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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

TALITA CARNEIRO DE MATOS

RAÍZES DE PORTUGAL. DO MINHO A SÃO PAULO (1950 – 2000)

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

SÃO PAULO 2016

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

TALITA CARNEIRO DE MATOS

RAÍZES DE PORTUGAL. DO MINHO A SÃO PAULO (1950 – 2000)

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História Social, sob a orientação da Profª. Drª. Yvone Dias Avelino.

SÃO PAULO 2016

Banca Examinadora:

_____________________________________ _____________________________________ _____________________________________

Dedico esta dissertação à minha avó Antonia, imigrante portuguesa, inspiração inicial. E ao meu irmão Marcello, homem-menino sonhador, que foi sonhar no céu o que a vida jamais comportou.

Aluna bolsista CNPq. Processo: 152229/2014-0.

AGRADECIMENTOS

Agradecer. Palavra que comporta vários sentidos. Retribuir e reconhecer quem esteve ao meu lado nessa jornada tão intensa. Em primeiro lugar, agradeço aos meus pais, Maria Maior e Luiz Ricardo, por me apoiaram em tudo, pelo amor e educação, sempre lembrando a questão da responsabilidade e consequências por nossas escolhas. Minha avó Antonia, que juntamente com meu avô Valentim, meu bisavô João e minha mãe enfrentaram uma viagem para uma terra desconhecida, destino traçado por vários imigrantes portugueses naqueles idos da década de 50 do século XX. Ao meu irmão Marcello, pelo seu apoio e por deixar conosco um pedacinho seu, sua filha Mariana. Eternas saudades. Aos meus familiares, por toda atenção. Aos meus amigos historiadores, Juliana e Estevão, colegas de graduação e pós, amigos de alma. Grandes influenciadores na decisão de continuar minhas pesquisas. Aos amigos de anos, que sinto não citar um a um, mas que estão marcados em meu caminho e que contribuíram com sua paciência e apoio e acreditaram em mim. Aos amigos de jornada do Mestrado. A troca de experiências, informações, alegrias, angústias só contribuíram para que não me sentisse só. Ao Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo. Dona Soledade e Alexandre (Xuxão) representando o Raízes e Lino Lage representando os Poveiros, que me receberam de volta, agora como pesquisadora. Pela liberdade que me concederam e por toda atenção. A todos os amigos de grupo. Integrantes e ex-integrantes do Raízes. Aos narradores das experiências, Renata, Rodrigo e Francisco. E a todos que quiseram compartilhar suas experiências e que, se ainda quiserem, gostaria muito de ouvi-los. Tatiana Romano, obrigada por me apresentar ao grupo e ser a ponte de retorno as minhas origens. Agradeço a todo o Departamento do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP, em especial as professora Estefânia Knotz, Denise Sant’Anna, Olga Brites, Maria do Rosário Peixoto e Luiz Antonio Dias pelas suas sempre pontuais contribuições. À Professora Doutora Maria Izilda Santos Mattos, por ter feito a ponte com a professora Yvone para que minha pesquisa pudesse se desenvolver com mais profundidade. E à Professora Doutora Mariza Romero, minha primeira orientadora, desde a graduação, que gentilmente direcionou meu caminho ao da professora Yvone, para que todos pudessem seguir segundo a pertinência da linha de pesquisa.

Ao colega do doutorado, Leandro Rodrigues, pelas conversas e trocas devido ao tema afim. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, pelo financiamento de meus estudos, sem o qual não seria possível minha dedicação integral. Um agradecimento especial à bibliotecária da Casa de Portugal, Eliane, que sempre me recebeu com cortesia e foi de grande ajuda, desde a graduação, quando busquei um norte para minha pesquisa inicial. À Professora Doutora Maria Aparecida Franco e à Professora Doutora Sênia Bastos, pelas contribuições durante a qualificação. Agradeço imensamente, à minha orientadora Professora Doutora Yvone Dias Avelino, por ter aceitado me guiar pelos caminhos árduos da pesquisa. Muito obrigada por sua paciência, generosidade e dedicação.

RESUMO

MATOS, T. C. Raízes de Portugal. Do Minho a São Paulo (1950-2000). 2016. 103 p. Dissertação (Mestrado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. A pesquisa Raízes de Portugal. Do Minho a São Paulo (1950-2000) tem como objetivo entender e problematizar a participação de portugueses, seus descendentes e de pessoas de outras nacionalidades, em grupos e associações considerados por seus integrantes como representantes do “folclore” português em São Paulo. Aborda a origem de sua representação popular e seus caminhos por outros continentes, com foco na cidade de São Paulo e o associativismo como agregador. O estudo foi desenvolvido por meio da História Oral e outras fontes, que dialogaram com os estudos de tradição, cultura popular, memória, rupturas e permanências de uma representação que está centrada nas reinvenções dessas tradições, que buscam reanimar o conceito de cristalização que a palavra folclore emana. Prática que procura reinserir uma cultura local, representativa de um país para os imigrantes portugueses, que por vontade própria ou por pressões políticas e econômicas, reencontraramse e/ou reconheceram-se como integrantes dessa comunidade por meio das associações. Palavras-chave: Portugal; Folclore; Minho; Tradição.

ABSTRACT

MATOS, T. C. Roots of Portugal. From Minho to São Paulo (1950-2000). 2016. 103 p. Dissertation. (Master in Social History) - Catholic University of São Paulo, São Paulo. The search for "Roots of Portugal. From Minho to São Paulo (1950-2000)" aims to understand and discuss the participation of Portuguese, their descendants and people of other nationalities, groups and associations considered by its members as representatives of the" folklore "Portuguese in Sao Paulo. It discusses the origin of its popular representation and his ways by other continents, focusing on the city of São Paulo and associations as aggregator. The study was conducted through oral history and other sources, who conversed with the tradition of studies, popular culture, memory, ruptures and continuities of a representation that is focused on reinventions of these traditions, seeking to revive the concept of crystallization that the word folklore emanates. Practice looking reinserting a local culture, representative of a country for the Portuguese immigrants who willingly or by political and economic pressures, reunited and/or were recognized as members of this community through associations. Keywords: Portugal; Folklore; Minho; Tradition.

LISTA DE IMAGENS

Imagem 01 - Mapa político de Portugal..................................................................................24 Imagem 02 - Rio Mondego em Coimbra..................................................................................25 Imagem 03 - Detalhe dos tapetes coloridos da Festa de Nossa Senhora da Agonia em Viana do Castelo.................................................................................................................................27 Imagem 04 - Traje de Luxo de Viana do Castelo.....................................................................30 Imagem 05 - Alunos de Coimbra..............................................................................................43 Imagem 06 - Grupo Fado ao Centro........................................................................................44 Imagem 07 - Trajes para universitários de Coimbra à venda atualmente...............................45 Imagem 08 - Placa de mármore em homenagem aos quarenta anos de curso médico............46 Imagem 09 - Placa de mármore em homenagem aos trinta anos de formatura de vários cursos........................................................................................................................................46 Imagem 10 - Gráfico representando a entrada de imigrantes no Estado de São Paulo por nacionalidade............................................................................................................................65 Imagem 11 - Exemplar do Jornal Mundo Lusíada...................................................................68 Imagem 12 - Exemplar do Jornal Portugal em Foco...............................................................69 Imagem 13 - Concertina portuguesa........................................................................................76 Imagem 14 - Tocata do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo..................................................................................................................................76 Imagens 15 e 16 - Detalhes dos brasões utilizados pelo Grupo Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo....................................................................................78 Imagem 17 - Logo do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo...................................................................................................................................79 Imagem 18 - Detalhe das costas de uma das versões de camisas utilizadas pelos componentes..............................................................................................................................80 Imagem 19 - Brasão do Clube da Vila Maria..........................................................................81 Imagens 20 e 21 - Convite da festa de aniversário do Rancho Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo de 2015..................................................................82 Imagem 22 - Detalhe da mesa de doces na festa do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo....................................................................................84 Imagem 23 - Artigos temáticos vendidos nas festas do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo...............................................................................84

Imagem 24 - Exemplares de trajes masculino e feminino mais comuns no Grupo Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo................................................................85 Imagem 25 - Brincos à rainha..................................................................................................87 Imagem 26 - Trajes de Póvoa de Varzim..................................................................................89 Imagem 27 - Traje poveiro masculino......................................................................................90 Imagem 28 - Traje minhoto......................................................................................................91 Imagem 29 - Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo em uma de suas apresentações.................................................................................................92

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 1 “Ó VIANA, DO CASTELO / AI SÓ TU ME DEIXAS PAIXÃO / ONDE TENHO E NÃO NEGO / AI RAÍZES DO CORAÇÃO” ...................................................................... 21 1.1 Viana: início e fim .......................................................................................................... 21 1.2 Identidade portuguesa ..................................................................................................... 30 2 “Isso é Folclore!” ................................................................................................................. 41 2.1 Fado X Folclore .............................................................................................................. 41 2.2 Acolhida e pertencimento: portugalidade ....................................................................... 53 3 RAÍZES ................................................................................................................................ 72 3.1 Grupo folclórico raízes de Portugal ................................................................................ 72 3.2 Os Trajes típicos ............................................................................................................. 86 CONCLUSÃO......................................................................................................................... 94 FONTES CONSULTADAS ................................................................................................... 97 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 100

13

INTRODUÇÃO

Mande notícias do mundo de lá Diz quem fica Me dê um abraço, venha me apertar Tô chegando (Milton Nascimento e Fernando Brant)

O presente tema, as manifestações folclóricas portuguesas na cidade de São Paulo, surgiu em minha volta ao curso de História da PUC – SP após alguns anos afastada. Em minha jornada por outra graduação conheci uma pessoa que no lugar comum da história dos sobrenomes perguntou se eu era descendente de portugueses. A reposta foi positiva. E perguntou se eu acompanhava os eventos culturais das associações portuguesas. A resposta, negativa. E um convite surgiu. De família por parte de mãe de imigrantes portugueses de Estremoz, no Alentejo, cuja história de migração se perdeu nas histórias não contadas por falta de ouvidos atentos ou por conta de tristezas encolhidas, não tinha me dado conta até então de como os imigrantes formaram nas terras que os acolheram uma rede de solidariedade e manutenção de suas “tradições” por meio da cultura específica de cada povo. Não falo apenas de mim. Por mais improvável que possa parecer, minha família materna viveu durante muitos anos ao lado da Associação Portuguesa de Desportos, clube esportivo e social de São Paulo, cujas festas temáticas acontecem há décadas. E mesmo assim, não as conheciam. A música portuguesa, para mim, era Roberto Leal. Amália Rodrigues, expoente do fado, de ouvir falar e algumas músicas já tradicionais quando Portugal era citado em algum programa televisivo. Madredeus, talvez, principalmente por fazer parte da trilha sonora de novelas. Mas o folclore português era um ilustre desconhecido. Em relação ao convite feito e aceito, minha avó, minha mãe e eu fomos parar na Vila Maria, zona norte de São Paulo, no Clube da Vila Maria, na época, ano 2000, sede do Grupo Folclórico Raízes de Portugal. Festa de seu aniversário. Casa cheia, lotada. Almoço: Bacalhau à Raízes. Muito barulho, muita gente, muita música. Ao primeiro toque da concertina, que não conhecia, mais os outros instrumentos em sintonia, percebi mudar o semblante de minha avó. Era o mesmo das outras pessoas presentes. Uma espécie de comunhão. Quando o rancho entrou, não fazia ideia das cores, das voltas e dos passos tão dinâmicos, que nada lembravam o murmúrio e penumbra do fado. Dias depois,

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e sem escolha aparente, entrei para o grupo, juntamente com meu irmão. Dois anos após rompi os ligamentos do tornozelo e me afastei. Da dança, não do interesse pelo assunto. As pesquisas realizadas durante a graduação versaram sobre as atividades dos grupos folclóricos em São Paulo. No curso de especialização História, Sociedade e Cultura, também da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o tema para o trabalho final foi justamente esse, já visando à pós-graduação stricto sensu. O folclore português em São Paulo. A manifestação do folclore português por um determinado rancho: Grupo Folclórico Raízes de Portugal, após um curto período, Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo. A presente dissertação “Raízes de Portugal. Do Minho a São Paulo (1950-2000)” tem como viés demonstrar a participação dos imigrantes portugueses e seus descendentes, além de outras pessoas sem identificação de parentesco com portugueses nas associações culturais com ênfase no “folclore” português. As transmissões, rupturas e permanências dessa manifestação cultural demonstram que essas práticas continuam, de maneiras diversas do original, inventadas e reinventadas conforme as localizações e significados. O rancho folclórico, foco da pesquisa, como muitos outros ranchos, canta e dança as tradições do Minho. Essa escolha tem como premissa a origem dos fundadores e também pelo folclore da região ser o mais representado por um grande número de associações. O período escolhido tem como base a chegada dos imigrantes que adentraram o território brasileiro e iniciaram as primeiras associações e o estabelecimento do Grupo Folclórico Raízes de Portugal como expoente de uma nova geração representante do autodenominado folclore português. Ao pesquisar sobre o tema, não encontrei material que se aprofundasse no folclore português na cidade de São Paulo. O primeiro local de pesquisa foi a Casa de Portugal, por conta de sua biblioteca própria. E ao ser recebida por sua bibliotecária, Eliane, ela relatou que materiais que dissertam sobre o folclore português em São Paulo são raros, quase inexistentes, e que ela mesma fez um “clipping” sobre a história do grupo folclórico da casa com os recortes dos jornais que circulam na comunidade portuguesa: Portugal em Foco e Mundo Lusíada. Mas havia uma dissertação de mestrado em Antropologia Social pela UNICAMP de Eduardo Caetano da Silva intitulada “Visões da diáspora portuguesa: dinâmicas identitárias e dilemas políticos entre os portugueses e os luso-descendentes de São Paulo”. Essa dissertação de 2003 tornou-se meu ponto de partida. Essa dissertação dá margem a várias questões em relação a como essas associações são vistas por diferentes grupos que orbitam o assunto. Um deles é que o “folclore” não é a forma mais adequada de “promoção” de Portugal atualmente. Mas as próprias pessoas que

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participam desses grupos não pensam por esse viés. E pelo convívio como integrante de um desses grupos e pelos relatos de seus integrantes e das pessoas que participam das festas que evocam o “folclore” como manifestação de portugalidade, a música, danças e trajes são a expressividade de um Portugal idílico. Passado, mas presente. O Portugal que nem todos viveram, mas que é o Portugal que os une. Para designar o termo folclore, Luís da Câmara Cascudo, conceituado pesquisador do folclore e dos costumes brasileiros, diz que "o folclore é a tradição e a tradição é a ciência do povo.” Em Folclore do Brasil, ele resume: Todos os países do Mundo, raças, grupos humanos, famílias, classes profissionais, possuem um patrimônio de tradições que se transmite oralmente e é defendido e conservado pelo costume. Esse patrimônio é milenar e contemporâneo. Cresce com os conhecimentos diários desde que se integrem nos hábitos grupais, domésticos ou nacionais. Esse patrimônio é o FOLCLORE.1

Em outra acepção, temos: folk = povo e lore = sabedoria. Folclore (do inglês, folklore, “id”): substantivo masculino; ciência que estuda as tradições populares nas suas variadas manifestações (música, dança, canções, provérbios, lendas); Colectânea das canções populares relativas a certa época ou região.2

Em Portugal, para os que tentam preservar o folclore como deveria ser em épocas passadas, é visto como uma forma de resgate de suas raízes. Temos obrigação de salvar tudo aquilo que ainda é susceptível de ser salvo, para que os nossos netos, embora vivendo num Portugal diferente do nosso, se conservem tão Portugueses como nós e capazes de manter as suas raízes culturais mergulhadas na 3 herança social que o passado nos legou.

A origem da palavra folclore é anglo-saxônica, Folk-Lore (o saber tradicional do povo). O inglês William John Thoms, por volta de 1846, percebeu quando estudava o que se chamava de “Antiguidades Populares” ou “Literatura Popular”, o que envolve contos, lendas, canções, precisava de um novo termo que incluísse tudo isso. Percebeu que, mais do que uma literatura, [...] tratava-se de um saber tradicional de maior amplitude, consubstanciado em costumes, usos, crenças, cerimônias etc. [...] afirmou que muitos fatos, aparentemente triviais e insignificantes em sua abrangência, na verdade compunham elos de uma grande cadeia, pontos de uma rede de incomensurável amplitude. 4

O Folclore é a construção do homem anônimo que, pessoalmente, refoge da História; portanto, enfocar a sua obra continuada que se desenvolve constantemente pelo mundo afora é contribuir para o conhecimento de Folclore e da História.5

1

CASCUDO, L. da C. Folclore do Brasil: pesquisas e notas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1967, p. 10. Diciopédia, In: folclore-online.com. Acesso em: 26 de setembro de 2013. 3 www.folclore-online.com. Acesso em: 26 de setembro de 2013. 4 FRADE, C. Folclore, Para entender 3. São Paulo: Global, 1991, p. 10. 5 ALMEIDA, R. A Inteligência do Folclore, Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1957, p. 205. 2

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Junto ao folclore, a tradição é palavra que aparece constantemente, pois um dos objetivos a ser alcançado pelo grupo folclórico aqui apresentado é a continuidade de uma tradição. Mas essa tradição não é pura. A tradição oral “[...] remete às questões do passado longínquo que se manifestam pelo que chamamos folclore e pela transmissão geracional, de pais para filhos ou de indivíduos para indivíduos.” 6 Como a palavra folclore em si já enseja uma interpretação antropológica de inércia, repetitividade e cristalização, voltemos a Câmara Cascudo em mais uma definição sobre esse verbete. É a cultura do popular, tornada normativa pela tradição. Compreende técnicas e processos utilitários que se valorizam numa ampliação emocional, além do ângulo do funcionamento racional. A mentalidade, móbil e plástica, torna tradicional os dados recentes, integrando-os na mecânica assimiladora do fato coletivo, como a imóvel enseada dá a ilusão da permanência estática, embora renovada na dinâmica das águas vivas. O folclore inclui nos objetos e fórmulas populares uma quarta dimensão, sensível ao seu ambiente. Não apenas conserva, depende e mantém os padrões imperturbáveis do entendimento e ação, mas remodela, refaz ou abandona elementos que se esvaziaram de motivos ou finalidades indispensáveis a determinadas sequências ou presença grupal.7

Em uma visão geral, esta dissertação visa questionar o papel dessas associações que contam com um grupo de pessoas que dançam, cantam e tocam as músicas “folclóricas” portuguesas. Para isso, um grupo ganha destaque: o Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo. Ganha destaque pela facilidade de acesso aos seus integrantes e também por ser formado por ex-integrantes de outros grupos de São Paulo. Também por ser um grupo que se associou a outro para uma “troca de favores”. Um grupo sem sede ganha uma e uma associação sem grupo agora conta com um. E para isso, todos tiveram que se adaptar, pois representam regiões diferentes de Portugal. O Raízes apresenta o folclore de Viana do Castelo, Minho, basicamente, e os Poveiros são uma associação de pessoas que vieram de Póvoa de Varzim e se estabeleceram na cidade de São Paulo. Regiões diferentes em costumes, tradições. As músicas e passos das danças, incluindo as roupas da região da Póvoa, são bem diferentes das que os integrantes do Raízes apresentam. Para esse entrelaçamento há festas diferentes para as duas associações, na mesma sede e com o mesmo grupo, mas com temáticas diferentes. Em relação às canções, elas não permaneceram conhecidas por acaso. Só se folclorizam peças quando o povo as aceita e seria de número infinito o registro das que rejeita. Basta ver pelos cancioneiros. Quantas cantigas ficaram na memória popular em relação a tantas outras de iguais origens e circunstâncias e que caíram no

6 7

MEIHY, J. C. S. B. Manual de História Oral. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 71-2. CASCUDO, L. da C. Dicionário do folclore brasileiro. 12. ed. São Paulo Global: 2012, p. 304.

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mais completo esquecimento? A memória popular é uma força catalisadora, elemento de desgaste e sedimentação.8

E mais: Arthur Palmer Hudson resume fielmente o conceito quando assim define a canção folclórica: aquela que, seja qual for sua origem: 1) tenha sido aceita e cantada pelo povo; 2) tenha circulado oralmente por tanto tempo que quem canta ignora o seu primeiro autor e donde veio; e 3) exista ou tenha existido apenas em variantes, quer dizer, sem que o povo tenha conhecimento de qualquer forma fixa ou standard de seu texto. 9

Para o terceiro capítulo o uso dos mecanismos da história oral foi necessário. Principalmente porque não há muitas outras fontes para consulta. E que fontes mais ricas do que os próprios integrantes e fundadores dos grupos? Mas trabalhar com memória é muitas vezes um risco. A sensibilidade para transformá-la em algo concreto e tentar compreender seus caminhos teve como base vários teóricos que trabalham com memória e história oral, entre eles Maurice Halbwachs, Ecléa Bosi e Alessandro Portelli e também José Carlos Sebe Bom Meihy, apesar de haver divergências na abordagem da história oral. Assunto delicado e por vezes arredio. Mais ainda assim, emocionante.

Componentes e ex-componentes se

mostraram ávidos em participar, mas por motivos alheios as vontades de ambas as partes, os depoimentos foram em número reduzido. “Complicado descrever o cotidiano de um grupo e suas experiências como sendo uma situação homogênea e como se todos os depoimentos pudessem ser iguais”10. A memória é um rico depositário de sensações e acontecimentos e também uma linha tênue entre o realmente acontecido e a junção das emoções, pontos de vistas e o passar dos anos. Como pressuposto, a história oral implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A presença do passado no presente imediato das pessoas é a razão de ser da história oral. Nessa medida, a história oral não só oferece uma mudança para o conceito de história, mas, mais do que isso, garante sentido social à vida de depoentes e leitores que passam a entender a sequência histórica e sentir-se parte do contexto em que vivem. 11

Outro ponto é o da cultura popular X folclore. O folclore tem uma pecha de estacionário, uma cristalização de seu objeto de estudo. Mas não posso fugir ao termo, pois o “folclore” português tem essa autodenominação. Por isso, decidi escrever entre aspas o termo folclore como sendo a representação dessa manifestação de cultura popular que os grupos portugueses apresentam.

8

ALMEIDA, R. A Inteligência do Folclore. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1957, p. 59-60. HUDSON, A. P. La Poesia Folklorica, In: Folklore Americas. In: ALMEIDA, R. A Inteligência do Folclore. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1957, p. 63. 10 MEIHY, J.C.S.B. Manual de história oral. 3.ed. rev. e ampl. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 18. 11 Ibidem. p.18. 9

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Os participantes dos grupos folclóricos se apresentam como guardiões e transmissores das tradições de seu país ou região. E nesse caso, o termo tradição inventada, cunhado por Hobsbawm, é o mais apropriado. E também porque o termo cultura é amplo. Inclui artes, religião, variadas práticas de significados e valores.12 Além dos chamados desníveis culturais que definem o folclore, a antropologia social, a história das tradições populares.13 Também foi preciso analisar o folclore. E a música folclórica. Nesse caso, textos escritos por antropólogos e etnomusicólogos. E o receio de entrar na Antropologia é preocupante, no sentido da não familiarização e de não conseguir problematizar com propriedade. E o discurso dos tempos ditatoriais de Salazar tem espaço no que concerne à conservação das tradições. O folclore português teve parte essencial nesse momento da história de Portugal. Na atualidade, Salazar ainda paira sobre os imigrantes e também sobre aqueles que nunca estiveram sob seu julgo. De forma dicotômica, sua influência ainda é presente, de maneira que as ambivalências de sua imagem ainda persistem. E para embasar esta pesquisa fui mais longe, pois ao tratar do autodenominado folclore português foi necessária uma viagem à formação da identidade portuguesa para tentar compreender se essa identidade do folclore foi construída recentemente ou veio de forma natural com os meandros da história de Portugal. O primeiro capítulo: “Ó VIANA DO CASTELO / AI SÓ TU ME DEIXAS PAIXÃO / ONDE TENHO E NÃO NEGO / AI RAÍZES DO CORAÇÃO”, tem como ponto de partida o verso final da Gota de Meadela, música “folclórica” sem autoria e data definida dançada pelo Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo. Não há a prepotência em relatar e desconstruir a história de Portugal, pois é uma vasta história. Mas sem tentar captar as influências para sua formação, tantas mesclas de povos que contribuíram para a cultura portuguesa, não há como compreender o “folclore” que é o tópico principal desta dissertação. É um breve relato do que compõe o “ser” português e sua história política. Várias culturas que se sobrepuseram e se transformaram. Portugal é isso. Um pequeno grande país que é diferente em cada região, mas que consegue se unir em traços que se assemelham.

12

WILLIANS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 21. GINSBURG, C. O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia da Letras, 1987, p. 17. 13

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Por isso, o capítulo se inicia com o subtítulo Viana: início e fim. Viana do Castelo como amálgama do “folclore” português. Sua importância para principiar a compreensão da identificação dessa região com a manifestação cultural popular, tema desta dissertação. Do arcaico ao contemporâneo, Portugal indissociável de seu povo, de sua história de migrações. Para entender o autodenominado folclore português, essa “volta” é necessária, pois são várias influências. Pensando no folclore, será que se encaixa no arcaico, no sentido cultural? “[...] o que sobrevive do passado mas enquanto passado, objeto unicamente de estudo ou rememoração?”14 Para fechar o capítulo, temos o subtítulo A identidade portuguesa. Há uma discussão sobre a identidade portuguesa. Na verdade, são várias as identidades. A divisão cultural entre norte e sul, a religiosidade e sua ruralidade amada e renegada ao mesmo tempo. E o período recente de sua ditadura. O que leva ao Portugal sob o regime de Salazar. Não há como falar de identidade portuguesa e folclore sem citar o período da ditadura portuguesa e de como o folclore foi utilizado como propaganda de um Portugal idílico e rural. No segundo capítulo, “ISSO É FOLCLORE!”, o “folclore” entra em cena. Na primeira parte Fado X Folclore, um apanhado da música portuguesa e sua contribuição na caracterização do país. A contribuição de antropólogos e etnomusicólogos para compreender como o folclore português tem influências tão antigas, mas que não é tão antigo no sentido de ser construído, inventado e reinventado. O fado é reconhecido como a música portuguesa. E nas casas para turistas, se mistura à música folclórica e ao fado universitário, de Coimbra, como parte da cultura popular. Em seguida, o folclore levado pelos emigrantes para os países de acolhida, na “sangria” migratória da segunda metade do século XX. Não só o folclore, mas a organização de casas de acolhida de imigrantes nesses países, a transmissão dos costumes, da culinária, dos rituais e o envolvimento com os locais. E a saudade... a volta esperançosa. A construção de vários portugais em cada terra que os acolheram. Acolhida e pertencimento: portugalidade a manifestação do folclore português com as associações, os grupos folclóricos, jornais e programas de rádio na cidade de São Paulo. A rotina das festas portuguesas e sua importância para essa comunidade. O terceiro capítulo, Raízes, como questão central em Grupo Folclórico Raízes de Portugal, o próprio grupo estudado. Para sua história, - tão recente - , componentes e ex14

MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997, p. 90.

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componentes se colocaram à disposição para contar sua participação no grupo. É destacada a criação do grupo, a entrada dos participantes, suas demandas, a saída e permanência, os problemas pontuais. A fusão com a Associação dos Poveiros de São Paulo e sua presença na comunidade portuguesa. Em Os trajes típicos, uma síntese dos trajes utilizados pelos componentes do grupo estudado e a sua simbologia.

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1 “Ó VIANA, DO CASTELO / AI SÓ TU ME DEIXAS PAIXÃO / ONDE TENHO E NÃO NEGO / AI RAÍZES DO CORAÇÃO”15

1.1 Viana: início e fim “Fim do mundo, lugar de destino mais do que de passagem, (...)16”. Muitas vezes a geografia e a história se contradizem. Onde o mar não era tão propício às navegações pela geografia de sua costa. O que se tornou exatamente o contrário. Nessa dissertação, Portugal não é o fim. É o começo. Viana e raízes no coração. Viana, a região mais representada no folclore português e escolhida pelo grupo estudado nessa dissertação. Mesmo que represente norte a sul de Portugal. Raízes de Portugal, raízes lusitanas, raízes das “tradições” que pretendiam perpetuar em terras que os acolheram. Raízes que não sabem se são profundas ou aparentes, mas que celebram o dito “folclore” português. Raízes que os portugueses levaram como identidade mundo afora quando se situaram nos países de acolhida, em uma dispersão ocorrida até pouco mais da segunda metade do século XX. Pesquisar sobre o folclore português perpassa pela importância da identidade do que é ser português. E nesse caso, Portugal e sua cultura popular, território e política são indissociáveis. A cultura popular, por meio do seu folclore permeia todos esses temas. A identidade portuguesa primeiramente é conduzida pelas regiões que compõem o país e das que mais se destacam, com a junção do que mais sobressai de cada parte que o forma. Regiões diferentes que acabam unidas em torno de uma identidade única e por ela conhecida. Também faz parte de sua identidade sua formação política e econômica peculiares. As influências externas que construíram a cultura portuguesa. A música, a vestimenta, o idioma. Mas esse país tem suas peculiaridades, que na singularidade, se perdem para dar lugar à unicidade de um povo, o que acontece com todos os outros. Nas suas semelhanças inseremse as diferenças, que dão o toque a mais nesse coletivo de culturas que define a cultura portuguesa. A formação de Portugal dá ensejo a um questionamento sobre sua identidade. Todos os povos são formados por influências do local de origem e da junção de outras culturas,

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Trecho de Gota de Meadela, de autoria desconhecida, e uma das músicas que está presente nas apresentações do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo desde sua criação. 16 MARQUES, A. H. de O. Breve história de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 2006, p. 12.

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desde que não estejam isolados. Portugal é um país de sobreposições de culturas que se transformaram em uma só. Como a combinação de todas as sociedades que formaram Portugal, os acontecimentos políticos, guerras, mudanças transformaram Portugal no que é hoje. A Reconquista17, por exemplo, foi um processo lento e violento, enquanto isso, os ibéricos aproveitavam o conhecimento árabe na área científica e cultural. Os mosaicos foram incorporados à arte ibérica. A língua não foi substituída, mas alguns elementos foram incorporados. Muitas das palavras são usadas ainda em português, as mais conhecidas levam o prefixo “al”: alface, alfazema. Outras palavras são: azeitona, limão, chafariz, xarope, armazém, entre outras. A produção rural que começou quando Portugal era Lusitânia e dominada pelos romanos permanece com suas bases, como o cultivo da oliveira, da videira, do trigo e outros. A secagem do peixe também é dessa época, assim como o início da produção têxtil. A produção têxtil ainda faz parte da atualidade portuguesa, mas não mais como base de sua economia. Em meados do século XIX, Portugal continuava um país relativamente atrasado e rural, destoando da crescente industrialização da Europa. As tradições falavam mais alto para o povo de massa majoritariamente camponesa. Em meados de 1870, por volta de 700.000 pessoas constituíam a população urbana, de uma população em torno de 4.200.000 habitantes18. E as tradições aparecem também para os que manipulavam a área política e econômica. Esse aspecto “rural” vai marcar Portugal por gerações. Mesmo no decorrer do século XIX, com o aumento de indústrias, estradas de ferro, Portugal continuou dependendo de apoio externo aumentando dívidas, principalmente depois de perder seu maior trunfo, o Brasil. E as colônias em África passaram a exercer um potencial econômico, continente já ocupado por outras potências europeias. E em relação à questão cultural, o que ficou; o que não faz mais parte; o que foi transformado e o que foi reinventado? Como o autodenominado folclore português se insere nesse percurso? Como esse passado sobrevive no presente? Se é que sobrevive, pois em relação à continuidade, há sérias controvérsias. Um passado inventado e reinventado pode significar a continuidade de algo? O predomínio rural por um determinado período colaborou para o florescimento do folclore português? Há resistências e resquícios, mas quanto há de transformação?

17

Reconquista: a reconquista cristã na região ibérica do período da ocupação muçulmana durou do século VIII a 1492 com a retomada de Granada pelos reis católicos. Em Portugal terminou mais cedo, 1249, com a retomada de Faro por Afonso III. 18 SCOTT. A. S. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010, p. 286.

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São muitas perguntas para espaço tão reduzido e muita pretensão. E, além disso, não é Portugal o foco desta dissertação, mas sim um dos muitos grupos que representam a cultura popular portuguesa em São Paulo. A arriscada tentativa de responder a essas questões se encontra no decorrer do texto. Vários recortes são necessários. Recortes para se pensar a identidade portuguesa. O território, a cultura, a emigração, o momento delicado de uma ditadura e um adendo ao recorte cultural, as tradições culturais, o “folclore”. Para começar, em um primeiro momento, temos Viana do Castelo. Faz-se necessário devido à escolha do grupo que apresenta o folclore dessa região. Começaremos e terminaremos em Viana. Do território a identidade. Viana do Castelo, a cidade mais ao Norte de Portugal, situada na foz do rio Lima foi fundada em 1258.19 Considerada a capital do “folclore” português pelos grupos etnográficos devido a sua musicalidade e também pelo traje feminino à vianesa20 é a mais representada nas apresentações de ranchos folclóricos portugueses. O luxo das roupas das mulheres chama a atenção para a riqueza ostentada, seja no requinte do tecido ou na exibição das joias.

19 20

http://www.guiadacidade.pt/pt/distrito-viana-do-castelo-16. Acesso em: 17/12/2014, às 14:50h. Os trajes considerados folclóricos são analisados no terceiro e último capítulo.

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Imagem 01 – Mapa político de Portugal21

Pelo mapa podemos observar que Viana do Castelo está ao norte e a beira do Atlântico. Considerada uma das regiões mais “ricas” de Portugal, essa chamada riqueza é comparada ao sul, região diferenciada pela agricultura e a própria cultura. Há diferenças em relação aos centros econômicos e aos extremos. É a polarização Norte X Sul. Os contrastes encontram-se na “divisão” Norte X Sul delimitada pelo rio Mondego.

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http://vida.planetavida.org. Acesso em: 20/07/15.

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Imagem 02 – Rio Mondego em Coimbra.

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Se Viana é a região que impera no folclore, o rio Mondego é o mais citado na música e na poesia. Na imagem acima, o rio foi fotografado em Coimbra, cidade que o rio percorre por inteiro. É praticamente uma divisão entre o norte e o sul de Portugal. As regiões do Minho (Norte) e Alentejo (Sul) são as mais características dessa dicotomia. Além do norte ser caracterizado pelas terras montanhosas e o sul marcado pelas terras baixas. Em relação ao clima, a temperatura e a vegetação do Norte permitem uma colheita mais variada e também por isso, é mais densamente povoada. Mas a região Sul é mais agrícola e seus habitantes estão mais localizados em aldeias do que os do Norte. O Norte e o Sul têm uma “rixa” de séculos. Até discussão sobre raças aparece para acentuar a discórdia. O Norte seria ariano (branco e verdadeiramente europeu) e a agricultura diferenciada demonstra uma cultura superior. O Sul, semita (de pele escura, descendente de árabes) rendeu-se ao comércio, considerado típico da “raça”23. A religião também entra nessa 22

Acervo pessoal. Foto tirada em agosto de 2009. Conceito em desuso, pois não há distinção biológica de raças e sim, fenótipos, que são as junções das características morfológicas, fisiológicas e comportamentais. Mas ainda há vários textos onde se lê sobre a “raça” portuguesa. Talvez uma questão de superioridade decorrente de ser o primeiro Estado Nacional a se formar e pelo período em que dominaram as grandes navegações. 23

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divisão. O sul tomado pelos indivíduos com contato com a religião islâmica e o norte cristão. A influência árabe está no traçado das ruas, nos rossios (largos), nas feiras e mercados ao ar livre, na arquitetura das casas. Até hoje, o Norte é visto como mais rico e industrializado e o Sul como mais pobre e agrícola. Em relação à dicotomia campo X cidade, a partir de 1960, com a migração para os centros urbanos que se expandiam, essa divisão deixou de ser tão clara. As cidades principais continuam sendo Porto e Lisboa. As áreas litorâneas e as regiões de fronteira com a Espanha são mais densamente povoadas. A mudança de um país essencialmente rural para urbano foi rápida24. E as mudanças envolveram várias áreas, não só arquitetônicas como também a própria identidade portuguesa no seu íntimo. E o português não se identifica apenas com o país. Ele se identifica com sua região. “Sou alentejano”, “sou minhoto”, “sou madeirense”. Por isso as casas portuguesas próprias de cada região. E os portugueses não se identificam só pela região, mas também pela “aldeia”. Portugal é um país de contrastes, apesar de suas dimensões, que para nós brasileiros, são quase diminutas, pois o Brasil é um país de dimensões continentais. Menor do que o estado de São Paulo, a área de Portugal corresponde a 89 mil Km2. Com as ilhas, 92 mil Km2. É um país dividido em distritos e subdividido em concelhos. As letras das canções “folclóricas” citam algumas regiões. De Viana, temos como exemplo, o “Vira da Ponte da Barca”. Ponte da Barca é identificada como vila, distrito, município. Administrativamente, Ponte da Barca é um concelho, o mesmo que município. É parte do distrito de Viana do Castelo que faz parte da província do Minho, região Norte de Portugal. Assim é tratada a divisão administrativa portuguesa: são três níveis de NUTs (Nomenclatura de Unidades Territoriais – para fins estatísticos). Cada NUT é dividida em sub-regiões, dividido em distritos, por conseguinte, concelhos e estes, divididos em freguesias.25 Viana do Castelo é chamada de cidade, pois a maior parte de sua área é urbanizada. É capital do distrito de Viana do Castelo e possui 40 freguesias. Freguesias são as menores divisões administrativas. O nome Viana tem várias explicações de várias fontes. Algumas fazem alusão ao templo de Diana na região, mas não há bases consistentes para demonstrar sua procedência. 24

Segundo o relatório divulgado pela ONU, Portugal era o segundo, atrás apenas da Eslovênia, como o mais rural da União Europeia. Na Europa, 72% viviam em áreas urbanas, em Portugal, 59%. Cf. ONU Situação da população mundial, 2007. In: SCOTT. A. S. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010 p. 59. 25 http://terrasdeportugal.wikidot.com/viana-do-castelo. Acesso em: 07/04/2015.

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Em Viana do Castelo, a festa principal é a da Nossa Senhora da Agonia. Padroeira dos pescadores, Nossa Senhora da Agonia era invocada a cada vez que os pescadores saiam para seu ofício no mar bravio da costa de Viana.

Imagem 03 – Detalhe dos tapetes coloridos da Festa de Nossa Senhora da Agonia em Viana do Castelo.26

A Romaria de Nossa Senhora d’Agonia é realizada em agosto. Nessa festa, a maior da região de Viana do Castelo, os ranchos etnográficos encontram até hoje espaço, dividindo atenção com os tapetes coloridos cobrindo as ruas. Região de porto, na imagem acima, uma clara menção portuguesa às navegações: “... os navios que partem... as pedras que ficam”. O passado de Portugal é muito presente. E isso é explícito em várias frentes, principalmente na música, “folclórica” ou não. Há uma canção escrita por Alain Oulman, em 1968, interpretada por Amália Rodrigues intitulada Meu amor, meu amor. Um verso dessa canção “...parámos o tempo, não sabemos morrer...” é a frase da página inicial de um site chamado Terras de

26

http://www.cm-viana-castelo.pt/pt/festas-da-sr-da-agonia. Acesso em: 19/02/2015.

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Portugal27 que trata sobre a memória portuguesa. Nessa letra, a citação ao mar é nítida e também ao amor perdido. Mas o site selecionou apenas uma parte da canção, para designar que a história de Portugal nunca morrerá. Como afirmado anteriormente, Viana é parte importante da demonstração da cultura popular de Portugal. Mas nessa dissertação, mesmo Viana sendo a base do folclore do grupo aqui apresentado, ela não é o objeto principal. Diante do exposto, peço escusas pelo não aprofundamento na história dessa região, justamente para esta dissertação não se encaminhar para uma quase monografia avulsa. O Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo, objeto central desta dissertação, assim como muitos outros grupos, escolheu a região de Viana para representar o dito “folclore” português. Devido à união com a Associação dos Poveiros de São Paulo, a região de Póvoa de Varzim também é representada pelo grupo. O trecho da canção que dá o título ao presente capítulo, que cita Viana do Castelo e a palavra “raízes”, condensa, ouso dizer, os sentimentos dos participantes do grupo estudado. Quem assiste a uma apresentação do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo percebe nos seus trajes e nas suas músicas, a inclinação ao folclore de Viana. Terra mãe dos fundadores do grupo é quase onipresente nas apresentações. O que não impede que outras regiões tenham presença marcante, como o “corridinho” do Algarve e uma referência à associação que os acolheu, os “Poveiros”. Mas é complicado ditar como centro do folclore português apenas uma região. E identificar um país como uma personificação de Viana. Mas é essa imagem que aparece quando se busca um modelo de “português”. Essa caricatura tem como mote demonstrar e perpetuar características que talvez não mais existam, mas que a imaginação acolhe como imperativa e o próprio governo local repassa. A história revisitada de Portugal faz compreender sua identidade. E para essa dissertação, que tem como questão central a discussão sobre o folclore português no Brasil, mais precisamente em São Paulo, reconhecer os meandros dessa história depreende essa identidade. A ruralização, a presença forte da religião, governos autoritários que se utilizaram de uma imagem forte dessa identidade e em como essa visão toma uma forma abrangente do ser português para outras nações. Além dos períodos de emigração, com destaque para a última grande onda migratória portuguesa, do fim do século XIX à metade do século XX. Principalmente, os próprios portugueses fixaram essa identidade no imaginário dos países que escolheram para sua acolhida, na sangria de uma 27

http://terrasdeportugal.wikidot.com Acesso em: 07/04/2015.

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diáspora envolvida na questão da ditadura salazarista. As associações que pretendiam “preservar” as chamadas tradições estigmatizaram o folclore como identidade. Como se o passado rural - não tão distante, pois essas vestimentas são datadas do início do século XX – fosse um passado onde todos pudessem demonstrar a riqueza que um traje de Viana demonstra. A cultura de Viana é muitas vezes confundida com a de Portugal como um todo. Pelos seus trajes típicos, sua música, seus bordados. Cores fortes que se fixaram como identidade nacional, não só regional. Em uma pesquisa básica em um site popular de buscas sobre Portugal e sua cultura, além de imagens de seu patrimônio arquitetônico e de símbolos populares, aparecem inúmeras fotografias de grupos etnográficos e, majoritariamente, com trajes à vianesa. Ouso dar um exemplo mais popular. Os concursos de misses que ainda acontecem, Miss Universo, Miss Mundo, são os exemplares mais estereotipados de cultura popular em relação a apresentações de trajes típicos. E Portugal, invariavelmente, apresenta um traje de Viana nesse momento. Está praticamente institucionalizado. As pessoas se reúnem por afinidades. E cada região de Portugal tem suas peculiaridades. Mas quando alguém cita “folclore”, são os trajes de Viana que nos chegam à mente. Trajes femininos, diga-se de passagem. Os masculinos têm a cor e o material diferenciado por região. Mas são compostos basicamente de calças, camisas de mangas longas e uma faixa na cintura. Há o chapéu ou gorro. O feminino tem como diferencial as cores, o ouro dos brincos e correntes e os lenços na cabeça. Há também a diferenciação da vestimenta do continente e das ilhas: Madeira e Açores. Essa diferenciação também será abordada a frente.

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Imagem 04 – Traje de Luxo de Viana do Castelo.28

Este é um traje de luxo de Viana. É o traje símbolo do folclore português. Na questão do vestuário, um dos costumes, as senhoras de negro, são vistas ainda, em raras ocasiões, nas aldeias mais afastadas do centro exibindo sua viuvez. Mas os lenços na cabeça e os aventais já não fazem mais parte da indumentária feminina.

1.2 Identidade portuguesa

O autodenominado folclore português é resultado de uma combinação de fatores que volta ao Portugal arcaico e chega aos nossos dias como uma visão idealizada do que deveria ser o português. Mesmo que a história de Portugal já tenha sido contada inúmeras vezes, e por pesquisadores conceituados, é necessário revisitá-la tendo como foco o início de uma cultura

28

TEIXEIRA,

M.

B.

O

traje

regional

português

e

o

folclore

VII.

Disponível

http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Percursos_Intercultura/1_PI_Cap7.pdf. Acesso em: 02/06/2013.

em:

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própria ou até a influência que o folclore teve ou ainda tem na sociedade portuguesa e na sua imigração recente. A chegada dos imigrantes portugueses no período que concerne a partir da metade do século XX foi absorvida de tal forma com a chegada de outros imigrantes que sua história e o porquê de sua chegada não são tratados com mais profundidade nos estudos básicos. Estudase Portugal em sua formação como Estado moderno, na época das “grandes navegações” e no Brasil Colônia. Com a independência e em seguida, a proclamação da república brasileira, Portugal reaparece de passagem rápida quando são apresentados os regimes totalitários do pré-Segunda Guerra. Talvez apareça como destino de muitos brasileiros ao fim da década de 1990, período ainda considerado de transição e adequação de uma nova democracia e economia. Mas voltando à situação de Portugal e a presença de um regime totalitário em seu território, pouco se falava sobre a emigração até pouco tempo. Emigração forçada de portugueses que procuraram melhores condições de vida tendo como destino o Brasil, por exemplo. Muitos desses emigrantes aqui chegaram, talvez sem saber o que realmente se passava no campo político, mas sentiam em sua realidade que o seu país não tinha condições de lhes proporcionar mais do que já possuíam. E nessa terra estrangeira que falava sua língua encontravam nas casas de apoio e nas casas ditas folclóricas um pedaço de suas tradições. Quais tradições? As que lhes trouxessem união e que pudessem identificá-los. A identidade portuguesa também está na culinária. No bacalhau que é encontrado em todas as mesas, principalmente no Natal e na Semana Santa, e nos doces a base de ovos e açúcar. O bacalhau entrou na culinária portuguesa no século XV. O alimento seco suportava bem as longas viagens marítimas e depois passou ao gosto popular. Há ainda os pratos mais fortes feitos com todos os pedaços de porco possíveis. Os “Rojões” que são à base de carne de porco na banha, vinho, fígado de porco, sangue cozido e tripas. A alheira é um “enchido” que pode atualmente levar carne de porco ou ave e principalmente pão. Os enchidos têm formato de ferradura e são envoltos com tripas de porco ou vaca. A farinheira não leva carne. Suas origens são obscuras, prevalecendo a versão de que foi criada por judeus na época da Inquisição, onde os judeus eram identificados pelo não consumo de carne de porco. Então, na alheira, a carne era de outro animal que não o porco e o pão dava a consistência. Há também a morcela, feita com sangue e gordura de porco e farinha, sem carne. Os tremoços, o caldo verde, os doces a base de ovos, açúcar e amêndoas. Essa comida considerada típica está presente nas festas da comunidade portuguesa.

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E a identidade emocional? A tristeza poética do português? A saudade que inspirou e inspira tantos poemas e músicas. O lamúrio do fado é realmente o demonstrar mais íntimo do que é ser português? A saudade é realmente um traço de sua característica ou foi inventada? Vem da época das navegações ou sempre esteve impregnada na alma portuguesa? O que realmente fica é o apego ao retorno, desde as navegações até a última grande onda migratória, na segunda metade no século XX. A aventura também, por necessidade, muitas vezes. Vide as várias fases de migração. Então, a saudade está mais do que presente. Já faz parte de sua história. O que não quer dizer que faça parte de seu presente. Os que não retornaram, sim. Esses sentem essa saudade, que deu origem a tantos grupos e associações mudo afora. E passam isso aos seus filhos. Tal é, na sua essencialidade, o que chamaremos o personalismo universalista dos Portugueses, que enforma a sua civilização e a sua cultura, em diálogo, em polílogo com as civilizações e culturas que pôs em contacto, deste cais da Europa a todos os cais do mundo a quem aportou para a ele retornar e voltar a partir sempre, num' vaivém sem fim.29

Se essa saudade entranhada aparece no fado, nas músicas “folclóricas” é cantada a alegria de ser português. “Sou de Viana” de Augusto Canário, o “Bailinho da Madeira” são músicas que ultrapassaram divisas. Diferentes entre si, mas similares na vivacidade unem a todos no imaginário do ser português. Fala-se tanto na identidade do português, mas quem é realmente o “português”? Há três imagens que evocam a identidade portuguesa: “o português como camponês”, “o português como explorador” e “o português como emigrante”.30 O “português camponês” é o representado pelas associações e clubes onde grupos folclóricos se apresentam. Esses grupos apresentam um Portugal rural idealizado, cantando e dançando músicas que têm origem nos séculos XIX e XX. Esses grupos folclóricos se apresentam com roupas estilizadas e reencenam festas comuns nas aldeias. Os espetáculos criados a partir desse referencial distanciam-se da atualidade e pretendem explorar uma portugalidade apolítica, encapsulada num espaço geográfico e temporal distante e nostálgico.31 Esse Portugal idílico foi idealizado para ser a identidade Portuguesa na administração de Salazar. Seria a “alma do povo”. Essa identidade servia para tornar Portugal incomparável ao resto da Europa e caracterizar o país de forma una. Dessa forma, o que vinha de fora era 29

SEABRA, J. A. A identidade cultural portuguesa – Um personalismo universalista. In: Nação e defesa (Instituto de Defesa Nacional). Lisboa, A. 15, n. 53 (janeiro – março 1990), p. 100. Disponível em: http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/2704/1/NeD53_JoseAugustoSeabra.pdf. Acesso em: 07/10/2015 30 SCOTT. A. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010, p. 168. 31 Ibidem. p.168.

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desqualificado, a influência estrangeira não era benéfica. As raízes portuguesas eram o que mantinham Portugal em pé. Único e soberbo. Os grupos folclóricos eram patrocinados pelo governo, “colocados a serviço de uma ideologia nacionalista que respaldava o regime ditatorial”32. Através de várias associações, a criação, divulgação e apresentações de grupos folclóricos eram incentivadas pelo governo. Entre elas estão: a FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (atualmente chamada de INATEL – Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores), a Junta Central das Casas do Povo e o Secretariado Nacional de Informação33. A identidade portuguesa por intermédio dos ranchos folclóricos ainda é explicitada, dentro e fora de Portugal. Dentro, para promover o país no que ele tem de típico, único, pelo governo e por agências privadas. Em 1977, o Estado democrático português fundou a Federação do Folclore que reúne mais de 2.000 associações culturais e recreativas e cerca de 300 ranchos folclóricos 34. Fora de Portugal, essas associações reúnem os portugueses que de alguma forma, com as reuniões, “voltam” à terra-mãe, apreciando a música, a comida e as lembranças. A identidade portuguesa também está na língua. Mesmo que o acordo ortográfico tenha suscitado mais problemas do que soluções, os portugueses não deixam de escrever “facto”. E algumas palavras são consideradas ultrapassadas. Mas a Lusofonia é um traço de união. As identidades culturais dos países que falam o português. O “português como explorador” é outra característica da portugalidade. O emigrante é o novo explorador e não só explorador com o significado de expropriar as regiões conquistadas, mas de construir laços e pactos econômicos, políticos e culturais. E na junção ao português explorador vem o “português emigrante”35. O português sempre vai estar associado à imagem do viajante. Mas viajantes têm o percurso da ida e da volta. No caso do emigrante, só ida. Durante o governo de Salazar o português que saísse de seu país poderia ser considerado traidor, fracassado, como indivíduo e como parte do povo português. Como sair de sua pátria, que lhe dá tudo, estabilidade econômica, política e até a neutralidade na guerra, onde pode viver em paz sem medo de invasões ou combates? Um grande contingente que sai de um país não lhe dá respaldo para ser considerado um bom lugar para se viver. Mesmo com o controle de emigração, vários portugueses deixaram o país nesse período, que não era tão próspero como a propaganda do 32

SCOTT. A. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010, p. 169. Ibidem. p. 169. 34 Ibidem. p. 169. 35 Ibidem. p. 170. Português camponês, explorador e emigrante. 33

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regime anunciava. Vários intelectuais contra a ditadura também emigraram. E no fim, o dinheiro enviado pelos emigrantes contribuiu para a economia portuguesa. E nesse ponto há outro recorte. Não há como falar de Portugal sem falar de Salazar. Não há como contar uma parte da história de Portugal e do movimento migratório da metade do século XX sem situar o país sob seu regime. Em meio aos regimes ditatoriais da Europa, fascismo,

nazismo,

franquismo,

o

salazarismo

marcou

Portugal

com

violência,

conservadorismo, repressão, censura, enfim, a presença forte do Estado na vida das pessoas que, algumas, sem perceber, outras, apoiando sem o entender, muitas apoiando com fervor e outras tantas lutando contra, viveram sob um regime autoritário. Um regime que atrasou um país que não seguia os caminhos da industrialização do restante da Europa, que idealizava um passado rural e idílico como modelo a ser seguido, mas ao mesmo tempo rememorando um Portugal grandioso da época das grandes navegações e que devia continuar grande, se estendendo aos países de África, com o neocolonialismo que decaía no restante da Europa e que Portugal fazia questão de dar continuidade, contraindo gastos, atrasando sua juventude em uma guerra vã. Um Portugal onde o folclore entra com força como paradigma. A apropriação, expropriação e transformação de uma tradição, mas não de uma resistência natural 36. A força do passado. Do português camponês, valor da nação. Mas um passado construído. Nem todas as canções deviam ser mantidas como símbolo desse Portugal rural. Imagens, canções, tradições escolhidas para representar esse ideal. Sem a ditadura e tudo que ela impôs às pessoas e ao país, não haveria uma massa migratória tão grande e assim, os portugueses pelo mundo talvez não criassem as casas de acolhida, as associações de imigrantes, os ranchos folclóricos que os fazem lembrar um Portugal muitas vezes construído em uma memória afetiva que lhes foi impingida pela falta de algo com o que se apegar. É o papel do autodenominado folclore português nesses momentos da história de Portugal. Principalmente no governo de Salazar. É o papel do autodenominado folclore português aos que saíram de Portugal por conta dessa ditadura. O chamado Estado Novo37, período que caracteriza uma grande mudança na situação vigente foi um período ditatorial militar em duas etapas: Antonio de Oliveira Salazar, 1928 –

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HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 248. Estado Novo: dentro desse período destaca-se o Salazarismo. Regime caracterizado pelo controle parlamentar e antipartidário. A presença de um partido único e o controle dos órgãos principais e dos sindicatos. O controle da ditadura era do presidente do Conselho de Ministros, ou seja, Antonio de Oliveira Salazar. Seu governo durou mais de quarenta anos e se notabilizou pelo conservadorismo, o autoritarismo, o corporativismo e o nacionalismo. Nota-se o grande apoio no catolicismo e o rechaço ao comunismo. A PIDE (Polícia Internacional 37

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1968 e Marcello Caetano, 1968 – 1974. Uma nova sociedade formada pelo orgulho do passado glorioso português e a aurora de um novo Portugal. Antonio de Oliveira Salazar (1889 – 1970), professor da Universidade de Coimbra na área de economia, em 1928 foi chamado a assumir a pasta de Finanças do governo militar instaurado após o golpe de 1926. Com a economia esfacelada, Salazar conseguiu reorganizar a parte financeira de Portugal. Com a popularidade em alta, abria-se a porta para a instauração do chamado Estado Novo. O novo Portugal também se achava a caminho. O aumento anual da população em 1% entre 1920 e 1930 subiu a população portuguesa de 6 milhões para 6,8 milhões. Sendo que 80% viviam em áreas rurais.38 Foi o momento da chamada “segunda fundação de Portugal”. Foi um período conturbado por várias trocas de comandos e instabilidades, tanto políticas quanto econômicas. Trocados também a bandeira e o hino nacional, por conseguinte. A glorificação de seu maior poeta, Luís de Camões, fazendo do dia de sua morte, 10 de junho, também o dia de Portugal. A valorização dos descobrimentos dos séculos XV e XVI. Símbolos renovados, mundo em ritmo acelerado, Portugal também se renova, mas com um “pé” nas conquistas e fatos passados. O papel do Brasil era mostrar a força de Portugal como grande colonizador. A vida no campo, o Portugal rural valorizado, a alma portuguesa presa a sua fatídica saudade e a religião católica. Uma diferenciação aos outros países europeus. Portugal aferrado as suas tradições, ao que era característico de sua terra. Sua popularidade ao erguer a alquebrada economia portuguesa foi tão grande, que aos militares que compunham o governo foi exigido que voltassem aos quartéis e em seus lugares, professores da Universidade de Coimbra assumissem. Vários setores da sociedade portuguesa acolheram essa nova figura que liderava Portugal para um recomeço. A classe média, a Igreja, a indústria e o comércio estavam “agradecidos” e aliviados por sua liderança. Como a ocupação rural era mais bem vista do que a indústria, que poluía e não era adequada ao melhor aproveitamento e proximidade com a natureza, o meio rural foi preferível ao urbano. A industrialização, em segundo plano em Portugal. Na perspectiva da propaganda salazarista, o Estado Novo não era totalitário e sim um estado de direito, já que tinha uma Constituição aprovada por plebiscito popular e se pautava por dois valores fundamentais: Deus e Pátria.39

Estado, família e Igreja como vetores da sociedade portuguesa. Obediência aos valores impostos e submissão ao modelo de sociedade determinado por essa cofiguração e de Defesa do Estado), polícia política que agia repressivamente aos chamados “inimigos” do governo deram o tom do domínio do Estado Novo e também a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado). 38 SCOTT, A. S. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010, p. 321. 39 Ibidem, p. 328.

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conservadora. O valor da terra também era incutido nas escolas. Os pais também deviam ser educados na sua moral. Os valores do que era certo, justo e benéfico para ser passado aos filhos devia ter os pais como exemplos. Todos deviam ser educados. Durante a direção de António Ferro40, o SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), juntamente com outras instâncias, buscava o sentimento de “orgulho português”. A oposição apelidou essa política como a “do país dos três efes”: fado, futebol e Fátima.41 Marcello Caetano, sucessor de Salazar tinha como lema “Continuidade e Renovação”. Contraditório? Uma tentativa de acordo entre os que seguiam fiéis ao regime ditatorial e aos seus detratores. As garras da repressão e do policiamento estavam também nas casas de acolhimento. Associações chamadas de “Casa de Portugal” que eram fundadas em locais que recebiam muitos imigrantes portugueses. A Casa de Portugal de São Paulo, fundada em 1935 tinha como ponto de partida uma linha liberal, mas aos poucos foi tomada pelo cunho propagandista de Salazar. O Centro Republicano Português era um polo de resistência ao regime. A glória de ostentar uma luta que não mais servia ao tempo, o colonialismo, atrasou Portugal em relação aos outros países europeus. Portugal devia aprender a ser grande de outro jeito. Ao lado de seus pares europeus e dos acontecimentos atuais. Continua grande. Na sua memória, na História, no orgulho dos portugueses. Dizer que o folclore português se fez maior por conta da emigração de um grande número de portugueses por conta da ditadura é cair em uma armadilha. Outros povos mantêm suas “tradições” em outros lugares que os acolheram e cada um saiu de sua terra natal por um motivo. Muitos, comuns. Após o restabelecimento da democracia, o emigrado não era mais considerado um excluído. De país que se fechou e passou a se orgulhar de suas características ditas primárias, o emigrante lançou novamente Portugal ao mundo. Portugal não estava mais limitado a Europa. E como fica a identidade portuguesa depois de passar a ser um país que recebe imigrantes? Tanto os portugueses que voltaram do continente africano após a independência das colônias lusas e também dos próprios africanos, que buscaram uma vida melhor após a

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Escritor, jornalista e político português foi responsável pela política de propaganda durante o Estado Novo. SARDO, S. Música popular, p. 439. Disponível em: http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Percursos_Intercultura/1_PI_Cap8.pdf Acesso em: 13/04/2014. 41

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guerra e têm a língua em comum. Brasileiros, imigrantes do leste europeu e de países membros da UE. O número de portugueses que retornaram entre 1974 e 1976 foi de aproximadamente 500.000. Esse número é baseado em informações do Recenseamento de 1981. Da África, vieram imigrantes de Angola e Moçambique, em sua maioria (95% do total de imigrantes africanos)42. O repatriamento43 fez com que a população de Portugal aumentasse consideravelmente. Foi um retorno rápido. Após a redemocratização portuguesa, um grande contingente desembarcou em Portugal, pois com o fim do estado de colônia, os povos dominados pressionaram os portugueses a retornar. Esses retornados não eram como os outros emigrantes que saíam de Portugal a procurar uma melhor qualidade de vida. Eles foram para a África como mão de obra qualificada, para garantir a indústria e o comércio entre os dois continentes com apoio do governo vigente. Com a volta, não encontraram empregos suficientes para suas habilidades. Com isso, sentiram-se lesados. Até hoje as associações que criaram lutam para recuperar o que perderam com o repatriamento.44 Os imigrantes africanos eram em sua maioria refugiados de guerra de Moçambique e Angola e de cabo-verdianos para a construção civil. Os imigrantes do leste europeu começaram a chegar depois dos anos 2000 atraídos pela economia crescente portuguesa. Os ucranianos lideravam entre as nacionalidades. Dentre os imigrantes “eslavos” havia muitos bem qualificados, cientistas e acadêmicos que foram absorvidos pelas universidades portuguesas45. Mas são vistos com reservas pelos portugueses. Os asiáticos, principalmente valendo-se da ligação Portugal-Macau começaram a chegar a partir dos anos 1990. Trabalham no comércio e não se entrosaram com a comunidade portuguesa, característica dos orientais, principalmente com a língua local que poucos dominam. Os residentes em Portugal da UE que não chegaram a trabalho são de origem do Reino Unido, Espanha, Alemanha, Holanda e França.46 Buscam melhores preços para viver dentro da Europa e também para trabalhar. São de nível superior e alto poder aquisitivo. Estes nem são considerados imigrantes, pois não estão ligados ao trabalho braçal ou de baixa escolaridade dos outros imigrantes. 42

SCOTT, A. S. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010, p. 174. Repatriamento: ocorrido após os anos 1940, os repatriados eram portugueses que saíam de territórios que deixaram de ser colônias. 44 AEMO – Associação dos Espoliados de Moçambique e AEANG – Associação dos Espoliados de Angola. 45 SCOTT, A. S. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010, p. 177. 46 Ibidem. p. 178. 43

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Dentre os imigrantes em Portugal, os africanos são os que menos se integram à sociedade. Vistos como “negros”, na sua generalidade de cor e não por sua proveniência, os africanos ficam com os cargos mais baixos e sua presença é percebida pelos grupos que se concentram em torno da nacionalidade. A imigração recente contrasta com a ideia de identidade portuguesa. E a mestiçagem, que foi algo frequente na formação da sociedade de Portugal em tempos idos, coloca-se contrária ao que eles definem como identidade consolidada. A religião é outro fator muito caro à identidade portuguesa. A Igreja Cristã e depois da divisão, o catolicismo marcam a história de Portugal. Intolerante, depois perseguida, sua importância volta durante a Primeira República47. Combatida sua influência da Igreja, há a separação do Estado em 1911, momento também em que há uma nova dissolução das ordens religiosas. Sendo a população majoritariamente católica e praticante, essa divisão foi vista com desconfiança. A divisão e assim, o enfraquecimento do catolicismo poderia fazer com que Portugal voltasse os olhos ao progresso, longe da interferência da Igreja. Os problemas enfrentados durante e após a Primeira Guerra fizeram com que a religião fosse retomada como um apelo e um conforto. A devoção a Nossa Senhora foi intensificada e um milagre na região de Fátima reergueu a fé católica em Portugal e a consolidou. Entre maio e outubro de 1917, uma vez por mês, a Virgem Maria apareceu a três crianças na Freguesia de Fátima. Francisco e Jacinta eram irmãos e primos de Lúcia. Antes das aparições eles afirmaram ter recebido a visita de um anjo. A devoção ao Imaculado Coração de Maria veio acompanhada das previsões do fim da guerra e da luta contra o comunismo. Nossa Senhora da Conceição é a padroeira de Portugal e de todos os países de língua portuguesa, mas a aparição da Virgem de Fátima foi pontual. Reforçou a ideia de que Portugal deveria se voltar para a religião e isso marcou a identidade portuguesa ainda mais. A religião marca os grupos folclóricos também. É comum ter uma imagem de Nossa Senhora de Fátima nas sedes desses grupos. Nas festas de igrejas que têm Nossa Senhora de Fátima como protetora, não faltam apresentações de grupos folclóricos. Mesmo que o catolicismo não seja a religião de 100% dos participantes, a devoção é respeitada.

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Primeira República em Portugal: período que abrange o fim da monarquia em 05 de outubro de 1910 e o golpe de 28 de maio de 1926.

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Portugal, país periférico, ponta da Europa, grande em suas conquistas, territórios alémmar. O grande e pequeno Portugal. Grande em sua história, em seu heroísmo. Glória e inferioridade se atacando no avanço de sua história. O passado grandioso ainda presente. Os portugueses. Estereotipados como sérios, sem humor, às vezes até grosseiros, religiosos, aferrados ao passado rural, tradicionais. São formais, sim. Essa é a visão do que é o português para a maioria. O óbvio ao que os brasileiros tanto brincam, para eles é natural. Mesmo hoje sendo um país que caminha nos moldes da União Europeia, industrializado. Identidade real bem diferente de seu estereótipo. As mudanças pelas quais passou em séculos de história não podem ser sintetizadas em meia dúzia de palavras. O que se pode dizer é que a propaganda salazarista foi muito bem-sucedida, pois ainda vemos Portugal como ele deveria ser visto nessa época. O que é rechaçado pelos portugueses contemporâneos ao serem inquiridos sobre esse clichê de identidade. Mesmo estudando Portugal na escola, não enraizamos o sentido de aventura e coragem desses notáveis viajantes. Como se entrar em uma nau e seguir ao sabor do vento por meses a fio para chegar a terras que mal se sabe o que vai encontrar fosse simples. Talvez o sentimento de tragédia tenha se entranhado nesse momento. O costume de dizer “adeus” ao invés do “até logo”. Há nisso um jogo: o Portugal que está sempre a buscar outras paragens, e assim, assimilar outros conceitos e o Portugal enraizado em seus costumes. Nessa junção, Portugal torna-se vários, mas insiste em ter sua própria identidade. A portugalidade que os grupos folclóricos querem passar também está enraizada no que essas pessoas são. Do motivo pelo qual foram parar em países distantes e o que ficou de sua identidade ao qual preferiram se agarrar. Essa identidade entranhada nos estereótipos que muitas vezes parte de tradições inventadas e que dá uma sensação de conforto e familiaridade não pode ser simplesmente excluída. A religiosidade, o ruralismo arraigado na personalidade do ser português que esses grupos demonstram ao dar vida às tradições portuguesas, é um pouco da identidade desse país, da sua história, do que ficou de mais palpável, por enquanto. Ninguém é estável, refratário a mudanças. E um país de séculos também não o é. O que fica é por alguma razão. E nesse momento, a identidade portuguesa apresentada por esses grupos folclóricos ligados a associações portuguesas é o gatilho dessa pesquisa. Se pensarmos a identidade portuguesa tendo como viés a sua visibilidade, já temos outro ponto.

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Em relação ao Brasil, o português que cá chegou há mais de meio século, já está assimilado com o modo de vida. Isso em outras paragens e com outras nacionalidades também. Sempre há um período de adaptação. Os portugueses, pela língua, pela história de dominação e de muitos costumes que vieram com os colonizadores, como a religião, os hábitos alimentares, - por tudo isso, - não houve grandes empecilhos para um português se adaptar. Com o ingresso de Portugal na União Europeia houve muitas mudanças. Na comida, no vestuário, no viver em geral. O cotidiano ficou mais dinâmico, grupos estrangeiros modificaram a economia portuguesa e a influência estrangeira global também entrou em Portugal. De um país periférico da Europa, Portugal passou a fazer parte de algo muito maior. Portugal também está no mundo e sua identidade, assim como a de outros países, continua em construção. Os contrastes continuam. O rural português ainda persiste, mas Portugal cresce com a globalização e adquire os mesmos problemas de um país que se abre para a economia global. Vira um local atrativo para outras nacionalidades menos asseguradas em termos de trabalho que veem em suas terras oportunidades para prosperar. E as principais cidades de Portugal foram recentemente consideradas ótimos destinos na Europa. Há várias identidades, são mutáveis quando dizem respeito às tradições porque os significados se transformam. Permanências e rupturas. “Como escrevia um grande historiador que recentemente se debruçava, antes de morrer, sobre a ‘identidade’ do seu país, Fernand Braudel, ‘uma nação não pode ser senão à custa de se buscar a si mesma sem fim’”.48 Portugal passado, Portugal presente e Portugal futuro. A identidade continua sua rota, pois não há estagnação em um local que avança em seu caminho. A identidade cultural perpassa toda sua história, assim como em outros lugares. É o que o forma, é assim que é lembrado, caracterizado, mas não cristalizado, nem o transforma em caricatura de si mesmo. Mesmo que a mulher em trajes de Viana ainda apareça como símbolo de Portugal.

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SEABRA, J. A. A identidade cultural portuguesa: Um personalismo universalista. In: Nação e defesa (Instituto de Defesa Nacional). Lisboa, a. 15, n. 53. Jan./mar. 1990. Disponível em: http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/2704/1/NeD53_JoseAugustoSeabra.pdf. Acesso em: 07/10/2015.

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2 “ISSO É FOLCLORE!”49

2.1 Fado X Folclore

A música folclórica portuguesa, a dançada pelos ranchos folclóricos, não é o fado. O fado é mais recente e ganhou destaque como o que define a alma portuguesa, na sua acepção de saudosista, fatalista e melancólica. Mas a alegria também tem vez entre tantas interpretações, não tanto quanto a tristeza e o desencanto. São sentimentos que cercam a todos, de qualquer proveniência e por isso são apreciados mundo afora. Principiar esse capítulo com o fado e não com o propriamente dito “folclore” serve expressamente para diferenciá-los. Da vida boêmia aos salões mais finos e as casas de família, o fado entrou na vida dos portugueses, se popularizou, em meados do século XIX. Cantando o amor, os desencontros, a saudade, a tristeza das despedidas, o destino. Destino, esse é o significado desta palavra. Fado é destino. E o que ele explicita é a alma portuguesa. Canta também o orgulho de ser português, um país periférico da Europa, mas também um país que foi grande e que decaiu vertiginosamente, em comparação ao seu lugar no continente na Era Moderna. A procedência do fado? É obscura. Há relatos sobre origens mouras e até brasileiras, mas não há como afirmar onde surgiu. O fado se transformou na música reconhecida como portuguesa. Mas é representativa de uma região, Lisboa. Como o samba, que é reconhecido como música típica brasileira, como se todas as regiões do Brasil tivessem o samba como música regional. O traje de Viana feminino como representação do imaginário do português em seu arquétipo de vestuário e o fado como sua música representativa. Na verdade, pode-se dizer que é quase uma oposição, campo X cidade. O rural e o urbano. A música regional, a que chamamos de folclórica, é apresentada nas casas para turistas e em festivais específicos, principalmente no verão e nas épocas de colheita, onde as festas aconteciam. Remete a um passado rural que não tem assimilação a uma sociedade que se fez contemporânea. 49

Excerto de uma frase dita por Alexandre da Cunha Lima, um dos fundadores do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo, ao ser indagado informalmente sobre como se sentia ao ser um dos responsáveis por um dos grupos que expressava uma das manifestações culturais de Portugal. “Manifestação cultural pra você que é da Academia. Pra nós que vivenciamos, isso é folclore!” Data não especificada.

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Mas voltando ao fado. Se fado é destino e explicita a alma portuguesa, o que esta significa? Teófilo Braga, escritor e etnógrafo português, diz que a alma portuguesa é feita de resistência. Resistência às invasões de celtas e romanos até às napoleônicas. É uma alma corajosa e tenaz, adaptável e com isso uma forte colonizadora. Sentimental, além de saber usar seus dotes científicos e intelectuais.50 Fernando Pessoa (1888 – 1935) também tentou destrinchar a alma portuguesa. Alma forte, atribuição dada pelo Destino. Ser tudo e tentar açambarcar tudo e o fado demonstra isso. Mas a palavra que mais define a alma portuguesa é a SAUDADE, uma das palavras mais difíceis de traduzir por incorporar tantos sentimentos contraditórios, sentidos bons e pesarosos ao mesmo tempo, sem se anularem. Para os de língua portuguesa é fácil utilizar esse termo. É o que sentimos quando lembramos algum lugar, algo ou alguém que já não está mais conosco, de uma situação que passou e em um misto de alegria por ter vivido esse momento e pesar por não estar mais presente, lembramos com SAUDADE, palavra que sintetiza todos esses sentimentos. “Etimologicamente, ela vem do latim solitas ou solitatis (solidão), na forma arcaica de soedade, soidade e suidade e sob influência de “saúde” e “saudar.”

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Essa palavra remete à

solidão dos portugueses na época dos descobrimentos. Tanto dos que partiram quanto dos que ficaram. A guitarra portuguesa é o acompanhamento do fado. E os fadistas são os que cantam a música portuguesa com sofreguidão e profundamente a sentem. Amália Rodrigues (19201999), ícone português do fado, é sempre a mais lembrada e regravada. Lisboa é a capital do fado e a Alfama, seu bairro símbolo. Hoje, os fadistas da nova geração, como António Zambujo e Mariza, são vistos como um respiro e uma inovação, mas também como “intrusos”, pois para os mais tradicionais, cantar o fado exige vivência, experiência, anos que espelham o destino que a vida impôs e que aos mais jovens falta. Ao contrário do folclore. Para cantar e dançar o folclore não há idade. Todos em uníssono em uma manifestação coletiva de representação de uma festa popular. Mas há outro fado, o fado que não é exportado como o típico português. O fado de Coimbra. Coimbra, cidade universitária, seio do fado que também fala de amor e saudade, mas um fado mais voltado às recordações de juventude, à cidade que os acolheu em seus estudos e que lhes doou amigos de todas as regiões de Portugal e de outros países.

50 51

SCOTT, A. S. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010, p. 304. Ibidem. p. 304.

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[...] Coimbra pé de uma lição De sonho e tradição O lente é uma canção E a lua a faculdade O livro é uma mulher Só passa quem souber E aprende-se a dizer Saudade.52

Ao se apresentarem cantando esse fado característico, os cantores se vestem com um manto negro, o traje acadêmico surgido na Universidade de Coimbra. O traje era usado por todos os estudantes, de ambos os sexos, mas por um decreto de 192453 passou a ser facultativo. Hoje é ainda utilizado pelos veteranos, principalmente na festa encerramento da graduação. Há todo um protocolo sobre quem o deve trajar e uma etiqueta em relação a sua disposição. 54

Imagem 05 – Alunos de Coimbra

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55

“Coimbra é uma lição”, de Raul Ferrão e José Galhardo. Decreto 10.290 de 12/11/1924. “Considerando que o Estatuto Universitário de 6 de Julho de 1918, determinando no seu artigo 101.º, § único, que não é obrigatório qualquer traje académico para os estudantes, implìcitamente reconhece o uso facultativo de capa e batina para os alunos de ambos os sexos; Considerando que se tem sempre reconhecido a capa e batina como traje escolar dos que frequentam as Universidades, escolas superiores e liceus(...)”. In: http://portoacademico.blogspot.com.br/2010/03/o-decreto10290-de-12111924-sobre-capa.html. Acesso em: 08/06/2015. 54 http://www.praxeporto.com/p/traje-academico.html. Acesso em: 11/06/2015. 55 http://www.geocities.ws/portoacademico/imagens/Grupo_1870.html (Extraído de NUNES, A. A Alma Mater Conimbrigensis na Fotografia Antiga. Coimbra: Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1990, fotografia n. 3.) Acesso em: 10/06/2015. 53

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A imagem é uma representação do traje masculino no século XIX. A capa, a batina de formato não eclesiástico, o colete, gravata e sapatos pretos. Camisa branca e o gorro que é optativo. Na foto seguinte, o grupo Fado ao Centro que se apresenta como representante do fado de Coimbra em trajes correspondentes. Os artistas usam a capa fechada de forma que uma parte fique jogada ao ombro oposto. Esse é o protocolo para uma serenata, por exemplo.

Imagem 06 – Grupo Fado ao Centro. Foto promocional.

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As mulheres também usavam o traje negro. Para elas, a diferença é a saia reta no lugar da calça.

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http://www.cultuga.com.br/2014/09/trio-portugues-fado-ao-centro-se-apresenta-no-brasil/. 09/06/2015.

Acesso

em:

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Imagem 07 – Trajes para universitários de Coimbra à venda atualmente57

A imagem acima é de uma loja de artigos acadêmicos de Coimbra, cujos trajes ainda são comercializados. Em Coimbra também se encontra o Penedo da Saudade, onde dizem que Pedro I chorou a morte de sua amada Isabel. Nesse penedo há várias placas de mármore, as mais antigas do século XIX, que são deixadas pelos estudantes da Universidade de Coimbra até os dias de hoje. Elas demonstram a tristeza do partir. A saudade dos bancos da universidade e dos colegas que não serão mais vistos diariamente e também o reencontro depois de anos, e mesmo assim, a palavra saudade é a mais grafada.

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http://www.ffguitarradas.pt/traje-academico-coimbra.html. Acesso em: 10/06/2015.

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Imagem 08 Placa de mármore em homenagem aos quarenta anos de curso médico 58

Imagem 09 Placa de mármore em homenagem aos trinta anos de formatura de vários cursos 59 58 59

Acervo pessoal. Fotografia tirada em agosto de 2009. Acervo pessoal. Fotografia tirada em agosto de 2009.

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Em Coimbra e em outras universidades lusas há ainda a cerimônia da Queima das Fitas

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durante a semana acadêmica. A mais antiga é a de Coimbra, mas algumas

universidades também adotaram esse nome. Há vários eventos na semana acadêmica e a música regional se mistura à atual. Mas o folclore mesmo é a música rural e que tem vários nomes: música tradicional, música folclórica, música popular, música regional. São várias, diversas e dessa diversidade vem a “unidade” chamada música folclórica. É também uma música de todos, porque em sua maioria, não há autor conhecido, então é de domínio popular. Mas esse domínio popular é do povo rural, o povo “legítimo” da terra, os que têm direito de cantar e dançar essa música. São os que representam a tradição. É a música que transitava somente pelos meios orais. Essas são as formas estereotipadas de ver o folclore. Uma música feita pelo povo legítimo da terra, ingênuo e puro. Que foi depois estudada por etnógrafos, antropólogos e arquivadas como fruto do meio rural. Catalogada para que fizesse parte do que devia ser a música que identificasse uma região. E essa catalogação passou por uma escolha, talvez por mudanças de letras, sons e que se adequassem ao propósito, de distinguir uma nação. Em princípio definir as regiões, depois a totalidade do território. Há um cancioneiro de músicas populares portuguesas que começou a ser pesquisado em 1901 pelo Conselho de Arte Musical, regido pelo Conservatório Real de Lisboa, em princípio do século XX. Mestres de bandas regimentais foram os responsáveis pela recolha dessas canções populares. Após a coleta, uma comissão técnica era responsável por tornar essas canções populares “dignas” de fazerem parte do Cancioneiro. As pessoas responsáveis por essa tarefa eram senhores da alta sociedade que podiam ter ou não conhecimento musical, mas tinham “critérios” para a escolha. O objetivo era o de fornecer um repositório ao folclore nacional. Essa chamada “dignidade” foi deixada de lado quando se percebeu a riqueza e importância dessas canções que faziam compreender o território em que foram compostas, seu povo e em que ocasiões elam eram executadas. Até o clima foi estudado para saber se influenciava nas músicas de cada região. Deixou de ser um estudo global para ser um estudo regional. E as diferenças passaram a ser conhecidas sendo incorporadas aos estudos etnográficos. As canções deviam ser recolhidas na forma mais antiga lembrada em sua região, tal como eram apresentadas pelo povo, a região de origem, os instrumentos que a acompanhavam

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Queima das fitas é um evento que ocorre no mês de maio nas comunidades universitárias de Portugal. Iniciada pela Universidade de Coimbra e hoje realizada em outras localidades. As fitas são representativas das usadas para fechar as pastas dos estudantes. Eram três. E a queima representa o término do curso.

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e em quais ocasiões eram cantadas. O fonógrafo também foi utilizado, mas não há material dessa época. Lembra o trabalho de Mário de Andrade em seu estudo das músicas regionais brasileiras.61 Música, dança, trajes são somatórios de cultura, identidade e tradição. E esses conceitos são tão densos que encontram eco na psicologia social, na política, na história, na antropologia. O folclore português passa a ser o ingrediente para entender uma parte da cultura portuguesa. Faz parte de sua formação e foi apropriado, como já explicitado anteriormente, por várias instâncias. Apropriado pelo governo de Salazar como perfil do português, pelo período pósditadura na configuração do Portugal turístico e pelos emigrantes, como forma de retomar a identidade portuguesa em terras distantes. Foi também transformado em instrumento de esquerda revolucionária após a queda da ditadura. E como a identidade, como se forma a identidade de uma nação, pois que a identidade não é fixa, se altera constantemente, como a música. E a música folclórica, diferente nas regiões, passa a ser determinante de um país, como se essas diferenças não existissem. Tornar única uma cultura musical em detrimento de todas as outras variedades. Após tantas reviravoltas políticas, a identidade portuguesa estava em pedaços. Da monarquia à república ao golpe ditatorial, quantas faces mais teria Portugal? O folclore abarcou essa identidade, sem análise aprofundada. Uma união de várias regionalidades que englobava todo Portugal e sua identidade. Criar laços entre o norte e o sul por meio da cultura musical, o folclore. E transformá-lo em uma só realidade. Fazendo um paralelo com o Brasil, a identidade brasileira também foi instituída no Governo de Getúlio Vargas, sendo o samba a música que nos representa.62 Entre os anos 20 e 30 do século XX, a música e outras formas de arte foram usadas pelo nacionalismo como forma de agregar o povo em uníssono, mostrando que tem uma identidade, mesmo que forjada. A música devia unir o povo em uma similaridade. Identificá-lo como nação, forjar

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A publicação “Velhas canções e romances populares portugueses”, de autoria de Pedro Fernandes Tomás, 1913, tem a versão integral da Circular do Conselho de Arte Musical com as indicações de coleta. Essa versão foi redigida por António Arroio, respeitado crítico de arte com o título “Sobre as canções populares portuguesas e o modo de fazer sua colheita”. Esse trabalho estava em consonância com os estudos da Europa de mesmo sentido. Os diversos tipos de músicas demonstram a variedade e especificidade das regiões portuguesas. SARDO, S. Música popular. p. 424. Disponível em: http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Percursos_Intercultura/1_PI_Cap8.pdf Acesso em: 13/04/2014. 62 No Estado Novo brasileiro, o sistema vigente se considerava guardião dos princípios e ideais nacionais e alguns intelectuais se uniram para decidir qual seria a identidade brasileira. E através do seu sistema de propaganda decidir o que devia ser considerado símbolo, o que tornar popular e o que devia ser censurado.

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uma ligação, já que tanto o Brasil como Portugal, guardadas as devidas proporções continentais, são diferentes em culturas em seu território. Recai então, nas tradições inventadas. Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.63

Os estudos diferenciados por região das músicas folclóricas começam de forma significativa na década de 1920, restrito aos pesquisadores etnográficos e cientistas. Gonçalo Sampaio, botânico, desenvolveu uma pesquisa minuciosa sobre a música minhota. Ele se utilizou de metodologia científica na sua catalogação. As origens da música etnográfica Portuguesa estavam na Grécia. Além disso, também estudou suas variações.64 Em 1929, num texto que será postumamente publicado no Cancioneiro Minhoto (1940), Gonçalo Sampaio expõe o que considera ser uma classificação sistemática do cancioneiro do Minho, dividindo-o em quatro grupos, dos quais exclui os «…cantos religiosos, assim como diversas toadas cuja classificação se não presta bem a ser feita por lotes…» (Sampaio, [1940], 1929, XIX). Dispõe então a música por: 1) Cantos dos velhos romances. 2) Cantos coreográficos, onde inclui as danças de roda, acompanhadas exclusivamente por vozes cantadas, e outros géneros que incluem acompanhamento instrumental como os viras e os fandangos, que considera de «sabor arcaico». Também a esta categoria Sampaio associa outros géneros coreográficos que acredita terem origem mais moderna (início do século XIX), como a xula, a vareira, a cana-verde e o malhão. 3) Modas de romaria, cantadas quase sempre a duas vozes e em rancho 19, durante as romarias ou os trabalhos agrícolas. 4) Modas de Terno ou de Lote, que define como «belos coros arcaicos a quatro ou cinco vozes cantados por um grupo de 4 a 6 mulheres, a que por vezes se junta uma voz masculina ao grave…» ([1940], 1929, xxi). 65

Armando Lessa, etnomusicólogo a serviço do Estado Novo defendia o folclore português como depositário da portugalidade66. Quanto mais remota a canção, mais pura. Afastada do cosmopolitismo que conspurcava a identidade portuguesa. O rural era puro, com uma aura de ingenuidade. Como se todos os povos que formaram o povo português não tivessem deixados contribuições também em sua formação musical. Era um crítico do fado, pois além de ser uma música urbana, não expunha Portugal na sua variedade de ritmos. Além do mais, dava a Portugal a pecha de povo queixoso, lamuriento. […] Nos cantares do povo português, há filamentos de religiosidade, lirismo, infantilidade, gaiatice, amor, apego natal e expansão. O fado está pois, para 63

HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A Invenção das Tradições. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 9. SARDO, S. Música popular. p. 430. Disponível em: http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Percursos_Intercultura/1_PI_Cap8.pdf. Acesso em: 13/04/2014. 65 Ibidem. p. 429. Percebe-se a escrita da palavra xula com a letra X. A dança tem seu nome escrito hoje como CHULA. 66 Ibidem. p. 430. 64

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Portugal, como Alfama para o nosso continente: um bairro de uma das nossas cidades. Portugal não se espelha nas tortuosidades de Alfama! (1922, 40).67

Edmundo Correa Lopes, também em seus estudos etnográficos sobre a música popular não acreditava na pureza da identidade musical de uma região68. A música é mutável. “O povo tira das antigas melodias, melodias novas”.69 E a música dita tradicional não passa de um simulacro. São vários retalhos que a formam. De passados mais remotos e com influências, no caso da música portuguesa, da música ibérica. A música folclórica portuguesa devia ser sacralizada, pois era a expressão mais pura do povo português. O passado como resignificante da identidade. Sacralizada, não havia possibilidade de mudança. Estagnada. O autodenominado “músico cancioneiro” era um erudito. A questão do erudito ditando o que é popular e o que deve ser conservado como música do povo e o que deve ser a sua identidade musical é habitual no estudo da música e de outros elementos identitários. A musicalidade de um povo, a popular no sentido de ser passada pela oralidade, não de música comercial, é de análise antropológica e histórica. O termo “música popular” ganha significados diferentes conforme a época. Pode ter o significado de algo de fácil acepção, vulgar, por não ser carregada de erudição; música de massa ou ser algo oriundo do povo e que a ele pertence, por ser obra de uma coletividade, sem hierarquia. Nesse ponto, o meio rural é o mais “legítimo” berço dessa música, das tradições e da identidade de um povo. O termo folclore veio para nomear essa música, para depois cair em desuso e ser substituído pelo termo tradicional. “Na verdade, a música popular – ou o folclore, como também agora é designada – é, para estes primeiros etnomusicólogos, ao mesmo tempo, a sua música – porque é portuguesa – e a música do outro – porque pertence ao povo.”70 E as antigas melodias se transformam no cantar e tocar de gerações e gerações. Na mudança de significados, na introdução de novos instrumentos, na supressão de um verso, na alteração de um passo de dança, até o clima e terreno lhes dão características próprias (vide as diferenças marcantes entre o folclore das ilhas e o do continente). E se transformam em novas. E como saber se as que as inspiraram passaram por quantas modificações até a versão dita oficial? Não há como saber. São tantas modificações, tantas influências, que ao identificar a que seria a origem, não há como não cair em uma descoberta falsa. A influência árabe é vista nos instrumentos 67

SARDO, S. Música popular. p. 431. Disponível em: http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Percursos_Intercultura/1_PI_Cap8.pdf. em:13/04/2014. 68 Ibidem. p. 435. 69 Ibidem, p. 436. 70 Ibidem, p. 427.

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musicais, mas na cultura em si e na letra das canções se perdeu ou “foi perdida”, no sentido de não ser encarada como portuguesa. A aceitação de que não há uma música ou dança originária, que se saiba, é aceitar que seu encadeamento com todas as que as formam é sua realidade. As chamadas “raízes” de um povo em formação que adquire sua identidade com o conjunto que abrange outros povos que o influenciou e introduziram valores, significados que o transformou ou somou formam a denominada identidade coletiva. E entra em jogo a tradição. O passado/presente que se misturam em um jogo de sombras e luzes. A escolha. O que foi deixado para que algo considerado mais significativo seja realçado. E quem fez a escolha, por quê. O que verdadeiramente representa essa escolha. E a música que é concebida dessa mistura diversificada e que forma a identidade desse povo torna-se única e é o que a diferencia de outras localidades e a determina como característica, o que a faz ser reconhecida como local. Cada música tem sua própria narrativa que é definida pelo local onde surgiu. E assim, um sentimento de pertencimento é formado. E quando essa música é ouvida pelos portugueses, por exemplo, os que não habitam mais seu país de origem, fazem uma volta figurada, mesmo que essa música não fosse de seu gosto quando lá moravam. Um sentimento comum entre imigrantes, que quando ouvem uma música que é característica de seu país de origem, se sensibilizam e um sentimento de nostalgia cresce. A música folclórica portuguesa tem sua narrativa na rotina rural, no trabalho no campo, nas festas religiosas, nos acontecimentos das aldeias. E em algumas regiões, como Póvoa de Varzim, a coreografia lembra o local de origem. Por exemplo: é uma região praieira, então, alguns gestos lembram o movimento das ondas. A roupa também revela a localidade. Podemos diferenciar facilmente uma roupa de Viana e uma do Alentejo. Pelas cores e outros detalhes. As roupas de Viana são coloridas. O vermelho vivo e o azul da barra das saias e dos aventais demonstram vivacidade, assim como suas músicas e também a riqueza de sua região. As do Alentejo são cores mais frias. O marrom, o cinza, os aventais simples. Como a simplicidade de sua gente. A música define um espaço sem fronteiras. É a própria singularidade em relação ao outro.71

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SARDO, S. Música popular. p. 415. Disponível em: http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Percursos_Intercultura/1_PI_Cap8.pdf. 13/04/2014.

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em:

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“A música portuguesa é, para os Portugueses, aquela que lhe permite descobrir a sua história (pessoal e colectiva), que lhe oferece uma tradução social, porque remete para grupos sociais ou contextos de pertença que conhece, conferindo-lhe assim autoridade suficiente para a poder desempenhar pelo entendimento autorizado que faz sobre a sua performance.”72 E as manifestações folclóricas foram assim, adotadas por Salazar para exemplificar a “alma do povo”. O “Portugal português”, sem influências de fora, do estrangeiro que descaracterizaria o verdadeiro Portugal.73 Os grupos folclóricos eram usados pelo departamento de propaganda da ditadura para demonstrar os valores da sociedade portuguesa74. Um país rico em sua alma, a despeito dos problemas financeiros que afundavam cada vez mais Portugal. Após a queda do regime, o folclore sai de cena. Perde a conotação de identidade nacional política e passa a fazer parte da identidade ligada ao turismo. O governo democrático percebeu a força do folclore e não o deixou de lado. Ainda há grupos folclóricos em Portugal, as confecções de roupas folclóricas ainda persistem e com boa saída, principalmente para exportação. Mas o folclore não faz parte da vida do português, como um samba faz parte da vida de um brasileiro. O fado, sim. Essa é a música que é exportada de Portugal. Tanto que os fadistas tradicionais e os de sucesso mais recentes lotam casas de show no Brasil. O folclore pode ser tema em vários ramos do conhecimento, como por exemplo, na antropologia, artes, etc. Mas na vida cotidiana, não faz mais parte, não nos grandes centros. Em festivais e casas de shows para turistas, nesses casos, ainda o vemos. Mas esse autodenominado folclore português é o que seguiu com os seus emigrantes e se espalhou pelo mundo. É a imagem que passa de Portugal nas casas regionais. E talvez a imagem que os que o demonstram queiram passar. A idealização de uma cultura, de um país que é deles apenas em suas recordações e alguns dias em que lá estão, mas como estrangeiros, no país que nasceram. E são portugueses, nos países que os acolheram. Aprofundando o assunto da tradição popular portuguesa, tendo como principal tema o folclore, falemos deste como um sentimento em comum entre os portugueses no Brasil e outros países de acolhida.

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SARDO, S. Música popular. p. 415. Disponível em: http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Percursos_Intercultura/1_PI_Cap8.pdf. Acesso em: 13/04/2014 73 SCOTT. A. S. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010, p.169. 74 Ibidem. p.169. FNAT: Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, a Junta Central das Casas do Povo, o Secretariado Nacional para a Alegria no Trabalho, entre outros. Organismos de fomento para a ampliação dos ranchos folclóricos.

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2.2 Acolhida e pertencimento: portugalidade

A expressão do folclore português no Brasil tem início com a vinda dos imigrantes portugueses a partir da segunda metade do século XX. Essa corrente migratória foi bem diferente da migração/colonização dos séculos XV – XIX, tão bem relatada por Freyre ou mesmo por Câmara Cascudo na alimentação.75 Discorrer sobre migração portuguesa envolve vários fatores. Até a década de 1970, um dos destinos mais procurados pelos portugueses era o Brasil. Principalmente devido ao momento político e econômico vivido pela ditadura em Portugal. A facilidade da língua e a aproximação rápida com os já instalados portugueses e com os brasileiros, fez do Brasil um destino legítimo. Não que o momento político fosse diferente do português, mas aqui não havia Salazar, nem a PVDE. 76 Além disso, essa emigração fez os portugueses se abrirem para o mundo. De certa forma, deixaram a letargia de lado e lançaram-se novamente além-mar, pois Portugal tem a emigração a sempre pontuar sua história. Foi uma emigração necessária, para vários países. Uma saída difícil, pois a emigração não era autorizada em sua maioria. Passaportes falsos foram utilizados e também os “passaportes de coelho”, ou seja, aos saltos, sem documentação. Muitos foram “devolvidos” a Portugal. O sonho português nessa época era vinculado ao progresso econômico. Fazer um “pé de meia” e retornar. Muitos, cá ficaram, e na assimilação e, concomitantemente, preservação de sua identidade, tornaram-se ou invisíveis ou mantenedores de suas tradições, mesmo que essa “tradição” não fosse seguida em sua terra natal. De início, homens solteiros, depois famílias, cartas de chamadas e uma geração de luso-descendentes se fixava no Brasil. Das regiões portuguesas, a região Norte teve a saída de mais emigrantes.

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Nesse caso, pode-se afirmar que a presença maciça de imigrantes do

Norte de Portugal no Brasil faça com que o folclore dessa região seja mais visível do que o de outras regiões. Não esquecendo a presença maciça de Açorianos na região sul do Brasil. A manifestação folclórica dessa região é peculiar. As associações de imigrantes são, para todos que são de “fora”, um meio de encontrar seus compatriotas, manter as tradições, manter os laços com a terra-mãe. Um conforto 75

FREIRE, G. Casa grande e senzala. 49. ed. São Paulo: Global, 2014. CASCUDO, L. da C. História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983. 76 No período que abrange de 1960 a 1970, 20% da população portuguesa emigrou. Na época, Portugal tinha em torno de 8 milhões de habitantes. SCOTT, A. S. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2010, p. 148. 77 Cerca de 80% dos emigrantes saíram da região Norte de Portugal. A migração para Lisboa e Porto, cidades litorâneas, pode ter servido para a posterior emigração. Entre 1880 e 1970, mais de 3 milhões de portugueses deixaram suas terras e emigraram. Ibidem, p. 150 e 151.

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identitário, e hoje, há um encontro de gerações. Essas associações e clubes, mais a Igreja Católica são os pontos de liga dos portugueses fora de sua terra. Assim como as associações de apoio e amparo são objetos de estudos, os são as Associações de Beneficência. Foram necessárias até como auxílio à adaptação dos imigrantes em novas terras. Na cidade de São Paulo, o hospital da Beneficência Portuguesa foi fundado em 185978. Mesmo o Brasil tendo a língua como fator, na França há um grande contingente de emigrantes portugueses, principalmente pela proximidade. A possibilidade de visitar Portugal durante as férias e feriados não era possível ao emigrar para outras paragens. Há também muitas “colônias” na América do Norte – Canadá e Estados Unidos. Essa migração começou em meados do século XIX. Os portugueses foram atraídos pela pesca de baleias e também pela corrida ao Oeste. Após a Segunda Guerra, a chegada dos portugueses aumentou, principalmente vindo dos Açores.

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O The Azorean Refugee Act deu o direito de açorianos

emigrarem para os Estados Unidos após a erupção do vulcão dos Capelinhos em 27/07/1957. Essa foi a retribuição do governo norte-americano pelo uso dos Açores para bases militares nas duas guerras mundiais e que continuam a existir. Atualmente, os portugueses na América do Norte são encontrados nas áreas da construção civil e na área da alimentação, principalmente na região da Califórnia e da Nova Inglaterra. Nesse país, onde a migração de portugueses começou há mais de cem anos, não há tanto sentimento de volta, pela vida que conquistaram. No Canadá, a pesca do bacalhau no Atlântico Norte atraiu vários portugueses. Após a Segunda Guerra Mundial, um contingente cada vez maior de portugueses chegou a esse país. Há aproximadamente 400.000 pessoas que formam essa comunidade atualmente. Portugueses e descendentes, muitos nas universidades como docentes e discentes.80 Eles se instalaram tanto no lado francês quanto na parte inglesa. Há muitos portugueses também na Venezuela, principalmente devido ao crescimento da indústria petrolífera. Os oriundos da Ilha da Madeira são os de maior número. Um outro ciclo de emigração portuguesa teve seu auge entre os anos de 1955 e 1975. Suas causas foram o regime ditatorial – o Estado Novo – e as guerras coloniais na África. Havia muitos problemas econômicos que geraram muita pobreza. Muitos buscavam 78

Real e Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência de São Paulo. As Beneficências Portuguesas são organizações fundadas para amparo de cidadãos portugueses. Em geral, hospitais e casas de saúde fundados por portugueses nos países de acolhida. 79 Na mudança de século, do XX para o XXI, 1.200.000 pessoas, entre portugueses e luso-descendente viviam nos Estados Unidos. SCOTT. A. S. Os portugueses, São Paulo: Contexto, 2010, p. 156. 80 Ibidem. p. 160. CUNHA, M. C. da. A identidade como memória. In: Dinâmicas multiculturais - novas faces e outros olhares. Lisboa: ICS - Estudos e investigações, n.5, 1994, p. 37 - 40.

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oportunidades de trabalho e a melhora de sua condição financeira. A maioria dos emigrantes portugueses era de trabalhadores rurais. Então, o que conseguiam juntar no exterior, daria a eles mais facilidade de uma mobilidade social em Portugal quando de sua volta, não nesses países que os acolhiam. A emigração em Portugal devia ser contida, para não haver uma sangria dessa mão de obra. Mas os canais de solidariedade eram maiores e mais eficazes. Os portugueses, com sua tenacidade pela melhora de vida, ganharam alcunha de pão duros, sem estudos e que só pensavam no trabalho. Mas o caso era que eles estavam em terras estrangeiras com o único objetivo de conseguir dinheiro para melhorar de vida e só o trabalho árduo, sem descanso podia prover. Se as crianças pudessem trabalhar, melhor. Mais braços. Se pudessem substituir os pais em trabalhos mais rasos, enquanto os pais faziam um extra, melhor ainda. Trabalhar muito para poder juntar o máximo de dinheiro e voltar a Portugal o mais rápido possível. O Brasil era considerado um local onde podiam enriquecer, talvez ainda envolto no sonho colonial da fortuna certa, um país fértil em terras e em trabalho. Mas conforme o tempo passava e a volta definitiva não acontecia, os filhos dos portugueses se integravam a terra nova ou já aqui nasciam. Então o trabalho ininterrupto deu lugar aos estudos e ao fincar de raízes. O voltar. Sempre o voltar. Mesmo os que nasceram em países distantes, que nunca conheceram Portugal, falavam em voltar. Portugal como utopia. Talvez um futuro que muitas vezes não se alcança. A identidade portuguesa é um compromisso. Os próprios filhos de portugueses que já estavam inseridos na cultura local manifestavam esse sentimento. A saudade de um lugar em que nunca se esteve. Que não conhecem. Por qual motivo? Por serem estrangeiros. E pela “portugalidade81”, o ser português, identificar-se como tal e demonstrar suas origens e o orgulho de pertencer a essa nação. Mesmo os descendentes de 3ª, 4ª geração ainda se identificam com Portugal. E isso é comum para outros descendentes de imigrantes. O inserir-se na sociedade em que nasceram pode ser diferente, pois leva em conta a discrepância de costumes e o quanto a sociedade os acolheu em realidade, em todos os aspectos. Mesmo não voltando, o sucesso dos portugueses em sua diáspora é visto pela sua inserção em várias áreas e pelas remessas de dinheiro para os que ficaram. E a saudade é abrandada com viagens constantes ao país de origem, - por si só essa informação já comprova o sucesso financeiro de alguns, - e as associações e clubes que existem em vários países. No Brasil, inclusive. 81

Conceito já citado anteriormente, mas que nesse capitulo merece uma explicação mais detalhada. Portugalidade: é a qualidade específica do que é considerado português. Próprio da cultura portuguesa. Pode também ser considerado um sentimento de amor intenso por Portugal ou o que o identifique como nação e costumes.

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A data de 25 de abril de 1974 encerrou simbolicamente o fluxo imigratório. De habitantes que emigravam, Portugal, vinte anos depois recebia levas significativas de imigrantes. E Portugal não é mais o mesmo. A inserção na União Europeia e a abertura ao mundo fazem hoje de Portugal, ao centro, pelo menos, um país cosmopolita. Isso pode ser obra das influências dos emigrados, pois em vastas correspondências iam contando um pouco sobre seu cotidiano, e assim, também sobre o país que os acolheu. Os que chegaram ao Brasil e em outros países da metade do século XX em diante trouxeram seus costumes, suas tradições, seus valores, sua cultura, enfim. Essas emigrações levaram a portugalidade aos países acolhedores e através disso, a força do “ser” português cresceu. O que é exaltado nas associações e clubes portugueses e a música tem participação importante nesse ponto. O dia 10 de junho festeja o dia da “raça” portuguesa82, o dia das comunidades portuguesas e marca o dia da morte de Luís Vaz de Camões. Feriado em Portugal. Essa data festeja os portugueses, sua língua, identidade e mobilidade. A CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) foi criada em 17 de julho de 1996 para unir os “iguais”, os países de língua portuguesa, sem descaracterizá-los. São eles por ordem alfabética: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal e Timor-Leste. Mas, em alguns países, o português não é a língua mais falada, então essa identidade pela lusofonia não abrange os países na sua totalidade. A língua falada, não a escrita, pois com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa que entrou em vigor em Portugal e no Brasil em 2009, mas até hoje não definitiva sua aplicação, pois há períodos de adaptação que não findaram. As várias associações de portugueses e luso-descendentes pelo mundo é também uma forma de o governo português conquistar apoio político e econômico. Um Portugal fora de Portugal. Vários “Portugais” fora de Portugal. Todos unidos, pelo menos, pela língua-mãe. Língua que os une, que foi imposta e que os irmana para apoio mútuo. São várias as associações: as de beneficência que são mais conhecidas como de assistência hospitalar, as culturais, como as bibliotecas e centros de referência e as recreativas, como as casas regionais. Algumas têm estrutura de clube e proporcionam espaço para lazer, festas e muitas também contam com os grupos folclóricos com suas festas pontuais. Essas casas têm um público grande que se encontra em quase todas as festas das cidades onde atuam e assim mantém os

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O termo raça portuguesa está exposto expressamente na página do Consulado Geral de Portugal em São Paulo. http://consuladoportugalsp.org.br/comemoracao-do-dia-de-portugal2/. Acesso em: 27/05/2015.

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laços de amizade e, por que não, de negócios. São laços a princípio regionais, mas os encontros nas festas acabam formando laços em comum com Portugal. Essas associações são comuns em outras nacionalidades. As pessoas que precisaram se ausentar de sua terra pelos mais variados motivos acabam encontrando um modo de se unir aos seus conterrâneos, até para encontrarem no outro uma similitude, um espelho, um igual, alguém que passa pelos mesmos acontecimentos. A saída de sua terra-mãe, a chegada em uma terra estranha, a associação de novos costumes, novos significados para palavras, como as gírias, novos jeitos de se comunicar. E o acolhimento em uma casa que é um pedaço de sua terra, mesmo que não seja a sua região, mas é a nacionalidade que os une. A música que de regional passa a ser referência nacional, a comida, a dança, as roupas e o sotaque. Um momento de segurança onde o imigrante encontra-se entre os seus. A nacionalidade portuguesa é reconhecida aos filhos e netos de portugueses. Isso facilita o reconhecimento e aumenta a sensação de “portugalidade”. E como o folclore entra na exposição dessa “portugalidade”? O Portugal rural é o evocado pelos ranchos folclóricos. O camponês que dança e canta músicas que remontam à virada do século XIX para o XX. Que remonta a um Portugal idealizado, idílico e principalmente, apolítico. Correndo o risco de ser redundante, mas necessário, essa última característica foi importante fixar durante a ditadura Salazarista, demonstrando a docilidade e preocupações do povo português com sua vida íntima, familiar, no máximo de sua aldeia, sem colidir com ideias subversivas, ou seja, fora do esquadro da política dominante. O folclore era a demonstração da “alma portuguesa”83. E os grupos eram patrocinados pelo governo, como forma de propagar o nacionalismo imposto pelo regime vigente. Além do folclore, a religiosidade e o futebol formavam o trio exaltação da alma portuguesa. Após a Revolução que desmontou o regime ditatorial, o folclore saiu de cena. Se perguntado a algum português das zonas urbanas, sobretudo da capital, sobre o folclore na vida cotidiana, ele vai falar que isso é algo restrito a aldeias mais interioranas e festivais para turistas. Chega a ser inusitado para um pesquisador do folclore português o olhar que lhe é lançado quando se questiona o papel do folclore no cotidiano português. Sente-se que é uma pergunta inapropriada ou sem sentido. E não com uma ou outra pessoa, com um número razoável e em regiões diferentes. Mas no Brasil ou em outro país em que o número de portugueses é grande e há várias associações que os reúne, o folclore é o que fala mais alto.

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SCOTT, A. S. Os portugueses, São Paulo: Contexto, 2010, p. 169.

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Primeiro, o folclore foi encampado pelo regime ditatorial português como legitimador de uma portugalidade modelo. Depois, também foi adotado pelo novo governo e pelas empresas turísticas como parte da identidade portuguesa. E para os emigrantes era a forma de lembrar-se da terra, o pertencimento de uma tradição, do “ser português”. Mesmo que eles nunca tenham dançado nem cantado essas músicas em um momento de trabalho, descanso ou participado de alguma festa na Igreja local ou de uma Vindima ou Desfolhada84. Há vídeos gravados como documentários demonstrando essa tradição. Gravado nos dias atuais mostram pessoas em trajes considerados típicos rurais colhendo a uva e o milho, cantando canções tradicionais para esse ofício. São vendidos em lojas para turistas. Em conversa informal com dona Soledade da Cunha Lima85, ela contou que um de seus parentes recebeu o convite para que em sua propriedade rural pudesse ser gravado um desses documentários. A família, amigos e outros conhecidos se reuniram em trajes correspondentes ao imaginário folclórico e se puseram a cantar enquanto colhiam. Após o trabalho, uma festa os aguardava, com direito a comida e vinho e o grupo a cantar, tocar e dançar músicas que faziam alusão ao cotidiano rural. Um termo utilizado pelos participantes das associações e grupos folclóricos é “colônia”. Esse termo evoca Portugal como conquistador, povoador e explorador. Após a redemocratização, o termo “comunidade portuguesa” foi adotado para nomear esse grupo de pessoas. O português com seu histórico de colonizador, conquistador, viu-se com a emigração em meados do século XX, como um exilado. E as associações portuguesas, muitas com base na representação do folclore português, deram a eles apoio e uma volta a Portugal. São várias associações e grupos folclóricos pelo Brasil. E os ranchos são os que mais atraem participantes. Principalmente porque neles atuam várias gerações de portugueses e luso-descendentes. 84

Vindima: a vindima é o processo de colheita da uva e do preparo do vinho. Inicia-se ao fim do verão no hemisfério norte e vai até outubro. É um momento de convívio entre os que participam e época de festa. Ainda faz parte do cotidiano português, mas não com o significado anterior. Um acontecimento que reunia uma região inteira para a ajuda mútua. Os ranchos folclóricos acompanhavam a movimentação e seguiam os que participavam em comitiva. Seguiam para a pisa das uvas. Hoje é um ritual de reunião familiar, mas as uvas seguem para as adegas para a fermentação. Ainda há festivais no interior de Portugal que são televisionados e com a participação de turistas. Desfolhada: a colheita do milho, principalmente na região norte de Portugal, onde esse alimento das Américas conseguiu uma boa acolhida era realizada entre setembro e outubro. Após a colheita, o dono do local servia comida aos trabalhadores e nesse descanso havia o momento das músicas e danças, onde a concertina tocava e dava a deixa para o começo do baile improvisado. Hoje, assim como as vindimas, são festas recriadas nos festivais de verão em associações culturais. 85 Senhora Soledade da Cunha Lima. Em São Paulo, 07 de novembro de 2014. Entrevista concedida a Talita Carneiro de Matos.

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A maioria dos portugueses que fundaram e participam dos grupos folclóricos e associações vieram para o Brasil a partir da década de 1950. Alguns vieram por conta dos problemas econômicos que enfrentavam por conta do Salazarismo. A questão é, ou melhor, são várias. Essas pessoas viveram uma época em que o folclore era usado como ícone identitário português. Mas, dependendo de quando saíram ou de onde se localizavam, não puderam ter ideia disso ou não perceberam esse ponto. Ou saíram antes do folclore ser institucionalizado como representação do português ideal. Ou são vítimas da memória, ou de uma construção. Na Dissertação de Mestrado de Eduardo Caetano da Silva, os participantes de grupos folclóricos se interessam por essas representações do ser português como algo que pode ser considerado, na fala de alguns, como “politicamente incorreto”86. A portugalidade devia ter um viés mais político, lembrando como era a vida em Portugal sob um regime ditatorial, razão pela qual, muitos portugueses foram obrigados a sair de seu país e buscar novos lugares e melhores condições para viver. Cita ainda Manuela Carneiro da Cunha (1994), quando diz que se: “a história se repete como farsa, a cultura repete-se como folclore”.87 O folclore como cristalizador das tradições. E vai de encontro com a imagem do Portugal atual. Um país que se modernizou e atrai investimentos de todo o mundo. Lisboa é uma das capitais da Europa que mais recebe turistas. Ainda procurado por seus locais de veraneio, como as praias do Estoril, seus vinhos, um país globalizado e contemporâneo, mas que ainda carrega a herança de sua imagem rural e de certa letargia em relação às mudanças. Mas para os integrantes de grupos folclóricos, os mesmos que saíram de Portugal pela situação econômica e política da época de Salazar, eles fundaram os grupos folclóricos para conter a saudade de seu país, pois a música folclórica carrega a identidade portuguesa, mesmo que inventada. Mesmo com a redemocratização de Portugal, os que não voltaram ainda se utilizam do folclore como norteador do ser português. Essa “surdez” aos apelos por uma participação política ao invés de cultural, no âmbito folclórico, pode até ser contraditória, mas é o que os une. É o que os lembra de onde vieram e o que são. E essa portugalidade é chamada a ser exposta pelo maior número de pessoas possível, pois o ser português e suas tradições podem ser compostos por pessoas que se sentem bem 86

SILVA, E. C. S. Visões da diáspora portuguesa: dinâmicas identitárias e dilemas políticos entre portugueses e luso-descendentes de São Paulo. 2003. p. 169. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo. 87 Ibidem.p. 144.

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nesse papel, mesmo sem a nacionalidade ou ancestralidade portuguesa, mas que tenham interesse em divulgá-la. E os jovens são presenças marcantes. Principalmente pela família. Nesse caso, os descendentes de portugueses, muitas vezes procuram os grupos folclóricos por conta própria e fazem um contraponto. São jovens e buscam o antigo. Algo que os faça pertencer a essa história. As associações que mantém os grupos folclóricos podem ser específicas de uma região ou abarcar todas. E as diferentes casas, com diferentes origens, não provocam uma divisão em quem as frequenta, pelo contrário, as une. Une os frequentadores em torno de um interesse em comum, o ser português e manifestar o que os faz portugueses. Todas as casas regionais são um pedaço de Portugal. Não há rivalidade egoísta, uma inveja entre as casas. Em relação aos ranchos folclóricos, já não se pode dizer o mesmo. Há troca de grupos por rivalidades internas, por exemplo. Mas, não importa se em um final de semana alguém esteve em um almoço na Casa dos Açores e os mesmos frequentadores apareceram em uma festa na Adega da Lusa88. Os frequentadores são costumeiros. Muitos grupos folclóricos se especializaram nas tradições da região do Minho, principalmente nos trajes de Viana do Castelo. Talvez porque muitos portugueses vieram da região norte de Portugal. A divisão das poucas terras e o grande fluxo de pessoas ajudaram nesse fator. E quando chegavam ao Brasil, uma rede de segurança se formava. Outros vieram no rastro dos que aqui se fixaram. Os Açorianos chegaram e ao se fixar atraíram mais açorianos. Os Minhotos também assim o fizeram. Chamaram por cartas seus irmãos, esposas, genros, cunhados e assim formaram uma rede de proteção e solidariedade. De repente, os vizinhos de lá eram vizinhos aqui. Um mini-cosmos de sua aldeia. Essas associações são locais de convivência idealizados. Remetem a um passado concebido como rural e harmonioso, um Portugal rural que muitos dos que fundaram essas associações nem vivenciaram. Tentam manter a “memória” de um passado quimérico. É o forjar de uma memória coletiva89, do que se viveu ou de uma lembrança construída, reconstruída por um grupo que pode ser manipulado ou manipular, esquecer e lembrar pedaços que não interfeririam no que “deve” ser lembrado. E a memória, no caso? Também se situa de forma análoga, pois constrói laços de pertencimento e amarramento dos indivíduos ao seu passado. A memória, no caso, patrimonializa as lembranças, levando os grupos à coesão social e a uma comunidade simbólica de sentido partilhada. Cria identidades, enfim, atividades de 88

Adega da Lusa: festa portuguesa realizada na Associação Portuguesa de Desportos nos primeiros sábados de cada mês, com a apresentação do Grupo Folclórico da casa e, normalmente, um grupo convidado. É uma festa noturna realizada no salão nobre do Clube. Há comida típica, como alheiras, caldo verde, tremoços, vinho verde e os doces da cozinha lusa. Há um baile animado pela tocata da casa e depois as apresentações. 89 HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo Centauro, 2003, p. 81.

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referência imaginária que situam os indivíduos no mundo. Construídas. Inventadas sem serem necessariamente falsas. Desejáveis e confortantes, porque positivadas. Ou incômodas e mobilizadoras de ação reivindicatória, revanchista e punitiva, porque vivenciadas como injustas e negativas. 90

O termo folclore é ligado ao petrificar de um significado e aos imigrantes pode ser atribuído o congelamento dessas tradições, pois assim, têm uma segurança de que o que deixaram ainda vive e é revivido a cada encontro, almoços e apresentações dos ranchos folclóricos. É a apropriação e transformação dessa tradição. Uma resistência.91 Uma discussão em torno da “sobrevivência” do folclore pode girar sobre sua concepção. Arcaico ou residual? O arcaico é o elemento do passado, que pode ser revivido no presente. O residual foi formado no passado, mas ainda encontra lugar no presente.92 A manifestação do folclore português, mesmo que reinventada pelos ranchos se encaixa no arcaico? Ele é revivido, mas não na sua configuração primária, por isso reinventado. E pela repetição revivido, continuamente. E essa reinvenção sobrevive, onde a presença portuguesa solicita essas apresentações, como outros povos também o fazem. Em qualquer lugar em que haja um estrangeiro a procura de uma identidade, mesmo que forjada, mas que conforta. Nesse momento estão entre “os seus”. A expressão “estar entre os seus” pode ser demonstrada na cidade de São Paulo pelas associações dedicadas ao convívio dos imigrantes portugueses. Dessas, as que convêm detalhar são as que se dedicam às manifestações culturais dedicadas ao folclore. No Estado de São Paulo, há várias associações portuguesas, algumas contam com grupos folclóricos. São 59 associações cadastradas no Conselho da Comunidade LusoBrasileira do Estado de São Paulo. No Estado de São Paulo, são 24 grupos folclóricos listados no site do Conselho da Comunidade Luso-Brasileira do Estado de São Paulo. Grupos de Santos, ABC e Interior.93 Na cidade de São Paulo estão localizados, principalmente, nos bairros da Zona Norte e Leste de São Paulo. Especificamente, na cidade de São Paulo, de acordo com o CCLB, são 13 os grupos listados. São eles: 1.

Associação Cultural Rancho Folclórico Vilas de Portugal (1984) – Cachoeirinha

90

PESAVENTO, S. J. Palavras para crer – imaginários de sentido que falam do passado. Nuevo MundoMundos Nuevos. v. 6, p. 6, 2006. 91 HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 248. 92 WILLIANS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 125. 93 http://www.cclb.org.br. Acesso em: 11/05/2015. Em parênteses, o ano de fundação de alguns grupos.

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2.

Grupo Folclórico da Associação Portuguesa de Desportos (1987) Canindé

3.

Grupo Folclórico da Casa de Portugal (1973) - Liberdade

4.

Grupo Folclórico da Casa dos Açores (1981) - Vila Carrão

5.

Grupo Folclórico da Casa Ilha da Madeira (1967) - Vila Amália

6.

Grupo Folclórico Infanto-Juvenil da Casa Ilha da Madeira (1985)

7.

Grupo Folclórico Pedro Homem de Melo (1988) - Vila Maria

8.

Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo - Vila Maria

9.

Grupo Folclórico Santa Marta dos Navegantes (1991) - Cangaíba

10.

Grupo Folclórico Veteranos de São Paulo - Perdizes

11.

Rancho Folclórico Arouca São Paulo Clube (1979) - Tremembé

12.

Rancho Folclórico Cantares e Dançares do Minho (2005) - Casa Verde

13.

Rancho Folclórico Português Aldeias da Nossa Terra do Arouca (2008) – Tremembé

Alguns grupos, como visto pelo próprio nome, são específicos de determinada região de Portugal, como por exemplo, o Grupo Folclórico da Casa dos Açores e o Grupo Folclórico da Casa da Ilha da Madeira. Esses, principalmente, são facilmente reconhecíveis pela sonoridade e trajes característicos. Os outros grupos têm, na sua maioria, como base, para a música e roupas, a região norte de Portugal. Em relação a essa escolha, os imigrantes que chegaram a São Paulo e que formaram esses grupos procedem da região norte de Portugal ou encontraram em seus ritmos, uma identidade geral, então, não estão afastados de suas tradições. Cada grupo tem sua agenda de apresentações. Normalmente aos finais de semana. Costuma-se dizer que toda semana há uma festa portuguesa na cidade de São Paulo. Um almoço ou um jantar. O Grupo Folclórico da Casa de Portugal é um dos diferenciados no que tange às apresentações. Ele não conta com um calendário fixo mensal. Há a festa de aniversário do grupo e sua festa mais famosa é a Festa da Vindima. Essa festa tenta recriar a colheita da uva com a participação do Grupo Folclórico da Casa de Portugal podendo ser semestral ou anual. Outros eventos são os Almoços de Quinta (semanais), apresentação de fadistas, a festa de aniversário da Casa de Portugal, a comemoração ao dia de Portugal e comunidades, em 10 de junho. Há lançamentos de livros, exposições e a Casa ainda aluga seu espaço para outros

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eventos culturais. Esse grupo se apresenta em vários eventos pelo interior de São Paulo e também em outros estados. E ainda é um dos mais procurados para representar o folclore português no Brasil em festividades no exterior. A Casa de Portugal, em um de seus anúncios da Revista Naus's, endereçada à comunidade portuguesa, publica: "Casa de Portugal: aberta a todas as raças. Se é português ou descendente e ainda não é sócio, deixe de ser omisso, honre suas raízes...”94 O Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo, objeto principal de minha análise, tem sua sede na Vila Maria, zona norte de São Paulo e suas festas acontecem no terceiro domingo do mês, sempre um almoço com prato principal típico português. O prato mais comum e também muito apreciado é o Bacalhau a Raízes95. Cada casa tem sua particularidade. Há almoços pagos, incluso um prato principal, como bacalhau, sardinha, rojões96. Essas receitas são “de família”, transmitidas pela tradição, pelo olhar, fazer e passadas oralmente aos descendentes, principalmente pelas mulheres/cozinheiras, diga-se de passagem. E também a baixa escolaridade e até o analfabetismo não permitia que essas receitas chegassem ao presente na forma escrita. O bacalhau é o prato português mais lembrado. Em Portugal era um peixe relativamente barato e a conservação dele seco facilitava sua durabilidade. Por isso, todas as camadas da população faziam uso desse alimento. Outros peixes e iguarias do mar também eram comuns, já que a carne era escassa. Há os aperitivos: bolinhos de bacalhau, tremoços, alheira, farinheira97. Os convidados servem-se a vontade pelo preço pago e as bebidas são a parte. Ou então, pagam o que consomem. Não esquecendo o caldo verde. Os doces típicos portugueses sempre têm vez. São vendidos nas festas, assim como objetos típicos. Os doces típicos portugueses são a base de ovos e muito açúcar, além de amêndoas. São os pasteis de Santa Clara, pasteis de Belém, travesseiros de Sintra, pasteis de São Bento, queijadinhas, papos de anjo que adoçam os convidados. Muitos são industrializados. Mas há como apreciar o arroz doce caseiro e as 94

Revista Naus’s. In: SILVA, E. C. da. Visões da diáspora portuguesa: dinâmicas identitárias e dilemas políticos entre portugueses e luso-descendentes de São Paulo. 2003. 76 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, São Paulo. 95 Bacalhau a Raízes: postas de bacalhau cozido e depois selados em frigideira. Batatas assadas e couve. Regados ao azeite português. 96 Rojões: prato de carne cozida de porco da região do Minho. São servidos com batatas cozidas e arroz. 97 Alheira: a alheira é um enchido da culinária portuguesa que contém carne de aves, pão, azeite e banha. Está associado à presença de judeus na região lusitana entre os séculos XV e XVI, o que não é comprovado que seja uma invenção desse povo. As histórias as associam ao não consumo de carne de porco pelos judeus, o que os fez substituir por carnes de outras espécies e fugir a perseguição da Inquisição. Farinheira: a farinheira também é um enchido que não leva carne de porco, e sim, farinha para dar a liga. É utilizada também massa de pimentão e vinho. Também está ligada a presença de judeus em Portugal. Hoje, esses enchidos já contam com a carne de porco em seus ingredientes.

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rabanadas. A comida que demonstra a identidade da festa e dá uma sensação de pertencimento aos comensais. Há também a venda de toalhas, panos de prato e outros objetos com símbolos portugueses, como o Galo de Barcelos98. Os imigrantes que fundaram essas associações e clubes vieram de várias partes de Portugal e se estabeleceram principalmente nas cidades de São Paulo e Santos. Em São Paulo trabalharam no comércio, indústrias e obras. Os que conseguiam montar seu próprio negócio tinham qualificação para isso. Os da construção civil que demonstravam boa capacitação eram logo contratados por particulares para executar serviços para clientes abonados e acabavam fazendo sua própria freguesia e abrindo seus próprios negócios. Alguns desses imigrantes que vieram para São Paulo a partir da metade do século XX o fizeram para fugir do regime Salazarista e das dificuldades econômicas que Portugal vivia. O Brasil era uma oportunidade de melhorar de vida, e assim, uma rede de imigração foi formada. O grupo específico tratado no terceiro capítulo dessa dissertação, Raízes de Portugal, tem em sua formação pessoas que vieram por essa razão. Tabela 1 - Estrangeiros em São Paulo (maiores grupos)99 Anos

Total Geral

Portugueses

Italianos

Espanhóis

1885 - 09

1.059.199

134.594

744.244

180.361

1910 - 34

654.637

263.063

187.558

204.016

1935 - 59

311.987

156.536

90.130

65.321

1960-61

2.057.488

569.175

1.026.076

462.237

Fonte: Departamento de Imigração e Colonização. São Paulo, 1962, p. 44-50.

98

Símbolo de Portugal é associado a uma lenda em que um peregrino foi condenado por um crime na cidade de Barcelos e ao se encontrar com o juiz que o condenou disse que era inocente e que no momento de seu enforcamento o galo que serviria de refeição ao juiz iria levantar e cantar. E assim aconteceu. O juiz salvou o condenado e anos depois, o peregrino voltou à região e esculpiu o Cruzeiro do Senhor do Galo que se encontra hoje no Museu Arqueológico de Barcelos. Há outras versões da história, principalmente em relação à mudança de personagens. Em algumas versões, por exemplo, o juiz é trocado pelo prefeito da cidade ou até pelo rei. 99 MATOS, M. I. S de. Portugueses: deslocamentos, experiências e cotidiano – São Paulo séculos XIX e XX. Bauru, SP: Edusc, 2013, p. 52.

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Imagem 10 – Gráfico representando a entrada de imigrantes no Estado de São Paulo por nacionalidade100

No gráfico acima há uma melhor visualização dos pontos de alternância das nacionalidades. Em relação à entrada de portugueses no Brasil, entre 1934/1943 aqui aportaram 75.634, entre 1944/1953 houve um expressivo aumento, 146.647. Em 1954 o número cai para 30.062, e assim, progride a baixa de entradas.101 Muitos portugueses eram procurados pelo exímio trabalho artesanal. Vários portugueses ficaram conhecidos pelos seus trabalhos como sapateiros, costureiras, ferreiros, carpinteiros e outros trabalhos afins. Uma arte que passava de geração para geração. Também eram conhecidos pelas hortaliças e legumes que plantavam e vendiam. Remetendo ao seu mister em terras lusas e fazendo deles figuras fáceis nas feiras livres. As próprias casas eram usadas como oficinas e mercados. A família toda auxiliava e os empregados eram também portugueses que, recém-chegados, eram assistidos pelos que cá estavam.102 Assistidos e por vezes explorados. Além de trazerem seus ofícios trouxeram também seus hábitos alimentares. E os pratos considerados típicos são os servidos em festas nas associações portuguesas. A representação de uma festa portuguesa é uma transferência do que era uma casa portuguesa. Nas casas de imigrantes e de seus descendentes, na maioria das vezes, há objetos 100

http://www.arquivoestado.sp.gov.br/imigracao/estatisticas.php Acesso em: 11/06/2016. http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=720. Acesso em: 11/06/2015. 102 MATOS, M. I. S de. Portugueses: deslocamentos, experiências e cotidiano – São Paulo séculos XIX e XX. Bauru, SP: Edusc, 2013, p. 131. 101

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que remetem a Portugal. Toalhas, louças, objetos de decoração, como o Galo de Barcelos, pratos decorativos e imagens religiosas como as de Nossa Senhora de Fátima. Em São Paulo há grande concentração de grupos que cantam e dançam as músicas folclóricas da região Norte de Portugal, principalmente, Viana do Castelo, como já comentado anteriormente. São os oriundos da região norte que carregaram consigo o folclore dessa região. Mas também há grupos de outras regiões e bem representados em São Paulo, dos Açores e Madeira. Tanto os açorianos quanto os madeirenses têm suas próprias associações. Os Açorianos concentram-se na Zona Leste – Vila Carrão e os Madeirenses na Zona Norte – Vila Amália (região do Tremembé). A presença de pesquisas sobre os Açores é maior do que sobre a Ilha da Madeira. Principalmente quando o estudo é sobre a festa do Divino Espírito Santo. Nesse ponto, é uma festa religiosa o ápice da comemoração da identidade açoriana, diferente de outras associações. Os Açorianos emigraram por várias razões na época do pós Segunda Guerra Mundial. Por conta do Salazarismo, como muitos outros de várias regiões de Portugal, pelos terremotos que assolavam seu território, crises econômicas e quebra da economia agrária. A Zona Leste, especificamente o bairro de Vila Carrão recebeu um contingente maior de Açorianos porque era em uma fábrica, o Cotonifício Guilherme Giorgi onde comumente achavam trabalho103. Era o expediente de chamar “os seus”. Arranjava-se trabalho e depois vinham a família, os vizinhos, os amigos. E como outros imigrantes, também se ocuparam de ter sua própria associação cultural na cidade de São Paulo que foi criada em 1980, formando vínculos com suas origens e se identificando como açorianos. “As festas e comemorações religiosas constituem-se em legados culturais, elementos de memória, tradição e patrimônio dos imigrantes, em especial a festa do Divino Espírito Santo, que é celebrada pela comunidade açoriana, todos os anos.”104 Os portugueses saíram de sua região e enfrentaram um desenraizamento e esses grupos e associações promovem um replantar de raízes. Da mesma forma quando em suas casas há o bacalhau em datas festivas, a participação nesses grupos retoma um pouco do que era sua vida, no sentido culinário, religioso e comunal. O folclore em si, muitas vezes apenas

103

MATOS, M. I. S de. Portugueses: deslocamentos, experiências e cotidiano – São Paulo séculos XIX e XX. Bauru, SP: Edusc, 2013, p. 137. 104 Ibidem, p. 139.

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vivenciado no país de acolhimento, também retoma sua identidade. Essas associações são fontes do ouvir, do bailado e de quem se arrisca a tocar a concertina. O interessante é perceber que o folclore muitas vezes não foi vivenciado pelos participantes desses grupos, mesmo em relação aos mais velhos. É um gatilho de memória. De músicas ouvidas na infância, em alguma festa na aldeia, de algum disco trazido pelos avós ou da própria cantoria que surge de uma memória de alguma festa ou reunião em família105. Em uma das conversas prévias para essa dissertação, uma das componentes desses grupos folclóricos diz que “é só ouvir o som da concertina que o pezinho começa a bater e a música toma conta.” O mesmo jeito de Portugal. De Portugal. Não tinha nada coreografado, uma bagunça só. Era muito divertido. Porque a gente é muito alegre. O português em si, vamos dizer assim, se você escutar uma concertina parece que o corpo já começa, sabe, a... sente como talvez agora quem é brasileiro é só escutar um samba, já começa o pezinho também. (bate o pé no chão ritmadamente) Acho que é a mesma coisa. Cada país tem, vamos dizer assim, o seu toque de, que chama às tradições. No nosso é a concertina.106

E mais interessante ainda é a reação dos imigrantes atuais. Ao conversar com alguns portugueses em recente vinda ao Brasil com o intuito de ficarem, eles não encaram o folclore com essa simpatia. Dizem que é um resquício da ditadura. E os que estão de passagem também não entendem esse sentimento de nostalgia por um passado não vivido. Talvez o momento seja outro, não há a dúvida do voltar. Não há distâncias tão grandes em um mundo com mensagens instantâneas e vídeos – chats. Não há tempo de sentir saudade. Os portugueses e seus descendentes têm mídias exclusivas no Brasil. Desde a época da ditadura em Portugal até os dias de hoje, guardadas as devidas proporções e motivações, jornais, revistas e programas radiofônicos estão presentes. Há programas de rádio sobre música portuguesa. Em São Paulo, a Rádio Imprensa, FM 102.5, aos domingos, das 13h às 14h apresenta um programa sobre variedades, entrevistas e músicas portuguesas chamado “Navegar é Preciso” que já conta com dez anos no ar. E a Rádio 9 de Julho, AM 1600kHz, também aos domingos, mas na parte da manhã, das 8h às 9:30h apresenta o programa “Cantares de Além-mar” com Jefferson Silveira, onde segundo a programação “traz o Portugal para o Brasil” com notícias sobre esportes, lazer, música e cultura portuguesa. O programa da Rádio Imprensa, em alguns domingos, está presente em alguma casa portuguesa transmitindo uma festa.

105

Senhora Soledade da Cunha Lima. Entrevista concedida a Talita Carneiro de Matos. São Paulo, 07 de novembro de 2014. 106 Idem.

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Os jornais que circulam pela comunidade atualmente são o “Mundo Lusíada” e o “Portugal em Foco”. O Jornal Mundo Lusíada é uma publicação de referência em todo o Brasil e não só. Com periodicidade quinzenal, o Mundo Lusíada traz informações sobre a comunidade luso-brasileira, Comunidades dos Países de Língua Portuguesa, Elos Clube Internacional, e eventos folclóricos da comunidade portuguesa. Oferece ainda conteúdo de qualidade em diversos assuntos, como Cultura, Política e Economia – Brasil e Portugal. O Jornal Mundo Lusíada é produzido em São Paulo, e enviado para diversos estados brasileiros através de mala-direta.107

O “Mundo Lusíada” tem sede em São Bernardo do Campo, São Paulo e foi criado em 1998. Seu slogan é “ O mundo mais perto de si”. O mundo português mais perto dos portugueses e seus descendentes. Percebe-se pela imagem abaixo uma disposição um pouco mais sóbria em comparação ao jornal “Portugal em Foco”, imagem seguinte.

Imagem 11 – Exemplar do Jornal Mundo Lusíada 108

107 108

http://www.diasporalusa.pt/empresas/jornal-mundo-lusiada/. Acesso em: 11/06/2015. http://clubedochoro.org.br/blog/2014/01/02/materia-no-jornal-mundo-lusiada/. Acesso em: 19/04/2014.

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Imagem 12 – Exemplar do Jornal Portugal em Foco109

O jornal “Portugal em Foco” é editado no Rio de Janeiro e carrega nas cores nacionais portuguesas em suas chamadas. Os dois dão destaque aos festivais e apresentações de grupos folclóricos pelo Brasil. Mas o “Mundo Lusíada” é mais focado em notícias econômicas e políticas e o “Portugal em Foco” segue uma linha mais voltada ao cultural, com farto volume de fotos das festas portuguesas e espaço específico para todos os seus anunciantes e patrocinadores. Diferentes do Jornal “Portugal Democrático” (1956 – 1975) que foi um importante marco na luta contra o Salazarismo. Os imigrantes que chegavam ao Brasil em meados de 1950 eram em parte contra o governo de Salazar e sofriam perseguições por suas posições políticas. Muitos vinham pelas consequências do regime na economia, mas não tinham pretensões de intrometer-se na política vigente. Em São Paulo, o Centro Republicano Português foi reaberto e converteu-se em ponto central da oposição ao governo de Salazar dos exilados. “A partir daí um jornal converte-se na expressão dos portugueses anti-salazaristas em São Paulo e no Brasil – Portugal Democrático. Muitos intelectuais colaboravam com o periódico. Dentre eles se destacaram Victor Ramos, Miguel Urbano Rodrigues, João Alves das Neves e Vitor da Cunha Rego, Jorge Fidelis e Nuno Fidelino, escritores como Tomaz 109

Acervo pessoal/ 2014.

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Ribeiro Colaço, Maria Archer e professores como Joaquim Barradas de Carvalho e Ruy Luis Gomes, Maria Beatriz Nizza da Silva e membros do Partido Comunista Português (PCP), como Augusto Aragão e Álvaro Veiga.” 110 No Rio de Janeiro havia o jornal Portugal Livre, de tiragem mensal, editado pelo General Delgado, exilado no Brasil e criador do “Movimento Nacional Independente”, representante da oposição portuguesa. Com o fim do regime muitos dos colaboradores voltaram a Portugal e em um movimento inverso, agentes da PIDE tiveram resguardo no Brasil.111 Em 1977, após inúmeras ameaças, o jornal deixou de circular. Alguns de seus colaboradores fundaram o Centro Cultural 25 de Abril em 1982. De polarização mais política que cultural era quase um oposto a Casa de Portugal. A questão dicotômica entre simpatizantes do salazarismo e opositores também resvalou na criação das casas regionais, principalmente a Casa de Portugal. Localizada no centro da cidade de São Paulo no bairro da Liberdade, Avenida da Liberdade, nº 602. A Casa de Portugal foi criada em 1935 para abarcar as casas regionais em um projeto de apoio a atividades educacionais, culturais e de assistência. As Casas de Portugal eram em princípio criadas em outros países com a intenção de serem propagandistas do regime salazarista. A de São Paulo teve um começo diferente. O projeto atual é de Ricardo Severo que se exilou no Brasil por se envolver em conflitos contra a monarquia portuguesa. O novo edifício foi inaugurado em 1956, ainda por ocasião das comemorações do 4º Centenário. Em São Paulo, em 1908, é criado o Centro Republicano Português. Até 1940, a Casa de Portugal manteve seu caráter meramente associativista. Em 1941, a presidência passa para as mãos de um conhecido apoiador do regime salazarista, Pedro Monteiro Pereira Queiroz. Hoje suas lideranças são diversas. No mesmo local já funcionou o Consulado Português, hoje situado no bairro Jardim América. No momento funcionam no mesmo endereço da Casa de Portugal o Conselho da Comunidade Luso-Brasileira do Estado de São Paulo, a Câmara Portuguesa de Comércio e a Provedoria da Comunidade Portuguesa. Juntos, evidenciam a presença portuguesa no Brasil e estreitam laços históricos, culturais, comerciais e econômicos existentes entre Brasil e Portugal.112 Essas modificações de sentidos, do folclore, das Casas de Portugal, como estudo da história cultural, têm como intuito identificar como a realidade é construída em diferentes 110

MATOS, M. I. S de. Portugueses: deslocamentos, experiências e cotidiano – São Paulo séculos XIX e XX. Bauru, SP: Edusc, 2013, p. 183. 111 Ibidem. p.183. 112 http://www.casadeportugalsp.com.br/institucional/. Acesso em: 30/06/2015.

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momentos e lugares113. De um Portugal rural para um Portugal que se quer idealizado como rural, pois essa afirmação serve à identidade pretendida por uma ditadura, um Portugal em cada associação fora de Portugal que pode construir um sentido para o folclore, que é uma proximidade com o país de origem. Mesmo que esse folclore só tenha sido sentido e vivido fora de Portugal. São Paulo, como maior cidade da América latina, lugar de fixação de tantos portugueses, tem como contar um pedaço da história desses grupos que foram formados por esses imigrantes que aqui buscaram um pouso de segurança por um lugar que não mais os acolhiam. E que aqui buscaram reviver sua terra, seus costumes, suas tradições, mesmo que só vividas pela primeira vez longe de suas raízes, pois o que os liga ao seu passado são essas músicas e danças que remetem a um ideal de lembrança construída e reconstruída pela coletividade. Ranchos, grupos folclóricos, ranchos etnográficos... os que são parte dessa manifestação cultural fazem questão de dizer que estão “no meio do folclore”. Para eles não há aspas que mude o significado do que vivem, demonstram, recriam e transmitem. É até com certa condescendência que ouvem a expressão “manifestação cultural” quando são inquiridos sobre o ambiente em que convivem. Isso fica para a academia. E mesmo que não seja como Portugal queira ser representado na contemporaneidade, para essas pessoas, a alegria do convívio e da identidade é cantada e dançada, e para eles, “isso é folclore!”

113

CHARTIER, R. A história cultural; entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 16.

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3 RAÍZES

3.1 Grupo folclórico raízes de Portugal

Entre as associações portuguesas que contam com um rancho folclórico, o Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo foi escolhido como foco desta dissertação. As razões, explicitadas na introdução, como minha familiarização com o grupo e seus fundadores, minha breve passagem pela dança folclórica portuguesa nesse mesmo grupo, além de suas peculiaridades - ser um grupo formado por pessoas que passaram por grandes associações da cidade de São Paulo, como a Associação Portuguesa de Desportos, por exemplo, além da sua associação com a casa dos Poveiros de São Paulo - fazem o grupo apropriado para o presente estudo. A imersão como participante, em seguida como observadora de seu cotidiano de ensaios e apresentações, e por fim, como pesquisadora de sua formação é parte desse capítulo. Longe de ser parte de uma instituição renomada como a Casa de Portugal ou a Portuguesa de Desportos, o Grupo Folclórico Raízes de Portugal, não tem uma sede própria. São parceiros da Associação dos Poveiros de São Paulo. É um grupo formado por pessoas com conhecimentos adquiridos em anos de participação em outros grupos e que os gabaritou para essa função. O grupo, como muitos pelo Brasil, não só na cidade de São Paulo, é formado por portugueses e seus descendentes. Também há a presença de pessoas que não têm parentesco lusitano, mas ao tomarem contato com uma apresentação por intermédio de conhecidos, sentiram-se pertencentes ao lugar e foram inseridas nessa história. Amigos, namorados e até chefes são os responsáveis pela presença dos “forasteiros”. O senhor Francisco de Assis Ferreira, o “Assis” é o violonista do Raízes, natural da região do Crato, Ceará e se diz um verdadeiro português. Convidado por um de seus patrões para conhecer o universo do “folclore” português, hoje se sente plenamente acolhido. Tanto que sabe que Crato é também o nome de uma Vila do Alentejo que gostaria de conhecer. Passou por dois grupos antes de entrar no Raízes onde permanece há 6 anos. Começou no Arouca, frequentado por um de seus patrões. Depois foi “levado” para outro grupo, conhecido como Brunhosinhos, até se fixar no Raízes. O ambiente familiar é o que mais o estimula.

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Muitas famílias fazem parte desses grupos. Quem acompanha as apresentações ou faz parte desse ambiente percebe suas presenças. Várias gerações seguem seu caminho no folclore e muitas famílias são geradas também. Quando a família é presente, a continuidade é mais longeva. Muitos dos componentes gostariam que seus filhos crescessem nesse meio. Sentem que os grupos são uma rede de segurança. O tempo de convívio, entre ensaios, apresentações e viagens é desgastante e ao mesmo tempo prazeroso. Isso captado em anos de convívio e explicitado pelos próprios participantes. Mas chega um momento em que há a necessidade de optar em continuar ou seguir outro caminho. Muitos voltam, com seus filhos. Os ensaios são geralmente aos finais de semana. Para os jovens, em especial, pode ser tanto uma opção de convívio como também um momento de restrição. Os ensaios demandam tempo e disciplina. Para os pais e responsáveis por esses jovens, mesmo que não os acompanhem nos ensaios, saber que os filhos estão em um ambiente “saudável”, em uma atividade que os deixa longe de companhias que podem gerar problemas causa certo alívio. Estão em um ambiente familiar, onde todos zelam pela integridade e em convivência harmoniosa, principalmente em relação aos menores de idade. Os próprios componentes sentem isso depois de adultos e corroboram que o ambiente os moldou de uma forma que hoje entendem como saudável. As renovações dos integrantes são frequentes. Ao conversar com integrantes e exintegrantes, o que chama mais a atenção é a importância do tempo. A dedicação aos grupos toma tempo. Quando se entra criança, a rotina é instituída e as amizades podem segurar os adolescentes com o correr dos anos. Namoros são iniciados e até casamentos. Muitos saem na época da faculdade, de uma pós-graduação ou até com a rotina de casamento e filhos. Outros voltam. Se os filhos gostarem, a volta é garantida. As divergências entre componentes e o tempo reservado aos ensaios e apresentações são os principais motivos de saídas ou troca de grupos. As divergências acontecem naturalmente pelo desgaste nas relações de muitos anos e por motivos de estudo e formação de família, por exemplo. O Grupo Folclórico Raízes de Portugal foi formado em 1998 por Alexandre da Cunha Lima, conhecido como Xuxão, sua irmã, Cristiane e seu, na época, marido, André Luiz Guedes Santos. No esteio da fundação estavam os pais de Alexandre e Cristiane, Soledade da Cunha Lima e seu marido, Manuel Malheiro de Torres Lima, presidente do grupo. Dona Soledade, como é chamada ou dona Sol e seu marido Manuel são da região do Minho. Vizinhos em Portugal tornaram a se encontrar no Brasil, e aqui casaram. Dona Soledade chegou com a família ao Brasil em 18 de maio de 1960. Veio com a mãe e dois

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irmãos. O pai já estava em São Paulo há um ano e meio. Questionada da motivação do pai e consequentemente, da família sair de Portugal, a resposta foi que “era a época de Salazar”, sem maiores detalhes. “[...] todos viemos, em busca de um futuro melhor”.114 Um dos componentes atuais do grupo, Rodrigo Silva Moura, tem uma história familiar que não é explícita, mas está possivelmente relacionada com Salazar, quase um tabu em família. “[...] A única coisa que a gente sabe certo é que minha avó chegou com meu pai e com minha tia em um avião militar. Ninguém sabe por que e minha avó não fala.[...]115”. A família chegou por volta de 1970. É mais uma história de vizinhos que se encontraram no Brasil. As duas avós eram amigas em Portugal e se reencontraram aqui, novamente vizinhas. Mais uma história porque, com a rede de acolhimento, várias comunidades praticamente se reorganizaram no Brasil e em outras localidades. Sua entrada no Raízes foi para resgatar um passado. Sem trocadilhos, ele buscava suas raízes. Seu pai era da região de Póvoa de São Miguel, no Alentejo. Em uma busca na internet para descobrir alguma casa portuguesa que tivesse relação, a Associação dos Poveiros apareceu como busca correlata e ele decidiu conhecer. Mesmo sabendo que geograficamente são regiões distantes gostou do ambiente, da música, do convívio, do trabalho em grupo e decidiu participar. Atualmente, os estudos aos finais de semana “brigam” com os dias dedicados aos ensaios e apresentações. Depois de mais de dez anos, ele sente que sua participação pode estar chegando ao fim. Mas como os outros componentes considera um ótimo lugar para conviver com uma futura família. Da família de Dona Soledade, o primeiro da família a vir para o Brasil foi o avô. Veio sem pensar em voltar. Sua filha, mãe de dona Soledade praticamente só conheceu o pai em São Paulo. Ele enviou a carta de chamada116 para o genro e depois de um ano e meio, a família se reuniu. Questionada se sentiu alguma mágoa de seu avô por ter vindo e não ter intenção de voltar, ela brinca: “[...]ele teve até um carinho de chamar, né? Chamou meu pai, depois meu pai chamou minha mãe e a gente. Mas foi assim, que a gente chegou aqui ao Brasil.”117

114

Senhora Soledade da Cunha Lima. Entrevista concedida a Talita Carneiro de Matos. São Paulo, 07 de novembro de 2014 115 Rodrigo Silva Moura. Entrevista concedida a Talita Carneiro de Matos. São Paulo, 29 de novembro de 2015. 116 Documento que declarava uma garantia de auxílio ao imigrante que pretendesse se juntar à sua família já instalada no Brasil. http://museudaimigracao.org.br/acervodigital/cartas.php. Acesso em: 12/06/2015. 117 Senhora Soledade da Cunha Lima. Entrevista concedida a Talita Carneiro de Matos. São Paulo, 07 de novembro de 2014.

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Seu pai trabalhou de zelador durante um período e depois arrendou uma pensão para administrar com sua esposa. Viveram alguns anos na região central de São Paulo e lá reencontrou o vizinho e futuro marido. Frequentadores da Associação Portuguesa de Desportos, não participavam do universo do folclore português em São Paulo, mas ao interesse dos filhos, também adentraram a esse convívio. A “Portuguesa”, como o clube é conhecido, foi um dos grandes responsáveis por unir os portugueses e descendentes em torno de uma cultura que era deles, mas não exteriorizada, como os grupos de danças folclóricas. Questionada se vivenciou o folclore português, dona Soledade relata como era na época de sua mãe: [...] Olha, no tempo, a minha mãe, a juventude da minha mãe e do meu pai, sempre ela falava pra gente, a gente acompanhava. Porque elas iam pra lavoura e a minha mãe sempre falou que quando elas eram jovens, elas às vezes tinham... lá, o jovem não tinha muita diversão. Era ou música ou pra ir pra igreja. Então, às vezes ela falava que a turma de Barros, que eram como se fosse aqui um bairro, era o lugar de Barros. Então, as moças muito amigas. Era uma por todas e todas por uma. Então, quando às vezes falavam “iam pro terço” à tarde, assim, um domingo à tarde, uma falava assim: “olha, vai ter, não sei quem vai tocar concertina lá não sei aonde, num outro lugar lá. O terço já ficava pra trás. Já não ia mais pro terço. Elas iam lá pra dançar. Porque era o único, a única distração deles. Era o folclore. O folclore, não porque a gente, vamos dizer assim, só que era aquele folclore de campo. Não era nada de coreografia que nem a gente faz aqui. Era o folclore autêntico, natural. Mas era que ele, às vezes, iam fazer as desfolhadas e sempre terminava. Ou vindimas ou desfolhadas ou qualquer coisa. Onde tinha reunião de amigos, porque às vezes o pessoal trabalhava na lavoura e as desfolhadas eram feitas depois, a noite, por causa que não era tanto calor, então...118

E sobre sua participação, se essas festas também faziam parte de seu cotidiano: Não tinha, não. Porque eu era pequena. Não tinha assim... festas nossas eram as festas religiosas. Só. E folclore assim, aquele de... eu não me lembro de ter. De ver. A gente tinha as festas religiosas da nossa terra. Da Nossa Senhora da Boa Morte, da Nossa Senhora de Aparecida. Da Aparecida, não, é... Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Neves. Várias. Mas não tinha folclore. Tinham danças assim que todo mundo se reunia, tocava a concertina e ... Mas folclore, eu não lembro de ver. Ah, hoje não. Hoje já existe tudo isso.119

Essa manifestação popular era espontânea e hoje é institucionalizada. Seus dois filhos manifestaram o interesse de participar do grupo folclórico da Portuguesa e crianças tornaram-se componentes do grupo mirim em 1986. Por conseguinte, passaram também a fazer parte do grupo, na diretoria e no auxílio aos trajes. Isso é frequente nos pais de componentes de menos idade. Quando crianças ou os pais os levam para o grupo ou os pais entram como parte da tocata, do coro, diretoria ou ajudam informalmente enquanto

118

Senhora Soledade da Cunha Lima. Entrevista concedida a Talita Carneiro de Matos. São Paulo, 07 de novembro de 2014. 119 Idem.

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esperam os ensaios e apresentações. Alexandre, filho de Dona Soledade, também tocou concertina no grupo folclórico da Portuguesa.

Imagem 13 – Concertina portuguesa.

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Achamos importante inserir a imagem de uma concertina, que é uma representação do “folclore” português e parte essencial de uma tocata. Não como mera ilustração, mas para demonstrar sua importância da propagação da música correspondente.

Imagem 14 – Tocata do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo121 120

http://concertinaportuguesa.blogspot.com.br Acesso em: 09/05/2015. Concertina: é um instrumento musical não português, mas que dá o tom das músicas ditas folclóricas portuguesas e de outras localidades. Difere do Acordeão pelo tamanho, este é maior do que a Concertina e o teclado é de botões. É um instrumento praticamente obrigatório na tocata atualmente. Seu toque inicia a música. Antes era o som da viola o mais definido. Presente em vários países, não se sabe exatamente sua origem, mas seu som é ouvido em várias representações de músicas etnográficas na Europa. Nem o período é de conhecimento certo. Numerosas fontes relatam vários locais e datas. Alemanha e Grã-Bretanha aparecem como local e as datas variam entre o final e a metade do século XIX.

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Na imagem anterior vemos a tocata formada para um ensaio antes da apresentação no salão da Associação dos Poveiros de São Paulo. Há a presença da concertina e do acordeão, além do violão, flauta doce, bumbo e reco. Por divergências pessoais, em 1990, Alexandre e sua irmã, passaram a fazer parte de outro grupo, Grupo Folclórico Pedro Homem de Mello. Em 1997 o grupo se apresentou em Portugal e na volta houve um desmanche. Em 1998, Alexandre passou a integrar o Grupo Folclórico Minhoto. Nesse grupo percebeu que também podia atuar como ensaiador ao ensinar algumas coreografias que havia dançado em outros ranchos. Meses depois saiu do grupo. E com sua “bagagem” percebeu que podia formar um grupo próprio. Juntamente com o cunhado e outras pessoas que haviam passado por outros grupos e não estavam “na ativa”, assim, o Grupo Folclórico Raízes de Portugal começou a ser desenhado. No chamado “meio” do folclore na cidade de São Paulo, a notícia foi veiculada. Faltava um nome. Um dos componentes, Ildefonso Teixeira deu a sugestão: Raízes de Portugal. Com esse nome, sem especificação de local, o grupo podia dançar músicas de Norte a Sul de Portugal, intenção de todos os componentes iniciais. Se o grupo for federado, ele passa a apresentar músicas e coreografias de uma determinada região. É um limitador e também um diferencial. O Raízes dança, toca e canta Gotas, Viras, Chulas, Fandangos, Tiranas, Rusgas, Corridinhos. Há a gota de Viana, o fandango do Ribatejo e o Corridinho do Algarve. Os grupos brasileiros são convidados a se apresentar em Portugal. Iniciativa dos próprios grupos portugueses em convidá-los ou da Câmara da região. Uma iniciativa de divulgação da cultura portuguesa pelo mundo. E de demonstrar que a cultura popular continua “viva” nos países de acolhida. Os grupos daqui apresentam tanto o “folclore” português como músicas e danças brasileiras. Apresentação de samba costuma ser essencial. E para isso, músicos profissionais são contratados para darem suporte aos componentes. Além de ensaiarem as coreografias das danças portuguesas, também devem se preocupar em apresentar ritmos típicos brasileiros. As passagens são doadas ou custeadas pelos que convidam. A estadia também. Alguns grupos aproveitam para lucrar com a venda de CDs gravados por eles. Por vezes, são várias apresentações agendadas em dias sucessivos. E também há a troca. Os grupos portugueses também são convidados para se apresentarem no Brasil. O maior problema é a época do ano. Para os brasileiros, o verão em Portugal, que corresponde às férias escolares de julho no Brasil é uma oportunidade, mas não

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Acervo pessoal de Alexandre da Cunha Lima.

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são todos que têm a possibilidade de sair do país nesse período. E alguns grupos portugueses que podem dispor das semanas de recesso no começo do ano para vir ao Brasil encontra a maior parte dos grupos brasileiros em férias. Essa troca também é realizada pelos grupos de São Paulo e arredores e de outros estados. Quando convidados a se apresentarem em casas regionais, a contrapartida é quase certa. As junções nem tanto. O que leva o Raízes e os Poveiros a uma simbiose. Há a festa dos Poveiros e a festa do Raízes. Nas festas do Raízes, as músicas e os trajes são em sua maioria os de Viana. Há sempre um casal com os trajes dos Poveiros para demonstram sua junção e uma dança dessa região. Nas festas dos Poveiros é dada mais ênfase ao seu “folclore”. Não entraremos na questão do “folclore” poveiro. Mas as diferenças em relação a roupas e músicas são grandes. Os trajes são menos coloridos, tendo a predominância da cor de lã crua. E as músicas são mais lentas e menos compassadas. A menção quase onipresente do mar em suas letras e os movimentos de dança que lembram as ondas são característicos nas apresentações.

Imagens 15 e 16 – detalhes dos brasões utilizados pelo grupo Raízes de Portugal.122

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Imagens tiradas de uniformes usados pelos participantes do Grupo Folclórico Raízes de Portugal em seus anos iniciais. A imagem da esquerda é localizada na frente da camiseta, lado esquerdo do peito e a imagem da direita está localizada na manga esquerda. São uniformes diferentes. Fotografias do acervo pessoal da própria pesquisadora. Fotografia tirada no dia 01/06/2014. Normalmente, os integrantes dos grupos folclóricos têm um uniforme, geralmente esportivo, que os identificam em viagens e antes das apresentações em sua própria sede ou em outros grupos, antes de se trajarem a caráter.

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A imagem utilizada nos uniformes e na bandeira do grupo em seus primeiros anos, antes da junção com os Poveiros, é quase autoexplicativa para quem compreende o básico sobre Portugal. As cores verde e vermelha representam as cores da bandeira da República Portuguesa. O formato é o mesmo do escudo português que se encontra no interior da bandeira de Portugal. Há ainda torres de castelo que também remetem ao escudo e uma nau com a Cruz de Portugal, ou Cruz da Ordem de Cristo remetendo ao período das grandes navegações. Na imagem a direita não há o fundo verde e vermelho e é uma imagem bordada. Os agasalhos, de tactel, em princípio eram das cores azul e branca. Após a mudança e junção aos Poveiros, o uniforme passou a ser preto e branco com listras das cores da bandeira do Brasil nas mangas. A camiseta permaneceu branca com o símbolo do grupo, agora, com a inscrição Associação do Poveiros de São Paulo abaixo.

Imagem 17 - Logo do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo. Detalhe de uniforme do grupo mencionado.123

Na imagem acima vemos o bordado de um agasalho de tactel do Raízes com o acréscimo da Associação do Poveiros de São Paulo.

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Acervo pessoal da pesquisadora. Fotografia tirada em 01/06/2014.

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Imagem 18 – detalhe das costas de uma das várias versões de camisas utilizadas pelos componentes.124

Raízes de Portugal, época das grandes navegações, Brasil, migração. Esse paralelo pode ser feito por essa imagem que o grupo escolheu como símbolo. Os imigrantes que, em seus locais de acolhimento, trouxeram suas “raízes” e também fincaram suas raízes. A música portuguesa rural, o som da concertina e a necessidade de exteriorizar seus “costumes”, que muitas vezes não eram tão rotineiros assim, mas que deram a eles a união com seus conterrâneos e um modo de retornar ao seu país através da manifestação cultural própria. No caso do Raízes, de jovens que não vivenciaram essas manifestações, mas sentiam um pertencimento por conta da família e seus significados. Esse sentimento de pertencimento é permeado por sotaques, comidas, danças, cantos, utensílios, imagens, enfim, o que engloba as tradições. E também de portugueses que imigraram recentemente há no máximo 15, 20 anos. Recente para o período de imigração pesquisado e que ao contrário dos que veem o “folclore” como uma visão arcaica de Portugal levam os filhos para apreciar um lado de sua cultura. Como a participante Helena Fernandes, portuguesa, que levou a filha ao grupo para conhecer. Ao ajudar sua filha com a coreografia, “seu” Assis percebeu que ela seria um ótimo acréscimo ao grupo, pois tinha desenvoltura. Sentia-se envergonhada por pensar que seria “velha” demais para isso. Ao aceitar tornou-se o sorriso mais expressivo nas apresentações. De volta ao começo do Raízes, a partir de setembro de 1998 o grupo captou componentes, trajes, instrumentos e estreou quase um ano depois com quatro pares de 124

Acervo pessoal da pesquisadora. Fotografia tirada em 29/11/2015.

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dançarinos na Casa do Minho localizada no Brás. Atualmente a Casa do Minho está no bairro da Casa Verde, em São Paulo. Era um local utilizado para bailes e por questões estruturais, o grupo permaneceu pouco tempo no local. Como o nome já se refere, de origem portuguesa. O salão, no dizer do fundador do Raízes, adequado para a estreia do grupo. O Clube da Vila Maria, de tradição portuguesa, acolheu o grupo por mais dois anos. O salão de grandes dimensões com um palco para as apresentações do grupo foi a “casa” do Raízes. Onde o grupo se firmou e passou a lotar todo mês com suas festas. O clube está situado na Rua Profª. Maria José Barone Fernandes, nº 483. Vila Maria – São Paulo. Em 2016 acolheu outro rancho, Grupo Folclórico Pedro Homem de Mello. Ranchos que não têm uma sede própria podem passar períodos em locais que os acolham. É o caso do Grupo Folclórico Pedro Homem de Mello e também do Raízes de Portugal. No caso do Raízes, uma troca: uma associação sem rancho acolheu um rancho sem espaço físico para apresentações.

Imagem 19 – Brasão do Clube da Vila Maria.125

O brasão do Clube da Vila Maria também busca não deixar dúvidas sobre a origem de seus fundadores. É um bairro que conta com grande presença de portugueses e seus descendentes, assim com seu bairro vizinho, a Vila Guilherme. Entre as décadas de 1930 e 1970, a imigração portuguesa foi intensa nesses bairros. Marcolino Augusto Duque, imigrante português residente na Vila Maria afirma: “Falávamos que a capital de Portugal era a Vila Maria.”126 Nesse momento, minha história se cruza com a do Raízes. Foi nesse local que o conheci. Por minha vivência e memória posso afirmar que as festas eram um sucesso. Salão

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https://www.facebook.com/ClubeVilaMaria. Acesso em: 26/01/2016 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/vila_maria_vila_guilherme/historico/index.p hp?p=389. Acesso em: 26/01/2015. 126

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lotado, por vezes, a festa foi transmitida ao vivo pela Rádio Imprensa de São Paulo 127, no programa Navegar é Preciso, que dá destaque a comunidade lusa. Os jornais 128 da comunidade que circulavam e circulam atualmente davam destaque ao grupo de pouquíssimos anos de idade, sem o legado das casas tradicionais, mas que com apresentações cheias de vivacidade conquistou um público ávido por “sangue novo”. A estrutura do salão contribuía para a visibilidade do grupo. Era amplo, espaçoso, as mesas ficavam em espaços regulares e cômodos. A visibilidade era boa por conta do palco, também amplo, onde a tocata e os dançarinos permaneciam sem atropelos. Havia ainda um espaço entre o palco e as mesas usado pelos convidados para bailarem ao som da tocata entre o almoço e a apresentação do grupo e, normalmente, de outro grupo convidado. O clube também contava com uma cozinha que o grupo usava para o preparo dos almoços. Eram os próprios integrantes que os preparavam. O dinheiro de patrocínio e da venda dos ingressos para as apresentações era, em parte, usado para a compra dos ingredientes. Invariavelmente, bacalhau. Bacalhau à Raízes. Atualmente há um pessoal contratado que prepara o almoço nas festas do grupo.

Imagens 20 e 21 – Convites da festa de aniversário do Rancho Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo de 2015.129

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Rádio Imprensa FM 102,5 MHZ SP. Mundo Lusíada e Portugal em Foco. 129 Frente e verso de convite de uma das festas do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo. Acervo pessoal da pesquisadora. Foto tirada em 29/11/2015. 128

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Os convites costumam seguir um padrão. Percebe-se que o logo permanece sem a inscrição abaixo que menciona a Associação dos Poveiros, mas consta no nome do grupo. E no convite está escrito “rancho” e não grupo. Os patrocinadores têm local garantido nos convites. Nos convites também há uma numeração a ser destacada na entrada e que é utilizada para sorteios. Muitos dos brindes são doados pelos patrocinadores. Podem ser jantares ou até semijoias. As festas aconteciam uma vez por mês. Ainda acontecem, na sede dos Poveiros. Sempre aos domingos. No sábado à tarde, os integrantes se reuniam para o último ensaio e depois ficavam um pouco mais para adiantar o que fosse preciso e possível, pois o clube poderia usar o salão para outros eventos no próprio sábado. No domingo de manhã, os componentes chegavam para montar o salão, arrumar as mesas, lavar os pratos, copos e talheres e ajudar na cozinha. Os grupos de trabalho eram divididos sem critérios específicos. Cozinha, salão, estoque. O palco merecia um toque especial. Guaraná. O refrigerante era passado no chão com a ajuda de um pano em um rodo por vários integrantes até que não houvesse risco de um dançarino escorregar. Quedas eram normais em pisos encerados. Principalmente para as mulheres que dançavam de chinelas. Atualmente não há palco. O grupo se apresenta no meio do salão. O que compromete a visibilidade dos que acompanham a apresentação sentados. Os integrantes almoçavam antes de o salão abrir, e assim o fazem até hoje. Ao abrir das portas, o barulho dos comensais era apaziguador. Sinal de que a festa seria um sucesso. Os ingressos eram vendidos antes pelos próprios integrantes. Se sobrassem poderiam ser adquiridos na porta. Mesas eram adicionadas e todos bem acomodados. A mesa com as entradas montada próxima ao bar continha e ainda contém: bebidas (batidas de maracujá e limão), aperitivos (azeitonas, queijo branco, pães). Os aperitivos e o almoço estão inclusos no valor do convite. As bebidas são pagas. Água, refrigerantes, cervejas, sucos e vinhos. E também há a mesa de doces. São doces industrializados que podem ser conservados por mais tempo. São vendidos por unidade.

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Imagem 22 - Detalhe da mesa de doces na festa do Grupo Folclórico Raízes 130 de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo.

Na imagem acima podemos identificar da esquerda para a direita: Guardanapos de Malveira, Cornucópias, Fofo de Belas e Pastéis de Santa Clara. Outros doces são os Pastéis de Nata, Travesseiros de Sintra, Queijadas Portuguesas, Cavacas e outros.

Imagem 23 - Artigos temáticos vendidos nas festas do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo 131

Nesta imagem vemos outros artigos à venda. Panos de prato, toalhas e cachecóis com símbolos que remetem a Portugal. 130 131

Acervo Pessoal da pesquisadora. Foto tirada em 29/11/2015. Idem.

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O ambiente da casa, ensaios e apresentações que funcionam como gatilhos de memória para componentes e frequentadores. “[...] O cheiro, o jeito de falar [...] tudo lembra. [...] Lembra a cozinha da minha avó. [...] É o Portugal perfeito que se vive aqui dentro.”132 Os componentes devem levar com garra o nome do grupo nas apresentações. Trajados corretamente com trajes que são importados. Pode-se encomendar e a entrega é feita pelo correio ou o mais assegurado, alguém se encarrega de trazer quando for visitar Portugal. Os trajes femininos são pesados e trazer um desses na mala é “prova” de amizade. Cada grupo deve ter um número mínimo de trajes femininos para apresentações. Como a maioria das danças são aos pares formando um quadrado, deve haver trajes para pelo menos duas dançarinas, mais os trajes das que portam as bandeiras do Brasil, de Portugal e do grupo e os trajes das cantadeiras. Como já demonstrado na imagem 04, capítulo I, o traje de luxo de Viana é um dos mais pesados para a dança. Os mais comuns são os trajes de lavradeira para as mulheres. Para o homem, não há tanta variação.

Imagem 24 – Exemplares de trajes masculino e feminino mais comuns no grupo Raízes de Portugal133. 132

Rodrigo Silva Moura. Em São Paulo, 29 de novembro de 2015. Entrevista concedida a Talita Carneiro de Matos. 133 Dupla de componentes que representaram o Grupo Folclórico Raízes de Portugal. Acervo pessoal da pesquisadora. Sem data.

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3.2 Os Trajes típicos

Aqui abrimos um parêntese para os trajes, peças essenciais de um grupo. Os trajes usados pelos componentes no Brasil são feitos em Portugal. Desde as camisas até os lenços. São utilizados materiais que não são encontrados no Brasil. De acordo com um dos fundadores do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo, Alexandre da Cunha Lima, até o linho utilizado na fabricação das camisas dos trajes folclóricos são diferentes do utilizado na indústria têxtil comum. Há fazendas específicas para os trajes etnográficos. Os aventais das mulheres são feitos em teares manuais. Não há no Brasil teares para esse trabalho. Os bordados das camisas masculinas podem ser feitos por máquinas de bordar. As saias são de lã e as camisas de linho. Os trajes são os principais itens dos ranchos. Algumas componentes fazem questão de ter o seu, apesar de caros. Um traje de Viana mais simples pode custar 300 (trezentos) euros. Os trajes são representações das roupas utilizadas pelos portugueses para o trabalho, festas e passeios. Acompanham cada região. Quanto mais rica, a roupa é mais elaborada. No caso das mulheres, isso representa maior quantidade de ouro na roupa, principalmente com a influência dos carregamentos de ouro vindos do Brasil a partir do século XVIII, representado por colares e brincos maiores. O ouro também pode ser considerado uma poupança, a ser negociado em tempos mais difíceis. Os brincos são à moda da aristocracia, os chamados brincos à rainha, comuns no reinado de Maria I. O uso do ouro perdura em todas as classes sociais e até no ambiente de trabalho rural. Todas as componentes devem ter o seu próprio par de brincos e suas correntes e pingentes. Os brincos são portugueses. As correntes e pingentes são facilmente achados em comércios especializados. São adaptáveis.

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Imagem 25 – Brincos à rainha134

No caso dos homens, o traje não varia tanto. Normalmente, calças pretas, camisa branca bordada, faixa de lã vermelha na cintura, sapatos e chapéu pretos. Há também uma casaca preta que pode ser utilizada. Normalmente, as camisas são emprestadas, juntamente com a faixa e a casaca. Calça, sapatos e chapéus podem ser encontrados facilmente. Esses trajes não são mais utilizados, mas os femininos podem ainda ser encontrados como peças de grande valor ou fazendo parte dos enxovais das noivas. Os trajes mais simples, considerados de trabalho, ainda podem ser observados vestidos pelas mulheres mais idosas nas aldeias mais distantes. Raramente aparece alguma noiva de Viana que adota o tradicional traje preto, pesado e de custo elevadíssimo. As tecedeiras rareiam com o tempo e o preço acompanha a raridade do trabalho. Os trajes regionais são diferenciados por momentos. Os principais são: o cotidiano e as ocasiões especiais, as festas, nesse caso, associadas ao calendário litúrgico. E nas festas era o momento de mostrar toda sua riqueza, nas roupas e no ouro em abundância. O que invariavelmente não muda é a saia rodada com um avental por cima. A camisa de linho branco e um colete para as mulheres. A algibeira na cintura e o lenço na cabeça e nos ombros. As cores e padrões mudam conforme a freguesia. Os bordados e as riscas demonstram a riqueza no traje feminino. As mulheres alentejanas, com seus trajes mais modestos, saia e blusa, tem no algodão um tecido que veio com a Revolução Industrial. As cores mudam conforme a região. Nas regiões altas prevalece o monocromático. A vida mais dura do interior é representada pela austeridade das roupas. Descendo às planícies,

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http://www.museudaourivesaria.com/pecas_brincos_rainha.htm. Acesso em: 14/06/2015.

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as cores aparecem. Quando se chega ao litoral, elas explodem. Dito isso das roupas femininas. As vestes das mulheres litorâneas são as mais coloridas. As dos homens, mesmo com as calças escuras ou o monocromático da roupa masculina de Póvoa de Varzim, a cor aparece nos sinais que mostram as siglas da família do pescador na camisa. Mas o traje feminino mais vistoso segue sendo o do noroeste, os trajes de Viana do Castelo com suas representações barrocas no ouro utilizado em abundância. As ilhas são diferenciadas também pelas cores. A Madeira, colorida. Os Açores, monocromático. As formas geométricas têm influência muçulmana. O preto, depois o azul escuro está ligado ao luxo proveniente da aristocracia. A padronização dos trajes regionais começa no século XIX.135 A divisão geográfica acima citada, entre a orla marítima e a zona montanhosa, traduz-se também na forma do uso do lenço da mulher. No eixo interior Norte e Centro, a testa é tapada, o que significa a diminuição do papel da mulher nas decisões da comunidade transmontana e beiroa. No Sul e em todo o litoral, o lenço, embora atado de formas variadas, liberta a testa, sinalizando um papel mais activo da mulher e a aceitação do seu modo de ser, pensar e sentir. No Minho, depois de uma volta na nuca, o lenço é atado no alto da cabeça, coroando o topo, à guisa de figura real; isto é, indica uma afirmação e desenvoltura rara e única em território nacional, pois aqui prevalece o feminino sobre o masculino. 136

Os homens vestem usualmente uma camisa branca de linho com bordados na parte de cima. Dois corações são os bordados mais comuns encontrados. Mensagens também podem ser bordadas ou o nome da família. Os corações simbolizam o afeto por sua escolhida. Os trajes dos homens conservam as formas mais arcaicas da indumentária lusa. A algibeira, adereço da mulher lembra a forma estilizada da própria mulher com suas curvas e contracurvas. Corações bordados e a palavra amor são comuns. A alusão ao amor se repete nos pingentes dos colares: corações e borboletas, que nada mais são do que corações ao contrário. Mas o coração também tem significado religioso. O Sagrado Coração de Jesus. As mulheres usam uma saia branca por baixo de todo traje. Seja para proteger de olhares indiscretos seja para dar mais amplitude à saia. Para dançar, além da “ceroula”, uma espécie de bermuda que vai até o meio da coxa, há uma saia mais estreita chamada “travadinha” para segurar o movimento das pernas impedindo que se abra demais. Dependendo do traje, as mulheres usam meias de tricô ou as “peúgas”, parecidas com polainas. Dizem que as peúgas são meias que se esgarçaram na lida e sobraram apenas os punhos. Nos pés, socos, chinelas bordadas ou lisas.

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TEIXEIRA, M. B. O traje regional português e o folclore. VII. p. 374. Disponível em: http://docplayer.com.br/4260563-O-traje-regional-portugues-e-o-folclore-madalena-braz-teixeira-vii.html Acesso em: 136 Ibidem. p. 376.

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Imagem 26 – Trajes de Póvoa do Varzim137

A imagem acima representa Póvoa de Varzim. Um traje masculino e outro feminino. O traje feminino conta com saia rodada e avental. Camisa de linho branco e colete. Lenço estampado na cabeça e nos ombros. A algibeira fica presa em um cordão na altura dos quadris. O traje do homem tem sinais gráficos na camisa de lã. São desenhos referentes ao mar: âncoras, peixes, barcos, remos variando de família para família. Nas danças, os pares dançam descalços.

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TEIXEIRA, M. B. O traje regional português e o folclore VII. Disponível em: http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Percursos_Intercultura/1_PI_Cap7.pdf. Acesso em: 02/06/2013.

90

Imagem 27 – Traje poveiro masculino138

A imagem acima é de um traje de propriedade do Raízes e tem como detalhe a chinela masculina. Ela não é usada para a dança, mas para a entrada no local de apresentação. Todos os trajes são de propriedade do grupo. Os componentes levam somente as camisas usadas para lavar e entregar nos próximos ensaios. Antigamente, as mulheres compravam os seus, pois não havia em número suficiente. E os empréstimos eram raros, pois os trajes eram e são ainda caros e delicados. Há inúmeros trajes e suas peculiaridades. Há obras apenas versando sobre isso. Suas origens não são expressamente definidas, mas há imagens de meados do século XIX que não demonstram se era um traje normalmente utilizado ou apenas para grandes ocasiões, como o que vemos a seguir.

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Traje poveiro de propriedade do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo. Acervo pessoal da pesquisadora. Fotografia tirada em 22/11/2014.

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Imagem 28 – Traje minhoto139

A imagem retirada de um site pertence ao Centro Português de Fotografia, possivelmente foi tirada entre 1870 e 1880. Veem-se os mesmos elementos que ainda são utilizados nos trajes dos grupos contemporâneos. Percebe-se que é uma imagem posada. Então, não há como ter a certeza de que a “rapariga” usava esse traje cotidianamente ou o foi somente para a ocasião da foto.

139

http://bloguedominho.blogs.sapo.pt/tag/traje. Acesso em: 24/06/2013.

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Imagem 29 – Grupo Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo em uma de suas apresentações.140

Por essa imagem vemos o desenho que as saias formam ao girar das componentes. Para isso, a metragem da saia deve ser específica. São tantas especificidades que não há espaço suficiente nesta dissertação para todos os detalhes que os envolvem. Atualmente, o Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo é um dos muitos ranchos que representam essa manifestação de cultura popular portuguesa que, inventada ou reinventada faz parte do imaginário português, brasileiro e de qualquer país onde tenha se fixado. Por trás do convívio, da busca ou manutenção de raízes os grupos que se autodenominam representantes do “folclore” têm várias histórias de imigrantes que por diversos motivos vieram parar no Brasil e se reuniram nesses grupos e são consequência da história de Portugal e suas migrações. Nas palavras de “seu” Assis, “[...] o Raízes de Portugal não é só raízes. É caule, é tronco, é flores e frutos!”141 Terminaremos como começamos. Abaixo, uma das músicas de difícil coreografia, ritmada e com letra que talvez dê início a outro estudo: “Gota de Meadela”:

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Acervo pessoal de Alexandre da Cunha Lima. Senhor Francisco de Assis Ferreira. Entrevista concedida a Talita Carneiro de Matos. São Paulo, 29 de novembro de 2015. 141

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Gota da Meadela142 Se quereis que eu cante a gota Ai dai-me vinho ou dinheiro Que esta minha gargantinha Ai não é fole de ferreiro A gota da meadela Ai é diferente doutras mais As nossas danças tão lindas Ai encanto não têm iguais Adeus ó terra de encanto Ai ó meadela querida Pelos teus caminhos passeiam Ai enlevos da minha vida Minha terra é minha terra Ai minha terra é meadela Não há no minho tão lindo Ai assim aldeia tão bela Ó torrão abençoado Ai aldeia formosa e bela Foi num momento inspirado Ai que Deus fez a meadela O rio Lima em Viana Ai sai da igreja a braço dado A meadela é a cauda Ai do vestido de noivado Ó Viana do Castelo Ai só tu me deixas paixão Onde tenho e não nego Ai raízes do coração

142

Gota de Meadela. Letra retirada do site: http://www.ge7castelos.net/letras.html. Acesso em: 13/04/2014.

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CONCLUSÃO

O folclore português, agora, ousadamente escrito sem aspas. Essa manifestação cultural popular portuguesa inventada e reinventada como reiteradamente mencionado neste estudo, é fruto de vários imbricamentos. De um Portugal rural e estacionário que esteve muito tempo associado às virtudes de seu passado. De um Portugal inventado como ideal ao gosto de seus comandantes. De um Portugal saudoso por parte de seus imigrantes que se espalharam pelo mundo a partir de meados da segunda metade do século XX por várias razões. A memória como um ser invasivo que se faz presente e sincero e que ao mesmo tempo pode escapar das pontas dos dedos e colocar o seu interlocutor como vítima de joguetes de suas falhas. Experiências não vividas, mas prontamente consideradas como fiéis representações de tempos idos. Experiências vividas na atualidade, apaziguadoras de uma saudade que se faz presente, até em quem não vivenciou o representado, mas que encontra lugar na acolhida das casas portuguesas. Todos esses critérios foram importantes para que essa pesquisa pudesse ser realizada com propriedade. O começo e o fim em Viana do Castelo, região considerada berço do folclore português, berço dos fundadores do Grupo Folclórico Raízes de Portugal da Associação dos Poveiros de São Paulo. Talvez tenha faltado uma maior explanação sobre Póvoa de Varzim e sobre essa associação, mas o intuito foi dar ênfase ao “Raízes”. Grupo que se expôs ao universo do folclore com orgulho de gente grande, que começou sem ser associado a uma casa e um ritmo específico, mas que conquistou seu espaço com vontade e talento. A Associação dos Poveiros ficará para outra pesquisa. Esse é o intuito. Território e cultura indissociáveis. Transformar onde se esteja em sua terra. Próprio não só dos imigrantes portugueses, mas de outras nacionalidades. Talvez o acolhimento em um Brasil que foi colônia e tem a presença de portugueses mais naturalmente aceita como parte do cotidiano e não como imigrantes recentes possa ser mais utilizada como explicação para o ingresso de componentes que não são descendentes de portugueses. O som de uma desgarrada parecido com um repente nordestino, o som da concertina parecido com o arcodeão e o imaginário de um vira que é motivo de brincadeiras em passos inventados. Mas é a questão do sentimento de família e acolhimento. O pertencimento. Esse sentimento foi o mais percebido nas leituras e conversas. O pertencer a algo que tem sentido. Seja por família, amigos. Um passado que não foi vivido, mas está presente em alguma reminiscência, um buscar de raízes.

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A música e comida como gatilhos emocionais. O cheiro, o ouvir, o dançar, o cantar, o fazer parte. As indumentárias que se transformam de região para região, mas quando se fala em folclore português é o traje de Viana que se materializa. Cada uma com sua característica específica, como a de Coimbra. Não rural, mas universitária. E a imigração. Forçada, necessária, aventureira. O período estudado tem uma questão política muito forte. O governo de Salazar e suas consequências foi um incentivo para o movimento migratório português. Motivo que quando e se alegado é motivo de reticências e olhares evasivos pelos que ainda vivem e alegações sem aprofundamento dos que saíram crianças ou dos que já nasceram em terras de acolhida. E nessas terras criaram as casas portuguesas. Onde um alentejano se sente representado ao ouvir uma Gota de Viana, simplesmente pelo toque da concertina. Um madeirense que dança um vira com a mesma alegria de um “Bailinho da Madeira”. O sentimento de estar representado no todo e não apenas em parte. É a saudade que une o português pela palavra em si e pelo sentimento de voltar, mesmo que por um determinado momento ao seu lugar. Mesmo que esse português nunca tenha dançado e cantado após uma colheita. São várias questões que permearam esta dissertação para dar corpo ao tema das representações do folclore português. Até o inconformismo de portugueses que não aceitam o folclore como representação de sua identidade e não compreendem todos esses meandros que fazem a permanência de casas portuguesas em vários lugares. A participação de alguns componentes em suas narrativas orais para engrandecer essa dissertação e explanar os motivos do interesse em compor um grupo folclórico e suas razões em permanecer ou sair foram essenciais. A certeza é que foram poucas, mas suficientes para esse projeto ainda em processo. Pois esse estudo é sucinto para tão vasto assunto. E a vontade de extrapolar o tema em assuntos diversos relacionados foi um obstáculo, talvez não transposto. O folclore português na sua cristalização. Concordar, discordar, tergiversar, concluir em aberto. Ele é vivo. Vivo em cada associação que continua seu trajeto. Em cada componente incluído, em cada apresentação. Em cada música e coreografia. O ser incluído. O permanecer, o sair, o voltar. De um grupo, de uma sociedade, de um país. A vida dos componentes e dos que participam como convidados é alterada para dar lugar a outro espaço-tempo. Um lugar que remete a um passado fabricado, mas que é verdadeiro

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para quem participa e o voltar a um tempo mais idílico e que remete a emoções de família, de lembranças, de sabores, de sons. Por fim, o folclore como representação de um ideal, que ainda atrai pessoas interessadas em apreciar uma tocata e um almoço português, e se perdem nesse pedaço de Portugal que acolhe a todos sem demonstrar todas as idiossincrasias que levaram a sua criação, invenção e reinvenção. Vivo, em cada festa e casa portuguesa.

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