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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA NÚCLEO DE ESTUDO E PESQUISA DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DA MODERNIDADE GRUPO DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA

Carta acerca da tolerância – John Locke

São Cristóvão – SE 2009

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INTRODUÇÃO

O assunto que tratarei é a tolerância inserida no texto Carta acerca da tolerância publicada por John Locke após a Revolução Gloriosa de 1688, no qual os parlamentares conservadores (tories) e liberais (whigs) formaram uma coalizão que derrubou o rei Jaime II por motivos religiosos, sendo o monarca um católico assumido. Instaurando no poder os anglicanos Guilherme de Orange e Maria II, herdeira real, impondo no Reino Unido uma sobreposição do parlamento sobre o monarca, nunca desde então o monarca reassumiu com um poder absoluto. O Reino Unido passava por uma grande instabilidade política e religiosa, logo após a deposição do rei, temendo uma revolta papista, o parlamento revogou a declaração de indulgência de 1687 e, a sua continuação de 1688. Sancionando a lei de tolerância em 1689 que permitia o culto para os batistas e presbiterianos, mas continuava a proibição para os católicos. Entretanto, o que deu o insight para Locke escrever a carta foi o édito de Fontainebleau, que na realidade foi a revogação do édito de Nantes em 1685, que não concedia aos huguenotes o direito de praticar sua religião sem perseguições do Estado, caracterizando o que Locke abominava, a intromissão do governo secular na escolha da religião pelo indivíduo. Foi com esse pano de fundo na Europa ocidental que Locke escreveu uma carta, durante sua estadia na Holanda, tratando sobre tolerância discutida com o seu colega holandês Philipp van Limborch consagrando às ilhas Britânicas à liberdade do indivíduo escolher a sua própria religião, como o autor mesmo diz, à tolerância. Sobre esta tolerância que Locke se tornara um notável pensador do século XVII, segundo o historiador francês Bernard Cottret. A questão da tolerância religiosa foi de um frequente interesse na Europa no século XVII. Os argumentos usados por ele sobre a tolerância religiosa se conectam perfeitamente com sua visão sobre o governo civil, já que foi um dos fundadores do liberalismo político e ajudou a expandir o conceito de jusnaturalismo. O primeiro objeto, liberalismo político, é uma forma de atuação que defende as liberdades individuais, igualdade perante a lei, limitação constitucional do governo, proteção das liberdades civis e restrições fiscais ao governo. Que ao se fundir com o liberalismo econômico desenvolveu um modo de governar no qual se tem a ideia que a economia se liberta dos “tentáculos” do Estado, ou seja, o laissez-faire, tentando produzir uma ordem espontânea da sociedade. Enquanto, o segundo, de forma genérica, é uma tese que propõe a existência de um

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direito cujo conteúdo é estabelecido pela própria natureza da realidade e, portanto, válido em qualquer lugar inclusive sobre o direito jurídico. Para os jusnaturalistas do século XVII – XVIII (entre os quais, está além de Locke, Hugo Grócio, Samuel von Pufendorf, Thomas Jefferson e em posição particular Rousseau e Kant, pois para estes dois últimos o direito natural se “apresenta como meras idéias, aptas para explicar racionalmente a realidade histórico-política e para estabelecer em relação a esta um termo de referência e de avaliação”1), os indivíduos abandonam o Estado de natureza e fazem surgir o Estado politicamente organizado e dotado de autoridade, a fim de que sejam melhor tutelados e garantidos os seus direitos naturais; o Estado é legítimo na medida em que e enquanto cumpre esta função essencial, que lhe foi delegada mediante pacto estipulado entre os cidadãos e o soberano (contrato social). Ele é contra a concentração de poder em um único indivíduo, prefere uma forma de governo aprovada pela população diante da autoridade constituída e o respeito ao direito natural do ser humano, de vida, de propriedade e de liberdade. Propriedade em um sentido estrito do termo, que significa terras, bens, direito à herança, sintetizando, capacidade de acúmulo de posses. Liberdade natural que todo homem tem por direito, independente de qualquer outro indivíduo, seguindo a linha de pensamento dos jusnaturalistas, “cada indivíduo tem toda propriedade de sua própria pessoa, sobre a qual nenhum outro, senão ele próprio, tem direitos” 2, ou seja, liberdade em si mesmo. A preservação desses propósitos, que acabo de citar, são as principais funções do Estado, podendo-se valer da força e da violência como coerção. Após a leitura do texto de Locke e de alguns de seus comentadores, e sem maiores pretensões que a de oferecer uma simples demonstração dos argumentos utilizados pelo inglês, com breves análises que fiz tendo em conta o meu parco conhecimento no campo da filosofia política. Produzi este relatório de pesquisa sobre o texto fazendo uma exibição das justificativas utilizadas pelo inglês tendo como parte final, uma curta conclusão.

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BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. 11. Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1998. (p. 658) POLIN, Raymond. Indivíduo e comunidade. In: QUIRINO, Célia G.; DE SOUZA, Maria Teresa Sadek R. O pensamento político clássico. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980. (p. 134) 2

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DESENVOLVIMENTO

No texto Carta acerca da tolerância, Locke utiliza-se de uma análise com trechos da Bíblia e da própria história recente da segunda metade do século XVII da Inglaterra para desenvolver seus argumentos. Carta esta, que foi motivada pelo impressionante impacto que o protestantismo europeu sofreu após a revogação do édito de Nantes pelo monarca francês Luís XIV, no qual foi, de maneira relativa, o modo formal do término de um período de efetiva prática de tolerância do protestantismo na França. Inicia com o conceito de tolerância que é baseado na defesa da liberdade de consciência individual que na prática significa uma liberdade de a adoração a Deus. Logo após discorre sobre a total separação da igreja do Estado, este é um dos traços que diferencia Locke de Hobbes, quem considerava que a Igreja deveria estar subordinada à autoridade civil3; começa demonstrando o poder do governo civil e justifica-o, dando três razões que são mais da natureza filosófica para proibição do uso da força pelos governos para encorajar indivíduos a adotar crenças religiosas: primeiro, ele argumenta que o cuidado das almas dos homens não pode ser conduzido pelos governantes, ou seja, o indivíduo tem o livre arbítrio para decidir qual religião ele quer seguir, sendo que os magistrados não podem interferir; o segundo argumento, é que se o poder do governo é somente pela força, a verdadeira religião consiste na genuína persuasão dos oradores da Igreja e na crença interior; e o terceiro, é que se até mesmo o magistrado pode mudar as mentes das pessoas, ocorreria uma situação onde todo mundo aceitaria a religião do magistrado e não traria mais pessoas para a “verdadeira” religião. Locke afirma que o uso da força pelo Estado para levar as pessoas a realizar certas crenças ou participar em certas cerimônias ou práticas é ilegítimo. O principal meio que o magistrado tem à sua disposição é a força física, mas a força não é um meio efetivo para mudanças ou manutenção de crenças. A outra face da moeda, a Igreja é definida como: “[...] uma sociedade livre de homens, reunidos entre si por iniciativa própria para culto público de Deus, de tal modo que acreditam que será aceitável pela Divindade para salvação de suas almas” (p.12). Mas, ele foi contraditório nessa afirmação, pois não levou em consideração que uma Igreja pode ser arbitrária e forçar homens a conversão pela violência – vide a Igreja Católica nos séculos XIII-XVIII durante a Inquisição –, algo que o próprio autor é contra. 3

VÁRNAGY, Tomás. O pensamento político de John Locke e o surgimento do liberalismo. In: BORON, Atílio A. (Org.). Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. São Paulo: EDUSP; CLACSO – Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2006. (p. 71)

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Mas, em que consiste o poder da Igreja? Locke nos dá três razões: primeiro, de acordo com alguns só existe Igreja verdadeira se há bispos ou presbíteros, entretanto para o autor de Dois tratados sobre o governo, uma igreja não necessita indispensavelmente de sacerdotes, pois na própria Bíblia desmente aquela afirmação; segundo, devido às divergências eclesiásticas fica quase impossível de se definir qual a religião verdadeira, então fica aberto a cada indivíduo a liberdade de escolher qual crença seguir; a terceira trata-se de outro tipo de liberdade, a liberdade de afiliar-se a religião que a pessoa escolheu. O poder da igreja consiste na própria igreja, por leis criadas pelos homens da igreja para serem cumpridas por essa sociedade eclesiástica. Em síntese, os magistrados devem ficar atentos às ações civis da população e deixar as ações religiosas para com os devidos líderes, isto é, o dever de um legislador, de uma autoridade, é a manutenção da ordem deixando livre para o indivíduo escolher sua religião seguindo a própria consciência. [...] numa palavra, ninguém pode impor-se a si mesmo ou aos outros, quer como obediente súdito de seu príncipe, quer como sincero venerador de Deus: considero isso necessário sobretudo pra distinguir entre as funções do governo civil e da religião, e para demarcar as verdadeiras fronteiras entre a Igreja e a comunidade. (p. 11)

E segue, dizendo que a tolerância é condição sine qua non para instituição da mesma como um bem individual e religioso, também como, para o bem do Estado de forma a garantir a paz entre os cidadãos.4 Os poderes do Estado são limitados e existe em função dos cidadãos que o constroem, Locke sustenta a tese de que a sociedade entrou no Estado civil depois da “assinatura” do contrato social, os homens renunciam aos seus direitos naturais e, portanto, instituem a sociedade civil. Para os jusnaturalistas, sociedade civil é um antônimo a sociedade natural, isto é, uma sociedade política – em lugar do Estado da Natureza. Para o empirista inglês esta situação é diferente do que seu compatriota Hobbes pensava, naquele estado não havia uma situação de guerra de todos contra todos, mas era uma condição no qual os indivíduos viviam em um estágio pré-político e pré-social caracterizado pela liberdade e pela igualdade. Como os homens decidiram sair do Estado da Natureza e adentrar no Estado civil foi para conseguir vantagens maiores e melhores do que se encontravam, pois a posse da propriedade era incerta e a sociedade teve que se constituir para a mútua preservação da propriedade, cuja garantia é dever do governante.

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“Se isso não for feito, não se pode pôr um fim às controvérsias entre os que realmente têm, ou pretendem ter, um profundo interesse pela salvação as almas de um lado, e, por outro, pela segurança da comunidade” (p. 11)

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O empirista inglês expõe o dever da tolerância para cada uma das partes envolvidas, a igreja, o indivíduo, os sacerdotes e, por último, os magistrados. A igreja não deve se sentir forçada a tolerar pessoas que mesmo depois de serem advertidas continuam a desrespeitar a instituição podendo utilizar a excomunhão como pena. Porém, deve-se tomar precaução, pois não deve macular a imagem da pessoa civilmente. Acerca do indivíduo, nenhum deles deve violentar verbalmente ou fisicamente quem quer que seja devido a diferentes concepções religiosas. “E, particularmente, quem abrace a religião cristã deve regular sua vida de acordo com as regras da virtude autêntica e da piedade. Nesta medida, tem de ser caridoso, liberal e benevolente com todos os homens, mesmo os não-cristãos.”5 E o que está escrito para os indivíduos servem também para as igrejas, o bom convívio entre todos. A autoridade da sociedade eclesiástica deve manter-se dentro dos limites da Igreja, pois ela mesma é uma “sociedade livre e voluntária” e distinta da comunidade, sendo vetada a participação destes nos temas civis, de acordo com Locke. E “tem também obrigação de advertir seus ouvintes dos deveres da paz e da boa vontade para com todos os homens” (p. 16-17). Portanto, qual o propósito do governo? Nessa questão, se abre uma dicotomia que tem de um lado, a preservação do bem comum e da paz entre os homens, e de outro, a liberdade dos indivíduos, esta dicotomia se desenvolve no inverso do dever da tolerância dos sacerdotes. Ou seja, dos magistrados devem tratar exclusivamente de assuntos civis e deixar o zelo da alma do indivíduo ao próprio. Afino, contudo, que não importa a fonte da qual brota sua autoridade, sendo, porém eclesiástica, deve confinar-se aos limites da Igreja, não podendo de modo algum abarcar assuntos civis, porque a própria Igreja está totalmente apartada e diversificada da comunidade e dos negócios civis. (p. 16)

Então, o autor escreve sobre as formas exteriores e interiores da igreja, os ritos do culto e da doutrina. O magistrado não pode usufruir da sua posição pública para institucionalizar na sua igreja ou em qualquer outra um determinado ritual, pois seria uma tremenda ousadia que ultrapassaria a barreira da tolerância utilizar-se de um cargo civil para legislar no âmbito religioso. Para o pensador britânico o poder legislativo é o que tem uma maior distinção entre os outros poderes, embora no seu pensamento não os mantenha separados e independentes6. Tratando somente o que for útil a sociedade civil e deixando os 5

JORGE FILHO, Edgard José. Moral e história em John Locke. São Paulo: Loyola, 1992. (Coleção Filosofia, v. 20). (p. 271) 6

GOUGH, J. W. A separação de poderes e soberania. In: QUIRINO, Célia G.; DE SOUZA, Maria Teresa Sadek R. (Org.). O pensamento político clássico. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980. (p. 184)

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assuntos indiferentes que forem a cargo de Deus com a igreja. As autoridades devem legislar procurando o melhor para a sociedade, independente de religião, podendo interferir no culto constatando-se algum dano a comunidade, não podendo tolerar uma forma politizada de alguma sociedade religiosa. “As coisas que em si mesmas são prejudiciais à comunidade, e que são proibidas na vida ordinária mediante leis decretadas para o bem geral, não podem ser permitidas para o uso sagrado na Igreja nem são possíveis de impunidade” (p. 23). Resumindo, “de uma maneira geral [...], tudo o que é permitido na comunidade civil é permitido na comunidade religiosa; tudo o que proibido na primeira o é na segunda.” 7 Sobre os artigos de fé, o autor de Ensaio acerca do entendimento humano divide em dois, a parte prática, que influencia os costumes, e a parte especulativa, que recai em cima da compreensão, estas obrigam somente que se creia nelas verdadeiramente, pois não devem ser estabelecidas pelo poder secular. Visando a liberdade, a autoridade não deve proibir opiniões distintas em qualquer igreja, porém “a integridade da conduta [...] diz respeito também à vida civil, e nela repousa a salvação tanto da alma humana como da comunidade” (p. 26). Portanto, creia no que quiser, mas tenha atenção às normas públicas vigentes, nisto “reza” a oferta de tolerância lockiana. Contudo, no mundo da tolerância de Locke nem tudo é tolerado, pois para ele há quatro fatos que não são toleráveis: em primeiro lugar, determinadas seitas religiosas que são incompatíveis com a sociedade humana, contrárias aos bons costumes devem ser reprimidas porque deixaria a paz a perder de vista; em segundo lugar, recai sobre, os que nós podemos denominar atualmente como, fundamentalistas religiosos, que atribuem a si mesmos e a sua respectiva seita a verdade e a ortodoxia, pois “sendo dada a oportunidade, atacarão as leis da comunidade, a liberdade e a propriedade dos cidadãos” (p. 29). A razão para estes dois tipos de indivíduos serem deixados de lado pela tolerância se deve ao fato que a maioria dos homens usa o poder para seu próprio avanço e aqueles que são intolerantes com os outros, por sua vez não deve ser tolerado – tais grupos não se devem confiar em qualquer caminho que pode levá-los ao poder e da ausência das liberdades dos outros; a terceira é, apesar de usar como exemplo um muçulmano turco que vive em um país cristão, trata-se de uma crítica aos papistas, como os britânicos chamam até os dias atuais pejorativamente os católicos, pois, para Locke é incompatível um cidadão que tem um dever para com um soberano do território onde vive, mas que pelo lado da religião também é um súdito de outro chefe de Estado e ainda

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POLIN, Raymond. Prefácio. In: LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Lisboa: Edições 70, 1965. (p. 53)

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por cima fora de seus domínios, em Roma. No quarto, e último caso excepcional, estão aqueles que não acreditam em nenhuma divindade, os ateus. Os que negam a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados. As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus, ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo (p. 29-30)

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CONCLUSÃO

Na Carta, bem como ele já havia demonstrado nos Dois tratados sobre o governo, apresenta o quão é central o fator da religiosidade na concepção de política e sociedade civil para Locke, mostrando-se como incansável defensor da tirania e da opressão e um grande defensor da liberdade do indivíduo. O conceito de tolerância do pensador inglês se assemelha a teoria protestante da consciência e da relação do indivíduo com Deus. Considerando que a Igreja Católica sublinha o papel dos padres e da hierarquia teológica para chegar até Deus, os reformadores protestantes da Igreja proclamam o direito individual de buscar a Deus por seu próprio caminho, e Locke, salientou o papel da razão na compreensão da relação entre o homem e Deus. Lendo o texto de Locke percebo uma intenção mais politizada do que religiosa, pois são duas as preocupações centrais dele: uma, é a de colocar em primeiro plano o Estado, isto é, para ele a primeira grande inquietação que todo magistrado deve ter: a de vigiar pelo bem comum, pela paz e pela ordem da sociedade, a outra é, o direito a própria autonomia de decisão, um direito natural que todo homem livre deve ter; a livre escolha de religião seguindo somente a própria consciência, claro, desde que não interfira na primeira proposição acima. E se tornou parte constitutiva do pensamento político moderno, já que sua proposta mais decisiva é a estrita separação entre a Igreja e o Estado. Locke ainda insiste que o governo deve olhar para a sua aplicação para a paz da nação e de segurança, e podem proibir publicações que tendem a "perturbação do governo". Tolerância não significa liberdade de expressão, no sentido que Locke deseja fazer compreender. No entanto, mesmo aqui, já que ninguém pode ser forçado a alterar a sua opinião, os cidadãos devem obedecer às prescrições do magistrado e aceitar a legislação do Estado como as suas consciências entenderem na medida em que podem, sem violência. Em outras palavras, se o Estado impõe formas de comportamento que uma seita encontra particularmente ofensivos, deveria, para a paz e a segurança da nação como um todo, aceitar as leis (e não perturbar a paz em uma perseguição obstinada), deixando as consciências livres para especular como entenderem; em outras palavras, eles devem dar a Deus e “César”, tanto que lhes é devido. O argumento utilizado por Locke na Carta era que a imposição religiosa foi muito além da competência legítima do magistrado se tornando um território de resistência, o que foi inovador e radical para a época. Locke efetuou essa proposição “desenhando” firmemente

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uma distinção entre os seculares fins da magistratura e os religiosos fins das Igrejas. Ao fazêlo, ele fez um gesto corajoso em direção a autêntica liberdade religiosa antes do que qualquer outro pensador de seu tempo. Em busca da tolerância religiosa, Locke pensa em três maneiras de alcançá-la, em primeiro lugar, que nenhum homem tenha tanta sapiência e conhecimento para que possa instituir uma religião a algum outro; em segundo lugar, que cada indivíduo é um ser moral, responsável perante Deus, o que pressupõe a liberdade; e, por último, que nenhuma obrigação que vá de encontro à vontade do indivíduo possa assegurar mais do que uma conformidade externa. Persevera que a tolerância é o principal caminho a seguir da verdadeira igreja, no qual o clero deve priorizar a paz e o amor. Embora, rejeite a ideia de autoridade eclesiástica, representada por uma hierarquia na qual a igreja tolerante não deve requerer de seus membros que acreditem mais do que está especificado na Bíblia para a salvação. O argumento de Locke para os principais alvos não-tolerados, “papistas” e ateus, era para aqueles, que a compulsão católica de obedecer ao Papa era contrária ao reconhecimento da autoridade legítima ou dos governantes civis. A outra ideia que não deve ser tolerada, o ateísmo, pois aos não crentes em Deus falta-lhes a moral, defendida pelo britânico, porém “não se devem excluir os pagãos, nem os maometanos e nem os judeus da comunidade por causa de sua religião” (p.32). A religião, forçada a submeter o culto externo à jurisdição estatal, se viu então reduzida à interioridade individual. A Carta acerca da tolerância impôs uma forte reprovação à intolerância e a consagração da liberdade religiosa, elementos inalienáveis no processo de constituição do Estado democrático liberal moderno.

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BIBLIOGRAFIA

BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Dicionário Universitário dos filósofos. 1. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. 11. Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1998.

CAHN, Steven M. Classics of modern political theory: Machiavelli to Mill. 1. Ed. New York: Oxford University Press, 1997.

GOUGH, J. W. A separação de poderes e soberania. In: QUIRINO, Célia G.; DE SOUZA, Maria Teresa Sadek R. (Org.). O pensamento político clássico. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.

JORGE FILHO, Edgard José. Moral e história em John Locke. São Paulo: Loyola, 1992. (Coleção Filosofia, v. 20)

LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. 3. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).

MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os clássicos da política vol. 1. 14. Ed. São Paulo: Ática, 2006. cap. 4, p. 79-110.

POLIN, Raymond. Indivíduo e comunidade. In: QUIRINO, Célia G.; DE SOUZA, Maria Teresa Sadek R. (Org.). O pensamento político clássico. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.

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. Prefácio. In: LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Lisboa: Edições 70, 1965.

SANTOS, Antônio Carlos dos. Locke e a tolerância limitada. In: . A via de mão dupla: tolerância e política em Montesquieu. 1. Ed. São Cristóvão: EDUFS; Ijuí: Unijuí, 2006. (Coleção Filosofia; 21).

VÁRNAGY, Tomás. O pensamento político de John Locke e o surgimento do liberalismo. In: BORON, Atílio A. (Org.). Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. 1. Ed. São Paulo: Departamento de Ciência Política da USP; Buenos Aires: CLACSO – Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2006.

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