. 13/02/06 DO CAPITALISMO 143. Por que o Estado de Direito, ou melhor, a democracia é, por natureza, o regime político do capitalismo? Mesmo que ela tenha demorado a aparecer e mais ainda a se consolidar. Mesmo que o capitalismo conviva bem com ditaduras de direita e, nos dias de hoje, de esquerda (até mesmo nas teocracias o regime do capital se infiltra bem). É que uma ditadura não vai incentivar as fugas dos desconformes. Elas podem até acontecer, mas a reação será a repressão ou o ocultamento. As crises de margens vão ser exconjuradas e não serão criados processos de absorção que alargam os limites do sistema. Uma ditadura é, por natureza, inflexível em seus limites. Ela funciona por identidade e, por isto, tem limiares que, se transpostos, vão esfacelá-la. O que seriam das teocracias se incentivassem a circulação de heresias? Ora, sem a liberdade e o incentivo para a fuga desconforme, para os questionamentos e heresias de qualquer natureza, sem a democracia e sua liberdade de ação e expressão quase irrestritas, o sistema perde sua capacidade de modulação das fugas e expansão de limites. Mesmo nos regimes pré-democráticos é onde havia um humanismo ou iluminismo tolerantes que as ondas capitalistas proliferaram com mais vigor. Itália renascentista, França e Inglaterra do despotismo iluminado. Talvez houvesse uma premonição das benesses que a tolerância para com os desconformes traria ao sistema em formação. 13/02/06
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DA CANÇÃO 144. O capitalismo é bom com ondas, com atmosferas. Ele as internaliza e domestica com sua modulação. A canção é uma onda, mas também é um (entre vários) instrumento de modulação de ondas de barbárie. A canção sempre se refere a uma horda bárbara na periferia. Mas ao lado da função moduladora (ou magnética), ao mesmo tempo contra e mancomunada com ela, se desenvolve sua função crítica, de fuga, o desejar ir da canção. Se a função crítica (desejar ir) da Literatura interagia com a função enobrecedora (dever ser) do vórtice literário, na canção ela interage com a função magnética (querer ser), de modulação de massas. Trata-se, nos dois casos, de uma interação tensa e intensa e com a qual todos artistas têm que se haver e tomar posição. Que fazer? Uma canção comercial de entretenimento, na qual o artista se torna agente e afaga o demarcado do vórtice? Ou usar a força magnética da canção e tensioná-la em desejar ir (força de fuga), movimento no qual o artista se deixa possuir pelo desconforme em busca do bruxo da margem? É uma questão estética (arte massiva ou de fuga?), mas ao mesmo tempo ética, política (querer ser ou desejar ir?). Os problemas do artista da canção (de qualquer artista) passam invariavelmente pela política. Não pela política de Estado, neste caso Estado de Direito. Não se trata de questões partidárias ou cidadãs que se colocam no âmbito da liberdade de expressão ou da democracia. Não se trata nem mesmo do problema específico da reivindicação da liberdade democrática num eventual regime ditatorial, problema muitas vezes interno ao sistema capitalista. A política dos artistas da canção vai tratar da formação do desejo na sociedade capitalista, dos vórtices que se formam com fluxos de desejo, de sua força tratora e das possibilidades de fuga (entropia) nestes vórtices. E também de como lidar com a ressistematização destas fugas. São questões políticas que se referem aos limites sistêmicos do capitalismo e não a seu funcionamento interno. A política democrática (cidadã) até pode ser matéria da canção, mas o que importa é a política de desejos que ela engendra nesta matéria. Política de margem, pois o desejo é um limiar de grandeza sistêmico. Do ponto de vista sistêmico é o menor elemento apreensível num vórtice: a menor peça de sua intrincada mecânica. De uma perspectiva atmosférica já é fluxo puro, bruxuleio de onda, feixe de energia vazante. O desejo é o fluxo de vazamento por excelência. A superioridade expansiva do capitalismo em relação às ditaduras e aos antigos impérios advém de
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sua disposição de deixar o desejo vazar como ele quiser e de sua capacidade de reabsorver (pela modulação) este vazamento e se alimentar dele. Ela acresce os territórios explorados pelo desejo a seu sistema e domestica a fuga, que passa a integrar um novo modo de operação também internalizado e vai sacudir (desestruturar e reestruturar) os funcionamentos antigos e cristalizados no seu interior. A fuga ressitematizada é o novo sistêmico. O novo transfigura e revigora as antigas engrenagens enferrujadas do sistema. É uma entropia controlada (pelos agentes). O capital se anima com o novo, ama o novo, necessita dele. Reconheçamos que este movimento de ressitematização os concretistas apreenderam bem, quando falam de diluição e apropriação das invenções poéticas pelas mídias. O problema é o caráter evolucionista e, conseqüentemente, hierárquico e autoritário, da teoria e sua valoração positiva e praticamente irrestrita do novo e da invenção. Outro problema é como conceituam o novo revolucionário (invenção), concebido como novidade formal rigorosa, ou seja, como obsessão pelo ponto de abismo da estruturalidade da linguagem, sob uma perspectiva da experimentação. Este novo só seria realmente revolucionário (ou, pelo menos, de fuga) no âmbito do capitalismo caso não se abismasse na estruturalidade, ou seja, caso não se ligasse, como projeto, a um vórtice de poder literário, acadêmico e midiático. Vórtices são retornos, reestabelecimentos de estados, sistemas, identidades. Sistemas nada podem contra o capitalismo, em termos de resistência. Os tropicalistas, mesmo com sua precariedade teórica, foram muito mais fecundos em termos de idéias e mais efetivos nos vazamentos provocados. Eles nunca sonharam sistemas. Anarquistas do desejo, quiseram apenas atmosferas. 14/02/06 DO CAPITALISMO 145. O capitalismo internaliza, por absorção, a crítica, a atividade, a criatividade desconforme, modulando-a com seu fluxo. Foi assim que afrontou e derrotou o socialismo de estado capitaneado pela URSS. Em duas frentes o capitalismo mostrou, na Europa Ocidental (campo de disputa entre primeiro e segundo mundos e fronteira imediata e estratégica de expansão socialista), sua superioridade. Na distribuição de confortos aos seus cidadãos, com a implementação da social-democracia e no desenvolvimento tecnológico, unindo o fluxo de conhecimento das ciências naturais ao fluxo de capital. Capital que se mostrou mais dinâmico
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que o plano de estado o qual, olhando em retrospectiva, não instituiu algo muito diferente de uma ditadura laica convencional. Hoje, a outra onda que parece se colocar em campo contrário ao do capitalismo é a islâmica. Desta vez os termos do suposto adversário repousam sobre princípios mais arcaicos, a saber, a ditadura teocrática, que é o horizonte de desejo das vertentes mulçumanas mais radicais. O Irã seria o exemplo de tal estado. Mas a luta, se é que haja uma, já está perdida para o Islã desde sempre. E pelas mesmas razões que o socialismo perdeu. Em primeiro lugar, uma ditadura teocrática (qualquer ditadura) não é capaz de fazer frente ao dinamismo econômico e à capacidade tecnológica do capitalismo. E o poderio militar é principalmente uma questão de economia e tecnologia. Em segundo lugar, as populações dos países islâmicos vão percebendo que o potencial de conforto do capitalismo é infinitamente maior, que a circulação de fluxos é mais abundante e mais livre (o que não quer dizer que seja de fácil acesso) que num estado islâmico, efetivo ou pretendido. E isto é tudo o que o desejo procura: fluxão ampla e desimpedida. Deleuze e Guatarri estão certos, o capitalismo é o horizonte, o limite de todos os regimes anteriores a ele. Não há possibilidade de restaurações ou voltas (os profundos que me perdoem). Talvez os mulçumanos sintam um misto de apego à sua identidade e inveja do capitalismo. Inveja que é, por sua vez, um ódio à sua identidade islâmica, ao que nela é incapacidade de fazer frente à potência expansiva capitalista. Pois o Islã é também uma potência expansiva (que o capital fez fracassar) e o conflito entre o capital e Maomé é o choque violento entre duas ondas globais de expansão. Amor e ódio do Islã por si mesmo. Sentimentos de afeição e impotência extremas (o Islã como um supersujeito neurótico, maníaco-depressivo, aturdido por um complexo de inferioridade) cujos resultados mais agudos são as ações terroristas suicidas: paixão, fúria e rancor. E a tensão é piorada pelo fato de o Islã estar muito próximo do capitalismo. Em primeiro lugar porque as ondas capitalistas penetram e seduzem o Islã mais que o contrário. A imigração de mulçumanos é um exemplo. A despeito de algumas reclamações de intelectuais europeus (que cheiram mais a racismo) as ondas de imigrantes islâmicos não impõem nenhuma ameaça real ao capitalismo ou à democracia. Às vezes falam em perda de identidade européia (mas só pode ser piada). No máximo causam alguma tensão. O que é sinal de que são apenas mais uma boa massa bárbara de margem a ser absorvida, mais um campo de expansão para o capital e sua modulação. O que talvez incomode os europeus é o fato de este campo estar geograficamente localizado nas suas ricas cidades, obrigando-os a uma convivência cotidiana com a ‘barbárie’. Esta presença de
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mulçumanos na Europa causa efeito muito mais devastador no lado islâmico, pois constitui uma ponte de intercâmbio entre as duas culturas. Nesta troca, o regime de obstrução de fluxos do Islã só tem a perder, na medida em que o capitalismo é, para ele, uma espécie de liberador de fluxão instalado na sua margem. E os imigrantes são os disseminadores dessa fluxão nos países de Maomé (contágio capitalista). Os soviéticos tinham plena consciência do perigo deste intercâmbio para uma ditadura e impediam ostensivamente a saída de seus camaradas para o ocidente. Quando isto acontecia, tentavam bloquear sua volta e sua comunicação com os compatriotas. No mundo árabe tal controle é impossível, em que pese o controle rigoroso da circulação de informação. Além do intercâmbio promovido pelos imigrantes, o Islã tem outros problemas de proximidade (outras pontes de sedução) com o capitalismo, talvez até mais decisivos. Como não existe uma alternativa econômica, de cunho islâmico, ao capitalismo, a economia interna dos países mulçumanos é regulada, em grande medida, por leis de mercado. O mulçumano pressente, no seu cotidiano, o poder de fluxão que este mercado teria se fosse liberado das obstruções teocráticas e aliado ao estado de direito. Além disso, a inserção de seus países no mercado mundial se faz também seguindo as regras do capital. Não se cogitam economias domésticas e internacionais, islâmicas e auto-suficientes, como no caso socialista. O capital contamina o Islã por todos os seus poros. Em segundo lugar o Islã tem tradição institucional, disciplina de estado. Ur, o estado mais antigo que se tem notícia ficava em terras que hoje são islâmicas. O Islã provém de tribos que conquistaram estados. E o estado é uma exigência para a implementação do capitalismo (por isto o regime tribal é uma problema para o capital). Para que o Islã se adapte talvez baste uma revisão religiosa (como fizeram o cristianismo e o judaísmo no passado), que reconheça dois sujeitos, o estado e o indivíduo, cujos destinos possam ser autônomos e, ao mesmo tempo, interdependentes. O terreno estaria pronto para a laicissização do estado e a modulação capitalista se alastrar. Esta ‘facilidade’ de conversão (no sentido de passar de um regime a outro) torna o Islã ainda mais tenso e precavido, mais violento e intolerante. A implementação capitalista pode ser adiada no mundo islâmico, talvez por muito tempo, mas as ondas do capital já estão chegando desde muito. E elas chegam e chegam, sem parar. Podem até refluir, mas voltam mais forte, mais violentas. Sacodem o desejo obstruído pela teocracia e oferece a ele a abundância e a desregulamentação geral dos fluxos: de capital, sexuais, de entretenimento, de poder, de informação e expressão, estéticos, científicos, religiosos... O capitalismo vem aos poucos, por contágios sucessivos.
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Não há verdadeiramente uma luta, mas uma agonia do Islã, expressa em manifestações violentas e desesperadas de sua identidade religiosa de grupo. Identidade que se percebe em pleno processo de desmonte e absorção capitalista. O Islã está irremediavelmente infectado de capital. 14/02/06 DA VERBOSFERA 146. Toda fábula, para se efetivar, exige uma interação entre a palavra e a imagem (verbal e imaginário). Mesmo que a fábula seja sem palavras, como no cinema mudo, a narrativa evoca uma verbalização, que não é uma tradução, mas o potencial verbal da narrativa. Mesmo que as imagens não estejam presentes, como no romance ou na história contada pela voz, a narrativa pede para ser imaginada, principalmente em seu aspecto visual. A fábula encerra em si a potência do verbo e da imagem. Sua realização estética pode priorizar uma ou outra (ou ambas), pode incorporar outras potências, tais como a sonora, mas sem a fusão verbo-imagem não será fábula. Vejamos a narrativa do cinema mudo. Nela, a verbalização é obrigatória. Não que o espectador necessite recontar o filme a outros ou a si mesmo, mas a narrativa dispara processos lingüísticos de apreensão sem os quais não será inteligível. Quando narra em resumo o filme que assistiu, o espectador nada mais faz do que efetivar parcialmente estes processos. Já o canto mobiliza potências diferentes, a saber, palavra e som (verbal e sonoro), seja ele um poema ou uma canção, como vimos em textos anteriores. O ponto comum entre contar e cantar é a palavra, que ora se articula com a imagem, na fábula, ora com o som, no canto. É interessante como estas duas dimensões encontram-se presentes na teoria de Saussure como materialidades, digamos, acessórias à estruturação dos sistemas lingüísticos relevantes que são a fonologia, a morfologia, a sintaxe e a semântica. Tomando o devido cuidado podemos associar o som ao significante e a imagem ao referente. Estas materialidades são, em Saussure, os assessórios da palavra, cujo cerne imaterial (formal, estrutural) é o significado. É claro que esta é uma perspectiva lingüística estritamente formal, que
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vai tomar a fonética como base de apoio e a pragmática como extrapolação (fonética e pragmática como abordagens aquém e além, materialidades extra-sistêmicas). Se tomarmos a significância como cerne da palavra, o que é uma visão estrutural da linguagem (visada sistêmica), fábulas e cantos são explorações das margens do verbal, junções de seu cerne com campos não significantes em si, imaginais ou sonoros. São um desmonte da significância inerente à palavra, concomitante com uma nova montagem sua. Numa visada atmosférica a imagem e o som não são exteriores à palavra enquanto língua e o processo do conceito (a significância enquanto logos) já está, desde sempre, interagindo com ambos. Mesmo o específico da palavra seria extraído a partir desta interação, sem a necessidade de estabelecer o que está dentro ou fora da lingüística, ou seja, sem a necessidade de se estabelecer um sistema fechado formal. A lingüística começaria por seus aquéns e aléns, fonética e pragmática. E nunca os abandonaria. Fábulas e cantos mobilizam o (desejo de) sentido, como gnose, por meio da aliança do conceito com os sentidos da percepção: audição e visão, som e imagem, música e imaginário. Nenhuma coletividade abriu mão, até hoje, desta aliança, embora haja povos que dispensem uma construção apenas conceitual do sentido. Fábulas e cantos são universais. Para quem gosta de arquétipos são um prato cheio. 16/02/06 147. Como as fábulas e cantos se manifestam no capitalismo de hoje? Eis a questão que se coloca. Pode-se fabular e cantar de várias maneiras. Muitas mídias (meios) podem ser conectadas, como formas da expressão, ao contar e ao cantar. É isto que os artífices da palavra têm feito desde sempre. E uma mídia sempre pode ser explorada em outras direções, que não sejam a do canto ou da fábula. Vejamos uma antiga, a do teatro. Sempre houve a possibilidade do teatro explorar o seu específico midiático, o cenário, o vestuário, o corpo, o sonoro, a irreprodutibilidade (seu caráter quase cerimonial), deixando a palavra, que conta ou canta, de lado. Sua união com a narrativa ou o canto (contestada por algumas vertentes do teatro de vanguarda, que buscam a exploração das possibilidades do seu específico artísco/midiático) significa a junção de uma mídia (uma materialidade técnica), com um modo significante.
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A fábula no teatro é, como se sabe, bem diferente da falada ou da escrita. Diferentemente da épica e do romance, no teatro quase não se conta (às vezes nunca se conta) a narrativa, a qual é, antes, apresentada em ato. As falas dos personagens não são narrativas, mas atuantes, ativas, análogas a outros atos corporais em cena, como andar, abrir uma porta etc. Nesta perspectiva, o teatro pode muito bem prescindir de palavras para contar uma história (teatro nô), tal como o cinema mudo e mesmo assim, se o espetáculo narra algo, ele evoca a palavra que conta como potência, cuja realização não se efetiva no palco, mas certamente se efetivará na recepção. O raciocínio, para as mídias audiovisuais de reprodutibilidade técnica (cinema, TV, computador) é análogo. Elas têm, cada uma, suas especificidades midiáticas, que são correlatas ao específico artístico de cada uma (toda mídia é um estético em potência). Saber como fábulas e cantos interagem com estas mídias é saber como as possibilidades que cada meio oferece são exploradas em conexão com os dois modos significantes, cantar e contar. É entender as transformações recíprocas que meios e modos sofrem para se dar esta interação e como funcionam os recortes estéticos (artes) que nascem dela. Hoje, é saber como funcionam o filme, as séries e novelas de TV, a canção pop. Mas para se entender este funcionamento é preciso explorar outra interação, além da de meios e modos. É preciso estudar a relação entre as artes e o regime social a elas correlatas, pois uma arte só tem sentido em sua interação com a coletividade que a produz e consome. Mais especificamente é necessário entender a relação entre o capitalismo e as artes da indústria cultural, principalmente as artes decorrentes da junção das mídias audiovisuais com os modos narrativo e lírico. Entender a interação entre artes e sociedade é explorar a dimensão ética de um recorte estético. Todo recorte tem uma ética e uma política. Mas uma política do desejo, tal qual na canção, não diz respeito apenas às políticas institucionais interiores ao sistema, de disputas por posições de governo, burocracia e guerra, as quais também se referem a desejos, mas estruturados em vórtices mais ou menos estáveis. A política do estético, tal como a do científico, do filosófico e do sagrado mais anárquico, mobiliza fluxos de desejos de margem, que circulam nos limiares dos vórtices com a caosfera. 16/02/06
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PROGRAMA PARA A NECESSIDADE 148. Ontem e anteontem andei lendo o Pós-Modernismo do Jameson, preciso parar. Ele é muito bom, mas aquele texto cheio de tensão e coesão conceitual me contamina. E não tenho talento pra essas coisas da consistência do conceito. Acho-me chato e infecundo quando insisto demais neste caminho. Os textos que escrevi ontem ainda dão pra engolir, mas, por hora, adeus Jameson, adeus dialética rigorosa. São Baco e Santo Orfeu, livrai-me da carolice engajada. 17/02/06 149. Há rumores que o chefão quer trazer gente nova para a grande repartição. O desconforme, que anda ruim de serviço como um barnabé, desconfia que é pro seu lugar. Se ele for destronado de sua mísera chefia, sofreria uma redução de salário. Aperto financeiro, liberdade de vida. Por que o desconforme não pede logo as contas se as responsabilidades da chefia o sufoca? Porque não manda o agente burocrático que o possui à puta que pariu e libera de vez o bruxo, mesmo endividado? Coragem filhadaputa! Coragem! 17/02/06 DO CAPITALISMO 150. A social-democracia é um belo exemplo de como o capitalismo é versátil em sua modulação. As propostas do inimigo comunista de proporcionar conforto a todos foram acampadas pela social democracia (esquerda) européia, sem que fosse necessário abrir mão da propriedade privada. Bastou o estado inflar um pouco e gastar grande parte de sua acumulação de capital com programas sociais, combinado com o crescimento excepcional das economias européias do pósguerra. Bastou implementar como lei, como dever do estado capitalista, não apenas a garantia das liberdades individuais e da economia de mercado, mas também a ação social direta, visando
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amparar os que não se saírem bem na encarniçada competição de mercado. Redes de proteção social, sistemas de saúde e educação universais e gratuitos, salário desemprego e programas sociais os mais diversos. Tudo vai bem enquanto se cresce, mas quanto o sistema se estabiliza e uma crise cíclica o atinge, as coisas desandam – e a direita é chamada para pôr um pouco de ‘sensatez’ à gastança progressista. E desandam não porque o capital falta no mundo ou no país, mas porque as crises capitalistas são ciclos de esvaziamentos do estado, do seu papel de acumulador e gastador ineficaz de capital. Nas crises, criam-se, para os estados, faltas de capital e necessidade de eficiência. É então que a social-democracia dá lugar aos políticos ‘de direita’ para desregular o estado e pôr fim a sua perda de tempo e dinheiro com a pobreza consumada: a velha conversa de que é melhor ensinar a pescar do que dar o peixe... Mas a esquerda (ou os progressistas) não são forças revolucionárias em nenhum regime capitalista. São apenas forças de regulamentação forte, que se opõem à fraca regulamentação da direita. O capitalismo absorveu a esquerda em sua democracia e usou sua criatividade igualitarista para os momentos de tensão mais aguda, momentos em que o sistema começa a ficar muito ‘esquizofrênico’ ou ‘selvagem’, por conta da desregulamentação estatal que a direita efetiva quando exerce o poder. A esquerda democrática é um contrapeso necessário à direita e os Estados Unidos e a Inglaterra foram sábios ao deixar isto bem claro, dividindo os agentes políticos coletivos em dois (Democratas e Republicanos, Trabalhistas e Conservadores) e alternálos no poder conforme a necessidade sistêmica do momento. A esquerda mobiliza os desejos de igualdade e fraternidade e a direita o de liberdade. A dança das duas forças no vórtice capitalista proporciona uma constante revigoração dos desejos mobilizados pelas revoluções francesa e inglesa e pela independência e guerra civil americanas, marcos de consolidação do capitalismo e que constituem a identidade fraca do capital. Fraca porque assentada, paradoxalmente, em princípios de mutação revolucionários. Marcos paradoxais também porque o capitalismo é um regime que chega aos poucos, enquanto as revoluções são processos intempestivos. É que as ondas de capital vão gerando processos aleatórios de modulação que vão se acumulando até precipitarem violentamente de uma hora para outra, como uma tempestade gestada na atmosfera que, ao despencar, trará mudanças irreversíveis ao ambiente. As crises do capitalismo são ciclos de rejuvenescimento revolucionário, nos quais o sistema é colocado em xeque para, depois, absorver a criatividade desencadeada pela instabilidade. É desnecessário dizer o quanto de massa humana é marginalizada (empobrecida, barbarizada, exposta à violência) nos processos de crise. O capitalismo e a democracia nunca foram
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humanistas. O humanismo é apenas um sagrado laico, incorporado no sistema capitalista como identidade fraca do ser, do sujeito. É um horizonte utópico da esquerda capitalista, que a impele a acrescentar regulamentações de fluxos no processo geral do capital, com a finalidade de atualizar o desejo de igualdade e fraternidade das massas. 20/02/06 151. No marxismo um regime social é uma questão de economia, no caso, materialista, de meios, modos e forças de produção. A economia dos regimes de produção é definida pela maneira como o trabalho é mobilizado, repartido, apropriado, regulado. Já para os antropólogos a questão é cultural, ou simbólica, como gostam de afirmar. As culturas se definem por sua economia simbólica, a qual sobredetermina a economia material. Para eles o próprio material já é simbólico (simbolizado desde as entranhas). Os psicólogos também falam em termos de economia, mas individual. Seu sistema/objeto a ser abordado é, por definição, um sujeito individual. Para Freud, o homem é uma questão de economia do desejo, das pulsões do id. Economia inconsciente. Os frankfurtianos tentaram juntar Freud e Marx, mas utilizaram-se de suas categorias de alto nível, derivadas de elaborações especificas de cada teoria, tais como ideologia, classe social, complexo, sublimação, ego, superego. Para se entender o capitalismo (e, por extrapolação, os regimes anteriores) é preciso juntar os dois bruxos no nível quase indiferenciado de suas teorias, lá onde o capital e o trabalho são fluxos, assim como as pulsões do id. Onde o coletivo e o individual se emaranham numa mesma fluxão, numa mesma economia. Economia do desejo. Desejo que é, ao mesmo tempo, coletivo e individual, material e simbólico, ou melhor, está aquém destas dualidades as quais, elas mesmas, são diferidas em função de seu próprio movimento, seu próprio desejar. O capitalismo é uma economia de desejo específica. É o horizonte de todas as outras economias anteriores a ele. É um regime que desmonta e remonta, com sua modulação adaptativa, os
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regimes de estado central: impérios, repúblicas aristocráticas, ditaduras. Deleuze e Guatarri realizaram, no Antiédipo e no Mil platôs, a união mais fecunda dos dois bruxos judeus-alemães, juntando suas teorias em suas bases, no momento da fecundidade intuitiva de cada uma, antes da diferenciação entre coletivo e individual, material e simbólico, quando tudo é fluxo, desejo movediço, economia do desejo: capital, trabalho, pulsões, energia inconsciente. 20/02/06 DA CANÇÃO 152. Anteontem vi o show dos Stones e ontem o do U2, ambos na TV. A canção pop mais vigorosa (e lucrativa) do mundo é feita em inglês (e também em português e espanhol). No show dos Stones uma negra que estava no vocal cantou/berrou maravilhosamente. Com a canção os negros levaram a língua inglesa aonde os brancos jamais sonharam. E contaminaram a fala também. Todo o inglês cantado e muito do falado, mesmo fora dos EUA, é irremediavelmente negro. O que é um feito nada desprezível para um povo que sofreu a escravidão até o século XIX e a segregação até meados do século seguinte. Apossaram-se e subverteram a língua de Shakespeare a partir da porta dos fundos. Com o português e o espanhol não é diferente. Toda a música popular brasileira e cubana passa pelos negros, que contaminaram também a língua de Camões e Cervantes. A canção pop do século XX é uma invenção dos negros. 21/02/06 153. A canção pop é uma questão de performance, atitude e postura. É um espetáculo, no palco e muitas vezes fora dele, que a indústria cultural e os artistas oferecem às massas. Um espetáculo negociado, brigado, perseguido, contado e transmitido pelas mídias de comunicação. O artista é um astro pop ou, pelo menos, cult (cultuado em nichos específicos). Ele é um hipnotizador elétrico, um agente do transe, que vai levar as massas devotas ao delírio uníssono, principalmente no espetáculo de som e luzes que são os shows. As massas são um campo de desejo teso, elas querem ardorosamente a canção. O artista é o amante das massas. Ele se joga nelas com toda a sua força. Entra no seu campo de energia, torna-se seu ponto de confluência e explora os seus nervos. Os nervos do nirvana.
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Performance, pose, transe de massa, mercado. A estética da canção se envolve/emaranha com elementos que pouco têm a ver com o tecido da canção, mas com os quais está em constante e direta interação. Para entendermos a canção é preciso estar atento a seus fluxos (supostamente) exógenos. a música soa voraz voraz como quem a consome consumida na una multidão que se dissolve somos pó pequeninim santo santo santo Ele está no meio de nós as vozes soam unidas e o canto se desenvolve num rito de devoção e desprendimento das cores dos sabores e um só louvor dilui todos os amores o canto segue tenso e soam as almas unidas em uma só oração (ao som da Legião Urbana)
21/02/06 DA VERBOSFERA 154. Há um continuum que vai da filosofia ao verbo criativo (lírico ou narrativo), passando pelas ciências sociais e a palavra sagrada. Anteriormente afirmei que as barreiras entre a crítica literária e a literatura (texto criativo) foram se desfazendo ao longo do século XX, a ponto de podermos considerar Barthes e até mesmo em Candido, como criadores textuais (ficcionistas de idéias). No caso do primeiro a ficcionalização do texto já está na intenção do autor. No caso do segundo, considerá-lo um ficcionista é trabalho do leitor, uma vez que os preceitos de Candido estabelecem uma clara divisão entre o texto crítico (interpretativo) e o literário (criativo). Mas a crítica literária, como também afirmei em textos anteriores, não deixa de ser uma ciência humana e, como tal, não é necessário que ela seja um texto criativo, nem na intenção de seu escritor, nem na interpretação de seu leitor. Ante a contradição, digamos que há espaço para ambas as coisas. Para uma crítica que se queira e seja aceita como ciência humana e para a crítica criativa. Algumas vezes é possível (e mais 158
fecundo) que a primeira possa ser lida, de forma subversiva, como criadora ou ficcional, outras vezes não. É bem possível que muitos textos suportem as duas leituras e os escritos de Antônio Candido, Roberto Schwartz e Octavio Paz são exemplos deste bifrontismo textual. Esta indecisão dos textos pode ocorrer porque entre uma ciência humana (com sua articulação entre rede conceitual e campo de aplicação) e um texto estético há um continuum verbal que impede o estabelecimento de limites claros. Isto porque as ciências humanas, diferentemente das ciências naturais, se constroem com e em meio a uma rede verbal escrita que se enreda perpetuamente. A escrita é uma mídia e, como tal, é utilizável, ou seja, é uma questão de uso. Ela pode ser usada para a construção do sentido, para a comunicação, para a imposição ou para a estética. Na verdade, todas estas dimensões (gnose, contato, poder, arte) estão sempre presentes no uso de uma mídia e o que ocorre, tal como nas funções de linguagem de Jakobson, é a preponderância de uma ou mais dimensões sobre as outras. O uso estético seria, então, uma espécie de função poética da mídia, mas nem de longe isto significa que tal função ocorra quando e somente quando a mídia se voltar para a própria mídia, tal como na consagrada fórmula do mestre estruturalista para a função poética. O uso estético de uma mídia envolve, sem dúvida, a exploração rigorosa e sem peias de suas possibilidades midiáticas, ou seja, implica em voltar-se a si mesma como mídia, como possibilidade formal – imanência formal da mídia. Mas as outras dimensões são tão importantes na arte que a fórmula da imanência formal será insuficiente para se identificar o uso estético de uma mídia, ou seja, será incapaz de oferecer critérios indiscutíveis para se saber se um objeto midiático é ou não arte e em que medida. Digamos que a imanência é uma condição necessária ao uso estético, mas não suficiente para defini-lo. Esta definição do que é estético será sempre uma construção social a posteriori e implicará, entre outras coisas, no reconhecimento, por parte dos receptores, da coisa/protuto midiático como estético. Impossível que haja uma definição do estético que seja puramente formal/estrutural. Tal definição é sempre uma decisão pragmática e, como tal, envolverá as outras dimensões de uso das mídias: gnose, contato, poder. *** Uma solução Jacobsiana seria considerar que a arte ocorre numa mídia quando seu uso estético (função estética) tem primazia sobre os demais usos (gnóstico, comunicativo, impositivo). Mas a determinação desta primazia é uma questão de interesses que repousam mais na recepção que no objeto/evento artístico propriamente dito. O melhor é dizer que para um objeto/evento midiático
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ser considerado arte, é necessário apenas que haja, nele, um uso estético da mídia e não que este uso estético tenha primazia sobre os demais. 02/03/06 155. Desviei do assunto. Retenhamos a afirmação inicial do texto anterior: há um continuum que vai da filosofia ao verbo criativo, passando pelas ciências sociais e a palavra sagrada. Todas estas modalidades de sentido (filosofia, ciências humanas, palavra sagrada, verbo criativo, entre outras) usam, em variados graus e maneiras, as quatro dimensões (usos) das mídias verbais: de gnose, de contacto, de poder e de arte. Digamos que a palavra sagrada carrega um forte uso das dimensões gnóstica e de poder. Não raro a dimensão estética é também relevante. No caso da filosofia, a dimensão da gnose é conscientemente ressaltada, embora não seja incomum o texto desandar para o estético. A passagem de uma modalidade de sentido para outra é uma questão de desvio (mínimo, muitas vezes) no uso das dimensões. Assim, uma textualidade poética que carregue demais no uso da dimensão gnóstica pode ser lida não apenas como poesia, mas como filosofia: Fernando Pessoa. E vice-versa, pois muita filosofia pode ser lida, por sua potência estética, como arte escrita: Nietzsche. Na verdade, entre gnose e estético quase não se pode traçar uma linha divisória, uma vez que a arte não deixa de ser uma gnose. Do mesmo modo, entre poder e contato (imposição e comunicação) os limites são extremamente tênues. As modalidades de sentido que citamos atuam como recortes (entes) na verbosfera. Se entre a filosofia e as ciências humanas há uma promiscuidade funcional, entre ambas e o verbo criativo (literatura, canção, cinema etc) há também imbricações difíceis de desembaraçar. Na verdade, todos os recortes verbais estão imbricados (embaraçados uns nos outros) e os limites que se estabelecem são sempre porosos, embora efetivamente definam modalidades de sentido que se fazem presentes como entes delimitados e objetivos. Estas modalidades de sentido (entes midiáticos) são recortes instituídos pela e na sociedade utilizando-se do continuum verbal e seu estudo deve levar em conta seu caráter de instituição social e a porosidade de suas delimitações na verbosfera. Em contrapartida, o verbo é a principal mídia com a qual se efetuam cortes 5, seja na própria verbosfera, seja no vórtice social com o qual interage. Assim, a mídia verbal é que 5
Esta primazia do verbal é um equívoco que será revisto mais à frente. 160
recorta a si própria e a sociedade através de suas opiniões, religiões, filosofias, ciências humanas e verbos criativos. Mesmo que para efetuar estes recortes o verbo busque auxílio em outros domínios, tais como nas ciências naturais e nas mídias informáticas, é ele que guia o recortar e produz o sentido do ente recortado. Há o capitalismo e sua verbosfera se entrecortando permanentemente. Bruxos enxameiam a verbosfera alheios a cortes. Bruxos brotam no continuum. 02/03/06 DA CANÇÃO 156. O artista da canção que explora seu desejar ir é o desconforme da indústria cultural povoada de agentes. Ele mesmo, muitas vezes, é agente, precisa sê-lo para precipitar o querer ser da canção e, a partir de sua força magnética, propagar o enxame de bruxos. Muitas vezes o desejar ir mora, incógnito, no querer ser da canção comercial. O que o desconforme faz é extrair o desejo de ir da conformidade. Um exemplo dessa morada é a transformação de músicas famosas, com o passar do tempo, em músicas cult, em clássicos da canção (clássico, aqui, tem um sentido bem diverso do literário). É que aquelas melodias fáceis e comerciais, repetidas executadas infinitas vezes e que criaram uma espécie de comunicação hipnótica com e entre as almas, guardam, no futuro, quando deixam de fazer sucesso, um eco da energia de massa, uma saudade, uma nostalgia do ser que passou (os seres sempre passam na indústria cultural). É um envelhecimento do ser, com toda a carga de idílio e desamparo que o processo acarreta. E a canção fica velha em anos na indústria cultural, de modo que as pessoas têm a oportunidade de acompanhar o processo durante sua vida ou estar muito próximas de quem o acompanhou. A velha canção se torna sábia, por mais comercial que tenha sido: sua sapiência consiste em carregar em si o eco do desejo das massas com as quais ela interagiu com tanta intensidade. Ao ficar velha, ela deixa de ser comercial/trash (coisa para demarcados) e se torna cult/kitch (coisa para agentes e desconformes). A canção representa (é uma questão de representação) para a pessoa o envelhecimento em ato, a vivência do (seu próprio)
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envelhecimento que vai disparar o lírico da velhice, mas também a necessidade da juventude, da nova canção de sucesso, a renovação do vórtice. O desconforme também vive o lirismo da velhice da canção do passado, mas ele vai ligar a coisa não ao mecanismo da necessidade da nova canção comercial, mas na mais valia negativa da tradição dos bruxos, no desejar ir para o fora atmosférico, no afã de tentar romper o ciclo neurótico do querer ser da canção. O desconforme se utiliza, muitas vezes, da velha canção de sucesso, já incorporada na tradição, seja através da reinterpretação, seja utilizando-se de alguns de seus elementos (postura da voz, ritmos, instrumentação, atmosfera musical de época, estilo da letra etc), para fazer a canção de arte. Para isto ele acrescentará novos dados inusitados, mesclas com outras tradições ou com elementos contemporâneos, criando uma nova colagem. O artista da canção, comercial ou de arte, é um bricouler, um montador de músicas pop. Para a nova canção comercial a bricolage é o novo da moda, relativamente inesperado, mas que se enovela bem nos vórtices dos demarcados, ou seja, é o espanto que o querer ser esperava para que a conformidade seguisse o seu curso. Já na canção de arte a colagem se distancia do vórtice e o desejar ir traça uma linha de fuga para o fora atmosférico. Novo não seria bem a palavra adequada para a canção de arte, mas estranho, fora do compasso sistêmico, desafinada de seu ritmo vortical a ponto de causar desconforto no demarcado (e tudo o que o demarcado deseja é conforto), que vai achá-la, não raro, insuportável. É aí que os agentes agem. Eles perseguem a fuga desconforme e enovelam a linha traçada pelo desejar ir da canção de arte no vórtice sistêmico, ampliando os limites do querer ser da canção comercial. Eles ‘comercializam’ (tornam comerciais) o desejar ir do artista desconforme, tornando a sua fuga confortável para o demarcado. O desejar ir do desconforme da canção e sua ética de subsistência são convertidos, pela obra dos agentes, em querer ser, cuja ética da acumulação vai construir vórtices de conforto a partir da fuga. Assim, os artistas sertanejos ou pagodeiros gravam as canções de arte dos desconformes com arranjos e interpretações comerciais, bem ao gosto do querer ser das massas (confortável aos demarcados). Ou então a canção comercial absorve recursos da bricolage estranha da canção de arte, como ocorre na introdução de guitarras, teclados e arranjos pop, oriundos das experiências da MPB e do BRock, na música sertaneja. Muitas vezes um mesmo artista (ou banda) faz ambas as coisas, canção comercial e de arte. Mais ainda, uma mesma canção pode desencadear o querer ser das massas e o desejar ir desconforme, pois o próprio desejo de ir é construído com a energia do querer ser. São fluxões emaranhadas os dois desejos e a depuração, muitas vezes, exige um trabalho do próprio ouvinte, um trabalho de conexão com o que há de linha de fuga na canção ou no artista.
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O que resta da absorção da linha de fuga promovida pelos agentes será a mais valia negativa da tradição dos bruxos, fluxos desgarrados de desejar ir a espera de outro desconforme que os evoque. 02/03/06 157. PROGRAMA PARA A NECESSIDADE Diabo! Eu nunca li o McLuhan, mas acho que estou impregnado dele, da sua atmosfera textual (quem não estaria?). As idéias deste canadense parecem contaminar o século XXI como as de Freud (e Marx) contaminaram o século XX. A idéia da mídia, da maquinaria midiática como extensão nervosa do homem, como modo perceptivo, se parece muito com as idéias de Deleuze sobre as máquinas de uma dada sociedade, as quais são também extensões do corpo humano. Para ambos, quando uma nova máquina/meio surge, uma nova interação homem-máquina vai redefinir todo um campo social. O próprio homem é concebido como parte da maquinaria geral que é a sociedade, em contraposição à concepção do homem como sujeito, ou seja, como estrutura, ser individual. As máquinas seriam, então, um acréscimo de maquinismo criado pela própria maquinaria que é a sociedade. Esta idéia é um desenvolvimento (um tanto subversivo) das concepções materialistas mais radicais da biologia de Darwin, da psicanálise de Freud e do marxismo. Enfim, Deleuze vai falar da máquina desejante, unindo as pulsões do desejo à proliferação maquínica. McLuhan, ao que me parece, vai também nesta direção, ao encarar a mídia como extensão do sistema nervoso do homem. Ele parece remeter ao fluxo de desejo, com sua idéia de mídia. Ele põe o dedo na ferida das massas, nos nervos do nirvana do capital. Ando sem tempo para uma leitura mais demorada e concentrada. A repartição só me dá um tempo entrecortado pelas solicitações do trabalho burocrático, mas preciso ler o filhadaputa do xerife. 03/03/06
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DA VERBOSFERA 158. O QUE É UMA MÍDIA VERBAL? O verbo é uma intermídia (ou transmídia) oriunda da fala. É a fala e todas as suas transmutações ao ser absorvida por outras mídias (escrita, teatro, cinema, tv, informática, etc). McLuhan afirma que, quando surge uma nova mídia, a anterior se torna seu conteúdo. A nova mídia seria uma forma de expressão e a antiga uma forma do conteúdo, para falar com Hjelmeslev. Assim, a fala se torna o conteúdo da escrita quando esta é inventada. E a escrita é o conteúdo da informática e assim por diante. Quando McLuhan indaga qual é o conteúdo da fala ele diz que são processos mentais: a produção do cérebro, a máquina mental por excelência. A fala foi a primeira mídia do homem. É a única mídia ‘natural’, que não se cria da/na cultura, mas com a cultura (consciência, trabalho, sociedade). Na verdade esta primeira mídia poderia ter sido a linguagem de sinais, se não dispuséssemos do aparelho fonador ou dos ouvidos, como no caso dos surdos. Nestes, o cérebro procura outras articulações corporais para a linguagem, a saber, o corpo e os olhos. É pelo verbo que os homens recortam o continuum do mundo e produzem a gnose e o contato. Mesmo que haja mídias não verbais para fazer sentido e comunicação, o verbo sempre guia o processo6, muitas vezes, de uma posição subsidiária ou ‘externa’. É o que acontece nas ciências naturais, onde o verbo não participa do cerne da gnose (é externa a ela), mas é por ele que se ensina a fazer e se divulga. É com ele que se sabe do grau de importância da pesquisa e é por ele que passam as intermináveis discussões dos cientistas e filósofos da ciência. É por esta capacidade do verbo de guiar os recortes que as mídias se mesclam a ele, se tornam verbais. Rádio, cinema, tv, informática são exemplos de mídias que não necessitam do verbo para serem mídias, mas mesmo assim o incorporam. A lógica das mídias é fazer tudo o que podem, é desenvolver todas as suas potencialidades e quando o verbo é um potencial da mídia por que não desenvolvê-lo? Foi o que se deu com o cinema, quando pôde ser verbal (e o cinema mudo quando se torna narrativo já é verbal) ele o foi imediata e irreversivelmente.
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Esta opinião verbocêntrica será revista mais à frente. Na verdade o verbo não guia efetivamente os cortes, mas tende a ‘se intrometer’ em todos os cortes, tentando totalizá-los, guiá-los à sua maneira. 164
McLuhan não gosta de falar de sentido: o meio é a mensagem. Mas o verbo é uma transmídia oriunda de uma mídia específica: a fala. E a fala, como meio, tem pelo menos três modos de sentido: contar, cantar e pensar. Quando uma mídia interage com o verbo (o melhor seria dizer: quando ela mescla sua atmosfera com a verbosfera) ela vai incorporar estes modos de sentido os quais vão interferir na construção de conteúdo. O conteúdo de uma mídia, a partir do momento em que ela se torna verbal, não está apenas em si mesma enquanto meio puro (não verbal), mas na articulação do meio com os modos de sentido da verbosfera. (Se bem que McLuhan não considera uma mídia em ‘estado puro’, não verbal. Para ele a mídia é sempre todas as suas possibilidades, inclusive o verbo. Ele tem razão, mas muitas mídias podem ser consideradas como tais sem o verbo. Estou interessado em separar as coisas porque é possível traçar o mapa de uma verbosfera, transversal a muitas mídias. E o verbo é importante demais na construção do sentido para deixarmos de apontar sua transversalidade e suas especificidades.) Quando os modos de sentido da verbosfera interagem com uma mídia ocorre uma transformação recíproca entre modos verbais e mídia. Eles se adaptam uns aos outros. Uma coisa é o cinema como mídia pura, outra coisa é o cinema narrativo (mesmo mudo). Reciprocamente, a verbosfera (e seus modos de sentido) não será mais a mesma com o advento do cinema. Contar, cantar e pensar mudam radicalmente ao interagirem com a imagem-movimento cinematográfica. 07/03/06 159. MODOS VERBAIS E PERCEPÇÕES Cantar é interagir a palavra com o som e contar é interagi-la com a imagem. Pensar (criar explicações) é despertar a potência abstrata da palavra, sua potência conceitual, mesmo que se pense por metáforas ou, como se diz, por conotações (poeticamente). Quando se pensa assim, por figuras, temos um submodo analógico de pensar, em contraposição ao pensamento lógico da filosofia ocidental, por exemplo. Não raro o pensamento analógico descamba para o canto e os modos pensar e cantar se mesclam numa gnose impura (hai kai). Mais comum é o pensamento analógico descambar para a fábula, pois a imagem é da natureza de ambos. O pensar analógico é um misto de conceito e imagem (símbolo).
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Os mitólogos têm uma desconfiança de que os deuses e heróis dos mitos são definidos , tanto por suas ações (fabulares), quanto por seus atributos arquetípicos (figuras), as quais são ações em potência: Zeus é o raio que ilumina e destrói. O pensar analógico é um contar em potência e viceversa. Os mitos das sociedades orais são, ao mesmo tempo, um pensar analógico e um contar pensante (pensamento e fábula), um modo misto de gnose verbal. Na maior parte das vezes são cantos também. Raramente os modos de gnose se manifestam de forma pura, ou seja, normalmente não há apenas um modo de sentido em atuação. Uma notícia de jornal é, em geral, uma fábula entremeada de digressões (pensamento). Um poema ou uma canção pop são cantos que quase sempre encerram pensamento7 e, muitas vezes, fábulas. Fábulas, cantos e explicações são modos de sentido (ou gnose) do verbo, os quais usamos para recortar o continuum da caosfera. O verbo, com seus modos, perpassa transversalmente as várias mídias, formando uma verbosfera. A composição desta com as mídias formam, por sua vez, uma midiosfera que vai entrecortar (recortar) a caosfera e produzir sentidos nela: recortes de sentido. 08/03/06 160. Saussure tinha razão em privilegiar a fala ao estudar a linguagem. A fala é a primeira mídia e os três modos de sentido (cantar, contar e pensar) da verbosfera são concernentes a ela. É claro que estes modos vão sofrer alterações ao se imbricarem com as diversas mídias que vão surgindo. Mas as mídias também se modificam ao absorver os modos. 09/03/06 161. MODOS VERBAIS E TEMPO
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U uso do pensamento num poema ou numa canção se dá normalmente pela exploração das zonas cinzentas dos campos conceituais da linguagem. Assim são as figuras de sentido e as oscilações de significado que elas disparam. As figuras de sentido explicitam a caoticidade conceitual inerente às línguas, apesar de seu uso constante na tentativa de organizar o mundo. 166
Cantar é enovelar/espiralar o tempo, criar turbilhões temporais. Contar é estender a linha do tempo, desembaraçá-la na caosfera, mesmo que a linha guarde circularidades, como na fábula mítica. Pensar é paralisar o tempo, saltar fora, desvencilhar-se da fluidez temporal e traçar uma linha em zigue-zague abstrato. Vamos levar em consideração a questão do tempo e mesclá-la com a dos sentidos, para entendermos melhor os modos de sentido da fala e, por extensão, da verbosfera. Cantar é interagir a palavra com o som, turbilhonando o tempo. Contar é interagir palavra e imagem estendendo a linha do tempo. Pensar é abstrair a palavra dos sentidos e da temporalidade, explorando no verbo a potência pura (ou impura, no pensar analógico) do conceito. 09/03/06 DA LITTERA 162. Ó minha doce carniça, meu amargo alimento, meu único sustento, minha mais querida defunta, marca-me para todo o sempre com os teus dentes empestados, mancha a minha pele com tua língua de bolor. A ti, todo o meu rancor, todo o meu pavor, todo o meu sórdido amor!
Depois de morta, a literatura proliferou. Ela ficou melhor decomposta, em estado de verme e erva, longe das nobrezas do dever ser. O dever ser literário hoje é só uma caricatura que se distribui nas salas de aulas, coisa da burocracia do ensino para se passar em provas. Ou então, uma caricatura das não menos caricatas igrejas (da profundidade, da construção, do engajamento) que ainda acreditam no sacerdócio e no santo ofício da conversão literária – profissão de fé. Se há uma campanha a ser feita junto aos jovens para o bem do texto criativo, ela deve ter a seguinte mensagem: NÃO LEIA DE JEITO NENHUM ESTA CHATICE! VEJA FILMES, ESCUTE CANÇÕES. SE FOR LER, LEIA BEST-SELLERS ENVOLVENTES. Os desconformes e seu desejar ir vão ficar ouriçados pra ver do que se trata a chatice alardeada. Depois de já termos nos certificado da morte da Literatura, resta o texto criativo, pois enquanto houver a mídia escrita, haverá também a sua possibilidade estética (de gnose estética). A este texto criativo podemos até chamar de literatura. Porque não chamarmos se afinal os nomes dos mortos servem também aos vivos? A literatura como arte de subsistência e não como Grande
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Arte confortável (adeus igrejas e sacerdotes). E os literatos como artistas menores. Bandeira, antimestre miúdo do ruído afetivo. A literatura renasce, não como Fênix, mas como zumbi, como moscas do monturo. Ela empesta o ambiente. É coisa de e para poucos condenados desconformes (e também para agentes, no caso de reabsorção sistêmica). Estes poucos, no entanto, não são homens iluminados nem equivocados: porque hierarquizar pessoas? São homens de fuga condenados à margem. A literatura erra despercebida nas bordas, ao lado do passo marcado dos demarcados. Ela se infiltra e influi ínfimos milímetros na ordem dos vórtices. Salve a ex-morta, a quase viva virulenta littera! Ela vive! Bem vinda à vida vampira, doce literatura!
10/03/06 DA VERBOSFERA 163. Não tenho tanta certeza, como afirmei anteriormente, que é sempre pelo verbo que se constrói o sentido (gnose e contacto) nem que ele guia esta construção quando ela é feita por outras mídias não verbais. Uma lembrança infantil reforça esta dúvida. Quando criança, lembro do encanto que havia nas listas multicoloridas verticais da TV (estáticas, mas borbulhando de micromovimentos luminosos) quando estava fora do ar ou a programação do dia ainda não tinha começado. Normalmente havia estas listas e um relógio digital embaixo. Que lembrança cristalina! Era como se aquilo fosse a TV em estado puro, sem os artifícios do movimento, das figuras e das vozes. Era a arte minimalista da TV em mais alto grau (grau zero da TV), misturada com o dia a dia da casa e da cidade. Encanto é forma de dizer o que não se pode dizer, transe que as palavras não alcançam. Isso me levou a pensar no quanto um cheiro, uma paisagem, um ruído pode ser prenhe de sentido. A TV me encantava e não há necessidade de palavras para o encanto fazer sentido. Não, definitivamente o verbo não guia o sentido, não é principal. O que acontece é que o verbo está sempre presente na construção do sentido – ele se intromete e tenta prevalecer. Então, ao invés de dizer que o verbo é importante porque guia a construção de sentido, é melhor dizer que sua importância decorre de sua intromissão em todos os processos de construção de sentido, sem
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necessariamente atribuir-lhe a primazia nestes processos. Quando uma mídia o incorpora e se transmuta para interagir com um modo verbal de gnose (contar, cantar ou pensar) é, sem dúvida, junto com o verbo que ela faz sentido. Quando uma mídia não utiliza o verbo, o sentido brota mesmo assim, os recortes se fazem por outros meios e o verbo não os guia de fora. Neste caso, eu diria que o verbo os acompanha de fora (como intrometido) a produção de sentido não verbal de uma mídia. Acontece, então, o choque entre as duas produções de sentido, a não verbal e a verbal que inevitavelmente acompanha a primeira. Estas duas produções são recíprocas, mas independentes, autônomas. Elas se interferem mutuamente. Acontece que a própria produção de sentido verbal também vem, obrigatoriamente, acompanhada de sentidos não verbais. Quando se canta, o ruído ‘faz sentido’. Dependendo da mídia em que se canta e que recursos desta mídia são usados, a imagem faz sentido, como na escrita, na qual o desenho da letra faz sentido. E um sentido obrigatoriamente autônomo e interagente com o verbal, na verdade indiscernível dele. Tão autônomo que a mancha do papel pode fazer sentido sem nenhum verbo, como na caricatura ou no desenho – e mesmo a caligrafia. Mas aí, voltando ao ciclo, sempre vai aparecer o comentário verbal sobre as manchas e as cadeias verbais e não verbais vão novamente se digladiar/interagir – daí a indiscernibilidade dos sentidos verbais e não verbais. O verbo, então, não é único nem principal na construção do sentido. Sua especificidade e importância decorre do fato de que ele sempre aparecer junto com qualquer produção de sentido. 16/03/06 164. Digamos que faz parte do verbo o desejo que guiar o sentido, de se sobrepor aos sentidos não verbais que proliferam na caosfera. É uma tendência que o ocidente levou às últimas conseqüências, com os conhecimentos sagrado e filosófico estritamente verbais. A verbosfera quer absorver todas as atmosferas. Mas muitas vezes o verbo pode querer se dissipar nas atmosferas. O canto é um exemplo desse desejo inverso. O canto no ocidente foi sempre uma resistência do próprio verbal ao seu desejo de hegemonia. 16/03/06
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DA CANÇÃO 165. Que besteira a minha achar que o verbal guia os recortes de sentido, que besteira! Veja a canção norte-americana que tanto amamos, sem entender palavra. Mas ela faz sentido, o ruído da voz, o seu risco melódico, o andamento, a sua entonação e disposição afetiva faz o recorte, sem que saibamos do seu significado verbal, à revelia mesmo do significado. E o verbal como som da voz desprovido do conceito é uma fuga para o seu fora, pura mídia sonora, melodia vocal. Mesmo na canção em português acontece algo parecido. Há um caso exemplar disso. É bem sabido que as letras de Renato Russo são autobiográficas, ou seja, o que os críticos chamam de eu lírico do canto é muito próximo ao eu biográfico (deixemos de lado o fato de que ambas as subjetividades, lírica e biográfica, são construções – em todo caso, se fazem sentir como objetivas). Antes do cantor declarar explicitamente em entrevistas que era gay e cantar, também de maneira explícita que “eu gosto de meninas e meninas”, pelo menos em duas canções a sua homossexualidade foi, no mínimo, insinuada sem que ninguém a notasse: em “Soldados” e “Daniel na cova dos leões”. Nesta última, ao se referir ao corpo da pessoa amada a letra diz “teu corpo é o meu espelho em ti navego/ e sei que a tua correnteza não tem direção”, numa clara alusão ao corpo masculino do amado, ‘espelho’ do amante. Nem os fãs mais inteligentes, nem os críticos de revista (que, supõe-se, deveriam ser dotados de uma boa perspicácia verbal) parecem ter desconfiado da homossexualidade que, num meio machista como no Rock, era de se esperar que vazasse em comentários maldosos. Mas o fato deste ‘detalhe pessoal’ não ter sido notado deve-se menos à idiotice dos receptores do que à maneira não verbal como o sentido é construído na canção. A capacidade vocal, as atitudes performáticas, a personalidade conturbada e o comportamento rebelde (que não deixava transparecer ao público o homossexualismo) de Renato Russo faziam recortes de sentido não verbais que, certamente se sobrepuseram aos sentidos verbais mais sutis. Os fãs da Legião, que tratavam a banda e principalmente seu líder, com uma idolatria quase religiosa (e Renato Russo era um moralista, imoral, diga-se de passagem), quase não entendiam suas letras, do ponto de vista verbal, ou só as entendia na sua simplicidade imediata, quase da mesma maneira que os fãs de música sertaneja entendem imediatamente as suas letras intencionalmente diretas. Assim, um fã da Legião sabe muito bem da moral implicada em trechos como:
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Você me diz que seus pais não entendem Mas você não entende seus pais. Você culpa seus pais por tudo E isso é absurdo. São crianças como você. O que você vai ser Quando você crescer? (Pais e filhos, R. Russo)
Ou, seja, a interpretação imediata deste trecho é feita sem problemas: não se deve culpar os pais que, no fundo, estão tão perdidos no mundo quanto os filhos que, por sua vez, serão pais e estarão, no futuro na mesma condição de seus pais atuais. Mas os sentidos ‘mais argutos’, sutis, sinuosos, insinuados e até involuntários das letras (que os bons leitores e críticos literários gostam de encontrar em romances e poemas) não costumam passar pela cabeça dos ouvintes e nem mesmo da crítica musical de imprensa que, embora não seja especializada, costuma ser muito bem informada e perspicaz. Mas sua perspicácia raramente é da ordem do significado verbal, pois ela passa mais por aspectos que chamaríamos de comunicativos, tais como o peso e a intensidade da música, a postura da voz, as atitudes e comportamento aos quais o sentido imediato da letra remetem, etc. E a abordagem desta crítica raramente vai passar pela análise mais detida e criteriosa dos elementos da canção, se assemelhando muito ao que se convencionou chamar, em literatura, de crítica impressionista. Parece que os ouvintes da Legião Urbana (de toda a canção) vão perceber as canções como construções de sentido, muito mais por seu efeito não verbal que verbal. Força magnética da voz e da instrumentação em interação com os sentidos mais imediatos e brutos da letra. Apenas com a recente abertura de parte do meio acadêmico a algumas vertentes da música pop, é que alguns críticos (como Luiz Tatit e José Miguel Wisnik) passaram a tratar a canção como coisa estética à altura das criações literárias e merecedora de uma crítica mais atenta às suas especificidades e complexidades. Uma das especificidades que estes críticos literários reconhecem na canção é que, nela, o sentido verbal interage com recortes de sentidos não verbais, os quais são tão importantes quanto o primeiro. Na verdade, o sentido da canção, como coisa estética, é fruto desta interação de elementos verbais e não verbais. A própria voz enquanto ruído, linha melódica ou tom afetivo constrói, pala além (ou aquém) do verbo, sentidos que vão interagir (prolongar, intensificar, quebrar, refratar, distorcer, contradizer) com ele. A fecundidade estética da canção (a fecundidade do seu recorte de sentido) deve ser buscada nesta interação da verbosfera com outros elementos midiáticos mobilizados por ela. 17/03/06
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DA LITTERA 166. “A referência desdobrada” de Dominique Combe é um texto sobre lírica e subjetividade. O texto está todo imerso na problemática da igreja profunda. Digamos que se trata de uma disputa interna desta igreja, percorrendo uma polaridade que vai do sujeito empírico, passando pelo sujeito autobiográfico e lírico, até desaguar no sujeito universal e no ser. Seguindo, desde o romantismo, o percurso da idéia de lirismo, o texto é um belo levantamento do que se pensa no interior do vórtice profundo, o qual se instaura na caosfera textual a partir de um ponto de abismo subjetivo/ontológico. Os poetas, como críticos e auto-críticos, até podem se filiar à fé da igreja profunda, mas enquanto poetas, às voltas com a maquinação estética do poema, receio que estão cagando e andando para as sutilezas profundas, com os seus problemas de grau de ficção ou de subjetividade lírica do texto poético. É que os poetas são massas, multidão de desejos imbricados com outra multidão que é a coletividade e se proliferando em outra multidão ainda que são as massas textuais. Os desejos atravessam de ponta a ponta o corpo do poeta e sua luta, como bem sabe Gullar, é corporal, é de como se haver com os fluxos que formam, deformam, informam e transformam os corpos. E os corpos são densidades diferenciadas na caosfera, ou seja, são atmosferas em regime de imbricação infinita. Os poetas só querem um bom texto para proliferar os corpos, para expandir o fluxo de desejo de modo que o en-canto de viver não cesse. É preciso, então, propagar o canto em ondas, cada onda uma alvorada de frescor em forma de texto por entre a vida. E se deixando penetrar de vida. Há sujeitos constituídos, estruturas de linguagem e processos históricos nisto tudo? Há, ou melhor, pode haver todos estes vórtices (corpos organizados em profundidade) e seus pontos de abismo, gosto para todos os catecismos, mas o que preocupa o poeta enquanto possesso pelo bruxo é como se haver com os campos de desejo que formam estes vórtices consagrados, mas também e principalmente com os desejos que fogem e se desdobram para aquém ou além destes mesmos vórtices. Menos que formações vorticais o poeta está à procura de vibrações e energias de margens (deformações, a-formações), turbilhões finíssimos impregnando os poros dos vórtices da caosfera. Ele delira porque se liga a estes fios imperceptíveis e passa a insinuar, prolongar e criar sua fluxão. Porque escapa às demarcações e fugas relativas. A última coisa que o poeta faz, enquanto possesso, é exprimir ou construir, pelo poema, o sujeito ou o ser (em estado de
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possessão ele nem mesmo instaura a problemática do sujeito). Tampouco ele deseja construir a estruturalidade da linguagem ou processar a legibilidade histórica. O desconforme quer o específico absoluto da vibração de onda (devir), quer subsistir apenas até se gastar todo na margem. O poeta possesso não quer nenhum conforto dos pontos de abismo. Que importa o sujeito, a estrutura, a história se o que ele precisa é tangenciar estas espirais confortáveis com sua ética de subsistência? O máximo que elas dão a ele é um ponto de tangência, mas pontos não servem muito a quem cria e percorre fios carregados de desejo, a quem flui interminável. Depois de tantas auroras o poeta busca apenas mais uma... aurora. 20/03/06 DA CANÇÃO 167. A canção pop, surgida no início do século XX, é o cantar, como modo verbal, em interação com as mídias audiovisuais. Nela o verbo vocalizado (voz melódica) se vincula, por um lado a uma letra (verbo escrito) e, por outro, a uma instrumentação. É na interação entre estes três elementos que se deve buscar a riqueza e a complexidade da canção. Há momentos em que a letra ganha contornos de poema e quase se sustém por si mesma (Chico, Caetano), assim como a instrumentação pode se tornar tão sofisticada que poderia andar sozinha (Tom Jobim). Mas enquanto canção, a voz que canta tem sempre um papel muito importante, no mínimo igual ao da letra ou da instrumentação e, em geral, subordina a ambas. Mas há artistas que se utilizam das mesmas possibilidades das mídias audiovisuais e bebem também no poço folclórico que alimentou a canção para fazer uma música puramente instrumental, como é o notório caso do jazz e de artistas como Egberto Gismonti, Wagner Tiso e Hermeto Pascoal. É uma música, ao contrário da erudita, estritamente vinculada às mídias audiovisuais, inclusive nas apresentações ao vivo que não dispensam aparatos elétricos (instrumentos elétricos, microfones, amplificadores, caixas de som) e até efeitos visuais e comportamentais de shows pop. Trata-se da música instrumental das mídias audiovisuais ou, simplesmente, música instrumental elétrica.
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A própria música erudita (?) em seu viés eletrônico, se aproxima desta música instrumental elétrica e se mescla sem parar a novas formas e conceitos, inclusive performáticos. Mas o fato é que há um campo criativo estritamente musical aberto entre a canção e a música erudita, que muitos artistas exploram, com maior ou menor freqüência e de muitos modos. Uma terra de ninguém, também aberta à exploração crítica. Muitos procedimentos desta exploração crítica serão os da música erudita, pelo refinado grau de elaboração musical deste campo, outros ainda serão fornecidos pela canção, pois o espaço, técnico e mercadológico, desta música instrumental é o mesmo, ou seja, o das mídias audiovisuais. Tal música se cria e procria em nichos cult (como o jazz e o chorinho) ou especializados (como as trilhas de cinema) destas mídias. Outros procedimentos de análise, além dos da música erudita e da canção, certamente terão de ser criados para se entender o específico desta música pura não erudita. 30/03/06 168. Há letras que de tanto apuro verbal podem ser consideradas poemas? É possível. Assim como a instrumentação pode se tornar independente da voz e da letra, esta pode se desligar do par vozinstrumentação e se tornar poema. Mais uma vez nos encontramos em campo indefinido. Por outro lado, na literatura, muito da poesia dita marginal e dos experimentos poéticos concretistas e de artistas como Arnaldo Antunes talvez estejam vinculados a este campo misto, entre o poema literário e a letra poemática. É como se esta poesia só pudesse ser entendida em seu efeito estético na medida em que ela exige, na sua recepção, uma prévia competência audiovisual do leitor, o qual deveria ser dotado da capacidade de interagir com a canção (e o filme) para fazer o poema fazer sentido. Talvez, desde o modernismo os poemas escritos venham exigindo, cada vez mais, uma perspicácia elétrica do leitor, própria das mídias audiovisuais. 30/03/06 169. Diante de tais campos mistos é possível nos perguntarmos se há fronteira discernível entre poema literário e letra de canção, de um lado e, de outro, entre música erudita e música instrumental elétrica. Talvez haja polaridades instituídas/construídas que, nem por isto, deixam de ser efetivas. Isto quer dizer que estas polaridades são relativamente perceptíveis e se fazem sentir como entes
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objetivos, não obstante seu caráter de coisa convencionada e a porosidade de suas fronteiras. Uma destas polaridades é a musical, que instaura os pólos (entes) erudito e instrumental elétrico, por entre os quais a música se movimenta. Outra polaridade é a verbal, com os pólos literatura e canção, que instaura uma linha verbal contínua que vai do poema ao canto (letra cantada). Mas as fronteiras estão se tornando cada vez mais indiscerníveis e as mídias audiovisuais, reforçadas e transformadas com o advento da teleinformática, parecem tender à absorção do poema e da música erudita em nichos seus. 30/03/06 DA LITTERA 170. “A referência desdobrada” de Combe, leva a problemática do sujeito até os limites da igreja profunda, chegando à conclusão, na esteira de K. Stierle, Ricoeur e Husserl, de que o eu lírico, ao invés de representar ou expressar um sujeito ou ser já existente/presente, é uma subjetividade que se faz no e pelo poema, ou seja, é uma entidade das atmosferas textuais. Adiamento do sujeito para a leitura ou, pelo menos, para a estrutura do texto? Para Combe o eu lírico é um sujeito oscilante entre o eu biográfico e o fictício (ambos construídos no poema). Ele quase chega a dizer que os vórtices de subjetividade se formam na atmosfera textual por conjunção de feixes heterogêneos. É o último lance da igreja profunda, o seu limite máximo a partir do qual ela se dissiparia na atmosfera: o sujeito por vir no/do poema. Por que não falar logo em processos de subjetivação da máquina poética ocidental, assim como poderíamos falar em seus processos de estrutruração e historicização. Não é ilícito falar assim, pois enquanto vórtices desejados e instituídos (processados), sujeito, estrutura e legibilidade histórica existem e exercem seu peso sobre nós: são entes objetivos. “A referência desdobrada” é um gatilho de ateísmo bruxo inscrito na igreja profunda da literatura. Todos os bruxos são ateus. E empestados de magias. 30/03/06
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DA CANÇÃO 171.
CORPO E CANÇÃO A canção dispara o corpo das pessoas. Uma pessoa se torna em muitas, em massa corporal sacudida pelo som que libera nela o que há de multidão – ínfimo infinito. E as pessoas juntas se tornam massa, mar em ondas moduladas (e modulantes) enquanto o canto as atravessa. A canção é performática, seu magnetismo não é apenas de ordem auditiva, mas corporal, gestual, teatral, é da ordem da dança e do coro coletivos, transe do corpo contaminado pelo ouvido. A canção é som, mas também performance, postura e pose. Ela gesticula, contorce e contagia o corpo que se torna um pleno de som. Corpo eletrificado de som. Diferente da música erudita, do balé e da ópera, feitas para ouvir e ver8, na canção o público canta e dança junto, seja no show, em casa, na rua, no bar, na boate, no automóvel... O artista é um mestre de cerimônias, um pajé magnético que incita as massas a mexerem sincronicamente seus corpos e línguas. O som da canção desprende as pessoas de suas personas e as lança na multidão (mesmo que sua audição seja solitária), como se estivessem drogadas, transe, trança interminável de fluxos desgarrados. O corpo do artista, o corpo sonoro da canção e o corpo das pessoas disparam-se mutuamente e os corpos se precipitam em massas que se misturam continuamente. Massas emprenham massas, elétricas, dementes, em movimentos ondulatórios. E o capital ama estes movimentos e entra como fluxo a mais, como corpo massivo a mais, desejando se propagar por todos os outros corpos e modulá-los: ele dança junto e quer guiar a dança, dar o compasso. É uma dança monstruosa e fabulosa das massas, comparável apenas ao transe proporcionado pelos espetáculos esportivos populares. Para se saber do pulsar da canção é preciso entendê-la como corpo e explorar sua interação com outros corpos em estado de massa, de amorfia fluida, magnetizados pelo som. São atmosferas que se imbricam estes vários corpos heterogêneos, digladiando-se e comungando-se ao mesmo tempo e no mesmo movimento. A performance dos corpos não é um elemento exterior à canção, mas se imbrica no feixe que a constitui enquanto coisa estética. 8
Não é que estas modalidades clássicas prescindam do transe ou tornem as pessoas espectadores mais ou menos passivos. Não se trata disso. A passividade não está em questão, pois tanto na canção como nas artes clássicas pode ou não haver vários graus e modos de passividade ou atividade na recepção. E no canto e músicas eruditos e no balé, o corpo das pessoas também está envolvido e, não raro, o transe se manifesta. A diferença é que se trata de um transe estático, “búdico”, no qual nem o corpo nem a boca se mexem para acompanhar os artistas. A possessão das artes eruditas é meditativa, enquanto a da canção é performática. Talvez isto se dê por conta da origem negra da canção. É sabido que os negros americanos preservaram a performance corporal, de origem tribal, em suas manifestações musicais e religiosas, que muitas vezes se misturam. Mas o mais interessante é saber porque isto foi preservado e prezado na canção, em detrimento do transe meditativo das artes clássicas. 176
A canção pop é um chacoalhar arrítmico e concomitante de corpos plurais. É um feixe feroz de massas diversas. Turbilhão sonoro. Canção, corpo, contorção. 31/03/06 172. Os poemas modernistas, muitos deles, são atravessados do espírito descontraído de uma canção, como em Oswald, algum Bandeira e muito Drummond. Riso irônico que reage à canção e a provoca, mantendo sua linha de simplicidade. E a complexa mobilidade que a realização vocal e instrumental dá à canção os poetas conseguem com o movimento sutil do riso irônico, conjugado com o tradicional jogo fonêmico, em poemas áridos de metáforas e sentidos ocultos. 04/04/06 173. Ah! O desejar ir da canção é como se fosse o desejo de pregar uma peça no audiovisual, de recuperar modos antigos de perceber (como diz McLuhan) a partir da força magnética do som elétrico. Mas é também inventar, de dentro deste mesmo magnetismo, percepções inusitadas, nunca exploradas e só possíveis com os recursos das novas mídias. Nem tudo, caro xerife, é volta ou ciclo, os fios caosféricos são sem meadas demais para retornos primordiais. A canção então se estranha e como tal aparece ao público, como se provocasse um choque nas massas no mesmo movimento de seu gozo. É preciso gastar os confortos da canção num rasgo de fuga impertinente e incoerente para fora do vórtice, rumo ao enxame de bruxos: magia da subsistência. O artista se consome numa voz desconhecida, possesso. A lira é triplo pulsar de Dionísio, Orfeu e Afrodite, deuses dos transes violentos, dos corpos desorganizados transmutados em massas atravessadas de fios de energia tensionada. A lira audiovisual efetiva ondas sonoras no ar e satura materialmente o ambiente, ela entra pelos poros corpóreos. Tudo se torna em massa: uma pessoa, várias, a multidão. Tudo se desorganiza e se enfeixa em atmosfera, sem o mínimo esforço, força magnética. Corpo físico, espiritual e musical se turbilhonando vorazmente num só corpo turbilhão, plural e aberto, todo poros, corpo poro, corpo só, corpo pó.
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O capital, o corpo ascético e asséptico do capital segue os movimentos dos corpos musicais de uma sociedade, atentamente. Os seus agentes perspicazes captam cada desejar ir de onda sonora na atmosfera. O capital interage com cada feixe de onda que brota e o modula, captura-o para o seu vórtice e o estrangula, ele quer todos os feixes, todas as ondas sob sua modulação etérea, sob o querer ser de sua orgia puritana – a orgia bem medida, demarcada. Mas os bruxos querem o fluxo mais imperceptível, ínfimo feixe que se deixa vagar, sujo e solto na caosfera, o anticonforto, a mais valia negativa que o vórtice não pôde absorver. Os bruxos querem o sangue que os desconformes roubaram dos agentes e demarcados, querem sugar o sangue todo dos artistas, o sangue inteiro dos vampiros que tombam ressequidos nas margens da caosfera. Bruxos matam os desconformes que vibram em feitiços. Por isto é sempre bom guardar um pouco de agente e demarcado numa fuga, para subsistir e sobreviver ao contacto com o bruxo. Para retornar depois, mais tonto e torto. Para cavar mais fugas para outros ínfimos e infinitudes caosféricos. Para mais vinhas, liras e amares. Deixar-se matar quase todo e preservar apenas um pouco de corpo para outra arremetida, para mais vida descomedida. 04/04/06 DA LITTERA 174. A literatura também tem o seu querer ser. Ele se chama best seller. Ao que parece, até o século XIX, muitas obras da chamada Alta Literatura eram também best sellers, livros que despertavam o querer ser das populações alfabetizadas ao mesmo tempo que mobilizavam o dever ser da nobreza literária. Por um breve momento da história o sonho iluminista teria se realizado em algumas nações européias? Um momento, situado, talvez, na segunda metade do século XIX, em que quase todos sabiam ler e desejavam as fábulas e canções da Alta Literatura? Mas nesta época certamente havia muito best seller que chamaríamos de paraliteratura, receitas fabulares e poemáticas a serem preenchidas com alguma novidade e muita graça. Em todo o caso, este momento, se houve, foi atropelado pela avalanche das mídias audiovisuais do século XX. Nesta época a Alta Literatura se tornou cada vez mais estranha às massas e a si mesma, cada vez mais auto-destrutiva enquanto sistema – vórtice de nobreza. Mas o livro de massa ainda existe e é amplamente consumido. E é uma certeza que, hoje, qualquer aumento do nível de leitura das populações seria direcionado quase que exclusivamente às fórmulas de sucesso dos best sellers. 06/04/06
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DA CANÇÃO 175. O poema escrito não é pra ser lido ou preenchido com qualquer performance sonora, seja ela vocal ou instrumental. Uma letra de canção, por sua vez, não vinga se mergulhada no silêncio da página, como poema literário. É a regra geral, o que não impede textos mistos, inclassificáveis, entre os pólos poema e letra de canção. Mas o fato de um poema não servir para a realização sonora não decorre de uma suposta natureza universal do poema, ou coisa parecida, mas da maneira como foi construída, no ocidente, a interação entre a escrita, como mídia e o canto, como modo verbal. Sempre houve, por exemplo, a possibilidade do poema falado ou situado entre o falado e cantado, com ou sem acompanhamento musical. Muitas culturas, principalmente as ditas primitivas, têm este tipo de canto, no qual a mídia que entra é a da fala. E o rap parece recuperar esta dimensão do canto enquanto fala ritmada, diferenciando-se, por um lado, da canção, na qual o canto é uma linha melódica e, por outro, do poema, onde o canto é uma silenciosa linha de som na página. Mas é claro que no rap não se trata de falar (cantar) diretamente aos ouvidos de uma tribo. Entre a fala do raper e os ouvidos das massas há todo o aparado eletrônico das mídias audiovisuais. Como na canção pop, a mídia do rap não é a fala, mas as audiovisuais, que absorveram a fala ritmada do canto tribal em sua eletricidade. *** O poema no ocidente, a partir do renascimento, se desenvolveu cada vez mais como objeto que se basta como escrita no silêncio branco da página: avesso à realização vocal. Sua vocalização, seja ela falada ou cantada, costuma fechar suas possibilidades estéticas, mutila-o dos sentidos que só se proliferam enquanto ele permanece como ária silente. Não obstante, seria possível uma arte da declamação ou arte da leitura que, contra a natureza do poema, o efetivasse vocalmente? É possível. Esta arte ainda fecharia os sentidos plurais que só se propagam no silêncio da página, mas, tal como na canção, a voz abriria/criaria outros múltiplos sentidos com seu modo de atuar. Seria uma outra arte, puramente vocal, nem canção, nem poema, pouco desenvolvida em língua portuguesa, Talvez os ingleses, com sua tradição de vocalização literária, reforçada por Shakespeare, ao mesmo tempo poeta e dramaturgo, estejam mais próximos desta arte. E é provável que este canto falado, se chegar a existir, desenvolva ‘letras’ propícias à declamação,
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que só se efetivariam como bom canto quando declamadas, tais como muitas letras da canção, que se tornam boas apenas quando cantadas. 06/04/06 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE 176. É algo que tinha que ser escrito, está escrito, parto feito, corpo refeito, tão rarefeito coitado, todo gasto em seu distender nas atmosferas em busca de margem. É algo (algoz feroz) impuro e plural, tantas vagas de idéias que há muito se gestavam incongruentes numa mente perturbada, quase demente. Propagar as vagas pela escrita é como a cura ou pelo menos o alívio. Estar um pouco leve de tormentos por conta dos turbilhões confusamente engendrados na verbosfera. Eis o feito, tão pouco nobre... Ei-lo, todo efeito, sem causa, imperfeito. Está feito. 07/04/06
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APÊNDICE – textos embrionários
DAS ATMOSFERAS
1. Muitas vezes atravessamos uma atmosfera sem nos darmos conta dela, por mais energia que a percorra. É por isto que a onda roqueira dos anos oitenta passou despercebida pelos adultos, distraídos demais com seus afazeres de rotina. É preciso, portanto, estarmos ligados a uma dada atmosfera para que a percebamos: compormos com ela. Outra peculiaridade de uma atmosfera é sua rarefação estrutural, sua curta memória. Acontece de estarmos conectados com muita intensidade a uma atmosfera, percebendo-a em toda a sua densidade, durante um certo período, que pode ir de horas a anos. É uma travessia, mas mútua: atravessamo-la enquanto ela nos atravessa, num fenômeno de troca que é a própria composição com/da atmosfera. Mas após esta travessia, fatalmente nos esquecemos dela, pois se trata de um processo que se finda: refluxo de onda. Se ela perdurar como memória longa e estruturada, certamente estará morta como atmosfera e sua lembrança pode permitir algum outro regime de circulação energética (outra fluxão: é por isto que os adolescentes dos anos 80 lembram saudosos de sua atmosfera roqueira e dão muita importância a ela, mas sem saber exatamente o que os atravessou, nem que travessia fizeram), mas nunca tão difuso e vago, nem tão vário. Para que ela perdure é preciso, mais (menos) que nos lembrar, é necessário prolongá-la em nós e nos prolongarmos nela, mesmo que a onda se finde na superfície da sociedade. Isto não implica em interiolizá-la, o que seria o mesmo que estruturá-la como memória longa. Seria, antes, encontrar uma maneira de continuar a compor com ela, com as vibrações que sempre perduram de uma onda, procurando preservá-la em sua alteridade que não deixa de ser o prolongamento de sua variedade caógena, a qual é exatamente a sua vida atmosférica. Sempre há delimitações em uma atmosfera, mas nunca de dentro e fora, nem de antes ou depois. É melhor falarmos de on e off-line. Mesmo que os cientistas sociais sempre encontrem um dentro e os historiadores um período, eles mesmos são os primeiros a ressalvar a precariedade destas delimitações, enfatizando o seu caráter didático e justificando-as pela necessidade racionalizadora de suas disciplinas.
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Uma atmosfera procede mais por conexão e desconexão, fluxos e refluxos energéticos. A delimitação é sempre uma questão de distância: quão perto você está, a ponto de poder senti-la pulsando? Não estamos falando de uma distância mensurável, mas intensiva. Uma atmosfera coloca sempre problemas de intensidade e densidade. Quase se pode dizer que, menos que vê-la, ouvi-la e pensá-la, podemos senti-la pelo tato, palato e olfato. Uma atmosfera tem muito de química e solidez quando nos entranhamos em suas linhas de composição, justamente porque ela é feita, montada quase às cegas, a toques de curta distância. Quem tem o poder de se ligar a uma atmosfera, menos que a lucidez panorâmica do iluminista, sempre sóbrio, dispõe das frinchas e dos terrenos baldios dos bêbados que, no entanto, palmilham lugares nunca esquadrinhados — nem esquadrinháveis. Compor com uma atmosfera é sempre estar ao lado, por entre, de fora. Nunca sobre. 2002
2. PRIMEIRO CONTO ATMOSFÉRICO O Sr. Aires viaja de carro para a apresentação de sua comunicação, juntamente com seus colegas de universidade. Eles têm hora marcada e a conversa de viagem gira em torno de questões da Academia, de fofocas a teorias, passando por assuntos mais gerais, de política às artes, sempre discutidos com um relativo grau de sofisticação, próprio de professores e estudantes de pósgraduação. O carro pifa. Por sorte estão perto de um bar à beira da estrada e podem pedir socorro mais facilmente. Não há telefone, mas um caminhoneiro se dispõe a levar o recado a um mecânico da cidade mais próxima. Enquanto isto nossos viajantes têm de esperar. O Sr. Aires se senta num banquinho de madeira e fica observando. Um amigo seu resolve jogar sinuca com o filho do dono do bar: são bons. Uma cadela se esfrega nos inesperados visitantes que resolvem beber uma coca. Lá se vai a apresentação. O sr. Aires sente um misto de desconforto e estranhamento. Ele está cansado de conhecer lugarejos e botecos como este, pois foi criado no interior, sempre se locomovendo à zona rural, origem de seus pais. Por quê o estranhamento? Homens meio rudes e bonachões como o dono do
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boteco são muito comuns nestes ambientes, assim como o seu filho, bom de sinuca, mas que, por conta da timidez diante do rapaz da cidade, perde as partidas para ele. Um garimpeiro gozador, muito amigo do rapazinho, passa pelo local e faz algumas brincadeiras com ele: outro tipo comum. O sol está escaldante, a luminosidade da tarde, combinada com o rudeza do lugar, torna-o ressequido e bruto, assim como os seus habitantes. A coca é um prazer gelado na garganta do Sr. Aires que continua pensando, entre incomodado e perscrutador. As horas, pensa ele, transcorrem mais lentas aqui. Não, não são mais lentas de uma maneira mensurável e também não tem nada a ver com o chamado tempo psicológico. Não é isto. Quando se viaja de carro, dentro do veículo, além de seus ocupantes, move-se todo um ambiente, toda uma atmosfera: o Sr, Aires, seus amigos e sua atmosfera acadêmica, um pouco cheia de horários e questionamentos inteligentes. Este bólido atmosférico atravessa outras atmosferas muito diferentes sem que umas se dêem conta das outras. Se o carro não pifasse, tudo seguiria de forma rotineira, mas o acaso mecânico joga os viajantes, repentinamente, numa outra atmosfera. Eles cruzam um limiar, um tanto bruscamente, e entram em outra zona atmosférica, na qual o relógio, menos que um regulador é apenas um mostrador do tempo e das atividades. Daí a sensação que o Sr. Aires tem do mormaço e da preguiça do lugar. As linhas de assunto se interrompem para dar lugar às histórias do dono do bar, que pouco se preocupa com as demarcações horárias de seus afazeres e conversas, muito menos com questões ou sutilezas teóricas e literárias. Antropólogos e sociólogos conhecem bem este ambiente, que costumam chamar de arcaico, tradicional ou simplesmente rural. A maioria dos adultos dos anos oitenta atravessaram despercebidos a atmosfera roqueira de sua época da mesma maneira que nossos viajantes cruzam de automóvel a atmosfera arcaica de beira de estrada. Apenas por um acaso (um filho drogado, uma paixão adolescente) estes adultos se conectavam com intensidade à atmosfera roqueira que se processava debaixo de seus narizes, pois eles estavam envolvidos demais no ambiente adulto para percebê-la. E foi o acaso do carro pifar que proporcionou ao Sr. Aires perceber a atmosfera arcaica que ele cruzava de automóvel. Mas uma atmosfera não é uma questão dual de on e off-line apenas. Há muitas gradações e modos de compor com ela. Assim, nosso Aires compõe brevemente com a atmosfera arcaica do boteco, mas traz, em segredo, toda a sua atmosfera acadêmica e permanece, de certo modo um estranho a ela: é uma composição por contraste, na qual entra muito de pensamento acadêmico,
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por parte do Sr. Aires. Por outro lado, ele não é tão estranho assim a ela, pois sua memória traz toda uma composição, de infância e juventude caipiras, que o faz conhecer intimamente este tipo de atmosfera. Estas composições do passado, não importam a maneira que se ordenam na memória do Sr. Aires (como estrutura profunda ou como processo compositivo), entram imediatamente na composição com a atmosfera atual, por analogia e semelhança. O carro é consertado e o Sr. Aires vai embora, retomando sua vivência acadêmica, urbana. Mas ele não se esquecerá a atmosfera do boteco de beira de estrada. Mais ainda, esta atmosfera (quem saberá por que motivos?) marca-o de tal maneira que ele comporá com ela no futuro, prolongando-a indeterminadamente. Não que sua marca tenha sido profunda e sua persistência seja uma lembrança estruturante de sua subjetividade. Ela não estará dentro, nem fará parte do Sr. Aires. Ela persistirá, mas como processo de composição atual e oferecendo sempre a possibilidade de um limiar, uma porta, através da qual ele poderá fazer vazar algumas linhas de vida para emaranhá-las com sua fluxão atmosférica, que se desenrola num processo contínuo ao lado de sua vida comezinha. Ela será a possibilidade de um fora vivo, por onde o Sr. Aires se abandona de vez em quando, para variar um pouco e se rarefar. Assim, além da composição por contraste e semelhança, temos uma terceira, talvez a mais interessante neste caso, por prolongamento, na qual esticamo-nos com uma atmosfera que se findará daqui a poucos passos e/ou momentos. Menos que empacotá-la e guardá-la na memória, para resgatá-la depois, nós deformamos artificialmente sua existência, preparamos em nosso cérebro alguns caminhos para seu contínuo processamento, deixando-a fluir como uma entidade estranha a nós (um fora, um limiar) e partimos com ela, sem nunca nos identificarmos a ela. A identidade é uma incorporação e para que ela esteja viva como atmosfera é preciso, ao invés disto, uma composição, que a preserve de nós enquanto sujeitos. Numa atmosfera não há subjetividades (nem incorporadas nem incorporantes), mas somente fluxos desgarrados de composição: uma temperatura, uma luminosidade, uma silhueta, uns gases etc. Para nos ligar a uma é preciso que fluamos. 2002
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3. COMENTÁRIO 1 Este mundo atual é muito propício à composição por prolongamento com atmosferas, embora a composição por contraste e por semelhança, que delimitam identidades e estruturas, também tenham, nele, uma presença decisiva. A composição por prolongamento é justamente à dos homens desconformes ou de fuga, que não se interessam em se estabilizar como identidade delimitada, como estrutura interior em oposição a outras estruturas. Os homens conformes procuram a estrutura e a identidade (limites, hierarquias, centros, permanência) o tempo todo e a sociedade atual nega-lhes de fato este prazer do ser. Ela oferece-o como coisa perdida, coisa por vir, coisa-zen. Neste mundo de controles e mapeamentos impiedosos e descentrados que é o do capitalismo, de exigência de uma produtividade que cobra uma contínua mudança adaptativa das pessoas, de ambientes instáveis que se alimentam de crises e viradas bruscas, neste mundo, enfim, aestruturado, o fantasma da estrutura tem um papel fundamental que é o de corrigir constantemente as rotas, a fim de que elas não entrem numa entropia absoluta. Daí a paradoxal força dos nacionalismos, racismos, da religiosidade e da contínua volta ao indivíduo como átomo indissolúvel, apesar da sociedade tê-lo dissolvido ao infinito dos fluxos de controle: números, senhas, gráficos.. Então, o ser de nossa sociedade é esta ambigüidade, este jogo bipolar entre a tensão atmosférica e a tensão estrutural, entre a entropia da primeira e a estabilidade da segunda. É, sem dúvida, o ser mais arriscado que qualquer sociedade já intentou, pois aceita jogar, no limite, com o seu dissolvimento. Mais que aceitar, a sociedade se alimenta do perigo entrópico que a dissiparia em atmosfera pura – anarquismo a-individual. Mas ela é boa para fugas atmosféricas, pois precisa que alguns de seus agentes prolonguem as atmosferas sem estruturá-las em memória, sem incorporá-la como identidade. Estes agentes vão vivenciar um estado de atmosfera pura (fuga absoluta) na qual a estrutura não mais serve de contrapeso prudente à sua experiência. São agentes perigosos para a sociedade, na verdade estão em guerra com ela. Mas são também indispensáveis a ela porque criam novos universos atmosféricos que serão, depois, mapeados e estruturados pela malha implacável dos controles capitalistas.
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Neste sentido o capitalismo se compõe de atmosferas, mas atmosferas moduladas por fantasmagorias estruturais. Isto é bem perceptível na organização espacial da nossa sociedade, no desejo de modular/domar o espaço, preservando-lhe apenas um certo grau de descontrole relativo. O ar condicionado dos ambientes do homem de classe média e sua exigência de paredes e vidros entre o interior e exterior são ilustrativos da tentativa de modular a temperatura interior e evitar o contato com atmosferas exteriores, independente da intraatmosfera em que se circula: casa, trabalho, igreja, escola, carro, loja, ginásio. Todas estas intraatmosferas, além da temperatura controlada, são assépticas quanto à limpeza, à desordem, ao imprevisto e à miséria (os pobres dos shoppings estão sempre uniformizados e bem comportados). 14/10/2005
4. COMENTÁRIO 2: DOS LIMIARES É preciso desenvolver um conhecimento dos limiares para se entender as atmosferas. Pois elas só existem em miríades, imbricadas umas nas outras e desconhecem limites, que são próprios a estruturas, não a atmosferas. Um limite estabelece, de forma clara e exata, um dentro e um fora estrutural, sem deixar margens para meios tons. Aqui e lá, antes e depois. Já um limiar é uma passagem, uma margem fluida, é um indo daqui para lá e, sem que se perceba, já se está lá. Mas ainda pode haver resquícios de aqui. Uma atmosfera se define por seus limiares de passagem, seus degradés imperceptíveis. Por isto ela não tem identidade, pois nos seus limites não se sabe em qual atmosfera se está e talvez seja bem provável que seja uma terceira, composta dos limiares de outras duas. No fim das contas uma atmosfera é sempre um composto de limiares, inteiramente imbricação, pois não há nelas zonas puras ou núcleos concernentes. Numa atmosfera há somente regiões heterogêneas, nas quais a mistura tende à maior ou menor homogênese, densidade, tensão e pressão. Tendências precárias que podem se desfazer ao mínimo vento. Os ventos são os próprios limiares em movimento de fuga. As atmosferas mesmas são jogos complexos de fuga e parada. Dinâmica eólica. É uma ciência precária e perigosa a dos limiares, mas vital para quem precisa navegar as atmosferas. 17/10/2005
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5. SEGUNDO CONTO ATMOSFÉRICO O Sr, Aires passa, por acaso, num concurso. Durante o primeiro ano não encontram, no órgão estatal em que ele está lotado, trabalho para ele. Dão-lhe uma sala com computador, internet e telefone. Todos os dias ele cruza com as mesmas pessoas, mas elas lhe são estranhas. Igualmente, ele é um estranho para elas. Durante este período Aires lê, joga conversa fora com seu colega de sala e atoísmo e fica muito preguiçoso. De repente, o grupo que comandava o órgão cai em desgraça política. Outras pessoas assumem e o Sr. Aires e seus companheiros de preguiça são chamados ao trabalho. Cada qual assume seus postos e todos passam a integrar esta máquina ultracomplexa chamada estado. Como as coisas mudaram, pensa o Sr. Aires. As pessoas passaram a não ser mais estranhas. Não que se tenha surgido relações de intimidade bruscamente, mas elas passaram a ter conexões com o Sr. Aires. Aquelas mesmas pessoas das quais ele não sabia e nem queria saber os nomes e das quais mal se lembrava de suas fisionomias. Assim como elas, ele agora faz parte da máquina, da supermáquina estatal. O Sr. Aires atravessou um limiar e compõe, mais uma vez, com uma atmosfera. Não é preciso grandes deslocamentos espaciais para esbarrarmo-nos em atmosferas estranhas a nós. Às vezes, passamos a vida toda ao lado de uma, sem nunca nos darmos conta dela, ou mesmo a evitando. Dia após dia o Sr. Aires entrava no ambiente físico desta atmosfera, mas permanecia completa e voluntariamente alheio a suas circulações muito peculiares de fluxos. Agora, mesmo em outro local do prédio e vendo pouco aquelas pessoas com quem cruzava diariamente, é como se sentisse muito mais ligado a elas. Ele agora sabe o seu nome e suas funções, suas habilidades e fraquezas, suas relações políticas e até mesmo pessoais. O Sr. Aires e seus colegas são fluxos de uma mesma atmosfera. Mas falamos de uma bem particular, a mais particular de todas. O estado, ao contrário de outras atmosferas, esforça-se para não ser uma. Pode-se dizer que é a própria expressão antiatmosférica, pois evita, ao máximo a circulação descentrada dos fluxos. Ele sempre estabelece um ou vários centros para sua fluxão, que, além disso, passa sempre por pontos bem marcados de sua estrutura, perfazendo uma hierarquia. Os estado quer ser um
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organon e o organograma e seu corpo de leis, mais que sua representação e regulação, são sua tradução e constituição. Numa atmosfera é preciso que os fluxos possam compor (mesmo que não formem) com outras atmosferas, que muitas vezes escapam aos limites da primeira. Nela, uma circulação de ar, mesmo a mais localizada, compõe com outras circulações de atmosferas bem diversas. A heterogeneidade dos fluxos é uma marca flagrante numa atmosfera. O estado, ao contrário, tudo quer abarcar e mapear, a partir de centros e procedendo por hierarquias. Se há variações de fluxão neste ambiente elas devem ser mensuráveis e nunca escapar aos rígidos ordenamentos estatais. O Sr. Aires só percebe este ambiente como atmosfera porque tem o hábito de se dissolver nelas, mas ele sabe o quanto é estranha e peculiar sua fluxão. Quanto ao regime de fluxo, podemos estabelecer dois ambientes: a atmosfera e a estrutura. Numa estrutura, por mais variada e complexa que seja, sempre há uma tendência à homogênese, ao esquadrinhamento que vai até o último rincão do mundo. A tendência dos estados é a expansão contínua de seus limites e demarcações, por conquista ou anexação: Roma. No final das contas, lateja sob sua estrutura um império cioso de romper todas as barreiras espaciais, políticas e culturais, acolhendo tudo sob as asas de seu monarca, de seu deus. César e Faraó, Cristo e Alá. Na estrutura estatal nada deve ser exógeno e o que for é porque não foi ainda atingido por sua expansão. Se o estado permite que alguém, como o Sr. Aires, o perceba como atmosfera, certamente é porque há brechas e exoginias que permitem tal operação, o que constitui uma falha estrutural no seu ambiente. É que os estados, no mundo de hoje, estão mergulhados no fluxo de capital e formam com ele este mega-sistema planetário que chamamos de capitalismo. Longe de atingir sua ambição original de codificação absoluta, os estados entram neste sistema (como nos ensinam Deleuze e Guatarri no seu belo Antiédipo) como grandes refluxos, nos quais os capitais são armazenados, relativamente estabilizados e, principalmente, desperdiçados, evitando sua proliferação desordenada. O capitalismo procede por atmosferas bem peculiares (moduladas estatisticamente, base de dados de esquadrinhagens descentradas) e pode-se dizer que, estando mergulhados no fluxo de capital, os estados se sentem ameaçados, em todos os poros, pela intrusão destas atmosferas. Gente como o Sr. Aires, especialista em procurar e se ligar a elas, sempre trarão ao estado fluxos indesejados, embora possam se beneficiar de certas seguranças que somente uma vida em estruturas
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proporciona. Dilema que Drummond, a vida toda um funcionário público, conhecia (e explorava) bem. Duplicidade e entrecruzamento de ambientes, Sr. Aires. O estado e suas forças centrípetas e as atmosferas capitalistas com suas irresistíveis ondas moduladas. Como proceder, se há compromissos com ambas as esferas? É preciso força e tino, Sr. Aires, além de um pouco de sorte. É preciso fazer uma atmosfera de fuga, que escape ao mesmo tempo dos códigos estruturais do estado e da modulação atmosférica do capitalismo. Uma atmosfera tão rarefeita e furiosa que roce a margem, Sr. Aires. 2002 DA CANÇÃO
6. A música popular é uma espécie de atmosfera. Uma atmosfera não existe por si completamente e nunca se completa. Ela é um percepto de delimitação precária e sempre se pode juntar a ela algo mais. Uma atmosfera está à espera de algo, não que a complete, mas que a delimite de outra forma, que a particularize. Os jovens são muitos sensíveis a atmosferas e são os mais entusiastas receptores da música popular mais recente. Há sempre uma onda musical e uma juventude para se interagir. Isto porque uma geração de jovens também compõe, em certas linhas, uma atmosfera. Algumas sensações juvenis, chamemo-las de estéticas, encontram guarida na música popular a elas contemporâneas. Mais tarde estas sensações farão parte da memória estrutural do adulto que relembrará nostálgico desses anos mágicos, assim que a audição de uma música de sua juventude disparar alguns fios daquela atmosfera juvenil. Mas então será, na maior das vezes, uma atmosfera já morta, pois situada no passado e estruturada como a memória de um homem cheio das responsabilidades e demarcações da vida adulta moderna. Raros conseguem preservar o poder de dissolução e embaralhamento de suas atmosferas de juventude.
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Os que conseguirem poderão se conectar inclusive a ondas musicais de outros tempos, anteriores ou posteriores à sua juventude, com o mesmo frescor de sua onda primeira. Assim, alguém que viveu, na sua adolescência, a onda roqueira poderá, já como adulto, se conectar intensamente a ondas musicais de antes de seu nascimento. Poderá, por exemplo, perceber a lucidez extrema de um artista como Caetano Veloso, jamais atingida por nenhum roqueiro dos anos 80. Mas uma lucidez que corre ao lado de uma embriaguez própria de 68, hippie, porra-louca, tropicália. Uma embriaguez alegre (respeito muito minhas lágrimas e muito mais minha risada) que os roqueiros, amargurados, desesperados e excessivamente revoltados, nunca atingiram. Esta alegria báquica é que possibilitava a Caetano a sua extrema lucidez. A droga da geração de 60 é a maconha, com seu misto de relaxamento e sensibilidade extrema, descontração e percepção fina. A heroína e a coca, por sua vez, são as drogas dos roqueiros. Drogas da dor que ora é anestesiada em sono, ora se exaspera em ira, num movimento tenso e pendular que arrasta o organismo para uma dissolução regida por leis rancorosas. O rancor de Renato Russo e Cazuza. De Gessinger e Marcelo Nova. Dos Titãs e Lobão. Não se pode dizer, por tudo isto, que a porrada roqueira foi mais crítica por ser mais agressiva. Cada um tem seu jeito de cortar, cada qual suas lâminas. Uma música como Vaca profana pode valer mais que muitas músicas heavy metal, no que diz respeito a sua capacidade de provocar vazamentos nas redes da sociedade. 2002
7. É preciso nos desvencilharmos dos rigores críticos literários e musicais para entendermos bem a música popular do capitalismo. Também é bom nos livrarmos das metodologias e epistemes das chamadas ciências sociais. O que podemos e devemos fazer é utilizarmos o máximo que conseguirmos arrebanhar destas disciplinas, mas nunca nos deixar levar por nenhuma em particular. Uma letra de música popular raramente atinge o grau mínimo necessário para ser considerada um bom poema e sua parte musical, vocal ou instrumental, jamais atingirá os rigores da música erudita, clássica ou moderna. A voz do cantor deve ser considerada como um terceiro elemento na música popular, ao lado das letras e da instrumentação. Não como na ópera, na qual ela atua como um instrumento
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solista muito sofisticado. A voz na música popular tem muito de fala, mas de uma fala que se arrasta até quase a animalidade. As cantoras são especialistas nestas deformações vocais, algumas chegam quase a uivar (e dos roqueiros, pode-se dizer que rosnam). Mas é uma voz que não deixa de ser fala e que a qualquer momento pode retomar sua lucidez e ironia. É a voz que arrasta o bloco música-letra em uma música popular, que as deslocam para outra arte diferente da música erudita e da poesia escrita. Poderíamos dizer que a música popular lembra a canção do medievo e da antiguidade e também a poesia dos povos primitivos, sempre cantada. Uma retomada da canção, da poesia em suas origens? É bom tomar cuidado com retomadas. A música popular de hoje se dá sob outro regime. Não é apenas outro contexto, mas ela mesma é outra concreção, outra excreção, outra inscrição sobre outro corpo social. Mais que o renascimento da canção em condições sociais diversas, o que assistimos é o aparecimento de uma outra arte com seus regimes de produção e rigores muito peculiares. A arte da voz, na música popular, é muito diferente da voz da ópera, ficando livre dos rigores eruditos. Assim ela também liberta a letra dos rigores da literatura e os instrumentos se livram da rígida disciplina européia. A rigorosidade da música popular passa por outros lugares e se liga de forma muito particular ao capitalismo. Menos que refúgio ou utopia (duas maneiras de se preservar da sociedade, mesmo que para mudá-la), sua composição com os fluxos que se agitam na sociedade capitalista é de entrelace, imbricamento e fuga. Ela mesma é um de seus fluxos, uma duna do seu deserto, uma onda do seu mar (não falo por metáforas). 2002
8. A instrumentação dá o ambiente de uma música popular (canção). A letra entra com o sentido, ou melhor, com os ruídos do sentido que, normalmente, entram numa relação muito mais direta com os sentidos que circulam na economia mental da sociedade. Diriam os literatos que a letra da canção padece de uma denotatividade extrema. A voz, tão importante quanto as duas, as arrasta para os gritos e gemidos, uivos e rosnados, paisagens e temperaturas, atmosferas e ambiência próprios a esta arte.
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Uma música popular, quando bem sucedida, parece nos levar a alguma linha de sentido que passa, quase despercebida por entre as demarcações da sociedade capitalista. Uma linha alternativa. Eis aí o seu poder de transe que permite-nos dizer que ela embriaga, mesmo que não estejamos sob efeitos de alucinógenos. Estas linhas alternativas muitas vezes passam por (e se ligam a) arcaísmos da sociedade. Assim, um Alceu Valença remete a uma atmosfera meio cabocla e folclórica, de frevo e crença popular, beirando o mágico. Uma insuspeitada linha de Brasil, entre triste e dançante, diversa das linhas mais conhecidas e previsíveis de arcaísmos nacionais, como as do samba. 2002
9. ESCRITA: APOGEU E QUEDA Os impérios são impensáveis sem a escrita que fixa os seus códigos sagrado e burocrático. Que seria do imperador sem seus sábios escribas? Código dos códigos, a escrita e sua possibilidade de fazer dobrar o tempo em suas seqüências textuais corresponde ao desejo de eternidade do soberano e, no limite, de todo o império. O ocidente moderno se configura como o auge da escrita e seus domínios: os literatos brincaram muito com o poder da palavra escrita. O vigor da literatura ocidental marca, ao mesmo tempo, o ápice e a derrocada do império da escrita. Em tudo, a Literatura se constitui como uma instituição, com seus mestres, sua tradição, seus critérios e exigências de uma dura formação a seus aprendizes para se atingir um grau mínimo de qualidade. Mas, ao mesmo tempo em que se ergue firme como tradição, ela se vê solapada por seus próprios artífices na sucessão de movimentos e escolas, as quais jogam com a tradição, mas também com a fuga da tradição, ímpeto entrópico da Literatura. O ocidente grávido ou recém parido do capitalismo ainda é o reino da escrita, embora lhe imprima uma dinâmica e um vigor jamais visto em outras sociedades: reprodutibilidade ilimitada proporcionada pela imprensa e acesso cada vez mais amplo das populações ao código escrito.
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Os iluministas vincularam fortemente razão e palavra escrita, preconizando a alfabetização maciça como condição indispensável ao estabelecimento definitivo das luzes, numa espécie de projeção racionalista da crença imperial no poder da escrita: uma crença na democratização do poder por meio da democratização da escrita. Quando todos dominassem o código escrito a democracia do conhecimento (e por conseguinte do poder) estaria consolidada, pois o saber deixaria de ser propriedade de uns poucos para ser de toda uma coletividade (entre o projeto socialista e o iluminista há vários liames). Mas algo aconteceu no início do século XX: a Literatura (e todas as instituições da Grande Arte) ficaram caóticas demais com seus ismos que se sucediam em anos e não mais em décadas ou gerações. Movimentos (auto)destrutivos e irracionalistas, como se a tentação de romper definitivamente com a tradição parecesse finalmente se estabelecer no meio literário. Surge, por outro lado, o que os frankfurtianos chamariam de indústria cultural, umbilicalmente ligada aos novos meios reprodutibilidade técnica (fotografia, rádio, cinema e, mais tarde, TV e vídeo). A indústria cultural se estabelecia como um novo campo muito diferente do da Grande Arte. Nela não se pode falar de mestres e tradição nos mesmos moldes da Literatura. A escrita, então, não tem mais um papel preponderante, pois a indústria cultural se configura por sons e imagens, registrados, armazenados, reproduzidos e transmitidos com ajuda de meios técnicos (desenvolvidos com os avanços das tecnologias). O campo da arte passa por uma transformação que prenuncia a de outros domínios nos quais o código social por excelência deixa de ser a escrita passando ao que hoje chamamos de audiovisual. Paradoxo do século XX: no momento em que a taxa de analfabetismo chega próxima à zero em várias nações, o mundo deixa de ter como código-mor a escrita, a qual passa para o segundo plano nos sistemas de signos. Mas no limite o audiovisual não é apenas o conjunto som-imagem: o teatro e os primitivos são eminentementes audiovisuais neste sentido. O meio técnico entra como terceiro e decisivo elemento que vai permitir (como a imprensa fez com a escrita) o que os frankfurtianos chamaram de reprodutibilidade da obra de arte. Este terceiro trará muitas conseqüências, pois é a partir da tecnologia que surgirá outro código, capaz de fazer convergirem som e imagem, bem como o seu registro, armazenamento e transmissão. O nome para esta convergência é informática, bytes numéricos organizados em cadeias hipercomplexas.
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Mas antes que a informática conseguisse esta convergência, ela mostrou como poderia, com seus inimaginável poder de processamento e armazenamento, mapear toda a sorte de informações e códigos: financeiros, sociais, mercadológicos, burocráticos, geográficos, científicos etc. E com a união da informática com as telecomunicações o mundo inteiro se torna uma enorme base de dados on-line. Eis o código de nosso mundo: teleinformático (hipercadeias numéricas armazenadas, processadas e transmitidas à velocidade da luz). E o capital se delicia com os bytes. É todo o mapeamento a-centrado de que ele precisava. Essa proliferação de dados que convertem o mundo em bytes numéricos converge com as cadeias de capital que modulam o mundo em cifras. Números com números. Duas cadeias flexíveis e exatas, a-centradas, segmentadoras, classificadoras e proliferantes mapeando o mundo palmo à palmo e se conjugando e transfigurando os outros fluxos mais antigos: sexuais, de poder, religiosos, de pensamento, estéticos... ago/2004
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SUMÁRIO AD-VERTÊNCIA........................................................................................................................................................4 PRÉ-FÁCIL................................................................................................................................................................. 6 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE................................................................................................................... 7 DA VERBOSFERA.....................................................................................................................................................9 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE................................................................................................................... 9 DA LITTERA............................................................................................................................................................ 10 DOS DESCONFORMES E SUAS FUGAS..............................................................................................................14 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE................................................................................................................. 17 DA CANÇÃO............................................................................................................................................................18 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE................................................................................................................. 20 DA LITTERA............................................................................................................................................................ 20 DOS BRUXOS.......................................................................................................................................................... 21 DA LITTERA: profundos, construtores e marginais.................................................................................................27 DOS BRUXOS.......................................................................................................................................................... 49 DA LITTERA............................................................................................................................................................ 50 DOS BRUXOS.......................................................................................................................................................... 58 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE................................................................................................................. 61 DOS DESCONFORMES E SUAS FUGAS..............................................................................................................61 DA LITTERA: engajados.......................................................................................................................................... 62 DA MARGEM...........................................................................................................................................................67 DA LITTERA: igrejas............................................................................................................................................... 76 DAS ATMOSFERAS................................................................................................................................................ 79 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE................................................................................................................. 85 DAS ATMOSFERAS................................................................................................................................................ 87 DOS DESCONFORMES E SUAS FUGAS..............................................................................................................89 DAS ATMOSFERAS................................................................................................................................................ 94 DA LITTERA............................................................................................................................................................ 97 DO CAPITALISMO..................................................................................................................................................99 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE............................................................................................................... 111 DAS AMOSFERAS.................................................................................................................................................112 DO CAPITALISMO................................................................................................................................................115 DA LITTERA.......................................................................................................................................................... 119 DO CAPITALISMO................................................................................................................................................122 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................124 DAS CIÊNCIAS HUMANAS.................................................................................................................................130 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE............................................................................................................... 134 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................134 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE............................................................................................................... 139 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................140 DO CAPITALISMO................................................................................................................................................143 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................145 DO CAPITALISMO................................................................................................................................................146 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................147 DO CAPITALISMO................................................................................................................................................148 DA VERBOSFERA.................................................................................................................................................151 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE............................................................................................................... 154 DO CAPITALISMO................................................................................................................................................154 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................157 DA VERBOSFERA.................................................................................................................................................158 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................161 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE............................................................................................................... 163 DA VERBOSFERA.................................................................................................................................................164 DA LITTERA.......................................................................................................................................................... 167
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DA VERBOSFERA.................................................................................................................................................168 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................170 DA LITTERA.......................................................................................................................................................... 172 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................173 DA LITTERA.......................................................................................................................................................... 175 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................176 DA LITTERA.......................................................................................................................................................... 178 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................179 PROGRAMA PARA A NECESSIDADE............................................................................................................... 180 APÊNDICE – textos embrionários.............................................................................................................................. 181 DAS ATMOSFERAS.............................................................................................................................................. 181 DA CANÇÃO..........................................................................................................................................................189
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