Steiner, Rudolf

  • November 2019
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  • Words: 35,696
  • Pages: 50
rudolf steiner

o método cognitivo de gÖethe linhas básicas para uma gnosiologia da cosmovisão goethiana

2ª edição retraduzida e atualizada

tradução. bruno callegaro jacira cardoso

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sobre a publicação da obra de rudolf steiner os fundamentos da ciência espiritual antroposófica encontram-se nas obras escritas e publicadas por rudolf steiner (1861— 1925). além disso, existem reproduções das numerosas conferências proferidas e cursos ministrados por ele entre os anos de 1900 e 1924, tanto ao público em geral quanto aos membros da sociedade teosófica e, subseqüentemente, da sociedade antroposófica. a princípio, ele mesmo não desejava que suas conferências, proferidas livremente, fossem registradas por escrito, visto que as considerava “comunicações verbais, não destinadas à impressão”. com o aumento da distribuição de anotações de ouvintes, às vezes incompletas e incorretas, ele decidiu regulamentar a reprodução escrita. essa tarefa foi confiada a marie steinervon sivers, a quem passou a incumbir a designação dos estenógrafos, a administração das anotações e a necessária revisão dos textos a serem publicados. como, por escassez de tempo, apenas em muito poucos casos rudolf steiner pôde corrigir pessoalmente as anotações, suas ressalvas em relação a todas as publicações de conferências devem ser consideradas: “É preciso admitir que em edições não corrigidas por mim possam encontrar-se erros.” após a morte de marie steiner (1867—1948), foi iniciada, de acordo com as diretrizes deixadas por ela, a publicação de uma edição completa (gesamtausgabe) da obra de rudolf steiner, cujos volumes foram numerados sob a sigla ga. o trabalho de seleção, revisão e notas é realizado pelo rudolf steiner archiv, pertencente à instituição administradora do espólio literário do autor — a rudolf steiner nachlassverwaltung, também proprietária da editora (rudolf steiner verlag) que procede às publicações. a atividade do rudolf steiner archiv — que não recebe qualquer incentivo estatal ou de outra natureza — depende inteiramente de doações financeiras e, mais recentemente, dos direitos autorais das obras traduzidas. mais informações: rudolf steiner archiv postfach 135— ch 4143 dornach, suíça ww w.rudolf-steiner.com

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sumário nota à segunda edição brasileira prefácio à segunda edição [do original] prefácio à primeira edição [do original]

4 4 7

a. questões preliminares 1. ponto de partida 2. a ciência de göethe segundo o método de schiller 3. a tarefa da nossa ciência

8 11 12

b. a experiência 4. definição do conceito de experiência 5. indicação sobre o conteúdo da experiência 6. retificação de uma concepção errônea da experiência total 7. apelo à experiência de cada leitor

12 14 16 17

c. o pensar 8. o pensar como experiência superior na experiência 9. o pensar e a consciência 10. a natureza íntima do pensar

19 21 22

d. a ciência 11. 12. 13. 14.

o pensar e a percepção intelecto e razão o processo cognitivo o fundamento das coisas e a cognição

25 27 30 32

e. a cognição da natureza 15. a natureza inorgânica 16. a natureza orgânica

33 37

f. as ciências humanas 17. 18. 19. 20.

introdução: espírito e natureza a cognição na psicologia a liberdade humana otimismo e pessimismo

44 45 47 49

g. conclusão 21. cognição e criação artística

49

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nota à segunda edição brasileira ao escrever a presente obra, em 1886, rudolf steiner era um jovem com pouco mais de 25 anos. apesar disso, no prefácio àsegunda edição, escrito em 1923, ele próprio declara não ter sido necessário — após decorridos quase quarenta anos — alterar nada de essencial no conteúdo. com exceção do acréscimo de algumas notas, até mesmo o estilo — típico do final do século xix — foi mantido inalterado. para o próprio autor, a argumentação elaborada aqui é uma manifestação germinal da cosmovisão que, ulteriormente, ele iria postular sob o nome de antroposofia. a fundamentação no método cognitivo de göethe, com o qual ele se familiarizara ao editar os escritos científicos do grande poeta, foi o ponto de partida para sua nova teoria do conhecimento, contestando o pensamento nitidamente kantiano de então. dando continuidade ao ponto em que göethe parara, steiner demonstrou não existir limite para o conhecimento humano, já que a capacidade pensante não ‘produz’ pensamentos, sendo na verdade uma ‘captadora’ dos pensamentos cósmicos existentes no mundo e no universo. sendo assim, cabe ao homem torná-la plenamente ativa e disciplinada para, com objetividade, captar a essência das coisas e dos seres que o circundam até o infinito. materialidade e imaterialidade ganham, aqui, limites totalmente transponíveis pelo pensar humano, numa demonstração do pleno acesso deste ao chamado ‘mundo das idéias’ e conseqüentemente, aos bastidores metafísicos do universo visível. a importância deste livro para a compreensão gnosiológica da própria antroposofia levou-nos a disponibilizá-lo novamente para o público interessado. nesta segunda edição brasileira, após dezoito anos da primeira edição, procuramos pautar o texto pela última versão do original, incluindo também notas explicativas e bibliográficas do autor e do editor, além de um índice onomástico no final do livro. que a ampliação e o aprofundamento no tema do processo cognitivo possam contribuir para a compreensão da própria vida. a editora

prefácio à segunda edição [do original] escrevi esta gnosiologia da cosmovisão goethiana na metade dos anos 1880. naquela época, preenchiam minha alma duas espécies de atividade pensante. uma delas estava voltada para o processo criativo de göethe, empenhando-se em aperfeiçoar a visão do mundo e da vida que se manifesta como força impulsora nessa criação. o elemento pura e completamente humano pareciame atuar em tudo o que göethe dera ao mundo de maneira criativa, contemplativa e vivaz. em nenhuma parte, na época mais moderna, eu encontrava representadas a segurança interna, a coerência harmônica e o sentido de realidade em relação ao mundo como em göethe. desses pensamentos deveria brotar o reconhecimento de que a maneira como göethe se comporta no processo cognitivo também provém da essência do ser humano e do mundo. por outro lado, meus pensamentos imergiam nas teorias filosóficas, existentes na época, sobre a essência do conhecimento. nessas teorias, a cognição ameaçava enclausurar-se na própria natureza do ser humano. otto liebmann, o engenhoso filósofo, havia declarado que a consciência do ser humano não écapaz de ultrapassar a si mesma deve permanecer em si; sobre o que existe como realidade verdadeira além do mundo modelado por ela em si própria, ela nada pode saber. em textos brilhantes, otto liebmann aplicou esses pensamentos aos mais diversos campos do mundo experiencial humano.1 johannes volkelt havia escrito seus livros repletos de pensamentos sobre ‘a teoria do conhecimento de kant’ fkants erkenntnistheorie] e sobre ‘a experiência e o pensar’ ferfahrung und denkenl. no mundo dado ao ser humano, ele via apenas um complexo de representações mentais que se formam na relação do homem com um mundo em si desconhecido.

1

otto liebrnann (1840—19 12), zur analysis der wirklichkeit (4. ed. strassburg 1911), p. 28. vide tb. gedanken and tatsachen (strassburg, 1882—89); e klimax der theorien (strassburg, 1884). sobre liebmann e volkelt, vide o capítulo ‘nachklãnge der kantischen vortellungsart’, in rudolf steiner, die rátsel der pliilosophie (1914), ga-nr. 18 (dornach: rudolfsteinerverlag, 1968). (n.e. 6rig.)

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certamente ele admitia que na vivência do pensar se mostra uma necessidade quando este intervém no mundo das representações mentais, sentindo-se, de certa maneira, um a espécie de propulsão através do mundo dessas representações em direção à realidade quando o pensar se ativa. mas o que se havia conseguido com isso? poder-se-ia sentir o direito de pronunciar, em pensamento, juízos que dizem algo sobre o mundo real; porém com tais juízos se permanece totalmente no íntimo do ser humano — nada da essência do mundo penetra neles. eduard von hartmann, cuja filosofia me foi de grande valia sem que eu pudesse reconhecer seus fundamentos e resultados, situava-se, nas questões de teoria do conhecimento, exatamente no mesmo ponto que volkelt apresentou depois em detalhes. por toda parte existia a confissão de que o ser humano, com sua cognição, depara com certos limites além dos quais não é capaz de penetrar no campo da verdadeira realidade. contra tudo isso havia para mim o fato vivenciado interiormente e, nessa vivência, conhecido, de que o ser humano, quando aprofunda suficientemente seu pensar, vive com ele dentro da realidade do mundo como numa realidade espiritual. eu supunha possuir esse conhecimento como algo que pode estar na consciência com a mesma clareza interna do que se manifesta no conhecimento matemático. perante esse conhecimento não pode existir a opinião de que existam tais limites cognitivos, como a caracterizada linha de pensamento acreditava dever estabelecer. com tudo isso se introduzia dentro de mim uma tendência pensamental para a teoria da evolução, florescente naquela época. em haeckel ela havia assumido formas em que o existir e o atuar autônomos do elemento espiritual não podiam encontrar consideração alguma. no curso do tempo, o posterior, perfeito, devia derivar do anterior, não-desenvolvido. isso me era claro com relação à realidade sensorial exterior. ora, eu conhecia muito bem a espiritualidade independente dos sentidos, em si sólida e autônoma, para dar razão ao mundo sensorial dos fenômenos exteriores; mas era preciso lançar uma ponte deste mundo para o mundo do espírito. no curso temporal considerado sensorialmente, o espiritual humano parece desenvolver-se do não-espiritual pré-existente. porém o mundo sensorial, quando corretamente conhecido, mostra por toda parte ser a manifestação do espiritual. perante este correto conhecimento do sensorial, ficava-me claro que só pode admitir ‘limites ao conhecimento’, conforme foram estabelecidos naquela época, quem se depara com esse elemento sensorial e o trata da mesma forma como alguém trataria uma página impressa caso apenas dirigisse o olhar para as formas das letras e, sem qualquer noção da leitura, dissesse que não se pode saber o que está por detrás dessas formas. assim meu olhar foi conduzido, no caminho da observação sensorial, ao espiritual consolidado em minha vivência cognitiva interior. por detrás dos fenômenos sensoriais eu não procurava mundos atomísticos não-espirituais, e sim o espiritual que aparentemente se revela no interior do ser humano mas que, em realidade, pertence aos próprios objetos e processos sensoriaís. pelo comportamento do homem cognoscente, surge a ilusão de que os pensamentos das coisas estão no homem, enquanto na realidade eles existem nas coisas. o homem tem necessidade, numa vivência ilusória, de separá-los das coisas; na verdadeira vivência cognitiva, ele os devolve novamente às coisas. portanto, a evolução do mundo deve ser compreendida de modo que o não-espiritual precedente, do qual mais tarde se desenvolve a espiritualidade do ser humano, tem algo espiritual ao lado e fora de si. o posterior estado sensorial espiritualizado em que o homem se apresenta surge pelo fato de o ancestral espiritual do homem se unir às formas não-espirituais imperfeitas e, metamorfoseando-as, surgir em forma sensorial. esta seqüência de idéias me levou para além dos gnosiólogos de então, cuja sagacidade e sentimento de responsabilidade científica eu reconhecia plenamente. ele me levou a göethe. hoje devo voltar a pensar em minha luta interior de então. não me foi fácil ultrapassar as linhas de pensamento dos filósofos da época; porém minha estrela-guia sempre foi o reconhecimento, totalmente espontâneo, do fato de o homem poder contemplar-se interiormente como espírito independente do corpo, situado num mundo puramente espiritual. antes de meus trabalhos sobre os escritos científicos de göethe, e antes desta gnosiologia, eu escrevi um pequeno ensaio sobre o atomismo, o qual nunca foi publicado. ele seguia a mencionada direção. não posso deixar de lembrar a alegria que tive quando friedrich theodor vischer, a quem eu enviara o ensaio, me escreveu algumas palavras de aquiescência.2 2 o manuscrito desse ensaio, tido durante muito tempo como perdido, foi encontrado ao se reorganizar o legado de friedrich theodor vischer doado à biblioteca da universidade de tübingen, tendo sido publicado por c. 8. picht em 1939 no semanário

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ora, em meus estudos de göethe me ficou claro como meus pensamentos conduzem a uma visão da essência do conhecimento manifesta por toda parte na criação de göethe e em sua postura relativa ao mundo. descobri que meus pontos de vista redundaram numa teoria do conhecimento que é a da cosmovisão goethiana. na década de 1880, fui recomendado por karl julius schröer 3 — meu professor e amigo paternal, a quem sou muito grato — para escrever as introduções aos escritos científicos de göethe para a national-literatur [bibliografia nacional] de kürschner, e também cuidar da edição desses escritos.4 durante esse trabalho, eu acompanhei a vida cognitiva de göethe em todos os campos em que ele atuou. para mim ficou cada vez mais claro, nos menores detalhes, que meu próprio modo de ver me encaminhava para uma gnosiologia da cosmovisão goethiana. e assim eu escrevi esta gnosiologia durante os referidos trabalhos. defrontando-a hoje novamente, vejo-a também como o fundamento gnosiológico e a justificação de tudo o que eu disse e publiquei posteriormente. ela fala de uma essência cognitiva, que abre o caminho do mundo sensorial para o espiritual. poderia parecer estranho que este escrito da juventude, já tendo quase completado quarenta anos, seja reeditado hoje sem alterações, apenas ampliado por algumas notas. em seu estilo ele traz a marca característica de um modo de pensar típico da filosofia de quarenta anos atrás. se eu o escrevesse hoje, diria muitas coisas de outra maneira; contudo, não poderia declarar nada diferente quanto à essência do conhecimento. além disso, o que eu escrevesse hoje não poderia conter tão fielmente os germes da cosmovísão espiritual representada por mim. só se pode escrever dessa maneira germinal no início de uma vida cognitiva. talvez por isso este escrito da juventude possa reaparecer justamente de forma inalterada. as teorias do conhecimento existentes na época de sua redação tiveram seguimento em teorias posteriores. o que tenho a dizer sobre esse tema está dito em meu livro die rätsel der philosophie [os enigmas da filosofia]. ele está sendo publicado simultaneamente, em nova edição, pela mesma editora. o que, tempos atrás, eu esbocei neste livrinho como gnosiologia da cosmovisão goethiana me parece hoje tao necessário ser dito quanto há quarenta anos. göetheanum, dornach, perto de basiléia novembro de 1923 rudolf steiner

prefácio à primeira edição [do original] quando, por intermédio do professor kürschner, foi-me atribuído o honroso encargo de cuidar das goethanun, ano 18, nºs 22 e 23. aos 21 anos, rudolf steiner havia enviado a vischer o ensaio com o título ‘Única possível crítica do conceito atomístico’, acompanhado de uma carta. publicacões mais recentes do ensaio e dessa carta ocorreram em beitrãge zur rudolf steiner gesamtausgabe, nº 63 (dornach, época de michael, 1978). (n.e. orig.) 3 vide rudolf steíner, mein lebensgang (1923—25), ga-nr. 28 (1962), cap. vi, p. 110 ss. (n.e. orig.) 4 os escritos científicos de göethe [goethes naturwissenshiaftlichec schriften], editados e comentados por rudolf steiner, com um prefácio do prof. k. j. schrõer, na deutsche national-literatur [bibliografia nacional alemã], foram publicados em cinco volumes. vol. 1: bildung and umbildung organischer naturen. zur morphologie (1883); vol. ii: zur naturwissenchaft im allgemeinen. mineralogie und geologie. meteorologie (1887); vol. iii: beitiräge zur optik. zur farbenlehre. enthüllung der thecorie newtons (1890); vol. iv: zur e’ctrbenlehre farbenlehre. materialien zur geschichte der farbenlehre (1897); vol. v: matterialien zur geschichte der farbenlehre (schluss). entoptische fatrbcn. paralipomena zur chromattik. sprüche in prosa. nachträge (1897). uma reprodução fac-símile foi publicada como complementação da edição completa de rudolf steiner [rudolf steiner gesamtausgabel], ga-nr. 1a—e (dornach: rudolf steiner verlag, 1975). (n.e. orig.)

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da edição dos escritos científicos de göethe para a deutsche national-literatur [bibliografia nacional alemã], eu estava bem consciente das dificuldades que enfrentaria nessa empreitada. eu teria de me contrapor a uma opinião que se consolidara de modo quase generalizado. enquanto se difunde cada vez mais a convicção de que as poesias de göethe são a base de toda a nossa cultura, mesmo os que mais avançaram no reconhecimento de seus esforços científicos não vêem nestes nada além de pressentimentos de verdades que, no decurso posterior da ciência, encontraram plena confirmação. sua visão genial teria conseguido pressentir leis naturais que, independentemente disso, foram redescobertas pela ciência rigorosa. aquilo que se admite em ampla escala quanto à restante atividade de göethe — ou seja, que toda pessoa instruída deve ocupar-se com ela — é recusado no caso de sua visão científica. não se admitirá de modo algum ser possível lograr, mediante uma incursão nas obras científicas do poeta, o que hoje nem mesmo a ciência poderia oferecer sem ele. quando fui introduzido na cosmovisão de göethe por k. j. schröer, meu muito estimado professor, meu pensamento já havia tomado uma direção que me possibilitava ir além das descobertas isoladas do poeta, rumo ao objeto principal: à maneira como göethe inseria tal ou qual fato isolado no todo de sua concepção da natureza, à maneira como ele o empregava para alcançar uma compreensão das correlações entre os seres na natureza ou, como ele próprio acertadamente se expressa (no ensaio anschauende urteilskraft. [juízo contemplativo]5), para participar espiritualmente das produções da natureza. eu logo reconheci que as descobertas atribuídas a göethe pela ciência de hoje são o menos essencial, enquanto o mais significativo é justamente ignorado. realmente, essas descobertas isoladas também teriam sido feitas sem as pesquisas de göethe; no entanto, a ciência ficará privada de sua grandiosa concepção da natureza enquanto não a buscar diretamente nele. com isso foi dado o rumo que as introduções à minha tarefa têm de tomar. elas devem mostrar que cada detalhe de opinião manifesta por göethe deve ser deduzido da totalidade de seu gênio.6 os princípios segundo os quais isso deve ocorrer são o objeto deste livrinho. este deverá mostrar que o conteúdo aqui apresentado como opiniões científicas de göethe também pode dispor de fundamento autônomo. com isto eu teria dito tudo o que me parecia necessário antecipar ao que será tratado a seguir. contudo, tenho ainda um agradável dever a cumprir: o de expressar minha mais profunda gratidão ao prof. kürschner, que, da mesma maneira extraordinariamente benévola com a qual sempre veio ao encontro de meus esforços científicos, também concedeu seu mais amigável incentivo a esta pequena obra. fim de abril de 1886 rudolf steiner

a. questões preliminares 1. ponto de partida se seguirmos retrospectivamente, até suas fontes, qualquer das principais correntes da vida 5 vejam-se os escritos científicos de göethe na deutsche national-literatur Íbibliografia nacional alemã] de kürschner vol. 1, p. 115. (na. 1886) 6 sobre a maneira como minhas opiniões coincidem com a imagem global da cosmovisão goethiana, schrõer trata em seu prefácio aos escritos científicos de göethe (national-literatur de kürschner, vol. 1, pp. i—xiv). (veja-se também sua edição do fausto, ii parte [2. ed. stuttgart, 1926, p. v.]) (n.a. 1886)

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espiritual da atualidade, sempre encontraremos um dos espíritos de nossa época clássica. göethe ou schiller, herder ou lessing deram um impulso, do qual então partiu este ou aquele movimento espiritual que ainda hoje perdura. toda a nossa cultura alemã tem seus pés tão firmados em nossos clássicos que, dentre os que parecem ser completamente originais, alguns nada mais fazem senão declarar o que göethe ou schiller há muito insinuaram. nós nos habituamos tanto ao mundo criado por eles que, praticamente, ninguém que quisesse movimentar-se fora da trilha que eles traçaram poderia contar com nossa compreensão. nossa maneira de considerar o mundo e a vida é tão determinada por eles que ninguém que não busque pontos de contato com esse mundo pode suscitar nosso interesse. apenas um ramo de nossa vida cultural — e isso é preciso admitir — ainda não encontrou tal ponto de contato. trata-se do ramo da ciência que ultrapassa o mero coletar de observações, a tomada de conhecimento de experiências isoladas, para fornecer uma satisfatória visão global do mundo e da vida: é o que comumente se denomina filosofia. para ela, nossa época clássica parece simplesmente não existir. ela procura sua salvação numa reclusão artificial e num nobre isolamento de toda a vida espiritual restante. esta tese não é contestada pelo fato de um considerável número de antigos e modernos filósofos e cientistas se haverem ocupado com göethe e schiller; pois eles não alcançaram sua posição científica pelo fato de terem levado os germes das realizações científicas daqueles heróis do espírito a desenvolver-se: eles conseguiram sua posição científica fora da cosmovisão que schiller e göethe representaram, e mais tarde a compararam com ela. tampouco o fizeram com a intenção de obter das opiniões científicas dos clássicos algo para seu próprio rumo, mas para verificar se elas resistiriam ante essa sua própria orientação. ainda voltaremos a isto mais detalhadamente. por ora queremos apenas indicar as conseqüências, para o campo científico em questão, dessa atitude ante o grau evolutivo mais elevado da cultura da idade moderna. grande parte do público leitor culto recusará hoje, sem ao menos lê-lo, um trabalho científico-literário com a pretensão de ser filosófico. em nenhuma outra época a filosofia sofreu tanta falta de estima como hoje. deixando de lado os escritos de schopenhauer e eduard von hartmann, que tratam de problemas existenciais e universais de interesse geral e por isso encontraram ampla divulgação, não será exagero dizer que obras filosóficas são hoje lidas apenas por filósofos de profissão. ninguém além destes se ocupa com elas. a pessoa culta, porém não-profissional, tem o seguinte vago sentimento: “esta literatura não contém nada que corresponda a alguma de minhas necessidades espirituais; as coisas aí tratadas nada têm a ver comigo — não têm relação alguma com o que me é necessário para a satisfação de meu espírito.”7 por essa falta de

7 a disposição anímica que está por detrás deste juízo a respeito do gênero da literatura filosófica e o interesse que lhe é

dedicado surgiram da mentalidade do empenho científico em meados dos anos 1880. desde essa época surgiram fenômenos perante os quais este juízo não mais parece justificado. basta pensar nas luzes ofuscantes que amplos domínios da vida experimentaram mediante os pensamentos e impressões de nietzsche. e nas lutas passadas e ainda presentes, entre os monistas que pensavam de modo materialista e os defensores de uma cosmovisão espiritualista, tanto vive o empenho do pensamento filosófico por um teor cheio de vida quanto um interesse geral pelos enigmas da existência. caminhos cognitivos como os oriundos da cosmovisão fisica de einstein tornaram-se quase objeto de palestras gerais e explicações literárias. apesar disso, ainda hoje valem os motivos pelos quais este juízo foi pronunciado naquela época. fosse escrito hoje, seria preciso formulá-lo de outra maneira. como ele reaparece hoje como juízo antigo, por assim dizer, é mais adequado dizer em que extensão ainda é válido. — a cosmovisão de göethe, cuja gnosiologia deveria ser traçada na presente obra, parte da vivência do homem integral. perante esta vivência, a contemplação pensante do mundo é apenas um lado. da plenitude da existência humana ascendem, de certo modo, configurações pensamentais à superficie da vida anímica. uma parte destas imagens conceituais abrange uma resposta à pergunta: o que é a cognição humana? e essa resposta leva a ver que a existência humana só corresponde ao que está predisposto nela quando atua cognitivamente. uma vida anímica sem conhecimento seria como um organismo humano sem cabeça — isto é, não teria existência. na vida interior da alma surge um conteúdo que anseia por percepção vinda de fora, tal qual o organismo faminto anseia por alimento; e no mundo exterior está o conteúdo perceptivo, que não contém em si sua essência, mas apenas a mostra quando o conteúdo da percepção se une ao da alma pelo processo cognitivo. assim, o processo cognitivo se torna um elo na produção da realidade do mundo. enquanto conhece, o homem participa da criação dessa realidade do mundo. e se uma raiz vegetal não pode ser pensada sem sua complementação no fruto, não só o homem, mas também o mundo deixará de ser concluído se não for conhecido. na cognição o homem não cria algo só para si, mas colabora com o mundo na revelação do ir real. o que está no homem éaparência ideal; o que está no mundo perceptível é aparência sensorial; só a integração cognitiva de ambos começa a ser realidade. vista deste modo, a teoria do conhecimento se torna uma parte da vida. e é assim que deve ser vista para ser incluída nas amplidões da vivência anímica goethiana. contudo, a tais amplidões de vida o pensar ou o sentir de nietzsche não se conecta. muito menos aquilo que tem surgido como cosmovisão orientada filosoficamente desde que foram escritas as ‘questões preliminares’ desta obra. tudo isto pressupõe que a realidade exista em algum lugar fora do processo cognítivo, e que deste deve resultar uma representação humana, figurativa dessa realidade, ou, ainda, que ela não possa resultar. que essa realidade não pode ser encontrada pela cognição, pois, como realidade, só é criada nessa cognição, quase não é percebido. os pensadores filosóficos procuram a vida e a existência fora da cognição; göethe está dentro da vida e da

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interesse ante toda e qualquer filosofia só pode ser culpada a circunstância que indicamos, pois em contrapartida há uma necessidade sempre crescente de uma visão satisfatória do mundo e da vida. os dogmas religiosos, que por tanto tempo foram um substituto completo para isso, perdem cada vez mais em força convincente. É cada vez maior a compulsão de alcançar, pelo labor do pensar, o que antigamente se devia à fé na revelação: a satisfação do espírito. não poderia faltar, portanto, a participação das pessoas cultas se o campo científico em questão andasse realmente de mãos dadas com todo o desenvolvimento cultural, e se seus representantes tomassem posição quanto às grandes questões que movem a humanidade. nesse sentido, convém sempre ter em mente que nunca pode tratar-se de primeiro produzir artificialmente uma necessidade espiritual, mas apenas de procurar a existente e satisfazê-la. a tarefa da ciência não é lançar questões, mas observá-las cuidadosamente, caso sejam formuladas pela natureza humana e pelo respectivo nível cultural, e responder a elas.8 nossos filósofos modernos se propõem tarefas que não decorrem em absoluto do nível cultural em que estamos, e cuja resposta, portanto, ninguém demanda. entretanto, as perguntas que nossa cultura tem de fazer em virtude da posição à qual nossos clássicos a elevaram, essas a ciência ignora. assim sendo, temos uma ciência que ninguém procura e uma necessidade científica que ninguém satisfaz. nossa ciência central, aquela ciência que deve solucionar para nós os autênticos enigmas do mundo, não pode constituir exceção alguma perante todos os outros ramos da vida espiritual. ela deve procurar suas fontes onde estes as encontraram. não deve apenas discutir e explicar-se com nossos clássicos; neles deve buscar também os germes para sua evolução; em meio a ela deve soprar a mesma aragem que soprou por entre a nossa restante cultura. essa é uma necessidade inerente à natureza do assunto. a ela também deve ser atribuído o fato de terem ocorrido as mencionadas discussões dos pesquisadores modernos com os clássicos. porém elas nada mais evidenciam senão o fato de se ter um obscuro sentimento da inadmissibilidade de se passar simplesmente à ordem do dia, desprezando as convicções daqueles espíritos. evidenciam também que não se promoveu um verdadeiro desenvolvimento posterior de suas opiniões. isso é corroborado pela maneira como se tem abordado lessing, herder, göethe e schiller. apesar de toda a excelência de várias obras escritas sobre os trabalhos científicos de göethe e schiller, de quase todas cabe dizer que elas não se desenvolveram organicamente das considerações desses autores, e sim se colocaram em relação posterior com eles. nada melhor para corroborar isso do que o fato de as mais divergentes tendências científicas terem visto em göethe o espírito que ‘pressentiu’ suas opiniões. cosmovisões que nada têm em comum apontam göethe aparentemente com igual direito ao sentirem a necessidade de ter sua posição reconhecida nos píncaros da humanidade. não se pode imaginar contrastes mais acirrados do que as doutrinas de hegel e schopenhauer. este chama hegel de charlatão, sua filosofia de palavreado banal, puro contra-senso, bárbaras combinações de palavras.9 não existe propriamente nada em comum entre ambos senão uma veneração ilimitada por göethe10 e a crença de que este se tenha identificado com sua cosmovisão. com as tendências científicas mais modernas não é diferente. haeckel, que desenvolveu o darwinismo com conseqüência férrea e de maneira genial, e que devemos considerar o mais importante adepto do pesquisador inglês, vê na opinião de göethe sua própria opinião préformada.11 outro cientista da atualidade, c. f. w. jessen, escreve o seguinte a respeito da teoria de darwin: existência criativa enquanto atua cognitivamente. e também por este motivo que as mais recentes pesquisas no terreno da cosmovisão estão fora da criacão ideativa de göethe. esta teoria do conhecimento pretende ficar dentro dela, pois com isso a filosofia se torna conteúdo da vida e o interesse por ela se torna necessidade vital. (n.a. 1924) 8 questões do processo cognitivo surgem na contemplação do mundo exterior pela organização anímica humana. no impulso anímico da pergunta reside a força para nos aproximarmos da contemplação de modo tal que esta, juntamente com a atividade anímica, conduza a realidade do objeto observado a manifestar-se. (na. 1924)

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schopenhauer, parega and paralipomena: skizze einer geschichte der lehre vom idealen und realen, apêndice. obras reunidas, editadas por rudol steiner, vol. 8 (stuttgart, 1894), pp. 26—36. (n.e. orig.) 10 quanto a hegel, vide, por exemplo, sua carta a göethe em 24.2.1821, que este último publicou no suplemento à teoria das cores sob o título neuste aufmundernde teilnahme (com a data de 20.2). vide tb. göethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. v, pp. 272—275, com anotações de rudolf steiner. e ainda o capítulo ‘göethe and hegel’, in rudolf steiner, göethes weltanschauung (1897), ga-nr. 6 (dornach: rudolf steiner verlag, 1963).— já schopenhauer usufruiu do contato pessoal com göethe em 1813—14 e recebeu uma introducão à teoria das cores; em 1816 escreveu, com base nela, um ensaio próprio: Über das sehen and die farben. vide göethe-jahrbuch ix (frankfurt, 1888), p. 50 ss. e as indicações bibliogáficas na p. 104. vide tb. h. doll, göethe und schopenhauer (berlim, 1904). (n.e. orig.) 11 vide ernst haeckel, die naturanschauung von darwin, göethe and lamarck, palestra de 18.9.1882 em eisenach (jena, 1882). (n.e. orig.)

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o alarde dessa teoria, tantas vezes apresentada e igual número de vezes refutada por pesquisa fundamentada —mas que agora encontrou apoio de alguns especialistas e muitos leigos baseados em razões aparentes —, mostra como infelizmente ainda são pouco conhecidos e concebidos pelos povos os resultados das pesquisas da natureza.12 o mesmo pesquisador diz, a respeito de göethe, que este se “alçou a abrangentes pesquisas tanto na natureza inorgânica quanto na orgânica” 13 ao ter encontrado “a lei ‘fundamental de toda formação vegetal numa contemplação sensata e profunda da natureza”. 14 cada um dos cientistas acima referidos sabe apresentar uma quantidade esmagadora de provas a favor da concordância de sua diretriz científica com as “observacões sensatas de göethe”. poderia muito bem ser lançada uma luz de suspeita sobre o caráter unitário do pensamento goethiano se cada um desses pontos de vista pudesse reportar-se a ele com o mesmo direito. a razão desse fenômeno reside no fato de nenhuma dessas opiniões ter realmente brotado da cosmovisão goethiana, e sim ter cada qual suas raízes fora dela; reside no fato de se procurar concordância externa com detalhes que, ao serem arrancados do pensamento global de göethe, perdem seu sentido e de não se querer conceder a essa mesma totalidade a solidez interna para fundar uma tendência científica. as opiniões de göethe nunca foram pontos de partida de investigações científicas, e sim sempre apenas objeto de comparação. os que se ocupavam dele raramente eram discípulos que se dedicassem com sentido imparcial às suas idéias; na maioria das vezes eram críticos que o levavam ao banco dos réus. chega-se a dizer que göethe teve muito pouco senso científico; que foi tanto o pior filósofo quanto o melhor poeta; por isso seria impossível basear nele uma posição científica. isto é um completo desconhecimento da natureza de göethe. göethe certamente não foi um filósofo no sentido habitual da palavra; mas não se deve esquecer que a maravilhosa harmonia de sua personalidade levou schiller à seguinte expressão: “o poeta é o único homem verdadeiro.”15 o que schiller entendia aqui por ‘homem verdadeiro’, esse era göethe. em sua personalidade não faltava nenhum elemento pertinente à mais elevada cunhagem do caráter humano universal; nele, porém, todos esses elementos se unificaram formando uma totalidade ativa em si. É por isso que seus pontos de vista sobre a natureza se baseiam num profundo sentido filosófico, embora esse sentido filosófico não venha à sua consciência sob forma de sentenças científicas definidas. quem se aprofundar nessa totalidade conseguirá, caso possua disposições filosóficas, depreender esse sentido filosófico e apresentá-lo como ciência goethiana. porém deverá partir de göethe, e não abordá-lo com uma opinião pronta. as forças espirituais de göethe atuam sempre da maneira adequada à mais rigorosa filosofia, embora ele não tenha legado um todo sistemático. a cosmovisão de göethe é a mais multifacetada que se possa imaginar. ela parte de um centro situado na natureza unitária do poeta, e sempre mostra a face que corresponde à natureza do objeto contemplado. o caráter unitário da atividade das forças espirituais reside na natureza de göethe; o respectivo modo dessa atividade é determinado pelo objeto em questão. göethe empresta do mundo exterior o modo de observação, e não o impõe. contudo, o pensar de muitas pessoas só é eficaz de uma determinada maneira, servindo apenas para uma espécie de objetos; não é unitário como o de göethe, e sim uniforme. expressemo-nos mais precisamente: há pessoas cuja inteligência é particularmente adequada para pensar dependências e efeitos puramente mecânicos; elas imaginam todo o universo como um mecanismo. outras têm o impulso de perceber em toda parte o elemento misterioso e místico do mundo exterior; tornam-se adeptas do misticismo. todo erro surge por se declarar um modo de pensar, conquanto plenamente válido para uma espécie de objetos, como sendo universal. e assim que se explica o conflito entre as várias cosmovisões. se uma tal concepção unilateral se confrontar com a de göethe — que é ilimitada por não extrair o modo de observar da mente do observador, mas da natureza do observado —, é compreensível que essa concepção se apegue aos elementos pensamentais que, na de göethe, lhe correspondem. a cosmovisão de göethe encerra, justamente no sentido indicado, várias direções de pensamento, ao passo que não pode ser impregnada por nenhuma concepção unilateral. o sentido filosófico, um elemento essencial no organismo do gênio goethiano, tem significado também para suas poesias. embora göethe estivesse longe de apresentar em forma concei12

vide c. f. w. jessen, botanik der gegenwart and vorzeit in kulturhistorischer entwicklung (leipzig, 1864), p. 459. (na. 1886). 13 idem, ibid., p. 343. 14 idem, ibid., p. 332. 15 carta de schiller a goethe em 7.1.1795. (n.e. orig.)

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tualmente clara o que esse sentido lhe transmitia, como schiller era capaz de fazer, tanto para ele quanto para schiller esse sentido é um fator que colabora em sua criação artística. não se pode pensar nas produções poéticas de göethe e schiller sem a cosmovísão situada detrás delas. para schiller importavam mais seus princípios realmente cultivados; para göethe, o modo de sua contemplação. o fato de os maiores poetas de nossa nação não terem podido passar sem esse elemento filosófico no ponto mais alto de sua criação garante, mais do que todo o resto, que esse elemento seja um elo necessário na história evolutiva da humanidade. É justamente a relação com göethe e schiller que possibilitará arrancar nossa ciência central de sua solidão de cátedra e incorporá-la à restante evolução cultural. as convicções científicas de nossos clássicos ligam-se com milhares de fios a seus demais empenhos; e são de de tal ordem que acabam sendo exigidas pela época cultural que as criaram.

2. a ciência de göethe segundo o método de schiller com o que expusemos até agora determinamos a direção a ser tomada pelas pesquisas a seguir. elas devem ser uma evolução do que em göethe se validou como sentido científico, uma interpretação de sua maneira de contemplar o mundo. a isso se pode objetar dizendo não ser esta a maneira de representar cientificamente uma opinião; uma opinião científica não deveria, em nenhuma circunstância, basear-se numa autoridade, mas sempre em princípios. queremos antecipar-nos rapidamente a essa objeção. uma opinião baseada na concepção goethiana do mundo não vale, para nós, como verdadeira pelo fato de se fazer deduzir desta, e sim por acreditarmos que podemos apoiar a cosmovisão goethiana em princípios consistentes e representá-la como fundamentada em si mesma. o fato de tomarmos nosso ponto de partida de göethe não deve impedir-nos de, com a fundamentação do ponto de vista que representamos, fazê-lo tão seriamente quanto o fazem os representantes de uma ciência pretensamente livre de premissas. nós representamos a cosmovisão goethiana, porém fundamentamo-la segundo as exigências da ciência. para o caminho que tais pesquisas devem empreender, foi schiller quem prescreveu a direção. ninguém como ele viu a grandeza do gênio goethiano. em suas cartas a göethe, mostrou a este uma imagem reflexa de seu ser; em suas cartas ‘sobre a educação estética do homem’ [Über die aesthetische erziehung des menschen] deduz o ideal do artista tal qual o conheceu em göethe; e em sua composição ‘sobre poesia ingênua e sentimental’ [uber naive ímnd sentimentalische dichtung] descreve a essência da arte genuína, tal qual a obteve da poesia de göethe. com isso também se justifica o fato de designarmos nossas exposições como fundamentadas na cosmovisão göethe-schilleriana. elas querem observar o pensamento científico de göethe segundo o método cujo modelo foi fornecido por schiller. o olhar de göethe se dirige à natureza e à vida; e o seu modo de observação deverá ser o tema (o conteúdo) do nosso tratado; o olhar de schiller é dirigido ao espírito de göethe; e o seu modo de observar deverá ser o ideal do nosso método. É deste modo que pensamos tornar os esforços científicos de göethe e schiller frutíferos para a atualidade. É de acordo com a designação científica habitual que nosso trabalho deverá ser concebido como teoria do conhecimento. as questões tratadas por ele certamente serão,em muitos pontos, de natureza diferente das que hoje, de modo quase geral, são tratadas por essa ciência. nós vimos por que isto ocorre. onde quer que hoje surjam pesquisas semelhantes, quase sempre elas partem de kant. nos círculos científicos, descuidou-se completamente do fato de que, ao lado da ciência cognitiva fundada pelo grande pensador de königsberg, ao menos em possibilidade ainda existe uma outra direção, não menos capaz de um aprofundamento objetivo do que a de kant. no início da década de 1860, otto liebmann expressou o seguinte: será preciso retornarmos a kant se quisermos chegar a uma cosmovisão livre de contradições.16 este deve ser o motivo de termos, hoje, uma literatura kantiana quase a perder de vista. contudo, esse caminho tampouco socorrerá a ciência filosófica. ela só voltará a desempenhar um papel na vida cultural se, em vez de retornar a kant, vier a aprofundar-se na concepção científica de göethe e schiller. e agora abordemos as questões básicas de uma ciência cognitiva correspondente a estas observações preliminares.

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otto liebmann, kant and die epigonen. eine kritische abhandlung (stuttgart, 1865). sentença final de quase todos os capítulos. (n.e. orig.)

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3. a tarefa da nossa ciência para toda e qualquer ciência vale, em última análise, o que göethe declara de forma tão significativa com as seguintes palavras: “a teoria em si e por si de nada serve senão para fazer-nos crer na conexão dos fenômenos.”17 por meio da ciência, estamos continuamente juntando e relacionando fatos que na experiência são separados. na natureza inorgânica, vemos separados as causas e os efeitos e procuramos sua conexão nas ciências correspondentes. no mundo orgânico, percebemos gêneros e espécies de organismos e empenhamo-nos em investigar suas inter-relações. na história, deparamo-nos com épocas culturais isoladas e empenhamo-nos em conhecer a dependência intrínseca entre uma e outra etapa evolutiva. assim, cada ciência tem de atuar em determinado campo de fenômenos, no sentido da citada frase de göethe. cada ciência tem seu campo, no qual procura a conexão dos fenômenos. depois, sempre subsiste um grande contraste em nossos empenhos científicos: de um lado o mundo ideativo obtido pelas ciências e, de outro, os objetos que lhe são subjacentes. e preciso haver uma ciência que também aqui esclareça as relações mútuas. o mundo ideal e o real, a oposição entre idéia e realidade, são as tarefas dessa ciência. também estes contrastes devem ser conhecidos em sua inter-relação. procurar essas relações é o objetivo das exposições a seguir. os fatos da ciência, de um lado, e a natureza e a história, de outro, devem ser postos em conexão. que significado tem o reflexo do mundo exterior na consciência humana, que relação existe entre o nosso pensar a respeito dos objetos da realidade e eles próprios?

b. a experiência 4. definição do conceito de experiência dois âmbitos, portanto, se justapõem: o nosso pensar e os objetos com os quais ele se ocupa. estes últimos, enquanto acessíveis à nossa observação, são designados como o conteúdo da experiência. por ora deixemos completamente em aberto se existem outros objetos do pensar fora do nosso campo de observação, e de que natureza seriam. nossa próxima tarefa será delimitar rigorosamente cada um dos domínios assinalados experiência e pensar. em primeiro lugar devemos ter em vista a experiência em contornos bem definidos, e depois pesquisar a natureza do pensar. abordemos a primeira tarefa. o que é experiência? toda pessoa está consciente de que sua atividade pensante é incitada no conflito com a realidade. os objetos no espaço e no tempo se aproximam de nós; nós percebemos um mundo exterior multifário, extremamente diversificado, e vívenciamos um mundo interior ora mais, ora menos ricamente desenvolvido. a primeira configuração de tudo isto se apresenta pronta diante de nós. não temos qualquer participação em seu surgimento. a princípio, a realidade se oferece à nossa concepção sensorial e espiritual como que saltando de um desconhecido ‘mundo do além’. de início podemos apenas deixar nossa vista vagar pela variedade à nossa frente. esta nossa primeira atividade é a concepção sensorial da realidade. precisamos reter firmemente o que se oferece a ela — pois é só isso que podemos denominar experiência pura.18 17 göethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), voi. v: sprüche in prosa, p. 357.

18 de toda a postura desta teoria do conhecimento se deduz, no contexto de suas explicações, que o que importa é obter

uma resposta à pergunta: o que é conhecimento? para alcançar esta meta, primeiramente se aborda, de um lado, o mundo da contemplação sensorial, e, de outro, o aprofundamento pensante, sendo demonstrado que no aprofundamento de ambos se manifesta a verdadeira realidade da existência sensorial. com isto a pergunta “o que é conhecimento? é respondida de acordo com o princípio. esta resposta não se torna nada diferente pelo fato de a pergunta ser estendida à contemplação do espiritual. por isso, o que se diz nesta obra sobre a essência do conhecimento também vale para a cognição dos mundos espirituais, ao qual se referem minhas obras posteriores, o mundo dos sentidos não é, em sua manifestação, realidade para a contemplação humana. ele tem sua realidade em conexão com o que se revela no homem sob forma de pensamentos. os pensamentos pertencem à realidade do que se contempla sensorialmente; só que o que é pensamento na existência sensorial não se manifesta fora, mas dentro do homem. no entanto, o pensamento e a percepção sensorial são uma

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nós sentimos imediatamente a necessidade de impregnar com o intelecto ordenador a infinita variedade de formas, forças, cores, sons, etc. que surge diante de nós. empenhamo-nos em esclarecer as interdependências de todos os detalhes que vêm ao nosso encontro. se um animal nos surge em determinada região, indagamos sobre a influência dessa região sobre a vida animal; ao vermos uma pedra rolar, procuramos outros acontecimentos com os quais este se relaciona. contudo, o que ocorre dessa maneira não é mais experiência pura, tendo já uma dupla origem: experiência e pensar. experiência pura é a forma em que a realidade nos aparece quando nos defrontamos com ela com completa renúncia a nós mesmos. a esta forma da realidade são aplicáveis as palavras que goethe expressou em seu ensaio die natur [a natureza]: “estamos rodeados e envoltos por ela. sem pedir nem avisar, ela nos acolhe na roda de sua dança.”19 no caso do objetos dos sentidos exteriores, isto é tão evidente que decerto quase ninguém o negará. um corpo se nos apresenta, a princípio, como uma variedade de formas, cores e impressões de calor e luz que, repentinamente, estão perante nós como emanadas de uma fonte primordial desconhecida. a convicção da psicologia no sentido de que o mundo sensorial, tal como se nos apresenta, não nada é em si mesmo, sendo já um produto da interação entre um mundo exterior molecular, para nós desconhecido, e o nosso organismo, não vem contradizer nossa afirmação. mesmo que também fosse realmente verdade que cor, calor, etc. nada mais são do que a maneira pela qual nosso organismo é afetado pelo mundo exterior, mesmo assim o processo que transforma o acontecimento do mundo exterior em cor, calor, etc. situa-se totalmente além da consciência. qualquer que seja o papel desempenhado por nosso organismo, perante nosso pensamento não é o acontecimento molecular que existe como forma de realidade (experiência) pronta, imposta a nós, e sim essas cores, sons, etc. as coisas não são assim tão claras quanto à nossa vida interior. contudo, uma ponderação mais precisa fará desaparecer a dúvida de que também nossos estados interiores penetrem o horizonte de nossa consciência da mesma forma como as coisas e fatos do mundo exterior. um sentimento me afeta da mesma maneira como uma impressão luminosa. o fato de eu o levar a uma relação mais próxima com minha própria personalidade não importa, nesse sentido. precisamos avançar ainda um pouco mais. o próprio pensar também nos surge, a princípio, como objeto da experiência. já ao nos aproximarmos do nosso pensar a fim de pesquisá-lo, nós o contrapomos à nossa pessoa, existência só. ao começar a contemplar o mundo sensorialmente, o homem separa o pensamento da realidade; este, porém, manifesta-se em outro lugar: no interior da alma. para o mundo objetivo, a separação entre percepção e pensamento não tem nenhuma relevância; ela só ocorre porque o homem se coloca na existência. para ele surge a ilusão de que o pensamento e a percepção sensorial constituem uma dualidade. não é diferente o caso da contemplação espiritual. quando esta surge como resultado dos processos anímicos descritos em minha obra posterior o conhecimento dos mundos superiores forma novamente um lado da existência — o espiritual —, enquanto os correspondentes pensamentos do espiritual formam o outro lado. uma diferença só surge na medida em que na realidade a percepção sensorial é, de certa forma, completada ascendentemente pelos pensamentos, em direção ao início do plano espiritual, ao passo que a visão espiritual é vivenciada, em sua verdadeira natureza, desse início para baixo. o fato de a vivência da percepção sensorial ocorrer mediante os sentidos formados pela natureza, e a contemplação do espiritual mediante os órgãos de percepção espiritual formados animicamente, não constitui uma diferença de princípios. na verdade, em minhas publicações posteriores não ocorre nenhum abandono da idéia de cognição elaborada por mim nesta obra, e sim a aplicação dessa idéia à experiência espiritual. (na. 1924) 19 nas publicações da ‘sociedade göethe [göethe gesellschaft], eu tentei mostrar que esse ensaio surgiu da seguinte maneira: — toblei, que estava em contato com göethe em weimar naquela época, anotou, após conversas com este, várias idéias que habitavam a mente de göethe e que ele reconhecia. essas anotacões foram publicadas no tiefurter journal, distribuído naquela época apenas sob forma manuscrita. nas obras de göethe se encontra um ensaio, escrito bem mais tarde a respeito dessa publicação anterior. göethe diz expressamente não se lembrar se o ensaio é seu, mas admite que contém idéias que eram suas na época de sua publicação. em meu tratado incluso nos escritos da ‘sociedade göethe’ eu tentei demonstrar que essas idéias, após haverem evoluído, fluíram para toda a visão goethiana da natureza. publicações posteriores reclamam para tobler o pleno direito autoral do ensaio die natur [a natureza]. eu não gostaria de me intrometer na contenda desta questão. mesmo quando se sustenta a plena originalidade para tobler, ainda assim fica de pé que estas idéias existiram em goethe no começo dos anos 1880; e, aliás, elas se evidenciam — segundo ele próprio confessa — como o início de sua ampla visão da natureza. não tenho, pessoalmente, nenhuma razão para me desviar da minha opinião de que as idéias surgiram em goethe. mas mesmo que assim não fosse, elas experimentaram em seu espírito uma existência que veio a ser imensamente fiutífera. para o apreciador da cosmovisão goethiana elas não têm significado em si mesmas, e sim no tocante ao que vieram a ser mais tarde. (na. 1924) [o ensaio de rudolf steiner zu dem ‘fragment’ über die natur encontra-se em metodische grundlagen der anthroposophie. gesammelte aufsätze 1884—1901, ga-nr. 30 (dornach: rudolf steiner verlag, 1961), pp. 320—327. (n.e. orig.)]

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enfrentando sua primeira configuração como se proviesse do desconhecido. isto não pode ser diferente. nosso pensar, especialmente tendo-se em vista sua forma como atividade individual dentro da nossa consciência, é observação, ou seja, dirige o olhar para fora, em direção a alguma coisa à sua frente. como atividade, inicialmente se limita a isso. ele olharia para o vazio, para o nada caso não houvesse algo situado à sua frente. tudo o que deve ser objeto do nosso saber precisa adaptar-se a essa forma de confronto. nós somos incapazes de elevar-nos acima dessa forma. para obtermos, com o pensar, um meio de penetrar mais profundamente no mundo, o próprio pensar precisa em primeiro lugar tornar-se experiência. devemos procurar o próprio pensar entre os fatos da experiência, como sendo um deles. só assim nossa cosmovisão não carecerá de unidade interior. esta lhe faltaria imediatamente se quiséssemos introduzir-lhe um elemento estranho. nós nos defrontamos com a mera experiência pura e procuramos, dentro dela própria, o elemento que derrama luz sobre si e sobre a restante realidade.

5. indicação sobre o conteúdo da experiência observemos agora a experiência pura. o que ela contém quando passa à nossa consciência sem que a elaboremos com nossos pensamentos? ela é mera coexistência no espaço e sucessão no tempo; um agregado de detalhes desconexos. nenhum dos objetos que chegam e se afastam tem qualquer relação com o outro. nessa etapa, os fatos que percebemos, que vivenciamos no íntimo, são absolutamente indiferentes entre si. o mundo, nesse ponto, é uma variedade de coisas totalmente equivalentes. nenhuma coisa, nenhum acontecimento pode pretender desempenhar maior papel na engrenagem do mundo do que outro componente do mundo da experiência. para ficar-nos claro que este ou aquele fato tem maior significado do que um outro, precisamos não apenas observar as coisas, mas já relacioná-las de modo pensante. o órgão rudimentar de um animal, que talvez não tenha o menor significado para suas funções orgânícas, tem o mesmo valor para a experiência que o órgão mais importante de seu corpo. a maior ou menor importância só nos fica clara quando refletimos sobre as relações dos componentes isolados da observação, isto é, quando elaboramos a experiência. para a experiência, o caracol, situado num grau inferior da organização [animal], é equivalente ao animal mais superiormente desenvolvido. a diferença na perfeição da organização só se nos manifesta ao compreendermos e elaborarmos, por meio de conceitos, a variedade dada. neste sentido, também são equivalentes a cultura do esquimó e a do europeu erudito; para a mera experiência, a importância de césar para a evolução histórica da humanidade não parece maior do que a de um de seus soldados. na história da literatura, göethe não se destaca de gottsched quando se trata dos meros fatos ligados à experiência. neste grau da observação, no âmbito do pensamento o mundo é, para nós, uma superfície perfeitamente plana. nenhuma parte dessa superfície se destaca da outra; nenhuma mostra ao pensamento qualquer diferença em relação à outra. só quando a centelha do pensamento incide sobre essa superfície é que aparecem elevações e depressões; uma coisa se destaca mais ou menos da outra, tudo se forma de modo determinado, fios se lançam de uma a outra configuração; tudo se torna uma harmonia perfeita em si. acreditamos ter mostrado suficientemente, por meio de nossos exemplos, aquilo que entendemos como maior ou menor significado dos objetos da percepção (aqui tomados com o mesmo significádo de objetos da experiência), aquilo que subentendemos com esse saber que surge apenas ao contemplarmos esses objetos em seu contexto. com isso acreditamos estar igualmente seguros perante a objeção de que o nosso mundo de experiências já mostra infinitas diferenças em seus objetos antes que o pensar o aborde. ora, uma superfície vermelha também já se distingue de uma verde sem a atividade do pensar. isto é correto. mas quem, com isso, quis contestar-nos entendeu completamente mal nossa afirmação. o que justamente afirmamos é que existe uma infinita variedade de detalhes sendo-nos oferecida na experiência. naturalmente esses detalhes devem ser diferentes entre si, do contrário não se defrontariam conosco como uma infinita variedade desconexa. não se trata absolutamente de uma ausência de diferença entre as coisas percebidas, e sim de sua completa falta de relação, da absoluta falta de significado do fato sensorial avulso para todo o conjunto da nossa imagem da realidade. É justamente por

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reconhecermos essa infinita diversidade qualitativa que somos compelidos às nossas afirmações. caso nos deparássemos com uma unidade coesa, harmonicamente composta, não poderíamos falar de uma equivalência entre os componentes dessa unidade. quem, por tal razão, não achasse apropriada nossa analogia acima, não a teria captado no genuíno ponto de comparação. seria obviamente errôneo querermos comparar o mundo das percepções, que é infinitamente multiforme, com a uniformidade de uma superfície. porém nossa superfície não deve, em absoluto, materializar o variado mundo dos fenômenos, e sim a imagem global unitária que temos desse mundo enquanto o pensar não o tenha abordado. após a atividade do pensar, cada detalhe aparece, nessa imagem global, não da forma como é transmitido pelos meros sentidos, mas já com o significado que tem para o todo da realidade. sendo assim, aparece com propriedades que lhe faltam completamente na forma de experiência. segundo nossa convicção, johannes volkelt foi extremamente bem-sucedido ao traçar em contornos precisos isto que justificadamente denominamos experiência pura. ela já foi caracterizada com primor há cinco anos em seu livro sobre a teoria do conhecimento de kant20 e em sua mais recente publicação sobre experiência e pensar21 , ele ampliou ainda mais o assunto. aliás, ele o fez para sustentar uma opinião fundamentalmente diversa da nossa, e com uma intencão essencialmente diferente da que hoje temos. mas isto não nos pode impedir de situar aqui sua excelente caracterização da experiência pura. ela simplesmente nos descreve as imagens que passam perante nossa consciência, de maneira completamente desconexa, num lapso restrito de tempo. diz volkelt: agora, por exemplo, minha consciência tem por conteúdo a representação mental de ter hoje trabalhado com afinco; imediatamente se conecta a esse conteúdo representativo o fato de poder ir passear com a consciência tranqüila; porém subitamente se introduz a imagem perceptiva da porta se abrindo e do carteiro entrando; a imagem do carteiro ora aparece estendendo a mão, ora abrindo a boca, ora fazendo o contrário; ao mesmo tempo se juntam, ao conteúdo da percepção do abrir a boca, várias impressões auditivas, entre elas a de que lá fora começa a chover. a imagem do carteiro desaparece de minha consciência e as representações mentais que então aparecem têm o seguinte conteúdo, nesta seqüência: pegar a tesoura, abrir a carta, repreensão da caligrafia ilegível, imagens visuais de múltiplas letras, múltiplas imagens fantasiosas e pensamentos que se associam; mal esta seqüência termina, surge a representação mental de ter trabalhado com afinco e a percepção, acompanhada de aborrecimento, da chuva que continua; mas ambas desaparecem de minha consciência, surgindo uma representação mental com o conteúdo de que uma dificuldade, julgada resolvida durante o trabalho de hoje, não se resolveu; ao mesmo tempo aparecem as seguintes representações mentais: liberdade de vontade, necessidade empírica, responsabilidade, valor da virtude, acaso absoluto, incompreensibilidade, etc., combinando-se entre si da maneira mais diversificada e complicada; e prossegue de modo similar.22

aqui temos descrito, em relação a determinado e limitado lapso de tempo, o que nós realmente experimentamos, aquela forma da realidade em que o pensar não exerce participação alguma. porém não se deve absolutamente acreditar que se teria chegado a um resultado diverso se, em lugar desta experiência cotidiana, houvesse sido descrita a que fazemos num ensaio científico ou num fenômeno específico da natureza. em ambos os casos, trata-se de imagens desconexas que passam perante nossa consciência. somente o pensar estabelece a conexão. o mérito de ter mostrado, em precisos contornos, o que efetivamente nos proporciona a experiência despida de qualquer pensamento, devemos também atribuir ao livreto gehirn und bewusstsein [cérebro e consciência], do dr. ríchard wahle 23 apenas com a restrição de que aquilo que wahle estabelece como propriedades incondicionalmente válidas dos fenômenos do mundo exterior e interior só cabe para a primeira etapa da contemplação do mundo, caracterizada por nós. segundo wahle, nós sabemos apenas de uma coexistência no espaço e de uma sucessão no tempo. segundo ele, nem se pode falar de uma relação entre as coisas existentes lado a lado ou uma após a outra. ainda que, por exemplo, possa existir uma íntima conexão entre o cálido raio de sol e o aquecimento da pedra, nós nada sabemos de uma conexão causal; apenas nos é evidente

20 johannes volkelt, imnmanuel kants erkenntnistheorie (leipzig, 1879). (n.a. 1886)

21 idem, erfahrung and denken, kritishe grundlegung der erkenntnistheorie (hamburg/leipzig, 1886). (na. 1886) 22 idem, immanuel kants erkenntnistheorie (cit.), p. 165 s. (n.a. 1886) 23 richard wahle, gehirn und bewusstsein (viena, 1884). (na. 1886)

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que ao primeiro fato se segue o segundo. mesmo que haja em algum lugar, num mundo inacessível para nós, uma íntima conexão entre o nosso mecanismo cerebral e nossa atividade espiritual, nós sabemos que ambos são acontecimentos paralelos; de maneira alguma estamos autorizados a admitir, por exemplo, uma conexão causal entre ambos os fenômenos. aliás, se essa afirmativa é postulada por wahle como sendo ao mesmo tempo a última verdade da ciência, nós contestamos essa dimensão [dada a ela]; entretanto, ela é perfeitamente válida para a primeira forma sob a qual vislumbramos a realidade. nesta etapa do nosso saber, não apenas as coisas do mundo exterior e os processos do mundo interior são desconexos; também nossa própria personalidade é um detalhe isolado frente ao mundo restante. nós nos encontramos como uma das incontáveis percepções sem relação com os objetos que nos rodeiam.

6. retificação de uma concepção errônea da experiência total enseja-se aqui o contexto para apontar um preconceito existente desde kant24, o qual já se inseriu tão profundamente, em certos círculos, que tem valido como axioma. quem quisesse pô-lo em dúvida seria marginalizado como diletante, como uma pessoa que não teria ido além dos conceitos mais elementares da ciência moderna. estou-me referindo à opinião segundo a qual — como se isto estivesse estabelecido de antemão — todo o mundo da percepção, essa infinita variedade de cores e formas, de sons e diferenciações de calor, etc. nada mais é do que nosso mundo subjetivo de representações mentais, que só dura enquanto mantemos abertos nossos sentidos às influências de um mundo desconhecido para nós. todo o mundo que se nos apresenta é explicado, por essa opinião, como sendo uma representação mental dentro da nossa consciência individual; e, com base nesta pressuposição, edificam-se subseqüentes afirmações sobre a natureza da cognição. também volkelt aderiu a essa opinião e, baseado nela, fundamentou sua teoria do conhecimento, magistral quanto ao desempenho científico. todavia não se trata de uma verdade fundamental, e muito menos destinada a figurar no ápice da ciência gnosiológica. entretanto, que não nos entendam mal. não queremos levantar, contra as conquistas fisiológicas da atualidade, um protesto certamente impotente. contudo, o que é perfeitamente justificável do ponto de vista fisiológico não está, nem de longe, convocado a situar-se no portal da teoria do conhecimento. pode ser válido, como uma verdade fisiológica inabalável, o fato de somente pela atuação conjunta do nosso organismo surgir o complexo de sensações e percepções que denominamos experiência; contudo, permanece certo que tal conhecimento só pode ser resultado de muitas ponderações e pesquisas. essa característica de que, em sentido fisiológico, nosso mundo de fenômenos é de natureza subjetiva, já consiste numa determinacão intelectual do mesmo, não tendo, portanto, absolutamente nada a ver com seu primeiro aparecimento. já pressupõe a aplicação do pensar à experiência. deve precedê-la, portanto, o exame da relação entre estes dois fatores da coguição. com esta opinião se crê superar a ‘ingenuidade’ pré-kantiana, que tomava por realidade as coisas no espaço e no tempo, da mesma maneira como ainda hoje faz o homem ingênuo sem qualquer formação científica. volkelt afirma... ...que todos os atos que têm a pretensão de ser uma cognição objetiva estão inseparavelmente ligados à consciência cognitiva individual; que eles não se realizam em nenhuma outra parte senão na consciência do indivíduo, e que são absolutamente incapazes de transcender o âmbito do indivíduo e captar ou penetrar o domínio do real situado no exterior.25 ora, para um pensar isento, é totalmente inconcebível o que a forma de realidade imediatamente próxima a nós (a experiência) contém que nos pudesse autorizar, de alguma 24

vide irnmanuel kant, kritik der reinen vernunft [crítica da razão pura], ‘tranzendentale Ästhetik’ [‘estética transcendental], § 8. (n.e. orig.) 25 johannes volkelt, erfahrung und denken (cit.), p. 4. o ensaio cuja existência eu admitia por hipótese foi realmente encontrado mais tarde no arquivo goethe-schiller e acrescentado à edição de goethe em weimar. (n.a. 1886/1924).

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maneira, a designá-la como mera representação mental. a simples ponderação de que o homem ingênuo não percebe, nas coisas, absolutamente nada que o pudesse induzir a esta opinião, já nos ensina que nos próprios objetos não existe um motivo forçoso para essa suposição. o que uma árvore ou uma mesa traz em si que me pudesse levar a considerá-la como uma mera imagem representativa? no mínimo isto não pode ser proposto como uma verdade óbvia. ao fazer isso, volkelt se enrosca numa contradição relativa a seus próprios princípios. segundo nossa convicção, para poder afirmar a natureza subjetiva da experiência ele precisou tornar-se infiel à verdade reconhecida por ele mesmo: a de que a experiência nada contém senão um caos desconexo de imagens, sem qualquer determinação do pensamento; do contrário ele deveria ter visto que o sujeito da cognição, o observador, encontra-se tão sem relações no mundo da experiência quanto qualquer outro objeto desse mundo. entretanto, ao se atribuir ao mundo percebido a qualidade de subjetivo, já se trata de uma determinação pensamental, do mesmo modo como se uma pedra que caísse fosse considerada a causa da impressão no solo. o próprio volkelt, porém, não quer admitir qualquer conexão entre os objetos da experiência. aqui reside a contradição de sua visão — é neste ponto que ele se torna infiel a seu declarado princípio a respeito da experiência pura. com isto ele se encerra em sua individualidade e não está mais apto a sair dela. sim, ele até admite isso sem reservas. para ele, permanece duvidoso tudo o que está além das precárias imagens das percepções. segundo sua opinião, é bem verdade que nosso pensar se esforça em deduzir, desse mundo das representações mentais, uma realidade objetiva; só que nenhuma transcendência em relação a esse mundo pode conduzir-nos a verdades realmente seguras. segundo volkelt, nenhum saber adquirido pela via do pensar está a salvo da dúvida. de nenhum modo este se equipara, em certeza, à experiência imediata. somente esta fornece um saber indubitável. nós vimos como isto é falho. tudo isto, no entanto, provém somente do fato de volkelt atribuir à realidade sensorial (experiência) uma propriedade que de nenhum modo lhe pode caber, e de edificar sobre essa premissa suas suposições subseqüentes. tivemos de dispensar especial atenção ao texto de volkelt por ser a obra mais significativa da atualidade; e também por ser válido como protótipo para todos os empenhos gnosiológicos com princípios opostos à diretriz fundamentada na cosmovisão de goethe, representada por nós.

7. apelo à experiência de cada leitor queremos evitar o erro de atribuir de antemão uma propriedade ao imediatamente dado, à primeira forma em que aparece o mundo exterior e interior, e, com isto, fazer valer nossas explicações com base numa pressuposição. sim, até definimos a experiência justamente como aquilo em que nosso pensar não tem participação alguma. portanto, não se pode alegar um erro de pensamento no início de nossas exposiçoes. o erro básico de muitos empenhos científicos da atualidade consiste justamente no fato de eles acreditarem retratar a experiência pura, enquanto na verdade apenas deduzem os conceitos inseridos nela por eles próprios. ora, pode-se objetar que também nós atribuímos uma série de qualidades à experiência pura. nós a designamos como variedade infinita, como um agregado de detalhes desconexos, etc. afinal, não serão estas também determinações do pensamento? no sentido em que as utilizamos, certamente não. nós nos servimos desses conceitos somente a fim de conduzir o olhar do leitor para a realidade livre de pensamentos. não queremos atribuir esses conceitos à experiência; servimo-nos deles apenas para dirigir a atenção àquela forma da realidade que é destituída de qualquer conceito. todas as investigações científicas precisam ser efetuadas por meio da linguagem, e esta, por sua vez, pode apenas exprimir conceitos. É, porém, essencialmente diferente se certas palavras são usadas para atribuir diretamente tal ou qual propriedade a uma coisa, ou se alguém só se serve delas para dirigir o olhar do leitor ou ouvinte a um objeto. se nos fosse permitido utilizar uma comparação, diríamos o seguinte: — uma coisa é a dizer a b “observe aquele homem no âmbito de sua família, e você fará dele um juízo essencialmente diferente do que se o tiver conhecido apenas em seu comportamento profissional”; outra coisa é ele dizer “aquele homem é um excelente pai de família”. no primeiro caso, a atenção de b é conduzida em certa direção — ele é levado a julgar uma personalidade sob certas circunstâncias. no segundo caso, simplesmente é atribuída deter-

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minada característica a essa personalidade, fazendo-se uma afirmação. É da mesma maneira como o primeiro caso se comporta aqui em relação ao segundo que o início desta nossa obra deve comportar-se em relação às semelhantes manifestações da literatura. se em alguma parte o assunto for aparentemente diverso, por força do necessário estilo textual ou da possibilidade de expressão, frisamos aqui expressamente que nossas exposições possuem apenas o sentido aqui explicado, estando muito longe da pretensão de terem apresentado, a respeito das coisas, qualquer afirmação que seja válida por si. se quiséssemos ter um nome para a primeira forma em que observamos a realidade, acreditamos encontrar na expressão manifestação aos sentidos26 a mais adequada ao assunto. por sentido não entendemos apenas os sentidos externos, os mediadores do mundo exterior, mas todos os órgãos corporais e espirituais que servem à percepção dos acontecimentos imediatos. na psicologia existe uma denominação bastante utilizada sentido interior para a capacidade de percepção das vivências íntimas. com a palavra manifestação, no entanto, queremos simplesmente designar uma coisa ou um processo perceptível para nós na medida em que se apresenta no espaço ou no tempo. devemos ainda suscitar uma questão que nos levará ao segundo fator a considerarmos com vistas à ciência do conhecimento: ao pensar. será que a maneira como a experiência se nos tornou conhecida até agora deve ser vista como algo fundamentado na essência do objeto? acaso ela é uma propriedade da realidade? da resposta a esta pergunta depende muita coisa. caso essa maneira seja uma propriedade essencial dos objetos da experiência, algo que, segundo sua natureza, lhes caiba no sentido mais verdadeiro da palavra, então não será possível prever como se poderá jamais transpor essa etapa do processo cognitivo. dever-se-ia simplesmente passar a registrar tudo o que percebemos em apontamentos desconexos, e tal coletânea de apontamentos seria a nossa ciência; pois qual seria a finalidade de toda pesquisa da conexão entre as coisas se o completo isolamento que lhes cabe, sob forma de experiência, fosse sua verdadeira particularidade? a situação seria bem diferente27 se nessa forma da realidade não lidássemos com sua essência, mas apenas com seu lado externo totalmente desprovido da mesma; se apenas tivéssemos perante nós um envoltório da verdadeira essência do mundo, que nos ocultasse esta última e nos incentivasse a continuar pesquisando-a. deveríamos então pretender atravessar esse envoltório. deveríamos partir desta primeira forma do mundo para apoderar-nos de suas verdadeiras (essenciais) propriedades. deveríamos superar a manifestação aos sentidos para desenvolver, a partir daí, uma forma superior de manifestação. a resposta a essa pergunta será dada nas investigações a seguir. —



c. o pensar 8. o pensar como experiência superior na experiência dentro do caos desconexo da experiência — na verdade, a princípio também como fato da experiência encontramos um elemento que nos conduz para além da falta de conexão. trata-se do pensar. o pensar, como fato da experiência dentro da experiência, já assume uma situação de exceção. no caso do restante mundo da experiência, ao me deter no que se encontra imediatamente perante meus sentidos eu não vou além dos detalhes. suponha-se que eu tenha à minha frente um líquido que então levo à fervura. de início ele está em repouso, mas depois vejo subir bolhas de vapor; ele entra em movimento e, finalmente, passa ao estado vaporoso. estas são, uma a uma, as sucessivas percepções. eu posso mexer e virar a coisa como quiser; se eu me detiver no que os sentidos me proporcionam, não encontrarei conexão alguma entre os fatos. com o pensar isto não acontece. se, por exemplo, eu apreendo o pensamento da causa, este me conduz, por seu próprio

26 nestas explicações já reside a indicação sobre contemplação do espiritual, ao qual se referem minhas obras posteriores, no sentido do que foi dito no final da nota 18, na p. 32. (n.a. 1924) 27 com esta explicação não se contradiz a contemplação do espiritual, mas indica-se que a percepção sensorial não chega à essência do espiritual rompendo o âmbito do sensorial e penetrando numa existência situada atrás dela, e sim retornando ao elemento pensamental que se manifesta no homem. (na. 1924)

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conteúdo, ao efeito. basta eu reter os pensamentos na forma em que aparecem na experiência imediata para que eles já se manifestem como determinações em conformidade com regras. o que, no restante da experiência, deve ser primeiramente trazido de outro âmbito, caso seja aplicável aí a correlação pautada por regras —,já existe no pensar em seu primeiro aparecimento. no restante da experiência, o fato inteiro não se imprime já naquilo que se apresenta como fenômeno ante minha consciência; no pensar, todo o assunto se resolve sem resíduos no que me é dado. lá eu preciso primeiro atravessar o envoltório para chegar ao cerne; aqui, envoltório e cerne são uma unidade inseparável. trata-se apenas de preconceito humano banal quando, a princípio, o pensar nos parece totalmente análogo à experiência restante. no caso dele, basta superarmos esse nosso preconceito. no caso da experiência restante, precisamos solucionar úma dificuldade inerente à coisa. no pensar, o que procuramos na experiência restante tornou-se, por si, experiência imediata. nisso está dada a solução de uma dificuldade que raramente será solucionada de outra maneira. deter-se na experiência é uma justificada exigência científica. não menos justificada é a procura da regularidade interior da experiência. portanto, em determinado lugar da experiência esse próprio interior deve apresentar-se como tal. a experiência será, assim, aprofundada com a ajuda de si mesma. nossa teoria do conhecimento enaltece a exigência da experiência da forma mais elevada, rejeitando qualquer tentativa de introduzir nela algo de fora. as determinações do pensar, ela própria as encontra dentro da experiência. a maneira como o pensar adentra o fenômeno é a mesma que no restante mundo da experiência. o princípio da experiência é geralmente mal compreendido em seu alcance e em seu verdadeiro significado. em sua forma mais rude, é a exigência de deixar os objetos da realidade na primeira forma em que aparecem e só assim torná-los objetos da ciência. este é um princípio puramente metódico; não diz absolutamente nada a respeito do conteúdo daquilo que é experimentado. caso se quisesse afirmar que só podem ser objeto da ciência as percepções dos sentidos, como faz o materialismo, não se poderia ter por base este princípio. se o conteúdo é sensorial ou ideal, não cabe a este princípio fazer nenhum julgamento. no entanto, para ser aplicável da mencionada forma rude em determinado caso sem dúvida ele estabelece uma premissa: exige que os objetos, ao serem experimentados, já tenham uma forma que satisfaça ao empenho científico. na experiência dos sentidos exteriores como vimos, isto não acontece só ocorre no âmbito do pensar. somente no pensar pode ser aplicado o princípio da experiência em seu mais extremo significado. isto não exclui que o princípio também seja estendido ao mundo restante, já que possui ainda outras formas além da sua forma mais extrema. se, com o propósito da explicação científica, não podemos deixar um objeto ficar tal qual é diretamente percebido, ainda assim essa explicação pode ocorrer de modo a se trazerem de outros campos do mundo da experiência os meios requeridos por ela. assim não teremos transposto o campo da experiência em si. uma gnosiologia fundamentada no sentido da cosmovisão goethiana atribui capital importância à necessidade de se permanecer absolutamente fiel ao princípio da experiência. ninguém como göethe reconheceu a exclusiva validade deste princípio. ele representava o princípio tão rigorosamente quanto exigimos acima. todas as concepções superiores a respeito da natureza não podiam parecer-lhe, pois, senão experiência. elas deviam constituir uma “natureza superior dentro da natureza”.28 no ensaio die natur [a natureza], ele diz que estamos impossibilitados de sair da natureza. nesse seu sentido, portanto, se quisermos esclarecer-nos a respeito da mesma deveremos encontrar os meios para tal em seu próprio âmbito. como, no entanto, poderíamos basear uma ciência do conhecimento no princípio da experiência caso não encontrássemos, em qualquer ponto da própria experiência, o elemento básico de toda cientificidade a regularidade ideativa? conforme vimos, basta admitirmos esse elemento; basta nos aprofundarmos nele pois ele se encontra na experiência. mas será que o pensar realmente nos aborda de maneira tal, será que ele se torna tão consciente à nossa individualidade, que, com pleno direito, possamos atribuir-lhe as características acima ressaltadas? qualquer pessoa que dirigir sua atenção a este ponto achará que existe uma diferença essencial entre a maneira como se torna consciente um fenômeno externo da realidade sensorial, ou mesmo outro processo de nossa vida espiritual, e a maneira como percebemos nosso —

28 vide goethe, dichtüng und wahrheit, tomo xxii, pp. 24 s. (na. 1886)

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próprio pensar. no primeiro caso, estamos exatamente cônscios de nos depararmos com uma coisa pronta — pronta na medida em que veio a ser fenômeno sem que tenhamos exercido uma influência determinante sobre esse vir-a-ser. no caso do pensar é diferente. apenas no primeiro momento este parece igual à experiência restante. ao apreendermos qualquer pensamento, ante toda a imediação com que ele penetra em nossa consciência nós sabemos que estamos intimamente ligados ao seu modo de nascer. ao me ocorrer qualquer idéia súbita, cujo surgimento, portanto, em certo sentido equivale ao de um acontecimento externo que primeiro deve ser transmitido por meus olhos e ouvidos, eu sempre sei que o campo em que esse pensamento se manifesta é minha consciência; sei que primeiro deve ser convocada minha atividade para a ocorrência se tornar um fato. no tocante a cada objeto exterior, estou certo de que de início ele oferece apenas seu lado externo aos meus sentidos; quanto ao pensamento, sei precisamente que o que ele me dirige é ao mesmo tempo sua totalidade, que ele penetra em minha consciência como um todo completo em si. as forças impulsoras externas, que sempre devemos pressupor no caso de um objeto dos sentidos, não existem no caso do pensamento. e a elas que devemos atribuir o fato de a manifestação aos sentidos se nos deparar como algo pronto; é a elas que devemos imputar a gênese dessa manifestação. no caso do pensamento, tenho certeza de que aquela gênese não é possível sem minha atividade. eu tenho de elaborar o pensamento, tenho de recriar seu conteúdo, tenho de vivenciá-lo interiormente até em sua menor parte, para que ele tenha qualquer significado para mim. até aqui obtivemos as seguintes verdades: — na primeira etapa da observação do mundo, toda a realidade se nos apresenta como um agregado desconexo; o pensar está encerrado dentro desse caos. ao percorrer essa variedade, encontramos nela um componente que, já nesta primeira forma de manifestação, possui o caráter que os outros devem primeiro adquirir. esse componente é o pensar. aquilo que deve ser superado na restante experiência — a forma da manifestação imediata — é justamente o que deve ser conservado no pensar. esse fator da realidade, a ser deixado em sua estrutura original, nós o encontramos em nossa consciência, e estamos de tal forma ligados a ele que a atividade do nosso espírito é ao mesmo tempo a manifestação desse fator. trata-se da mesma coisa, observada de dois lados. essa coisa é o conteúdo pensamental do mundo. uma vez aparece como atividade de nossa consciência, outra vez como manifestação imediata de uma regularidade em si perfeita, um conteúdo ideal definido em si. logo veremos qual lado tem importância maior. pelo fato de estarmos dentro do conteúdo do pensamento, e de o permearmos em todas as suas partes, somos capazes de conhecer realmente sua natureza mais própria. a maneira como ele nos aborda é uma garantia de que realmente lhe competem as propriedades que previamente lhe atribuímos. portanto, ele certamente pode servir de ponto de partida para toda maneira ulterior de observação do mundo. podemos extrair dele mesmo seu caráter essencial; se quisermos adquirir esse caráter das coisas restantes, deveremos iniciar nossas pesquisas com base nele. expressemonos logo mais claramente: já que só no pensar experimentamos u ma verdadeira regularidade, uma determinação ideativa, a regularidade do resto do mundo, que não experimentamos nele próprio, também já deve estar encerrada no pensar. em outras palavras: a manifestação aos sentidos e o pensar se defrontam na experiência. aquela não nos fornece esclarecimento algum sobre sua própria essência; este nos esclarece simultaneamente sobre si mesmo e sobre a essência daquela manifestação aos sentidos.

9. o pensar e a consciência nesta altura, entretanto, parece como se nós mesmos tivéssemos introduzido o elemento subjetivista que tão decididamente queríamos manter afastado de nossa teoria do conhecimento. de nossas explicações se poderia deduzir que, afora o restante mundo da percepção, o pensamento, mesmo segundo nosso parecer, seria portador de um caráter subjetivo. esta objeção se baseia numa confusão entre o palco dos nossos pensamentos e aquele elemento do qual eles recebem suas determinações de conteúdo, sua regularidade interior. nós não produzimos, em absoluto, um conteúdo de pensamento de modo a determinar, nessa produção, quais conexões nossos pensamentos devem estabelecer. nós apenas fornecemos a causa oportuna para que o conteúdo do pensamento possa desenvolver-se de acordo com sua própria natureza. concebemos o pensamento a e o pensamento b e, levando-os a uma interação, damo-lhes o ensejo

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de entrar numa relação baseada em certas leis. não é nossa organização subjetiva que determina essa conexão entre a e b de maneira definida; o próprio conteúdo de a e b é o único fator determinante. não exerceremos a mínima influência sobre o fato de a e b se relacionarem justamente de determinada maneira e não de outra. nosso espírito efetua a combinação dos blocos de pensamento apenas em conformidade com o conteúdo deles. portanto, no pensar nós aplicamos o princípio da experiência em sua forma mais rudimentar. com isto é refutada a opinião de kant e schopenhauer e, em sentido mais amplo, também de fichte, segundo a qual as leis que admitimos para a explicação do mundo são apenas um resultado de nossa própria espiritualidade, sendo que nós as introduzimos no mundo unicamente em virtude de nossa individualidade espiritual. do ponto de vista do subjetivismo, ainda se poderia levantar outra objeção. se já a conexão regular dos blocos de pensamento não é realizada por nós em conformidade com nossa natureza, dependendo, em verdade, de seu próprio conteúdo, esse conteúdo bem poderia ser um produto puramente subjetivo, uma mera qualidade do nosso espírito, de modo que apenas combinássemos elementos produzidos de antemão por nós mesmos. então nosso mundo pensamental seria, não em menor proporção, uma ilusão subjetiva. essa objeção, porém, é facilmente contestável — pois caso tivesse fundamento nós estaríamos combinando o conteúdo do nosso pensar segundo leis que realmente não saberíamos de onde vêm. se elas não brotam de nossa subjetividade, fato que já contestamos e podemos considerar liquidado, o que, afinal, as regras de combinação podem oferecer-nos para um conteúdo produzido por nós mesmos? portanto, nosso mundo dos pensamentos é uma entidade totalmente fundada em si mesma, uma totalidade coesa, em si perfeita e completa. vemos aqui qual dos dois lados do mundo dos pensamentos é o essencial: o lado objetivo do seu conteúdo, e não o lado subjetivo de sua manifestação. essa compreensão da pureza e da perfeição interiores do pensar se apresenta de forma extremamente clara no sistema científico de hegel. ninguém como ele atribuiu ao pensar um poder tão perfeito a ponto de este poder fundar por si mesmo uma cosmovisão. hegel possui uma confiança absoluta no pensar: este é o único fator da realidade em que, no verdadeiro sentido da palavra, ele confia. contudo, por mais correto que seja seu parecer em geral, foi justamente ele quem, pela forma violenta como o defende, tirou todo o prestígio do pensar. a maneira como apresentou sua opinião é culpada pela confusão insana que invadiu nosso ‘pensar sobre o pensar’. ele quis evidenciar o significado do pensamento, da idéia, designando a necessidade do pensar como excessivamente igual à necessidade dos fatos. com isto provocou o equívoco segundo o qual as determinações do pensar não seriam puramente ideais, mas factuais. logo sua opinião foi interpretada como se, no mundo da realidade sensorial, ele tivesse pesquisado até mesmo o pensamento como um objeto. bem, ele mesmo nunca expôs isso tão claramente. É preciso justamente estabelecer que o campo do pensamento é unicamente a consciência humana. depois deve-se mostrar que, por essa circunstância, o mundo do pensamento nada perde em objetividade. hegel evidenciou apenas o lado objetivo do pensamento; mas a maioria vê apenas — por ser isso mais fácil o lado subjetivo; e parece-lhe que ele trata algo puramente ideal como uma coisa, e que o teria mistificado. nem mesmo eruditos da nossa época — e são muitos — podem ser absolvidos deste erro. eles condenam hegel por uma falta que ele não cometeu, mas que pode ser-lhe imputada pelo fato de ele ter exposto com muito pouca clareza o assunto em questão. concordamos que aqui existe uma dificuldade para nossa capacidade de julgar. no entanto, cremos que para todo pensar enérgico ela seja superável. devemos imaginar duas coisas: em primeiro lugar, que é por meio da atividade que nós levamos o mundo das idéias a manifestar-se, e, simultaneamente, que o que ativamente chamamos à existência se reporta às suas próprias leis. ora, certamente estamos habituados a imaginar um fenômeno de modo a só precisar defrontá-lo de modo passivo, numa atitude de observação. só que esta não é uma exigência incondicional. por mais que nos pareça inusitada, a idéia de que, ativamente, nós mesmos levamos algo objetivo à manifestação, e de que, em outras palavras, nós não apenas percebemos um fenômeno mas ao mesmo tempo o produzimos, não é inadmissível. basta simplesmente abandonarmos a opinião habitual de que existem tantos mundos pensamentais quanto indivíduos humanos. aliás, essa opinião nada mais é do que um preconceito arcaico. por toda parte ela é tacitamente pressuposta sem a consciência de que outra opinião possa ser pelo menos tão possível, e de que devam ser ponderadas as razões da validade de uma ou de outra. imagine-se que, em lugar dessa opinião, seja colocada a seguinte: — existe apenas um único conteúdo pensamental, e o nosso pensar individual nada mais é do que uma familiarização do nosso

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ser, da nossa personalidade individual, com o centro pensamental do mundo. se esta opinião é ou não correta, não cabe examinar aqui; contudo ela é possível, e nós conseguimos o que queríamos — ou seja, mostramos ser pelo menos possível fazer a objetividade do pensar, proposta por nós como necessária, evidenciar-se também, sob outro prisma, como isenta de contradições. no que se refere à objetividade, o trabalho do pensador pode ser muito bem comparado ao do mecânico. assim como este provoca uma interação entre as forças da natureza, e com isto promove uma atividade e um processo dinâmico dirigidos a um fim, o pensador coloca os blocos de pensamento em viva interação e estes se transformam nos sistemas de pensamento que constituem nossas ciências. nada melhor para esclarecer uma opinião do que desvendar os erros invocados contra ela. aqui apelaremos novamente a este método, que já empregamos repetidamente com vantagem. habitualmente se acredita que nós combinamos certos conceitos em complexos maiores, ou pensamos de determinada maneira, porque sentimos uma certa coerção interna (lógica) no sentido de fazê-lo. também volkelt aderiu a esta opinião. mas como é que ela se coaduna com a transparente clareza com que todo o nosso mundo pensamental está presente em nossa consciência? nós não conhecemos nada com mais exatidão no mundo do que nossos pensamentos. ora, será que deve ser produzida uma certa conexão baseada numa coerção interna, quando tudo é tão claro? para quê preciso eu da coerção, se conheço a fundo a natureza do que vai ser combinado e, portanto, posso orientar-me segundo ela? todas as nossas operações pensamentais são processos que se executam com base no conhecimento das entidades dos pensamentos, e não de acordo com uma obrigação. tal obrigação contradiz a natureza do pensar. contudo, poderia ser que em verdade fosse da essência do pensar imprimir igualmente seu conteúdo à sua manifestação, e que apesar disso não pudéssemos perceber imediatamente esse conteúdo devido à organização do nosso espírito. porém não é esse o caso. a maneira como o conteúdo do pensamento nos aborda é, para nós, uma garantia de termos perante nós a essência da coisa — pois estamos conscientes de que nós acompanhamos, com nosso espírito, cada processo dentro do mundos do pensamentos. só cabe pensar que a forma de manifestação é condicionada pela essência da coisa. como poderíamos reproduzir a forma de manifestação se não conhecêssemos a essência da coisa? pode-se muito bem pensar que a forma de manifestação se nos depare como uma totalidade pronta, e que depois procuremos seu cerne; mas não se pode absolutamente ser da opinião de que se colabora para a produção da manifestação sem provocar esse produzir a partir do cerne.

10. a natureza íntima do pensar estamo-nos aproximando mais um passo do pensar. até agora, simplesmente observamos sua posição em relação ao restante mundo da experiência. chegamos ao parecer de que ele assume uma posição bem privilegiada dentro do mesmo, desempenhando um papel central. agora abstraiamos disso, limitando-nos à natureza interna do pensar. examinemos o genuíno caráter do mundo dos pensamentos, a fim de experimentar como um pensamento depende do outro; como os pensamentos se inter-relacionam. só assim resultarão os meios para se solucionar a questão: o que é, afinal, conhecer? ou, em outras palavras: o que significa elaborar pensamentos sobre a realidade? o que significa querer discutir com o mundo utilizando-se do pensar? precisamos manter-nos livres de toda opinião preconcebida. uma delas seria querermos pressupor que o conceito (pensamento) fosse a imagem, dentro da nossa consciência, pela qual obteríamos explicação sobre um objeto situado fora desta. neste contexto, não se trata deste ou de outros pressupostos semelhantes. nós tomamos os pensamentos tal qual os encontramos previamente. queremos justamente examinar se eles têm relação com alguma outra coisa, e qual seria. portanto não nos cumpre, aqui, estabelecê-los como ponto de partida. justamente a mencionada opinião sobre a relação entre conceito e objeto é muito comum. freqüentemente se define o conceito como a contra-imagem espiritual de um objeto situado fora do espírito. os conceitos retratariam as coisas, transmitindo-nos uma fotografia fiel das mesmas. ao se falar do pensar, com freqüência se pensa apenas nessa suposta relação. quase nunca se aspira a percorrer o reino dos pensamentos dentro de seu próprio âmbito, para ver o que aqui resulta. queremos aqui examinar esse reino como se nada mais existisse além de seus limites, como se o pensar fosse toda a realidade. por algum tempo abstrairemos do resto do mundo.

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o fato de se ter deixado isto de lado, nos raciocínios gnosiológicos que se apóiam em kant, tornou-se calamitoso para a ciência. tal omissão conferiu, nessa ciência, um impulso numa direção que é completamente oposta à nossa. por toda a sua natureza, essa direção científica nunca é capaz de compreender göethe. no verdadeiro sentido da palavra, é não-goethiano partir de uma afirmação que não se encontre previamente na observação, e sim esteja ela própria inserida no observado. porém isto acontece ao se colocar no ápice da ciência a afirmação de que entre o pensar e a realidade, entre a idéia e o mundo exista a mencionada relação. nós só atuamos no sentido de goethe quando nos aprofundamos na própria natureza do pensar, para depois ver qual relação resulta quando esse pensar, conhecido segundo sua natureza, é colocado em relação com a experiência. göethe sempre trilha o caminho da experiência no mais rigoroso sentido. primeiro toma os objetos como eles são e tenta penetrar sua natureza abstendo-se de qualquer opinião subjetiva; depois estabelece as condições sob as quais os objetos possam relacionar-se, e espera o que daí resulta. göethe procura dar à natureza ensejo de fazer valer sua regularidade em circunstâncias particularmente características produzidas por ele, ou seja, de expressar ela mesma suas leis. como é que o nosso pensar nos parece, considerado por si? e uma variedade de pensamentos entretecidos e interligados organicamente das mais diversas maneiras. contudo, ao penetrarmos essa variedade por todos os lados ela forma novamente uma unidade, uma harmonia. todos os componentes se inter-relacionam, existem uns para os outros; um modifica o outro, restringe-o, e assim por diante. tão logo nosso espírito efetua a representação mental de dois pensamentos correspondentes, nota de imediato que eles confinem efetivamente num só. por toda parte ele encontra pertinências em seu campo pensamental; este conceito se conecta àquele, um terceiro explica ou apóia um quarto, e assim por diante. assim, por exemplo, encontramos em nossa consciência o conteúdo pensamental ‘organismo’; examinando nosso mundo das representações mentais, deparamo-nos com um segundo: ‘desenvolvimento regular, crescimento’. imediatamente fica claro que esses dois conteúdos pensamentais são co-pertinentes, simplesmente representando dois lados de uma e mesma coisa. assim ocorre com todo o nosso sistema de pensamentos. todos os pensamentos isolados são parte de uma grande totalidade que denominamos nosso mundo conceitual. se algum pensamento isolado surge na consciência, eu não descanso até que ele entre em sintonia com meu pensar restante. um tal conceito à parte, separado de meu restante mundo espiritual, me é totalmente insuportável. estou justamente cônscio de que uma harmonia interiormente fundamentada existe em todos os pensamentos, e de que o mundo dos pensamentos é unitário. por isso, cada separação dessas é uma inaturalidade, uma inverdade. ao termos conseguido que todo o nosso mundo dos pensamentos traga o caráter de uma sintonia perfeita, interna, esta nos proporciona a satisfação que nosso espírito exige. então nos sentimos em posse da verdade. quando vemos a verdade na absoluta sintonia de todos os conceitos de que dispomos, impõese a pergunta: será que, abstraindo-se de toda realidade explícita, abstraindo-se do mundo fenomenológico acessível aos sentidos, o pensar também possui um conteúdo? será que não resta o completo vazio, um puro fantasma, se considerarmos eliminado todo conteúdo sensorial? a opinião concordando com este último caso seria, decerto, amplamente difundida, de modo que devemos observá-la mais de perto. como já notamos acima, muitas vezes se considera todo o sistema de conceitos apenas como uma fotografia do mundo exterior. insiste-se, na verdade, que o nosso saber se desenvolve na forma do pensar, exigindo, porém, de uma ‘ciência rigorosamente objetiva’ que ela tome seu conteúdo apenas de fora. caberia ao mundo exterior fornecer o material que flui para os nossos conceitos.29 sem aquele, estes seriam esquemas vazios, sem nenhum conteúdo. se o mundo externo fosse suprimido, os conceitos e idéias não teriam mais sentido algum, pois existem em função dele. esta opinião poderia ser denominada a negação do conceito pois para a objetividade este não tem mais significado algum. e um elemento acrescentado a esta última. o mundo existiria igualmente, em toda a sua perfeição, mesmo se não houvesse nenhum conceito; pois os conceitos não acrescentam nada de novo ao mundo, e nada contêm que já não existisse sem eles. só existem porque o sujeito da cognição quer servir-se deles para ter, de forma adequada a si mesmo, aquilo que já existe de outra forma. para ele os conceitos são apenas mediadores de um conteúdo que é de natureza não-conceitual. essa é a mencionada opinião.

29 j.h. von kirchmann diz até mesmo, em sua ‘doutrina do saber’ [lehre vom wissen], que a cognição é uma afluência do mundo externo para nossa consciência. (na 1886)

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se ela tivesse fundamento, deveria ser correto um dos três seguintes pressupostos: 1. o mundo conceitual se encontra numa tal relação com o mundo exterior que apenas reproduz de outra forma todo o conteúdo deste. aqui se subentende por mundo exterior o mundo dos sentidos. se fosse esse o caso, não se poderia realmente compreender qual necessidade existiria de alguém se elevar acima do mundo dos sentidos. com este último já estaria dada toda a abrangência da cognição. 2. o mundo conceitual adota como seu conteúdo apenas uma parte da ‘manifestação aos sentidos’. imagine-se a coisa mais ou menos assim: nós fazemos uma série de observações. depararno-nos aí com os mais variados objetos. então notamos que certas características descobertas num objeto já foram observadas por nós. passa diante de nossos olhos uma série de objetos a, b, c, d, etc. a teria as características p, q, a, r; b: l, m, n; c: k, h, c, g; e d: p, u, a, v. então em d encontramos novamente as características a e p, com as quais já nos havíamos deparado em a. designamos essas características como essenciais. e na medida em que a e d possuem as mesmas características essenciais, dizemos que são da mesma espécie. assim, associamos a e d ao fixar no pensar suas características essenciais. temos então um pensar que não se coaduna totalmente com o mundo dos sentidos; ao qual, portanto, não pode ser aplicada a superfluidade acima censurada, mas que está igualmente longe de acrescentar algo novo ao mundo dos sentidos. contra isto pode-se dizer sobretudo o seguinte: para reconhecer as propriedades essenciais de uma coisa é preciso uma certa norma que nos possibilite distinguir o essencial do nãoessencial. essa norma não pode estar no objeto, pois este contém o essencial e o não-essencial numa unidade inseparável. essa norma deveria, pois, ser o próprio conteúdo do nosso pensar. essa objeção, contudo, ainda não derruba inteiramente a opinião. em verdade, pode-se dizer que é uma hipótese injustificada a de que isto ou aquilo seja essencial ou não para uma coisa. isto tampouco nos importa. trata-se simplesmente do fato de nos depararmos, em várias coisas com certas propriedades iguais e denominarmos essas coisas como idênticas. nem mesmo se fala de essas propriedades iguais também serem essenciais. essa abordagem, contudo, pressupõe algo que absolutamente não é verdade. em duas coisas da mesma espécie não existe nada verdadeiramente em comum quando se permanece na experiência sensorial. um exemplo esclarecerá isto. o mais simples é o melhor, porque é o mais fácil de ser visto de modo abrangente. observemos os dois seguintes triângulos:

0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000 c024e02ca02040000002e0118001c000000fb021000070000000000bc02000000000102022253797374656 d0002ca0200006d830000985c110004ee8339505dbe030c020000040000002d0100000400000002010100 1c000000fb02c4ff0000000000009001000000000440001254696d6573204e657720526f6d616e000000000 0000000000000000000000000040000002d010100050000000902000000020d000000320a360000000100 040000000000c9024d0220e41b00040000002d010000030000000000 o que têm eles de realmente igual, quando se permanece na experiência sensorial? absolutamente nada. o que eles têm de igual, ou seja, a lei segundo a qual se formaram e que faz com que ambos incidam sob o conceito ‘triângulo’, só é alcançado por nós ao ultrapassarmos a experiência sensorial. o conceito ‘triângulo’ abrange todos os triângulos. não chegamos a ele pela mera observação de cada um deles. esse conceito sempre permanece o mesmo, por mais vezes que eu possa representá-lo, ao passo que dificilmente eu conseguirei olhar duas vezes para o mesmo ‘triângulo’. o que faz com que o triângulo individual seja ‘este’ bem determinado, e nenhum outro, nada tem a ver com o conceito. um determinado triângulo não é esse determinado por corresponder ao conceito, e sim por meio de elementos que se encontram completamente fora do conceito: comprimento dos lados, abertura dos ângulos, posição, etc. porém é totalmente ilícito afirmar que o conteúdo do conceito ‘triângulo’ seja derivado do mundo sensorial objetivo, quando se vê que esse seu conteúdo não está absolutamente contido em nenhuma manifestação sensorial. 3. mas ainda existe uma terceira possibilidade. o conceito poderia ser o mediador para a compreensão de entidades que não são sensorialmente perceptíveis, mas que apesar disso têm um

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caráter autônomo. este último seria então o conteúdo não conceitual da forma conceitual do nosso pensar. quem admite tais entidades existentes além da experiência e nos atribui a possibilidade de saber das mesmas deve, necessariamente, ver também no conceito o intérprete desse saber. ainda demonstraremos mais específicamente a insuficiência desta opinião. aqui desejamos apenas fazer notar que ela, em todo caso, não fala contra a capacidade de conteúdo do mundo conceitual; pois se os objetos sobre os quais se pensa estivessem além de toda experiência e além do pensar, mais ainda este último deveria abarcar em si mesmo o conteúdo sobre o qual se apóia. não poderia pensar sobre objetos dos quais não se encontrasse vestígio algum dentro do mundo dos pensamentos. em todo caso fica, portanto, bem claro que o pensar não é nenhum recipiente vazio; tomado puramente em si mesmo, ele é pleno de conteúdo, e seu conteúdo não se coaduna com outra forma de manifestação.

d. a ciência 11. o pensar e a percepção a realidade percebida é impregnada, pela ciência, com os conceitos apreendidos e elaborados pelo nosso pensar. esta completa e aprofunda o que é passivamente assimilado, graças ao que o nosso próprio espírito, por sua atividade, elevou das trevas da mera possibilidade à luz da realidade. isto pressupõe que a percepção necessita da complementação pelo espírito, não constituindo de forma alguma algo definitivo, último, encerrado. o erro fundamental da ciência moderna é já considerar a percepçao dos sentidos como algo terminado, pronto. por isso ela também se propõe a tarefa de simplesmente fotografar esse ser completo em si. conseqüente nesse sentido é apenas o positivismo, que simplesmente rejeita qualquer avanço além da percepção. apesar disto, em quase todas as ciências se vê hoje o empenho em considerar esse ponto de vista como o correto. no verdadeiro sentido da palavra, só satisfaria essa exigência uma ciência que simplesmente enumerasse e descrevesse as coisas tal qual existem lado a lado no espaço, e os acontecimentos tal qual se sucedem temporalmente. a história natural de estilo antigo é a que mais se aproxima dessa exigência. a mais moderna exige na verdade o mesmo, estatuindo uma completa teoria da experiência para logo infringi-la ao empreender o primeiro passo na ciência real. deveríamos renunciar completamente ao nosso pensar se quiséssemos ater-nos à experiência pura. rebaixa-se o pensar ao subtrair-lhe a possibilidade de perceber em si mesmo entidades que não são acessíveis aos sentidos. na realidade ainda deve haver, além das qualidades sensoriais, um outro fator apreendido pelo pensar. o pensar é um órgão humano que se destina a observar algo superior ao que os sentidos oferecem. ao pensar é acessível aquele lado da realidade do qual um mero ente sensorial jamais poderia experimentar alguma coisa. ele não existe para ruminar o que é acessível aos sentidos, mas para penetrar naquilo que está oculto para eles. a percepção dos sentidos oferece apenas um lado da realidade, o outro lado é a compreensão pensante do mundo. contudo, no primeiro momento o pensar se nos depara como algo totalmente estranho à percepção. a percepção nos invade do exterior; o pensar se desenvolve do nosso interior para fora. o conteúdo desse pensar nos parece um organismo interiormente perfeito; tudo está na mais rigorosa congruência. cada um dos componentes do sistema pensamental determina os demais; cada conceito tem, em última instância, sua raiz na totalidade do nosso edifício de pensamentos. ao primeiro olhar parece como se a ausência interna de contradições do pensar, sua autosuficiência, tornasse impossível qualquer transição para a percepção. se as determinações do pensar fossem tais que se pudesse satisfazê-las apenas de uma maneira, ele realmente seria encerrado em si próprio; nós não poderíamos sair dele. porém não é este o caso. essas determinações são de tal natureza que se pode satisfazê-las de várias maneiras. só que o elemento que provoca essa variedade não pode, ele próprio, ser procurado dentro do pensar. se assumirmos a determinação pensamental de que a terra atrai todo corpo, imediatamente notaremos que o pensamento deixa aberta a possibilidade de ser preenchido das mais diversas maneiras. trata-se, porém, de diversidades que não são mais alcançáveis pelo pensar. aí há lugar para um outro —

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elemento. esse elemento é a percepção sensorial. a percepção oferece um tipo de especialização das determinações pensamentaís que é deixada em aberto por estas mesmas. É nessa especialização que o mundo se nos defronta quando simplesmente nos servirmos da experiência. na psicologia este é o primeiro elemento que, tomado objetivamente, é deduzido. em toda manipulação científica da realidade, o processo é este: nós nos confrontamos com a percepção concreta. ela se posta como um enigma à nossa frente. faz-se valer em nós o impulso de pesquisar seu genuíno quê, sua essência, que ela mesma não exprime. este impulso nada mais é do que o trabalhoso emergir de um conceito buscado nas trevas da nossa consciência. então nós retemos esse conceito, enquanto a percepção sensorial segue paralelamente a esse processo pensante. repentinamente, a muda percepção fala uma linguagem que nos é compreensível; reconhecemos que o conceito apreendido por nós é aquela procurada essência da percepção. o que se realizou aí foi um juízo. É diferente daquela forma de juízo que une dois conceitos sem levar em conta a percepçao. se eu disser que a liberdade é a determinação de um ser por si mesmo, também já terei emitido um juízo. os componentes deste juízo são conceitos que eu não emiti na percepção. É sobre tais juízos que repousa a unidade interna do nosso pensar, da qual tratamos no capítulo anterior. o juízo aqui considerado tem por sujeito uma percepção e por predicado um conceito. esse determinado animal que está diante de mim é um cão. nesse tipo de juízo, uma percepção é inserida em meu sistema pensamental, em lugar determinado. denominemos tal juízo um juízo perceptivo. mediante o juízo perceptivo, fica-se sabendo que determinado objeto sensorial, de acordo com sua natureza, coincide com determinado conceito. portanto, se quisermos compreender o que percebemos, a percepção deverá estar préforrnada em nós como determinado conceito. no caso de um objeto ao qual isto não se aplicasse, passaríamos ao lado sem que ele nos fosse compreensível. a melhor prova disso é fornecida pelo fato de que pessoas com uma rica vida espiritual também penetram mais profundamente no mundo da experiência do que outras cujo caso não seja esse. muita coisa que passa despercebidamente por estas últimas causa naquelas uma profunda impressão. (“se o olho não fosse de natureza solar, nunca poderia avistar o sol.”30 “sim, mas” — dirá alguém — “acaso não nos deparamos, na vida, com infinitas coisas das quais não formamos até então o mais leve conceito? e não formamos, logo de imediato, conceitos a respeito delas?” certamente. mas porventura será idêntica a soma de todos os conceitos possíveis e a soma daqueles que formei em minha vida até hoje? será que meu sistema conceitual não é capaz de desenvolvimento? não posso, ao me deparar com uma realidade incompreensível para mim, colocar imediatamente meu pensar em atividade, para que de pronto ele desenvolva o conceito que devo confrontar com um objeto? para mim basta a faculdade de fazer emergir determinado conceito do acervo do mundo pensamental. não se trata do fato de determinado pensamento já me ter sido consciente no decorrer de minha vida, mas de ele se deixar deduzir do mundo dos pensamentos acessíveis a mim. para seu conteúdo, não importa onde e quando eu o apreendo — pois todas as determinações do pensamento eu retiro do mundo pensamental. do objeto sensorial nada aflui para esse conteúdo. eu apenas reconheço no objeto sensorial o pensamento que retirei de meu interior. esse objeto me enseja isolar, em determinado momento, justamente esse conteúdo pensamental da unidade de todos os pensamentos possíveis, mas de maneira alguma me fornece os componentes para sua construção. estes eu devo retirar de mim mesmo. só quando fazemos nosso pensar agir é que a realidade começa a ganhar verdadeiras determinações. ela, que antes era muda, fala uma linguagem clara. nosso pensar é o intérprete que esclarece os gestos da experiência. estamos tão habituados a considerar o mundo dos conceitos como um mundo vazio, sem conteúdo, e confrontar com ele a percepção como algo pleno de conteúdo, inteiramente determinado, que será difícil colocar as coisas em seu devido lugar. passa totalmente ignorado que a mera contemplação é o processo mais vazio que se possa imaginar, e que ela só recebe seu conteúdo do pensar. a única verdade em tudo isso é que o pensamento, sempre fluido, é fixado por ela em determinada forma, sem que tenhamos necessidade de colaborar ativamente nessa fixação. se alguém com uma rica vida anímica vê milhares de coisas que para o pobre de espírito constituem um nada, isto é uma prova, tão clara quanto o sol, de que o conteúdo da realidade é apenas o

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göethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. iii: entwurf einer’ farbenlehre. parte didática, introdução, p. 88. levemente alterado, tb. em zahme xenien, iii. (n.e. orig.)

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reflexo do conteúdo do nosso espírito, e de que nós apenas recebemos, de fora, a forma vazia. sem dúvida precisamos ter dentro de nós a força para nos reconhecermos como os produtores desse conteúdo, senão veremos eternamente apenas a imagem refletida, e nunca o nosso espírito que se espelha. também quem se vê num espelho físico precisa reconhecer a si mesmo como personalidade, a fim de reconhecer-se novamente na imagem. toda percepção sensorial finalmente se dissolve, quanto à essência, num conteúdo ideal. só então ela nos parece clara e transparente. em muitos casos, as ciências nem foram tocadas pela consciência desta verdade. toma-se a determinação do pensamento por características dos objetos, como cor, cheiro, etc. assim, acredita-se que a determinação seja uma propriedade de todos os corpos, permanecendo estes no estado de movimento ou repouso em que se encontram até que uma influência externa os modifique. e nesta forma que figura, na ciência natural, a lei da inércia. porém os fatos são totalmente outros. em meu sistema conceitual, o pensamento corpo existe em muitas modificações. uma coisa é o pensamento de um objeto que pode colocar-se em repouso ou movimento por si mesmo, e outra é o conceito de um corpo que só muda seu estado como conseqüência de uma influência externa. os corpos deste último tipo eu designo como corpos inorgânicos. se, então, eu me defronto com determinado corpo que em minha percepção reflita minha definição conceitual acima, eu o denomino inorgânico e atribuo-lhe todas as qualidades decorrentes do conceito de corpo inorgânico. a seguinte convicção deveria permear todas as ciências: a de que seu conteúdo é meramente um conteúdo pensamental, e seu vínculo com a percepção não é outro senão ver no objeto da percepção uma forma particular do conceito.

12. intelecto e razão nosso pensar tem uma dupla tarefa a cumprir: primeiramente, criar conceitos com contornos rigorosamente demarcados; em segundo lugar, reunir num todo unitário os conceitos isolados assim criados. no primeiro caso, trata-se da atividade diferenciadora; no segundo, da atividade cornbinatória. estas duas tendências espirituais não desfrutam, de modo algum, do mesmo cuidado nas ciências. a perspicácia, que vai até os mais ínfimos pormenores em suas diferenciações, dota um número significativamente maior de pessoas do que a força abrangente do pensar, que adentra as profundezas dos seres. por longo tempo se procurou a tarefa da ciência tão-somente numa exata diferenciação das coisas. basta lembrarmos o estado em que göethe encontrou a história natural. por intermédio de lineu, o ideal desta havia-se tornado procurar justamente as diferenças entre cada um dos indivíduos vegetais, a fim de poder utilizar as características mais insignificantes para estabelecer novas espécies e subespécies. duas espécies animais ou vegetais que se diferenciassem apenas em coisas extremamente insignificantes eram logo classificadas em categorias diferentes. encontrandose, em qualquer ser vivo que até o momento fosse classificado em qualquer espécie, um inesperado desvio do caráter genérico arbitrariamente estabelecido, não se refletia sobre o modo como tal desvio poderia ser esclarecido a partir desse caráter: simplesmente se estabelecia um nova espécie. esta diferenciação é o objeto do intelecto. ele só tem de separar e fixar os conceitos na separação. ele é uma etapa preliminar necessária a toda atividade científica superior. antes de mais nada, são necessários conceitos bem determinados e claramente delineados antes que possamos procurar uma harmonia entre os mesmos. contudo, não podemos deter-nos na separação. para o intelecto estão separadas coisas cuja visão numa unidade harmônica é uma necessidade essencial da humanidade. para o intelecto estão separados: causa e efeito, mecanismo e organismo, liberdade e necessidade, idéia e realidade, espírito e natureza, e assim por diante. todas estas diferenciações são provocadas pelo intelecto. elas precisam ser provocadas, pois do contrário o mundo nos pareceria um caos difuso e obscuro, que só se tornaria uma unidade porque seria, para nós, totalrnente indeterrninado. o próprio intelecto não está em condições de escapar dessa separação. ele mantém os componentes separados. esse ‘escapar’ é assunto da razão. ela precisa deixar que os conceitos criados pelo intelecto se entrelacem; precisa mostrar que o que o intelecto mantém em rigorosa separação é, efetivamente, uma unidade intrínseca. a separação é algo provocado artificialmente, um passo intermediário

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necessário ao nosso caminho cognitivo, e não sua conclusão. quem apreende a realidade apenas intelectualmente, afasta-se dela. coloca em seu lugar — já que ela, em verdade, é uma unidade — uma pluralidade artificial, uma multiplicidade que nada tem a ver com a essência da realidade. daí provém a discrepância entre a ciência exercida intelectualmente e o coração humano. muitas pessoas cujo pensar não está evoluído a ponto de alcançar uma cosmovisão unitária, que elas possam captar em plena clareza conceitual, estão, no entanto, em plena condição de aprofundar-se com o sentimento na harmonia interna do todo universal. a elas o coração dá o que a razão oferece ao cientificamente erudito. quando a opinião intelectual a respeito do mundo aborda tais pessoas, elas refutam com desprezo a infinita multiplicidade e se atêm à unidade, que certamente não reconhecem mas sentem mais ou menos vivamente. elas vêem muito bem que o intelecto se afasta da natureza, perdendo de vista o laço espiritual que liga as partes da realidade. a razão reconduz à realidade. a unidade de todo ser, que antes era sentida ou mesmo apenas nebulosamente pressentida, é plenamente discernida pela razão. o parecer do intelecto deve ser aprofundado pelo parecer racional. se o primeiro, em vez de ser visto como um passo transitório necessário, for visto como objetivo próprio, não fornecerá a realidade, mas uma caricatura dela. as vezes ocorrem dificuldades para unir os pensamentos criados pelo intelecto. a história das ciências nos fornece várias provas disto. freqüentemente vemos o espírito humano pelejar para transpor as diferenças criadas pelo intelecto. na visão racional do mundo, o homem se integra nele em unidade indivisa. kant já apontou a diferença entre intelecto e razão.31 ele designa a razão como a capacidade de perceber idéias; em contrapartida, o intelecto se limita a olhar o mundo em sua separação, seu isolamento. ora, a razão é de fato a capacidade de perceber idéias. aqui devemos estabelecer a diferença entre conceito e idéia, o que não consideramos até agora. para os nossos objetivos até este ponto, era importante apenas encontrar as qualidades do elemento pensamental que se manifestam em conceito e idéia. conceito é o pensamento isolado, tal qual é fixado pelo intelecto. se eu levo vários desses pensamentos isolados a um fluxo vivo, de modo que eles se entrelacem, se liguem, surgem figuras pensamentais que existem somente para a razão e que o intelecto não pode alcançar. para a razão, as criações do intelecto cessam de ter suas existências separadas e continuam a viver apenas como parte de uma totalidade. É a essas formações criadas pela razão que cabe chamar de idéias. que a idéia reconduz uma pluralidade de conceitos do intelecto a uma unidade, kant também já declarou. entretanto, ele qualificou as criações manifestas pela razão como simples miragens, como ilusões que o espírito humano concebe sem cessar, pois anseia eternamente por uma unidade da experiência, que nunca lhe é dada. segundo kant, as unidades criadas nas idéias não se baseiam em relações objetivas, não emanam da própria coisa são meras normas subjetivas segundo as quais nós levamos ordem ao nosso saber. kant, portanto, não designa as idéias como princípios constitutivos que deveriam ser determinantes para a coisa, mas como princípios reguladores que só têm sentido e significado para a sistemática do nosso saber. ao se verificar, porém, a maneira como as idéias surgem, essa opinião logo se mostra errônea. É certo que a razão subjetiva necessita de unidade; mas essa necessidade é um vago anseio de unidade, sem qualquer conteúdo. ao se defrontar com algo absolutamente destituído de qualquer natureza unitária, ela não é capaz de produzir por si essa unidade. mas, por outro lado, ao encontrar uma pluralidade que permita uma recondução a uma harmonia interna, ela a realiza. essa pluralidade é o mundo conceitual criado pela razão. a razão não pressupõe uma unidade determinada, mas a forma vazia da condição unitária; ela é a capacidade de chamar a harmonia à luz do dia quando esta se encontra no próprio objeto. os conceitos se compõem em idéias na própria razão. a razão coloca em primeiro plano a unidade superior dos conceitos do intelecto, a qual o intelecto certamente possui em suas criações mas não é capaz de ver. o fato de isto passar despercebido é motivo de muitos mal-entendidos sobre o emprego da razão nas ciências. em pequeno grau, toda ciência já no início, e mesmo o pensar cotidiano, têm necessidade de razão. quando, no juízo “todo corpo é pesado”, ligamos o conceito de sujeito ao conceito de predicado, já existe aí uma união de dois conceitos — portanto, a atividade mais simples da razão. 31

vide, por exemplo, kritik der reinen vernunft [crítica da razão pura], ‘tranzendentale dialetik’ [‘dialética transcendental’], ii, a: von der vernunft Überhaupt’ [‘da razão propriamente dita]. (n.e. orig.)

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a unidade que a razão torna seu objeto é, antes de qualquer atividade pensante, antes de qualquer uso da razão, indiscutível; só que está oculta, só existindo potencialmente e não como fenômeno de fato. então o espírito humano produz a separação para, na união racional dos componentes separados, discernir completamente a realidade. quem não supõe isto deve considerar qualquer combinação de pensamentos como uma arbitrariedade do espírito subjetivo, ou então admitir que a unidade por detrás do mundo vivenciado por nós existe e nos obriga, de uma maneira para nós desconhecida, a reconduzir a multiplicidade a uma unidade. então combinamos pensamentos sem discernir os verdadeiros fundamentos da relação que estabelecemos; então a verdade não é reconhecida por nós, e sim imposta a nós de fora. a toda ciência que parte desta premissa nos é lícito chamar de dogmática. ainda retomaremos o assunto. toda opinião científica desse tipo irá deparar com dificuldades ao precisar indicar motivos para executarmos esta ou aquela combinação de pensamentos. terá, em verdade, de buscar fundamentos subjetivos para a reunião de objetos cuja conexão objetiva nos permanece oculta. por que elaboro um juízo, se o objeto que exige a homogeneidade do conceito de sujeito e predicado nada tem a ver com a emissão do mesmo? kant fez desta pergunta o ponto de partida de seu trabalho crítico. no início de sua crítica da razão pura32 encontramos a seguinte pergunta: como os juízos sintétícos são possíveis a priori? ou seja, como é possível que eu combine dois conceitos (sujeito, predicado), se o conteúdo de um já não está contido no outro, e se o juízo não é nenhum mero juízo de experiência, isto é, a constatação de um único fato? kant entende que tais julgamentos só seriam possíveis se a experiência pudesse existir exclusivamente sob o pressuposto de sua validade. portanto, a possibilidade da experiência é essencial para se elaborar tal juízo. se eu puder dizer que a experiência só é possível quando este ou aquele juízo sintético é verídico a priori, então isso terá validade. contudo, às próprias idéias isso não é aplicável. segundo kant, elas não possuem nem ao menos esse grau de objetividade. kant acha que os axiomas da matemática e da ciência natural pura são, a priori, tais julgamentos sintéticos válidos. ele toma, por exemplo, o julgamento 7 + 5 = 12. em 7 e 5 a soma 12 não está de modo algum contida, conclui kant. eu devo ir além de 7 e 5 e apelar ao meu discernimento, e então encontro o conceito 12. meu discernimento torna necessário imaginar 7 + 5 = 12. porém os objetos de minha experiência precisam aproximar-se de mim pela via do meu discernimento, submetendo-se portanto às suas leis. para a experiência ser possível, tais axiomas devem ser corretos. ante uma ponderação objetiva, todo esse artificial edifício pensamental de kant não subsiste. É impossível eu não ter, no conceito de sujeito, nenhum ponto de referência que me leve ao conceito de predicado; pois ambos os conceitos foram obtidos pelo meu intelecto, e isto em algo que em si é unitário. que aqui ninguém se iluda. a unidade matemática subjacente ao número não é o primeiro elemento. o primeiro elemento é a grandeza, que é uma repetição da unidade efetuada tais e tais vezes. eu devo pressupor uma grandeza ao falar de uma unidade. a unidade é uma criação do nosso intelecto, que a separa de uma totalidade do mesmo modo como separa o efeito da causa, a substância de suas características, etc. ora, ao pensar 7 + 5, em verdade eu fixo no pensamento 12 unidades matemáticas, só que não de uma só vez, mas em duas partes. se eu penso a totalidade das unidades matemáticas de uma só vez, é a mesma coisa; e essa identidade eu expresso no juízo 7 + 5 = 12. o mesmo se dá com o exemplo geométrico dado por kant. uma reta limitada pelos pontos a e b é uma unidade inseparável. meu intelecto pode formar disso dois conceitos: primeiro pode admitir a reta como direção e depois como caminho entre os dois pontos a e b. daí decorre o juízo: a reta é o menor caminho entre dois pontos. todo ato de julgar, na medida em que os membros que entram no juízo sejam conceitos, nada mais é do que uma reunião daquilo que o intelecto separou. a conexão resulta tão logo se investiga o conteúdo dos conceitos do intelecto.

13. o processo cognitivo 32 ibidem. vide o apêndice à ‘dialética transcendental’: ‘von dem regulativen gebrauch der ideen der reinen veinunft’ [‘do uso regulador das idéias da razão pura’]. vide tb. rudolf steiner die rätsel der philosophie (1914), ga-nr. 18 (dornach: rudolf steincr verlag, 1968), cap. ‘dats zeitalter kants und goethes’. (n.e. orig.)

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a realidade se desdobrou para nós em dois campos: a experiência e o pensar. a experiência entra em consideração em duplo sentido. primeiro, na medida em que a realidade total, fora do pensar, possui uma forma de manifestação que deve ocorrer em forma de experiência. segundo, na medida em que é pertinente à natureza do nosso espírito — cuja essência consiste na observação (portanto, numa atividade dirigida para fora) — o fato de os objetos a serem observados penetrarem em seu campo visual, isto é, novamente lhe serem dados sob forma de experiência. ora, pode ser que esta forma do elemento dado não encerre em si a essência da coisa, e então a própria coisa exige que ela apareça primeiro na percepção (experiência), para depois revelar sua essência a uma atividade do nosso espírito que ultrapasse a percepção. outra possibilidade é a de a essência já se encontrar no que é dado imediatamente, devendo-se atribuí-lo apenas à segunda circunstância a de que tudo deve mostrar-se à nossa mente como experiência — o fato de não captarmos logo essa essência. esta última possibilidade acontece com o pensar, e a primeira com a restante realidade. no caso do pensar, basta superarmos nossa limitação subjetiva para captar o elemento dado em seu cerne. aquilo que no caso da restante realidade se encontra fundamentado concretamente na percepção objetiva isto é, que a forma imediata de manifestação deve ser superada para ser explicada —, no caso do pensar reside apenas numa particularidade do nosso espírito. lá, é a própria coisa que confere a si mesma a forma de experiência; aqui é a organização da nossa mente. lá nós ainda33 não temos a coisa inteira ao captar a experiência; aqui nós a temos. É nisso que se fundamenta o dualismo a ser superado pela ciência, pela cognição pensante. o homem se encontra perante dois mundos, cuja conexão ele precisa estabelecer. um deles é a experiência, da qual ele sabe que contém apenas a metade da realidade; o outro é o pensar, que é perfeito em si e ao qual deve afluir aquela realidade experimental exterior para poder nascer uma visão satisfatória do mundo. se o mundo fosse habitado apenas por entes sensoriais, sua essência (seu conteúdo ideal) permaneceria sempre oculta; as leis decerto dominariam os processos do mundo, mas nunca viriam a aparecer. para que isto aconteça deve surgir, entre a forma de manifestação e a lei, um ser dotado tanto de órgãos para perceber aquela forma sensorial da realidade, dependente de leis, quanto da capacidade de perceber a própria existência de leis. de um lado deve aproximar-se desse ser o mundo sensorial, e, de outro, a essência ideal deste último; e cabe a ele combinar, numa atividade própria, esses dois fatores da realidade. aqui se vê bem claramente que nossa mente não deve ser considerada como um recipiente do mundo das idéias, contendo em si os pensamentos, mas como um órgão que os percebe. ela é um órgão de captação, como os olhos e os ouvidos. o pensamento não se comporta de maneira diversa, em relação à nossa mente, do que a luz em relação ao olho e o som em relação ao ouvido. certamente não ocorre a ninguém considerar a cor como algo que se imprime permanentemente no olho, aderindo a ele. no caso da mente, esta opinião é até mesmo dominante. de cada coisa se formaria na consciência um pensamento, que permaneceria nela para ser retirado conforme a necessidade. sobre isto se fundou uma teoria própria, como se os pensamentos dos quais não somos conscientes no momento estivessem guardados em nossa mente, só que latentes sob o limiar da consciência. essas opiniões aventureiras se desmancham em nada, tão logo se considera que o mundo das idéias é um mundo determinado por si mesmo. o que esse conteúdo autodeterminado tem a ver com a variedade das consciências? por certo não se admitirá que ele se determine numa variedade indefinida, de modo que um conteúdo parcial sempre seja independente do outro! a coisa está bem clara. o conteúdo pensamental é de tal ordem que deve haver um órgão espiritual para sua manifestação, sendo porém indiferente o número de seres dotados desse órgão. portanto, um número indeterminado de indivíduos dotados de mentes pode defrontar-se com um conteúdo pensamental. a mente percebe, portanto, o cabedal de pensamentos do mundo, tal qual um órgão de percepção. só existe um conteúdo pensamental do mundo. nossa consciência não é a faculdade de produzir e guardar pensamentos, como tão freqüentemente se crê, e sim de perceber os pensamentos (idéias). göethe expressou isso tão primorosamente34 com as seguintes palavras: a idéia é eterna e única; o fato de empregarmos também o plural não é um bom achado. tudo o que percebemos e sobre o qual podemos falar são apenas manifestações da idéia; o que exprimimos são conceitos, e, assim

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‘ainda’: palavra inserida na 7ª edição [do original] (1979) segundo urna correçao manuscrita de rudolf steiner. (n.e. orig.)

34 ‘tão’: idem (v. nota 33). 30

sendo, a própria idéia é um conceito.35 cidadão de dois mundos do mundo dos sentidos, que dele se aproxima de baixo, e do mundo dos pensamentos, reluzindo de cima —, o homem se apodera da ciência, pela qual conecta ambos numa unidade indivisa. de um lado nos acena a forma externa, e de outro lado a essência interior; cabenos reunir as duas. com isto nossa teoria do conhecimento se elevou acima do ponto de vista que, na maioria das vezes, investigações semelhantes assumem e que não vai além de formalidades. ali se diz que “a cognição é elaboração da experiência”, sem determinar o quê é elaborado dentro desta; determina-se que “no processo cognitivo, a percepção aflui para o pensar; ou o pensar, graças a um impulso interior, avança da experiencia para a essencia existente atrás daquela”. porém estas são meras formalidades. uma gnosiologia que queira captar a atividade cognitiva em seu papel de importância universal deve, em primeiro lugar, indicar a meta ideal dessa atividade. tal meta consiste em proporcionar à experiência inacabada uma conclusão, pelo desvendamento de seu cerne. ela deve, em segundo lugar, determinar o que é esse cerne quanto ao conteúdo. ele é pensamento, idéia. por fim, em terceiro lugar, deve mostrar como acontece essa revelação. nosso capítulo ‘o pensar e a percepção’ informa a esse respeito. nossa teoria do conhecimento leva ao resultado positivo de que o pensar é a essência do mundo, e de que o pensar humano individual é a única forma de manifestação dessa essência. uma gnosiologia meramente formal não é capaz disto; permanece eternamente estéril. não possui opinião alguma sobre qual relação os resultados da ciência têm com a essência e os processos do mundo. no entanto, essa relação deve evidenciar-se justamente na teoria do conhecimento. esta ciência deve mostrar-nos para onde vamos por meio da nossa cognição, e aonde nos leva qualquer outra ciência. em nenhum outro caminho senão o da teoria do conhecimento chega-se à opinião de que o pensar é o cerne do mundo; pois ele nos mostra a relação do pensar com a realidade restante. mas de onde deveríamos saber qual relação o pensar guarda com a experiência, a não ser da ciência, que tem diretamente por meta examinar essa relação? e mais: de onde deveríamos saber, a respeito de um ser espiritual ou sensório, que ele é a força primordial do mundo, caso não examinássemos sua relação com a realidade? portanto, toda vez que se trate de encontrar a essência de uma coisa, esse encontro sempre consistirá num retorno ao ideário do mundo. o âmbito desse acervo não deve ser transposto quando se quer permanecer dentro de claras definições, quando não se quer tatear no indeterminado, o pensar é uma totalidade em si, bastando a si próprio e não podendo superar-se sem chegar ao vazio. em outras palavras: para explicar algo qualquer, ele não pode recorrer a coisas que não encontre em si mesmo. uma coisa que não fosse abrangível pelo pensar seria um absurdo. tudo se resolve em última instância no pensar, tudo encontra seu lugar dentro dele. no que se refere à nossa consciência individual, isto significa que, para efeito de constatações científicas, devemos permanecer rigorosamente dentro do que nos é dado na consciência; nós não podemos ultrapassar isto. ora, quando se compreende bem o fato de não podermos ultrapassar nossa consciência sem chegar ao ilusório, mas ao mesmo tempo não se compreende que a essência das coisas pode ser encontrada dentro da nossa consciência na percepção de idéias, surgem os erros que falam de um limite do nosso conhecimento. se não formos capazes de ir além da consciência, e se a essência da realidade não se encontrar dentro da mesma, jamais poderemos penetrar até a essência. nosso pensar estará preso ao aquém e nada saberá do além.36 ao nosso ver, essa opinião nada mais é senão um pensar que compreende erroneamente a si mesmo. um limite do conhecimento só seria possível se a experiência exterior nos impusesse por si mesma a investigação de sua essência, se ela própria determinasse as perguntas a serem formuladas a seu respeito. porém não é este o caso. para o pensar é que surge a necessidade de confrontar a experiência, percebida por ele, com a essência da mesma. o pensar só pode ter a bem determinada tendência a ver, também no resto do mundo, suas próprias leis e não algo qualquer do qual ele próprio não tenha a mínima noção. um outro erro ainda precisa ter aqui sua correcão. trata-se daquele erro segundo qual o pensar não seria suficiente para constituir o mundo, como se ainda devesse ser acrescentado algo mais (força, vontade, etc.) ao conteúdo pensamental para viabilizar o mundo. numa ponderação exata, porém, vê-se imediatamente que todos esses fatores não passam de abstrações oriundas do mundo da percepção, esperando elas próprias uma explicação somente por 35 goethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. v: sprüche in prosa p. 379. 36 da 2ª à 6ª edição [do original], esta última frase foi erroneamente impressa como parágrafo isólado. (n.e. orig.)

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meio do pensar. qualquer outro componente da essência do mundo, além do pensar, exigiria outro tipo de concepção, de conhecimento, além do relacionado ao pensamento. nós teríamos de alcançar aquele outro componente por via diversa do pensar pois afinal o pensar fornece apenas pensamentos. contudo, já ao se querer explicar a participação daquele segundo componente no mecanismo do mundo para isso empregando conceitos, já se incorre em contradicão. além do mais não nos é dado nenhum terceiro elemento além da percepção sensorial e do pensar; e não podemos admitir nenhuma parte desses como cerne do mundo, pois todos os seus integrantes mostram, à primeira observação, que como tais não contêm sua essência. esta última, portanto, pode ser única e tão-somente procurada no pensar.

14. o fundamento das coisas e a cognição kant efetuou um grande passo na filosofia na medida em que remeteu o homem a si mesmo. este deve buscar os fundamentos da certeza de suas afirmações no que lhe é dado em sua capacidade espiritual, e não em verdades impostas de fora. convicção científica apenas por si mesmo, eis o lema da filosofia kantiana. foi principalmente por isto que kant a denominou crítica em oposição à dogmática, que recebe afirmações transmitidas prontas e a seguir procura as provas para elas. com isto se dá um antagonismo entre duas direções científicas; porém esse antagonismo não foi pensado por kant com aquela perspicácia de que ele é capaz. tenhamos rigorosamente em vista o modo como uma afirmação da ciência pode surgir. ela combina duas coisas: ou um conceito com uma percepção, ou dois conceitos. a este último tipo pertence, por exemplo, a afirmação de que não há efeito sem causa. ora, os motivos objetivos pelos quais ambos os conceitos confluem podem situar-se além do que eles próprios contêm e que, portanto, também me é apenas dado. posso ainda ter quaisquer motivos formais (falta de contradição, determinados axiomas) que me conduzem a determinada combinação de pensamentos. sobre a própria coisa, porém, estes não têm influência alguma. a afirmação se baseia em algo que eu nunca posso alcançar concretamente. portanto, não me é possível um real conhecimento intrínseco da coisa eu só sei a respeito dela como observador externo. aqui, o que a afirmação exprime encontra-se num mundo desconhecido para mim; apenas a afirmação se encontra em meu mundo. este é o caráter do dogma. existe um duplo dogma: o dogma da revelação e o da experiência. o primeiro fornece ao homem, de uma maneira qualquer, verdades sobre coisas que estão subtraídas ao seu campo de visão. ele não tem nenhum conhecimento intrínseco do mundo do qual provêm as afirmações; deve crer na verdade das mesmas, não sendo capaz de aproximar-se das causas. algo bem semelhante ocorre com o dogma da experiência. se alguém tiver a opinião de que deve permanecer na mera experiência pura, só podendo observar suas transformações sem avançar até as forças atuantes, estará igualmente fazendo, a respeito do mundo, afirmações a cujas causas não tem acesso algum. tampouco aqui a verdade é obtida mediante o acesso à atividade interna da coisa, e sim é imposta por algo exterior à própria coisa. enquanto o dogma da revelação dominava a ciência antiga, a atual sofre do dogma da experiência. nosso modo de ver mostrou que toda aceitação de um fundamento existencial que se encontre fora da idéia é um absurdo. todo o fundamento existencial derramou-se no mundo, difundindo-se nele. É no pensar que ele se mostra em sua forma mais perfeita, tal como é em si e por si. portanto, se o pensar realiza uma combinação, se emite um juízo, o que se combina é o próprio conteúdo do fundamento do mundo, que afluiu para ele. no pensar não nos são dadas afirmações sobre nenhum fundamento transcendental do mundo — este foi que afluiu substancialmente para o pensar. nós temos uma compreensão imediata das causas materiais, e não simplesmente formais, pelas quais um julgamento é realizado. não é a respeito de algo estranho qualquer, mas a respeito de seu próprio conteúdo que o juízo exerce determinação. nosso ponto de vista fundamenta, portanto, um verdadeiro saber. nossa teoria do conhecimento é realmente crítica. de acordo com nossa opinião, não apenas não deve ser admitido, frente à revelação, nada que não possua causas concretas dentro do pensar: também a experiência deve ser, dentro do pensar, conhecida não só pelo lado de sua manifestação, mas também como algo efetivo. por meio do nosso pensar nós nos elevamos da visão da realidade como um produto para a visão da mesma como algo producente. assim, a essência de uma coisa só vem à luz quando é colocada em relação com o homem; pois só neste último aparece, para cada coisa, a essência. isto fundamenta um relativismo como cosmovisão — ou seja, a mentalidade que assume vermos todas as coisas sob a luz que lhes é

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emprestada pelo próprio homem. essa teoria também leva o nome de antropomorfismo. ela tem muitos adeptos. a maioria deles, no entanto, acredita que devido a essa particularidade de nossa cognição nós nos afastamos da objetividade tal qual é em si e por si. nós percebemos, assim crêm eles, tudo através das lentes da subjetividade. nossa acepçao nos mostra justamente o contrário disso. nós teremos de contemplar as coisas através dessas lentes se quisermos chegar à sua essência. o mundo não nos é apenas conhecido tal qual nos aparece; ele aparece, evidentemente apenas à contemplação pensante, tal qual é. a forma da realidade que o homem delineia na ciência é a última forma verdadeira dela. agora ainda nos compete estender a cada campo da realidade o tipo de cognição que reconhecemos como a correta, isto é, a que conduz à essência da realidade. mostraremos então como, em cada uma das formas da experiência, deve ser procurada sua essência.

e. a cognição da natureza 15. a natureza inorgânica a atividade da natureza que nos parece ser a mais simples é aquela em que um processo é inteiramente o resultado de fatores que se confrontam exteriormente. nesse caso, um acontecimento ou uma relação entre dois objetos não é condicionada por um ser que se realiza nas formas externas do fenômeno, por uma individualidade que manifesta suas faculdades internas e seu caráter numa atuação exteriorizada. eles são provocados apenas pelo fato de uma coisa exercer, em sua manifestação, uma certa influência sobre uma outra, transferindo seus próprios estados a ela. os estados de uma coisa aparecem como conseqüência dos estados da outra. o sistema de atuações sucedendo de modo que um fato sempre seja a conseqüência de outros do mesmo tipo é denominado natureza inorgânica. aqui o decurso de um processo ou a característica de uma relação depende de condições externas; os fatos trazem em si características resultantes dessas condições. modificando-se a maneira como esses fatores externos se associam, naturalmente também se modifica o resultado de sua coexistência; modifica-se o fenômeno produzido. ora, como é esse tipo de coexistência na natureza inorgânica ao penetrar diretamente no campo de nossas observações? ela traz inteiramente o caráter que caracterizamos acima como sendo da experiência imediata. aqui estamos lidando apenas com um caso especial daquela ‘experiência em geral’. o que aqui importa são as combinações dos fatos sensoriais. porém são justamente essas combinações que não nos parecem claras nem transparentes na experiência. um fato ‘a’ surge diante de nós, mas simultaneamente também inúmeros outros. ao percorrer com o olhar a variedade oferecida, ficamos completamente incertos sobre quais dos outros fatos mantêm uma relação próxima com o ‘a’ em questão, e quais dos outros mantêm uma relação mais distante. podem estar presentes aqueles fatos sem os quais o acontecimento absolutamente não poderia ocorrer; e ainda aqueles que apenas o modificam, sem os quais ele certamente poderia ocorrer — só que, sob outras circunstâncias secundárias, teria uma outra forma. com isto já nos fica igualmente indicado o caminho que a cognição, nesse campo, tem de tomar. se não nos for suficiente a combinação dos fatos na experiência imediata, precisaremos progredir em direção a outra combinação que satisfaça à nossa necessidade de esclarecimento. temos de criar condições em que um processo se nos manifeste, com transparente clareza, como necessária conseqüência dessas condições. recordemos por que, efetivamente, o pensar já contém sua essência em experiência imediata: porque nos encontramos dentro, e não fora, daquele processo que cria combinações de pensamentos partindo dos elementos pensamentais isolados. com isto não nos é dado apenas o processo terminado, o que foi efetuado, mas também o elemento efetuante. e é justamente isto que importa: que em qualquer processo do mundo externo que se nos depare vejamos, primeiramente, os poderes impulsores que o levam do centro do universo para a periferia. a falta de transparência e clareza de um fenômeno ou de uma circunstância do mundo sensorial só pode ser superada ao distinguirmos bem exatamente que eles são o resultado de determinada constelação de fatos. devemos saber que o processo visto agora por nós surge da atuação conjunta entre este e aquele

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elemento do mundo sensorial; e justamente esse modo de atuação conjunta deve ser completamente permeável ao nosso intelecto. a relação à qual são conduzidos os fatos deve ser ideal, em conformidade com nosso espírito. naturalmente as coisas se comportarão, nas relações a que são conduzidas pelo intelecto, de acordo com sua natureza. nós logo vemos o que se obtém com isto. quando eu olho a esmo para o mundo sensorial, vejo processos produzidos pela atuação conjunta de tantos fatores que me é impossível ver de imediato o que efetivamente existe atuando por detrás desse efeito. eu vejo um processo e, ao mesmo tempo, os fatos a, b, e, e d. como posso saber desde logo quais fatos participam mais desse processo e quais participam menos? o assunto só se torna transparente quando eu examino quais dos quatro fatos são incondicionalmente necessários para que o processo aconteça. eu acho, por exemplo, que a e c são absolutamente necessários. depois descubro que sem d o processo pode acontecer, porém com sensível alteração, e em contrapartida verifico que b não tem nenhuma importância essencial, podendo também ser substituído

0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000c024e 02ca02040000002e0118001c000000fb021000070000000000bc02000000000102022253797374656d0002 ca0200006d830000985c110004ee8339505dbe030c020000040000002d01000004000000020101001c000 000fb02c4ff0000000000009001000000000440001254696d6573204e657720526f6d616e00000000000000 00000000000000000000040000002d010100050000000902000000020d000000320a36000000010004000 0000000c9024d0220e41b00040000002d010000030000000000

por outro. na ilustração acima, i deve representar simbolicamente a reunião dos elementos para a mera percepção sensorial, e ii a reunião dos elementos para a mente. portanto, a mente agrupa os fatos do mundo inorgânico de modo a perceber num acontecimento ou relação a conseqüência dos relacionamentos entre os fatos. É assim que a mente conduz a necessidade para a casualidade. esclareçamos isto com alguns exemplos: se tenho à minha frente um triângulo abc, à primeira vista eu certamente não vejo que a soma dos três ângulos sempre equivale a um ângulo raso [180º]. isto fica claro no momento em que eu agrupo os fatos da seguinte maneira: das figuras a seguir, imediatamente resulta que os ângulos a’=a e b’=b. (ab e cd, e respectivamente a’b’ e c’d’, são paralelas.) 0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000c024e 02ca02040000002e0118001c000000fb021000070000000000bc02000000000102022253797374656d0002 ca0200006d830000985c110004ee8339505dbe030c020000040000002d01000004000000020101001c000 000fb02c4ff0000000000009001000000000440001254696d6573204e657720526f6d616e00000000000000 00000000000000000000040000002d010100050000000902000000020d000000320a36000000010004000 0000000c9024d0220e41b00040000002d010000030000000000 ora, se eu tiver um triângulo e traçar pelo vértice c uma reta paralela à base ab, aplicando o acima referido quanto aos ângulos, descubro que a’=a e b’=b. como e é igual a si mesmo, todos os três ângulos do triângulo, juntos, são necessariamente

0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000c024e

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iguais a um ângulo raso. aqui eu expliquei uma complicada relação factual reconduzindo-a a fatos simples, por meio dos quais — pela situação que é dada à mente — a correspondente relação necessariamente resulta da natureza das coisas dadas. um outro exemplo é o seguinte: — eu atiro uma pedra no sentido horizontal. ela descreve uma trajetória que reproduzimos na linha ll’. ao contemplar as forças acionadoras que entram aqui em consideração, encontro: 1) a força impulsora que exerci; 2) a força com que a terra atrai a pedra; 3) a força de resistência do ar. 0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000c024e 02ca02040000002e0118001c000000fb021000070000000000bc02000000000102022253797374656d0002 ca0200006d830000985c110004ee8339505dbe030c020000040000002d01000004000000020101001c000 000fb02c4ff0000000000009001000000000440001254696d6573204e657720526f6d616e00000000000000 00000000000000000000040000002d010100050000000902000000020d000000320a36000000010004000 0000000c9024d0220e41b00040000002d010000030000000000 ao refletir mais apuradamente, descubro que as duas primeiras forças são as essenciais, as que ocasionam a peculiaridade da trajetória, ao passo que a terceira é secundária. se atuassem apenas as duas primeiras, a pedra descreveria a trajetória ll’. eu descubro a última ao abstrair-me completamente da terceira força e correlacionar apenas as duas primeiras. realizar isto concretamente não é nem possível nem necessário. não posso eliminar toda e qualquer resistência; mas para isso preciso somente captar em pensamento a essência das duas primeiras forças, para depois estabelecer, igualmente apenas em pensamento, a necessária relação entre elas; e a trajetória ll’ resulta como a que deveria necessariamente suceder caso apenas as duas forças atuassem em conjunto. desta maneira, a mente reduz todos os fenômenos da natureza inorgânica a fenômenos em que o efeito parece resultar imediata e necessariamente do causador. quando, tendo-se a lei do movimento da pedra como conseqüência das duas primeiras forças, adiciona-se a terceira força, resulta a trajetória ll’. outras condições poderiam complicar ainda mais o assunto. todo processo complexo do mundo sensorial parece um enredo daqueles fatos simples, permeados pelo espírito, e pode ser dissólvido neles. tal fenômeno — em que o caráter do processo resulta, de maneira clara e nítida, imediatamente da natureza dos fatores a serem levados em consideração — é denominado por nós fenômeno primordial ou fato fundamental. esse fenômeno primordial é idêntico à lei natural objetiva, pois nele está expresso não apenas que um processo sucedeu sob determinadas condições, mas que teve de suceder. compreendeu-se que ele tinha de suceder devido à natureza daquilo que entrou em consideração. o motivo pelo qual, hoje em dia, o empirismo exterior é exigido de modo tão generalizado, é o fato de se acreditar que, com qualquer suposição que ultrapasse o empiricamente dado, se esteja tateando na incerteza. nós vemos nossa possibilidade de permanecer totalmente dentro dos fenômenos e, apesar disso, encontrar o necessário. o método indutivo, amplamente representado hoje em dia, nunca é capaz disto. ele procede essencialmente do seguinte modo: — ele vê um fenômeno que, sob dadas condições, sucede de determinada maneira; uma segunda vez vê, sob condições semelhantes, surgir o mesmo fenômeno. disso infere existir uma lei geral segundo a qual esse acontecimento tem de suceder, e enuncia essa lei como tal. tal método permanece completamente exterior aos fenômenos. ele não vai ao fundo das questões. suas leis são generalizações de fatos isolados. ele sempre precisa, primeiro, esperar a confirmação da regra por esses fatos isolados. nosso método sabe que suas leis são apenas fatos extraídos do emaranhado da casualidade e tornados necessários. nós sabemos que, estando presentes os fatores a e b, necessariamente deve suceder determinado efeito. nós não ultrapassamos o mundo dos fenômenos. o conteúdo da ciência, tal como o concebemos, nada mais é senão acontecimento objetivo. apenas a forma de combinação dos fatos é alterada. contudo, por meio desta se penetra na objetividade, justamente, um passo além do que a experiência possibilita. nós combinamos os fatos de modo a atuarem

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conforme sua própria natureza e apenas de acordo com ela, e de modo que essa atuação não seja modificada por estas ou aquelas condições. nós damos o maior valor a que estas explicações possam ser justificadas sempre que se olhe para o real funcionamento da ciência. contradizem-nas apenas as teorias errôneas sobre o alcance e a natureza das teses científicas. enquanto muitos de nossos contemporâneos se colocam em contradição com suas próprias teorias ao deparar-se com o campo da pesquisa prática, a harmonia entre toda pesquisa verdadeira e nossas explicações seria, em cada caso isolado, facilmente demonstrável. nossa teoria exige para cada lei natural uma forma determinada. ela pressupõe um conjunto de fatos e constata que, quando o mesmo acontece em qualquer ponto da realidade, deve ter lugar determinado processo. toda lei natural tem, portanto, a seguinte forma: quando este fato atua juntamente com aquele, surge determinado fenômeno... seria fácil demonstrar que todas as leis naturais têm realmente esta forma: quando dois corpos de temperaturas diferentes se tocam, flui calor do mais quente para o mais frio, até que a temperatura de ambos seja a mesma; quando um líquido está contido em dois recipientes interligados, o nível em ambos os recipientes fica na mesma altura; quando um corpo se encontra entre uma fonte de luz e um outro corpo, projeta uma sombra sobre este último. aquilo que em matemática, física e mecânica não constitui mera descrição deve ser, então, fenômeno primordial. É na percepção dos fenômenos primordiais que todo progresso da ciência se fundamenta. quando se consegue isolar um processo de suas conexões com outros processos e declarar que ele é meramente a conseqüência de outros elementos da experiência, avança-se mais um passo para dentro do mecanismo do mundo. nós vimos que o fenômeno primordial resulta de forma pura no pensamento quando se correlacionam, no pensar, os fatores em questão segundo sua essência. contudo, pode-se também produzir artificialmente as condições necessárias. isto acontece no experimento científico. aí temos sob nosso poder a ocorrência de certos fatos. não podemos, naturalmente, abstrair todas as circunstâncias secundárias; mas existe um meio de nos afastarmos delas: — produz-se um fenômeno em diversas modificações. deixa-se atuar uma vez esta, outra vez aquela circunstância secundária. então se descobre que urna constante perpassa todas essas modificações. É preciso manter o essencial justamente em todas as combinações. descobre-se que em todas essas experiências isoladas um componente factual permanece o mesmo: ele é experiência superior na experiência; é fato fundamental ou fenômeno primordial. o experimento deve garantir-nos que nada mais influencie um processo determinado além daquilo que temos em conta. nós conjugamos certas condições, cuja natureza conhecemos, e esperamos o que virá resultar disso. aí temos o fenômeno objetivo como fundamento da criação subjetiva. temos algo objetivo, que ao mesmo tempo é completamente subjetivo. o experimento é, portanto, o verdadeiro mediador entre sujeito e objeto na ciência natural inorgânica. os germes para nossa opinião aqui desenvolvida encontram-se na correspondência entre göethe e schiller. as cartas de göethe e schiller do início de 1798 ocupam-se deste assunto. elas denominam este método como empirismo racional, pois o que ele torna conteúdo da ciência não passa de processos objetivos; contudo, esses processo objetivos são mantidos coesos por uma trama de conceitos (leis), que nossa mente descobre neles. os processos sensoriais numa conexão a ser captada somente pelo pensar: eis o empirismo racional. ao comparar aquelas cartas com o ensaio de göethe der versuch als vermittler von subjekt und objekt [o experimento como mediador entre sujeito e objeto], ver-se-á na teoria acima a conseqüência lógica disso.37 É na natureza inorgânica, portanto, que se manifesta de modo absoluto a relação geral que constatamos entre experiêneia e ciência. a experiência comum é apenas metade da realidade. para os sentidos existe apenas essa metade. a outra metade só existe para nossa capacidade mental de compreensão. o espírito eleva a experiência de uma ‘manifestação aos sentidos’ à sua [experiência] própria. nós já mostramos corno, nesse campo, é possível elevar-se do efetuado ao

37 É interessante que göethe ainda tenha escrito um segundo ensaio, onde explicita ainda mais os pensamentos sobre o

experimento. podemos reconstruir o ensaio com base na carta de schiller de 19 de janeiro de 1798. göethe divide os métodos da ciência em: empirismo comum, que permanece nos fenômenos externos, dados aos sentidos; racionalismo, que constrói sistemas de pensamentos baseados numa observação insuficiente e que, portanto, em vez de agrupar os fatos de acordo com sua essência, elabora primeiro as relações para depois fantasiosamente, a partir daí, introduzir algo novo no mundo dos fatos; e, finalmente, o empirismo racional, que não fica parado na experiência comum, mas cria condições sob as quais a experiência revela sua essência. (na. 1886)

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efetuante. É este último que o espírito descobre ao se aproximar do primeiro. satisfação científica só nos é proporcionada por uma teoria quando esta nos introduz numa totalidade coesa. porém o mundo sensorial, enquanto inorgânico, em nenhum de seus pontos se apresenta corno algo coeso; em nenhuma parte dele se apresenta um todo individual. um processo sempre nos aponta um outro do qual ele depende; este aponta um terceiro, e assim por diante. onde está, aqui, uma conclusão? o mundo sensorial, enquanto inorgânico, não chega à individualidade. apenas em sua totalidade é que é coeso. por isso, para termos um todo precisamos empenhar-nos em conceber a totalidade do inorgânico como um sistema. esse sistema é o cosmo. o profundo entendimento do cosmo é a meta e o ideal da ciência natural inorgânica. todo empenho científico que não avance até aí é mera preparação um componente do todo, e não o todo propriamente dito.

16. a natureza orgânica durante muito tempo a ciência se deteve diante do orgânico. ela não considerava seus métodos suficientes para compreender a vida e seus fenômenos. sim, ela acreditava francamente que aqui terminasse qualquer regularidade do tipo atuante na natureza inorgânica. o que se admitia no mundo inorgânico que um fenômeno se nos torna compreensível quando conhecemos suas premissas naturais era aqui simplesmente negado. imaginava-se o organismo como adequado a uma finalidade, segundo determinado plano do criador. cada órgão teria seu destino preestabelecido; todo questionamento poderia referir-se apenas ao seguinte: qual a finalidade deste ou daquele órgão, para quê existe isto ou aquilo? tendo-se em vista, no mundo inorgânico, as pré-condições de uma coisa, estas eram consideradas totalmente indiferentes para os fatos da vida, atribuindo-se o maior valor à finalidade de uma coisa. tampouco se indagava sobre os processos que acompanham a vida, tal qual, no caso dos fenômenos físicos, sobre as causas naturais; acreditava-se dever atribuí-los a uma força vital especial. segundo se imaginava, o que se forma no organismo seria o produto dessa força, que simplesmente se sobreporia às demais leis naturais. até o início do nosso século [xix], a ciência praticamente não sabia o que fazer com os organismos. ela estava restrita unicamente ao domínio do mundo inorgânico. enquanto se procuravam, desse modo, as leis do orgânico não na natureza dos objetos, e sim no pensamento que seu criador tinha ao formá-los, eliminou-se qualquer possibilidade de uma explicação. como aquele pensamento pode ser-me comunicado? — pois estou restrito ao que tenho diante de mim. se isto mesmo não desvendar suas leis dentro do meu pensar, minha ciência simplesmente cessará. adivinhar os planos de um ente situado lá fora não pode, no sentido científico, entrar em cogitação. no final do século passado [xviii], ainda dominava a opinião generalizada de que não há uma ciência que explique os fenômenos da vida no sentido de uma ciência esclarecedora como, por exemplo, a física. kant tentou até mesmo dar um fundamento filosófico a essa opinião38: ele achava que nosso intelecto só pode ir do particular para o geral. o particular, os detalhes, ser-lhe-iam dados, dos quais ele abstrairia suas leis gerais. kant denomina essa maneira de pensar como discursiva, considerando-a a única acessível ao ser humano. portanto, em sua opinião só existe, das coisas, uma ciência em que o particular, considerado em si e por si, é totalmente desprovido de conceito, sendo apenas subsumido sob um conceito abstrato. nos organismos kant não encontrou esta condição preenchida. aqui o fenômeno isolado denuncia uma estruturação de acordo com um fim, isto é, segundo um conceito. o particular traz em si vestígios do conceito. mas para compreendermos tais seres nos falta, segundo o filósofo de königsberg, toda e qualquer disposição. nós só podemos compreender algo quando o conceito e o objeto individual estão separados; aquele representa algo geral, este um particular. portanto, nada mais nos resta senão fundamentar nossas observações dos organismos na idéia da finalidade; tratar os seres vivos como se seus fenômenos se fundamentassem num sistema de intenções. portanto, kant como que fundamentou cientificamente o não-científico. göethe, porém, protestou decididamente contra tal conduta não-científica. ele nunca pôde entender por que nosso pensar não deveria ser suficiente para indagar, a respeito de um órgão de um ser vivo, de onde ele surge, em vez de para quê ele serve. isto estava em sua natureza, que 38 kritik der urteilskraft [crítica do juízo]. vide introdução, v: ‘das prinzip der formalen zweckmässigkeit der natur ist ein tranzendentales prinzip der urteilskraft’; ademais: parte ii, ‘kritik der teleologischen urteilskraft’. (n.e. orig.)

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sempre o impelia a olhar para cada ser em sua perfeição intrínseca. parecia-lhe uma abordagem não-científica preocupar-se apenas com a finalidade externa de um órgão, isto é, com seu proveito para outro. o que isso deve ter a ver com a natureza interior de uma coisa? jamais importa a göethe para quê algo serve39, e sim, sempre e unicamente, como esse algo se desenvolve. ele não quer observar um objeto como uma coisa concluída, e sim em sua evolução, a fim de conhecer sua origem. spinoza o atraía particularmente40 por não admitir a externa característica de finalidade dos órgãos e organismos. göethe exigia, para conhecer o mundo orgânico, um método justamente tão científico quanto o que aplicamos ao mundo inorgânico. sempre surgia novamente a necessidade de tal método na ciência natural, certamente não de modo tão genial, porém não menos urgente. hoje, provavelmente apenas uma pequena fração dos pesquisadores ainda duvidará da possibilidade do mesmo. se foram, porém, bem sucedidas as tentativas que se fizeram aqui e acolá para introduzir tal método, certamente é uma outra questão. nisso se cometeu principalmente um grande erro. acreditava-se dever simplesmente transferir para o reino dos organismos o método da ciência inorgânica. considerava-se o método aqui aplicado como sendo o único científico, pensado que, se a ciência orgânica fosse cientificamente possível, deveria sê-lo no mesmo sentido da física, por exemplo. no entanto, esquecia-se a possibilidade de talvez o conceito de cientificidade ser muito mais amplo do que “a explicação do mundo segundo as leis do mundo físico”. até hoje ainda não se avançou em profundidade até este conhecimento. em vez de examinar em quê se baseia a cientificidade das ciências inorgânicas, para então buscar um método aplicável ao mundo vivo — mantendo-se as exigências resultantes disso —, simplesmente se declaram universais as leis obtidas naquele nível inferior da existência. contudo, dever-se-ia examinar principalmente em quê se baseia o pensar científico. nós fizemos isso em nosso tratado. no capítulo anterior também aprendemos que as leis inorgânicas não são as únicas existentes, mas apenas um caso especial de toda regularidade que possa existir. o método da física é simplesmente um caso particular de um tipo geral de pesquisa científica, no qual se considera a natureza dos objetos em questão no campo a que serve essa ciência. estendendo-se esse método ao campo orgânico, apaga-se a natureza específica deste último. em lugar de pesquisar o orgânico de acordo com sua natureza, impõe-se a ele um conjunto estranho de leis. desse modo, porém, na medida em que se nega o orgânico, jamais se virá a conhecê-lo. tal conduta científica simplesmente repete, em nível superior, o que adquiriu num inferior; e enquanto acredita ajustar a forma superior de existência às leis preparadas em outros campos, essa forma escapa ao seu empenho, pois a conduta em questão não sabe mantê-la e tratá-la em sua peculiaridade. tudo isto provém da opinião errônea cuja crença é que o método de uma ciência seja algo externo aos objetos da mesma, não sendo condicionado por estes, mas por nossa natureza. acredita-se que se deveria pensar de determinada maneira sobre os objetos, e aliás sobre todos — sobre todo o universo — de maneira idêntica. promovem-se investigações para demonstrar que, devido à natureza de nossa mente, só podemos pensar de maneira indutiva, dedutiva, etc. entretanto, com isso não se leva em conta que talvez os objetos não tolerem de modo algum o modo de observação que lhes queiramos impor. que é plenamente justificada a censura feita por nós à biologia atual opinando que esta não transfere à natureza organica o princípio da abordagem científica geral, mas o da natureza inorgânica — nos é confirmado num lançar de olhos à opinião de haeckel, certamente o mais importante teórico da pesquisa natural da atualidade. quando ele exige, de todo empenho científico, que... “por toda parte se faça valer a conexão causal dos fenômenos”41, quando diz que “se a mecânica psíquica não fosse tão infinitamente composta, poderíamos, caso fôssemos capazes de abranger completamente também o desenvolvimento histórico das funções psíquicas, enquadrá-las todas numa fórmula matemática anímica”, vemos nitidamente o que ele quer: tratar todo o mundo segundo o padrão metodológico da física. contudo, essa exigência tampouco fundamenta o darwinismo em sua forma original, e sim em sua interpretação atual. nós vimos que explicar um processo na natureza inorgânica significa mostrar seu surgimento pautado por leis e oriundo de outras realidades sensoriais; deduzi-lo de objetos que, como ele, pertencem ao mundo sensorial. mas como é que a biologia atual emprega o princípio da adaptação e da luta pela existência, as quais, como expressão de um estado de fato, 39 vide eckermann, gespräche mit göethe, 20.2.1831. (n.e. orig.) 40 göethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. 1: einleitungen, p. lv ss. (n.e. orig.) 41 ernst haeckel, die naturanschauung von darwin, lamarck und haeckel (jena, 1882), p. 53. (na. 1886)

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obviamente não devem ser postas em dúvida por nós? acredita-se justamente na possibilidade de deduzir o caráter de determinada espécie das circunstâncias externas em que ela viveu, da mesma maneira como da incidência dos raios solares se pode deduzir o aquecimento de um corpo. esquece-se completamente que nunca se pode demonstrar esse caráter, em suas determinações plenas de conteúdo, como uma conseqüência dessas circunstâncias. estas podem ter uma influência determinante, mas não são a causa geratriz. nós estamos em plenas condições de dizer que, sob o efeito desta ou daquela circunstância, uma espécie teve de desenvolver-se de modo a moldar este ou aquele órgão em particular, mas o conteúdo, o que se refere especificamente a um órgão, não se faz deduzir das condições externas. suponhamos que um ser orgânico tenha as propriedades essenciais a b c, tendo alcançado o desenvolvimento sob a influência de determinadas circunstâncias externas. com isso suas propriedades adotaram a configuração especial a’ b’ c’. se ponderarmos essas influências, compreenderemos que a se desenvolveu em forma de a’, b em b’, c em c’. contudo, a natureza específica de a, b, e jamais se nos poderá evidenciar como resultado de circunstâncias exteriores. antes de mais nada, devemos direcionar nosso pensar ao seguinte: de onde tomamos o conteúdo daquele elemento genérico, do qual consideramos caso especial o ser orgânico isolado? sabemos muito bem que a especialização provém de uma influência externa; mas a própria forma especializada deve ser deduzida de um princípio interno. do fato de ter-se desenvolvido justamente essa forma particular nós temos conhecimento ao estudar o meio ambiente de um ser. porém essa forma especial é algo em si e por si; nós a enxergamos com certas propriedades. nós vemos o que importa. ao fenômeno exterior se antepõe um conteúdo estruturado em si, que nos fornece o meio necessário para deduzirmos aquelas propriedades. na natureza inorgânica, nós percebemos um fato e para sua explicação procuramos um segundo, um terceiro e assim por diante; e o resultado é que aquele primeiro nos parece a conseqüência necessária do último. no mundo orgânico não ocorre assim. aqui nós precisamos, além dos fatos, de mais um fator. devemos fundamentar as influências das condições externas em algo que não se deixe determinar passivamente por elas, e sim que se autodetermine ativamente sob essas influências. qual é, porém, esse fundamento? não pode ser nada além daquilo que no particular se manifesta sob forma de generalidade. no particular, porém, sempre se manifesta um organismo determinado. aquele fundamento é, portanto, um organismo sob forma de generalidade — uma imagem genérica do organismo, compreendendo em si todas as formas particulares do mesmo. de acordo com o procedimento de göethe, chamemos esse organismo genérico de tipo.42 seja o que a palavra ‘tipo’ possa significar segundo sua evolução linguística, nós a utilizamos nesse sentido goethiano, e com esse termo nada mais cogitamos além do que foi mencionado. esse tipo não se encontra realizado em toda a sua perfeição em nenhum organismo individual. apenas nosso pensar racional está apto a apoderar-se do mesmo, extraindo-o dos fenômenos como imagem genérica. o tipo é, com isso, a idéia do organismo: a animalidade no animal, a planta genérica na planta específica. sob esse tipo não se deve imaginar nada de fixo. ele não tem absolutamente nada a ver com o que agassiz43 o mais importante opositor de darwin, chamava de um ‘pensamento criador encarnado de deus’. o tipo é algo inteiramente fluido, do qual derivam todos os gêneros e espécies particulares que se podem considerar como subtipos, tipos especializados. o tipo não exclui a teoria da descendência. ele não contradiz o fato de que as formas orgânicas se desenvolvem umas das outras; é apenas o protesto racional contra a opinião de que a evolução orgânica transcorre meramente em sucessivas formas objetivas (sensorialmente perceptíveis). trata-se daquilo que subjaz a toda essa evolução, estabelecendo a conexão nessa infinita variedade; é o interior daquilo que presenciamos como as formas externas dos seres vivos. a teoria darwinista pressupõe o tipo. o tipo é o verdadeiro organismo primordial; conforme se especialize idealmente, será planta primordial ou animal primordial. nenhum ser vivo individual, sensorialmente real, pode ser tipo. o que haeckel ou outros naturalistas consideram forma primordial já é uma estrutura específica; é justamente a estrutura mais simples do tipo. o fato de, temporalmente, este aparecer primeiro sob a forma mais simples não implica que as formas temporais posteriores resultem como conseqüência 42 vide, por exemplo, göethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. 1: erster entwurf einer allgemeinen einleitung in die vergleichende anatomie, ausgehend von der osteologie, p. 239 ss. (n.e. orig.) 43 louis agassiz (1807—1873), geólogo e biólogo suíço que lecionou por longo tempo na américa do norte. vide sua obra beiträge zur naturgeschichte der vereinigten staatten von vereinigten staaten von nordamerika, vol. 1: ein versuch über klassificalion (an essay on classification, boston, 1857); vide a discussão de haeckel com agassiz em natürliche schöpfungsgeschichte (6. cd. berlim, 1875), p. 55 ss. (n.e. orig.)

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das formas temporais precedentes. todas as formas aparecem como conseqüência do tipo; tanto a primeira quanto a última são manifestações do mesmo. É nele que devemos fundamentar uma verdadeira biologia, e não simplesmente querer deduzir as diversas espécies animais ou vegetais umas das outras. É como um fio vermelho que o tipo se estende através de todos os graus evolutivos do mundo orgânico. devemos segurá-lo para, com ele, percorrer esse grande e diversificado reino das formas. então ele se nos tornará compreensível — caso contrário se desintegrará diante de nós, como todo o restante do mundo da experiência, numa multidão desconexa de pormenores. mesmo ao acreditar que algo posterior, mais complicado, mais composto, remonte a uma forma antiga mais simples, tendo sua origem nesta última, nós nos enganamos, pois apenas deduzimos uma forma específica de outra forma específica. friedrich theodor vischer expressou certa vez44, em relação à teoria darwinista, a opinião de que ela torna necessária uma revisão do nosso conceito de tempo. aqui nós chegamos a um ponto onde nos fica evidente o sentido em que deveria ocorrer tal revisão. ela teria de mostrar que a derivação de algo posterior de algo mais antigo não é explicação alguma; que o primeiro no tempo não é o princípio. toda derivação deve ocorrer de um princípio, e no máximo se deveria mostrar quais fatores atuaram para que uma espécie se haja desenvolvido temporalmente antes de outra. o tipo desempenha no mundo orgânico o mesmo papel que a lei natural no inorgânico. assim como esta nos fornece a possibilidade de conhecer cada acontecimento isolado como membro de um grande todo, o tipo nos coloca em condicões de considerar o organismo isolado como uma forma específica da configuração primordial. já indicamos que o tipo não é uma forma conceitual congelada e concluída, e sim é fluido, podendo adotar as mais variadas configurações. o número dessas configurações é infinito, pois aquilo que transformou a forma primordial em forma individual, específica, não tem significado algum para a própria forma primordial. É justamente do mesmo modo como uma lei natural rege infinitos fenômenos isolados, pois as determinações especiais que aparecem no caso individual nada têm a ver com a lei. trata-se, porém, de algo essencialmente diferente do que ocorre na natureza inorgânica. lá se tratava de mostrar que determinado fato sensorial pode suceder assim e não de modo diferente, porque existe esta ou aquela lei natural. aquele fato e a lei se defrontam como dois fatores separados, e não é necessário mais nenhum trabalho espiritual além de lembrarmos, ao vermos um fato, da lei que o rege. no caso de um ser vivo e seus fenômenos isso é diferente. aí se trata de desenvolver a forma individual, que aparece em nossa experiência, do tipo que tivemos de captar. devemos realizar um processo espiritual de espécie essencialmente diversa. não devemos confrontar, com o fenômeno isolado, o tipo como algo pronto tal qual a lei natural. o fato de todo corpo cair ao solo quando não impedido por nenhuma circunstância secundária, de forma tal que os caminhos percorridos em tempos sucessivos se proporcionam como 1 : 3 : 5 : 7, etc., é uma lei pronta, determinada. É um fenômeno primordial, que aparece quando duas massas (a terra e corpos sobre a mesma) se relacionam mutuamente. se no campo de nossa observação penetrar um caso especial sujeito a esta lei, bastará considerarmos os fatos sensorialmente observáveis aplicando aquela relação que a lei fornece, e a veremos confirmada. nós remetemos o caso isolado à lei. a lei natural expressa a conexão dos fatos separados no mundo sensorial; no entanto, continua existindo como tal frente ao fenômeno individual. em se tratando do tipo, precisamos extrair evolutivamente da forma primordial aquele caso particular que se nos apresenta. não podemos confrontar o tipo com a figura individual a fim de ver como ele regula esta última; temos de fazê-la surgir do mesmo. a lei domina o fenômeno como algo situado acima dele; o tipo aflui para o ser vivo individual, identificando-se com ele. por isso, se a biologia quiser ser ciência no sentido da mecânica ou da física, deverá mostrar o tipo como a forma mais genérica e, depois, também nas várias formas particulares ideais. a mecânica também é uma compilação das várias leis naturais, em que as condições reais são admitidas hipoteticamente, sem exceção. não deveria ser diferente na biologia. também aqui se deveriam adotar hipoteticamente determinadas formas nas quais o tipo se desenvolve, caso se quisesse ter uma ciência racional. dever-se-ia então mostrar como essas formações hipotéticas sempre podem ser remetidas a uma forma determinada que se apresente à nossa observação. da mesma maneira como no inorgânico nós remetemos um fenômeno a uma lei, aqui nós desenvolvemos uma forma especial da forma primordial. a ciência orgânica não se origina pelo con44 altes und neues, três cadernos em um volume (stuttgart, 1881—82, terceiro caderno: philosophic und naturwissenschaft, p. 223. (n.e. orig.)

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fronto externo entre o genérico e o específico, mas pela evolução de uma forma originando-se de outra. da mesma maneira como a mecânica é um sistema de leis naturais, a biologia deve ser uma sucessão de formas evolutivas do tipo. só que lá compilamos as leis isoladas e as ordenamos para um todo, enquanto aqui devemos fazer com que cada forma isolada se origine vivamente da outra. aqui é possível uma objeção. se a forma típica é algo completamente fluido, como é possível estabelecer como conteúdo da biologia uma cadeia de tipos especiais enfileirados? pode-se muito bem imaginar que em cada caso particular observado se reconheça uma forma especial do tipo, mas para fins científicos não épossível simplesmente colecionar tais casos realmente observados. contudo, pode-se fazer algo diferente. pode-se fazer o tipo percorrer sua série de possibilidades e, então, sempre fixar (hipoteticamente) esta ou aquela forma. assim se consegue uma série de formas, deduzidas mentalmente do tipo, como conteúdo de uma biologia racional. É possível uma biologia que seja tão ciência quanto a mecânica, no sentido mais rigoroso. só que seu método é diferente. o método da mecânica é demonstrativo. cada demonstração se apóia em certa regra. sempre existe uma premissa determinada (isto é, são indicadas possíveis condições de experiência), e então se determina o que sucede quando essas premissas são realizadas. compreendemos então um fenômeno isolado com base na lei. pensamos da seguinte forma: sob determinadas condições ocorre um fenômeno; as condições existem, e por isso o fenômeno tem de ocorrer. É este o nosso processo mental ao nos aproximarmos de um acontecimento do mundo inorgânico a fim de explicá—lo. este é o método demonstrativo. ele é científico porque impregna completamente um fenômeno com o conceito, fazendo com que a percepção e o pensar coincidam. mas com esse método demonstrativo nós nada podemos empreender na ciência do orgânico. o tipo justamente não determina que, sob certas condições, ocorra determinado fenômeno; ele nada estabelece sobre uma relação entre partes que, estranhas entre si, passem a confrontar-se exteriormente. ele apenas determina a regularidade de suas próprias partes; não aponta para além de si, como a lei natural. portanto, as formas orgânicas particulares só podem ser desenvolvidas com base na configuração genérica do tipo, e os seres orgânicos que se oferecem à experiência precisam coincidir com qualquer de tais formas derivadas do tipo. o método demonstrativo deve ser substituído pelo método evolutivo. aqui não se constata que as condições externas interagem desta maneira, mostrando portanto determinado resultado, e sim que, sob determinadas condições externas, uma forma particular se originou do tipo. eis a diferença radical entre ciência inorgânica e orgânica. nenhum método de pesquisa se baseia nessa diferença de maneira tão conseqüente quanto o de göethe. ninguém como göethe reconheceu que deve ser possível uma ciência orgânica sem nenhum misticismo obscuro sem teleologia, sem admitir determinados pensamentos sobre a criação; mas tampouco ninguém afastou de si mais decisivamente a pretensão de, aqui, empreender algo com os métodos da ciência natural inorgânica.45 como vimos, o tipo é uma forma científica mais abrangente do que o fenômeno primordial. ele também pressupõe uma atividade mais intensiva da nossa mente do que este último. ao refletirmos sobre as coisas da natureza inorgânica, a percepção dos sentidos nos proporciona o conteúdo. É nossa organização sensorial que aqui já nos oferece o que, no orgânico, só recebemos por intermédio da mente. para se perceber doce, ácido, calor, frio, luz, cor, etc., bastam os sentidos sadios. no pensar nós temos de encontrar, para a matéria, apenas a forma. no tipo, contudo, forma e conteúdo estão intimamente ligados. por isso o tipo não determina o conteúdo de maneira puramente formal, como o faz a lei; ele o permeia de maneira viva, de dentro, como sendo o seu próprio. À nossa mente cabe a tarefa de participar produtivamente na geração do ,

45 em minhas obras se encontrará, de diversas maneiras, menção a ‘misticismo e ‘mística’. que não há contradição entre

essas diversas maneiras, conforme se tem desejado fantasiar, pode-se deduzir em todos os contextos. e possível formar um conceito geral de ‘mística’, segundo o qual ela abrange tudo o que se pode experimentar do mundo mediante uma vivência anímica interior. este conceito não pode ser contestado de saída, pois tal experiência existe. ela não só revela algo do interior humano, mas a respeito do mundo. É preciso ter olhos onde se desenrolem processos para que se possa experimentar algo sobre o reino das cores. contudo, graças a isto não se aprende algo apenas sobre os olhos, mas sobre o mundo. É preciso ter um órgão anímico interior para conhecer certas coisas do mundo. no entanto, é preciso acrescentar a mais completa clareza conceitual às experiências do órgão místico para surgir o conhecimento. porém existem pessoas que querem refugiar-se no ‘íntimo’ para escapar à clareza conceítual. estas denominam ‘mística’ aquilo que conduz o conhecimento, retirando-o da luz das idéias, para as trevas do mundo dos sentimentos — do mundo dos sentimentos não iluminado por idéias. minhas obras falam o tempo todo contra este tipo de mística; cada página de meus livros está escrita em favor daquela mística que conserva a clareza de idéias por meio dos pensamentos, e que transforma em órgão anímico da percepção o sentido místico, que atua na mesma região do ser humano em que reinam ordinariamente os sentimentos obscuros. este sentido é, em relação ao espiritual, plenamente comparável ao olho ou ouvido físico. (na. 1924)

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conteúdo, simultaneamente à da forma. desde tempos remotos, a maneira de pensar à qual o conteúdo aparece em imediata conexão com o formal sempre foi denominada intuitiva. repetidamente a intuição tem surgido como princípio científico. o filósofo inglês reid46 chama de intuição o fato de simultaneamente haurirmos, da percepção dos fenômenos externos (impressões sensoriais), a convicção da existência dos mesmos. jacobi entendia que em nosso sentimento de deus não nos é dado apenas este mesmo sentimento, mas também a garantia de que deus existe.47 também este juízo se denomina intuitivo. como se vê, o característico é que no conteúdo sempre deve ser dado mais do que este próprio; que se tenha conhecimento de uma determinação intelectual, sem prova, simplesmente por convicção imediata. acredita-se não ser necessário comprovar os atributos mentais ‘ser etc., do objeto perceptual: nós os possuímos em unidade inseparável com o conteúdo. no caso do tipo, no entanto, isto realmente ocorre. por isso ele não pode fornecer nenhum meio de comprovação simplesmente oferecer a possibilidade de desenvolver cada forma particular com base em si mesmo. portanto, nossa mente precisa atuar muito mais intensamente na compreensão do tipo do que na compreensão da lei natural. juntamente com a forma, ela deve gerar o conteúdo. precisa assumir uma atividade que na ciência natural inorgânica é assumida pelos sentidos, e que denominamos ‘contemplação’. neste grau superior, portanto, a própria mente deve tornar-se contemplativa. nosso juízo deve contemplar pensando e pensar contemplando.48 aqui nós lidamos, conforme explicou göethe pela primeira vez, com um juízo contemplativo. com isto göethe comprovou existir no espírito humano, como forma necessária de compreensão, aquilo que kant pretendia ter demonstrado não competir ao homem, dada toda a disposição deste. se o tipo representa, na natureza orgânica, a lei natural (fenômeno primordial) da natureza inorgânica, a intuição (juízo contemplativo) representa o juízo demonstrativo (reflexivo). assim como se acreditava poder aplicar à natureza orgânica49 as mesmas leis válidas para um grau inferior de conhecimento, também se entendia que o mesmo método valesse aqui como lá. ambas as coisas são um erro. muitas vezes a intuição foi tratada com muito desprezo na ciência. considerou-se uma falha do espírito de göethe o fato de ele querer alcançar verdades científicas com a intuição. o que é alcançado pelo caminho intuitivo é, na verdade, considerado bem importante por muitos quando se trata de uma descoberta científica. aí, conforme se diz, o fato de ocorrer uma idéia leva mais longe do que o pensar educado metodicamente. É que freqüentemente se denomina intuição quando alguém encontra por acaso algo certo, de cuja verdade o pesquisador só se convence com muitos rodeios. no entanto, sempre se nega que a própria intuição possa ser um princípio da ciência. o que se revelou à intuição precisa ainda ser comprovado posteriormente — segundo se pensa — para ter valor científico. foi assim que também se consideraram as conquistas científicas de göethe como idéias cheias de espírito, que só depois foram confirmadas pela ciência rigorosa. para a ciência orgânica, no entanto, a intuição é o método correto. de nossas explicações se sobressai nitidamente o fato de o espírito de göethe, justamente por estar aberto à intuição, ter encontrado o caminho correto no âmbito orgânico. o método apropriado à ciência orgânica coincidia com a constituição de sua mente. por isso, tudo lhe ficava mais claro quanto mais ela se distinguia da ciência natural inorgânica. para ele, uma se esclarecia na outra. por isso ele também delineou com traços bem marcantes a essência do inorgânico. para o menosprezo com que se trata a intuição concorre — e não menos o fato de se achar que não se pode atribuir às suas conquistas o mesmo grau de credibilidade das ciências demonstrativas. freqüentemente, só se denomina saber aquilo que se demonstrou; todo o resto é crença. É preciso ponderar que a intuição significa algo totalmente diverso, no âmbito da nossa 46

thomas reid (17 10—1796), an inquiry into the human mind of common principle of common sense (7. ed. edinburgh, 1814), cap. ii, 7. aí é descrito o processo com a palavra ‘sugestão’, que na tradução alemã (3. ed. leipzig, 1782) foi substituida pela palavra ‘intuição. (n.e. orig.) 47 “a revelação primordial de deus ao homem não é nenhuma revelação em imagem e palavra, mas um despontar no mais íntimo sentimento.” friedrich heinrich jacobis werke, 6 vols. (leipzig, 1812—1825), vol. 3, p. xx. vide tb. op. cit., vol. 3, von göttlichen dingen, p. 317 et al. (n.e. orig.) 48 vide os ensaios de göethe bedeutende fördernis durch ein einziges geistreiches wort, in goethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. ii, p. 31; e anschauende urteilskraft, ibidem, vol. i, pp. 115—116. vide tb. kant, kritik der urteilskraft [crítica do juízo], § 77. (n.e. orig.) 49 em edicões anteriores do original constava inorgânica, erro que foi corrigido na última edição do mesmo e, conseqüentemente, nesta nova traduçáo brasileira. (n.e.)

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direcão científica — que está convicta de captarmos em essência, no pensar, o cerne do mundo — do que naquela que transfere esse cerne para um além insondável. quem, no mundo que se nos faz presente na medida em que o vivenciamos ou o permeamos com nosso pensar, nada mais vê do que um reflexo, uma imagem de um além, de algo desconhecido e atuante — e que permanece oculto atrás desse envoltório não só ao primeiro olhar, mas a despeito de toda a pesquisa científica, só no método demonstrativo poderá enxergar um substituto para o deficiente acesso à essência das coisas. como não admite a opinião de que uma concatenação mental surja diretamente por meio do conteúdo essencial dado no pensamento, isto é, por meio da própria coisa, ele crê só poder sustentá-la colocando-a em sintonia com algumas convicções fundamentais (axiomas) — que, por tão simples, nem são capazes de demonstração e nem precisam dela. sendo-lhe então feita uma afirmação científica sem demonstração, mormente uma que, segundo toda a sua natureza, exclua o método demonstrativo, esta lhe parece imposta de fora; uma verdade se aproxima dele sem que ele conheça as razões de sua validade. ele acredita não possuir um saber, um discernimento da coisa; acredita poder apenas entregar-se a uma crença de que fora de sua capacidade pensante existiriam quaisquer razões para sua validade. nossa cosmovisão não está exposta ao perigo de precisar considerar os limites do método demonstrativo igualmente como limites da convicção científica. ela nos conduziu à opinião de que o cerne do mundo aflui para o nosso pensar; de que não só pensamos sobre a essência do mundo, mas de que o pensar é um caminhar junto com a essência da realidade. e com a intuição não nos é imposta de fora uma verdade, pois para o nosso ponto de vista não existe um exterior ou interior da maneira como supõe a recém-caracterizada teoria científica oposta à nossa. para nós a intuição é uma percepção direta, uma penetração na verdade, dando-nos tudo o que importa no tocante a esta última. ela se realiza totalmente naquilo que nos é dado em nosso juízo intuitivo. o elemento característico da crença, ou seja, o fato de apenas nos ser dada a verdade pronta, e não as causas, e de estarmos privados do conhecimento intrínseco da coisa em questão, falta aqui completamente. o conhecimento adquirido pelo caminho da intuição é tão científico quanto o conhecimento demonstrado. cada organismo isolado é o aperfeiçoamento do tipo em forma particular. É uma individualidade, que regula e determina a si mesma a partir de um centro. É uma totalidade coesa, o que na natureza inorgânica é constituído apenas pelo cosmo. o ideal da ciência inorgânica é captar a totalidade de todos os fenômenos como sistema unitário, a fim de enfrentarmos cada fenômeno isolado com a consciência de que o conhecemos como membro do cosmo. na natureza orgânica, em contrapartida, o ideal deve ser ter no tipo e em suas formas manifestas, na maior perfeição possível, aquilo que vemos desenvolver-se na seqüência dos seres individuais. a realização do tipo através de todas as manifestações é aqui o fator decisivo. na ciência inorgânica existe o sistema, e, na orgânica, a comparação (de cada forma individual com o tipo). a análise espectral e o aperfeiçoamento da astronomia estendem ao universo inteiro as verdades obtidas no restrito domínio do terrestre. com isto se aproximam do primeiro ideal. o segundo será realizado quando o método comparativo empregado por göethe for reconhecido em todo o seu alcance.

f. as ciências humanas 17. introdução: espírito e natureza já esgotamos o campo do conhecimento da natureza. a biologia é a mais alta forma da ciência natural. o que está ainda mais acima são as ciências humanas. estas exigem um comportamento da mente humana, em relação ao objeto, essencialmente diferente do que o das ciências naturais. nestas últimas a mente tinha de desempenhar um papel universal. cabia-lhe, por assim dizer, levar o próprio processo universal à conclusão. aquilo que existia sem a mente humana era apenas metade da realidade — estava incompleto, fragmentário em qualquer ponto. a mente humana teve, aí, de chamar à existência manifesta os mais íntimos impulsos da realidade, embora estes também fossem válidós sem sua intromissão subjetiva. caso o ser humano fosse um mero ser sensorial, sem faculdade mental, a natureza inorgânica não seria menos dependente de leis naturais, mas estas,

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como tais, nunca chegariam à existência. na verdade haveria seres que perceberiam o efetuado (o mundo sensorial), mas não o efetuante (a regularidade intrínseca). É realmente a forma genuína, e até mesmo a mais verdadeira forma da natureza, a que se manifesta na mente humana, enquanto para um mero ente sensorial existe apenas o lado exterior dela. a ciência tem aqui um papel mundialmente significativo: ela é a conclusão da obra da criação. É a luta da natureza consigo mesma desenrolando-se na consciência do ser humano. o pensar é o último componente na seqüência dos processos que formam a natureza. não é o que ocorre com as ciências humanas. aqui nossa consciência lida com o próprio conteúdo espiritual: com o espírito humano individual, com as criações da cultura, da literatura, com as sucessivas convicções científicas, com as criações da arte. o elemento espiritual é captado pelo espírito. aqui a realidade já contém o ideal, a as leis reguladoras, que em outro âmbito só se revelam na concepção mental. o que nas ciências naturais é apenas produto da reflexão sobre os objetos, aqui já é inato a eles. a ciência desempenha um papel diferente. a essência já existiria no objeto sem seu trabalho. e com atos, criações e idéias humanas que nós lidamos. e uma confrontação do ser humano consigo mesmo e com sua espécie. a ciência tem, aqui, uma missão diferente a cumprir do que perante a natureza. novamente essa missão surge, a princípio, como uma necessidade humana. assim como, frente à realidade da natureza, a necessidade de encontrar a idéia da mesma surge primeiramente como anseio do nosso espírito, também a tarefa das ciências humanas existe primeiramente como impulso humano. novamente, é apenas um fato objetivo que se manifesta como necessidade subjetiva. o homem não deve atuar, tal qual o ser da natureza inorgânica, sobre outro ser segundo normas exteriores, segundo leis que o dominem; tampouco deve ser simplesmente a forma individual de um tipo genérico, e sim propor a si mesmo o objetivo, a meta de sua existência, de sua atividade. se seus atos são resultados de leis, essas leis precisam ser as que ele outorga a si mesmo. o que ele é em si, o que ele é entre seus semelhantes, no estado e na história, não pode ocorrer por determinação externa. ele precisa sê-lo por si mesmo. o modo como ele se encaixa na estrutura do mundo depende dele próprio. ele precisa encontrar o ponto para participar do mecanismo do mundo. É aqui que as ciências humanas recebem sua tarefa. o homem precisa conhecer o mundo espiritual para, segundo este conhecimento, determinar sua participação no mesmo. aí surge a missão que a psicologia, a etnologia e a ciência da história têm a cumprir. a essência da natureza é o fato de a lei e a atividade estarem separadas, parecendo que esta é dominada por aquela; a essência da liberdade, ao contrário, é o fato de ambas coincidirem, sendo que o efetuante se realiza imediatamente no efeito e o efetuado se regula a si mesmo. as ciências humanas são, portanto, eminentemente ciências da liberdade. a idéia de liberdade tem de ser seu ponto central, a idéia que as domina, o fato de as ‘cartas estéticas’ de schiller50 ocuparem lugar tão elevado é por quererem encontrar a essência da beleza na idéia da liberdade, pois a liberdade é o princípio que as impregna. o espírito ocupa na totalidade, no todo do universo, apenas aquele lugar que, como indivíduo, ele atribui a si. enquanto na biologia deve ser sempre focalizado o genérico, a idéia do tipo, nas ciências humanas é a idéia da personalidade que deve ser fixada. o que importa não é a idéia tal como se manifesta na generalidade (tipo), mas sim como se apresenta no ser singular (indivíduo). naturalmente o determinante não é a personalidade isolada casual, esta ou aquela personalidade, mas sim a personalidade si — porém não se desenvolvendo por si em formações especiais e só assim vindo à existência sensorial, mas de maneira auto-suficiente, coesa, encontrando sua determinação em si própria. o tipo tem a determinação de realizar-se tão-somente no indivíduo. a pessoa tem, já como algo ideal, a de conquistar uma existência baseada realmente em si mesma. e totalmente diferente falar de uma humanidade em geral e de uma regularidade geral aplicável à natureza. nesta última, o particular é condicionado pelo geral; na idéia de humanidade, a generalidade é condicionada pelo particular. se conseguirmos descobrir leis gerais para a história, estas só serão gerais na medida em que houverem sido propostas como metas ou ideais pelas personalidades históricas. este é o contraste intrínseco entre a natureza e o espírito. a primeira exige uma ciência que ascende do imediatamente dado, como algo condicionado, ao que é apreensível no espírito como algo condicionante; o último exige uma ciência que progrida do elemento dado, como condicionante, ao 50 vide friedrich von schiller, a educação estética do homem (são paulo: iluminuras 1989). (n.e.)

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condicionado. o fato de o particular ser ao mesmo tempo o que fornece as leis é uma característica das ciências humanas; o fato de este papel caber ao geral caracteriza as ciências naturais. o que na ciência natural vale apenas como ponto de transição o particular — é só o que nos interessa nas ciências humanas. o que procuramos naquela o geral — só entra aqui em consideração na medida em que nos esclarece sobre o particular. seria contra o espírito da ciência permanecer, perante a natureza, no imediatismo do particular. no entanto, seria também diretamente mortal para o espírito se, por exemplo, se quisesse enquadrar a história grega num esquema conceitual geral. ali, o sentido preso ao fenômeno não conquistaria ciência alguma; aqui, o espírito que procedesse segundo um padrão genérico perderia todo o sentido para o individual.

18. a cognição na psicologia a primeira ciência em que a mente lida consigo mesma é a psicologia. a mente se encontra, de modo contemplativo, diante de si mesma. fichte só atribuía uma existência ao ser humano na medida em que este a fixa em si próprio.51 em outras palavras: a personalidade humana só possui as características, propriedades, capacidades, etc. que ela mesma se atribui graças à introspecção em seu ser. uma faculdade humana da qual o homem nada soubesse não seria reconhecida por ele como sua, sendo então atribuída a alguém estranho. se fichte acreditava poder fundamentar toda a ciência do universo nesta verdade, isso foi um erro. essa verdade está destinada a tornar-se o mais elevado princípio da psicologia, determinando seus métodos. se a mente possui uma propriedade apenas na medida em que a atribui a si mesma, o método psicológico é o aprofundamento da mente em sua própria atividade. autocompreensão é aqui, pois, o método. naturalmente com isto não limitamos a psicologia a ser uma ciência das propriedades casuais de qualquer (este ou aquele) indivíduo humano. nós desprendemos a mente individual de suas limitações casuais, de suas características secundárias, e tentamos elevar-nos à contemplação do indivíduo humano em si. ora, o decisivo não é contemplarmos a individualidade particular totalmente casual, mas sim termos clareza principalmente acerca do indivíduo que se autodetermina. quem quisesse afirmar que, nesse caso, não estaríamos lidando com nada mais além do tipo da humanidade, estaria confundindo o tipo com o conceito generalizado. É essencial ao tipo, como elemento genérico, defrontar-se com suas formas individualizadas. não é o caso do conceito do indivíduo humano. aqui o genérico está diretamente ativo no ser isolado; só que essa atividade se expressa de várias maneiras, de acordo com os objetos a que se dirige. o tipo se apresenta em formas individualizadas, e é nelas que entra em interação com o mundo exterior. a mente humana tem apenas uma forma. no entanto, aqui aqueles objetos movimentam seu sentir, ali aquele ideal a entusiasma para ações, etc. não se trata de uma forma particular do espírito humano; é sempre com o ser humano inteiro, pleno, que se lida. É preciso destacá-lo de seu ambiente quando se quer compreendê-lo. querendo-se chegar ao tipo, deve-se ascender da forma isolada à forma primordial; querendo-se chegar ao espírito, deve-se abstrair das expressões pelas quais ele se manifesta, dos atos especiais que ele efetua, e contemplá-lo em si e por si. deve-se espreitá-lo em sua maneira geral de atuar, e não como atuou nesta ou naquela situação. no tipo deve-se destacar, por comparação, a forma geral das formas individuais; na psicologia, basta destacar a forma individual de seu ambiente. aí não sucede mais como na biologia, em que no ser específico reconhecemos uma formação do genérico, da forma primordial; trata-se, sim, da percepção do específico como essa própria forma primordial. o ser espiritual humano não é uma configuração da idéia da forma primordial; ele é a configuração da mesma. se jacobi acredita que com a percepção do nosso íntimo já adquirimos a convicção de que este se fundamenta num ser unitário (autocompreensão intuitiva), tal pensamento é errôneo pelo fato de percebermos esse próprio ser unitário. 52 o que de outro modo é intuição torna-se, aqui, justamente autocompreensão. na forma mais elevada da existência isto também é objetivamente necessário. aquilo que o espírito pode ler nos fenômenos é a forma mais elevada de conteúdo alcançável por ele. refletindo então sobre si mesmo, deve reconhecer-se como a manifestação direta dessa forma mais elevada,como o portador dela. o que o espírito 51 vide, por exemplo, o texto de fichte die bestimmung des menschen. (n.e. orig.) 52 vide f. h. jacobi, von göttlichen dingen (cit.), p. 234 s. (n.e. orig.)

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encontra como unidade na realidade multiforme, ele deve encontrá-lo em sua individualidade como existência imediata. o que ele contrapõe à particularidade como sendo algo genérico, ele deve atribuí-lo à sua individualidade como sendo a própria essência desta. de tudo isto se deduz que só é possível alcançar uma verdadeira psicologia ao se compreender a natureza do espírito como sendo ativa. em nossa época quis-se colocar, em lugar deste método, um outro que torna objeto da psicologia os fenômenos em que o espírito se revela, e não o próprio espírito. acredita-se poder levar as diversas expressões do espírito a uma correlação externa, tal como no caso dos fatos naturais inorgânicos. assim, quer-se fundar uma ‘teoria da alma [porém] sem alma’.53 de nossas observações se deduz que com esse método perde-se de vista justamente o que importa. dever-se-ia destacar o espírito de suas exteriorizações e remontar a ele como o produtor delas. as pessoas se limitam às mesmas e se esquecem dele. portanto, também aqui se deixaram seduzir pelo falso ponto de vista que quer aplicar os métodos da mecânica, da física, etc. a todas as ciências. a alma unitária nos é dada à experiência da mesma maneira como seus atos isolados. cada um é cônscio de que seu pensar, sentir e querer partem de seu ‘eu’. toda atividade de nossa personalidade está ligada a esse centro do nosso ser. quando, numa ação, não se considera essa ligação com a personalidade, ela deixa inteiramente de ser um fenômeno psíquico: ou se subordina ao conceito da natureza inorgânica ou ao da natureza orgânica. caso haja duas bolas sobre a mesa e eu impulsione uma em direção à outra, abstraindo-se de minha intenção e de meu querer tudo se resolve em acontecimento físico ou fisiológico. em todas as manifestações da mente — pensar, sentir, querer —, o que importa é reconhecê-las em sua essência como expressões da personalidade. É nisto que se baseia a psicologia. porém o homem não pertence apenas a si próprio; ele também pertence à sociedade. o que se revela nele não é apenas sua individualidade, mas também a da nacionalidade a que ele pertence. o que ele realiza se origina de sua força, mas também da força plena de seu povo. com sua missão ele cumpre uma parte da missão de seu povo. o que importa é que seu lugar no âmbito de seu povo seja tal que ele possa fazer valer plenamente a potência de sua individualidade. isto só é possível quando o organismo social permite ao indivíduo encontrar o lugar onde ele seja capaz de fincar sua alavanca. não deve ficar entregue ao acaso a eventualidade de ele encontrar esse lugar. pesquisar a maneira como a individualidade se manifesta e vive dentro da comunidade de seu povo é assunto da etnologia e da ciência política. a individualidade nacional é o objeto desta última. ela tem de mostrar a forma a ser adotada pelo organismo estatal para a individualidade nacional se expressar nele. a constituição que um povo outorga a si mesmo deve evoluir da essêneia mais íntima deste. também aqui decorrem erros consideráveis. não se considera a ciência política como uma ciência experimental. acredita-se poder estruturar a constituição de todos os povos segundo um certo padrão. a constituição de um povo nada mais é, porém, do que seu caráter individual colocado em formas legais bem determinadas. quem queira prescrever a direção em que determinada atividade de um povo deve mover-se não pode impingir nada de fora a ele: deve simplesmente expressar o que reside inconscientemente no caráter do povo. “não é o homem inteligente que rege, e sim o intelecto; não é o homem racional, e sim a razão”, diz göethe.54 conceber a individualidade étnica como racional é o método da etnologia. o homem pertence a um todo cuja natureza é a organização da razão. também aqui podemos citar novamente uma importante frase de göethe: “o mundo dotado de razão deve ser visto como uma grande individualidade imortal, que realiza incessantemente o necessário e, por isso, torna-se até mesmo senhor do casual.”55 assim como a psicologia tem de pesquisar a essência da individualidade particular, a etnologia (psicologia dos povos) tem de pesquisar aquela ‘individualidade imortal’.

19. a liberdade humana nossa concepção das fontes da nossa atividade cognitiva não pode deixar de ter influência sobre a dos nossos atos práticos. o homem age segundo determinações pensamentais que lhe são 53

friedrich albert lange (1828—1875) cunhou a expressão ‘psicologia sem alma’ em geschite des materialismus und kritik seiner bedeutung in der gegenwart (iserlohn, 1866; 10. ed. 1821), p. 462: ‘zweites buch, iii. die naturwissenschaftliche psychologie’. (n.e. orig.) 54 goethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. v: sprüche in prosa, p. 482. (n.e. orig.) 55 ibidem, p. 482

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inerentes. o que ele realiza orienta-se segundo intenções, metas que ele se propõe. contudo, é inteiramente natural que essas metas, intenções, idéias, etc. tragam o mesmo caráter que o restante mundo pensamental do homem. e assim haverá uma verdade prática da ciência dogmática, com um caráter essencialmente diferente da que resulta de nossa teoria do conhecimento. se as verdades que o homem alcança na ciência forem condicionadas por uma necessidade objetiva sediada fora do pensar, também o serão os ideais em que ele baseia o seu atuar. então o homem estará agindo segundo leis cuja fundamentação lhe falta, no sentido objetivo: ele estará imaginando uma norma prescrita de fora para o seu atuar. esse, porém, é o caráter do mandamento que o homem tem de observar. o dogma, como verdade prática, é mandamento moral. É bem diferente quando a fundamentação se dá em nossa teoria do conhecimento. esta não reconhece nenhum fundamento das verdades a não ser o conteúdo pensamental existente nelas. ao surgir, portanto, um ideal moral, é a força interior situada em seu conteúdo que guia o nosso atuar. não é pelo fato de um ideal nos ser dado como lei que nós agimos de acordo com ele, e sim porque o ideal, graças ao seu conteúdo, atua em nós, guiando-nos. o impulso para agir não está fora, mas dentro de nós. ao mandamento do dever nos sentiríamos submissos; deveríamos agir de determinada maneira por ele assim o ordenar. aí vem primeiro o dever e depois o querer, que tem de sujeitar-se àquele. segundo nossa opinião, não é esse o caso. o querer é soberano. ele só executa o que, como conteúdo pensamental, reside na personalidade humana. o homem não se submete a receber leis de um poder externo; ele é seu próprio legislador. quem mais deveria outorgá-las a ele, segundo nossa cosmo-visão? o fundamento cósmico se derramou completamente no mundo; ele não se retirou do mundo a fim de guiá-lo de fora ele o movimenta de dentro, não se esquivou dele.56 a forma mais elevada sob a qual ele se manifesta dentro da realidade da vida comum é o pensar, e com este a personalidade humana. se com isso o fundamento cósmico tem metas, estas são idênticas às metas a que o homem se propõe quando se auto-realiza. não é pesquisando quaisquer mandamentos do regente universal que ele age segundo as intenções deste, e sim atuando segundo seus próprios critérios; pois é neles que se manifesta esse regente universal. este não vive como uma vontade em qualquer lugar fora do homem; ele se desfez de toda vontade própria para tornar tudo dependente da vontade humana. para que o homem possa ser seu próprio legislador, todos os pensamentos sobre determinações extra-humanas do mundo, e coisas semelhantes, têm de ser abandonadas. nesta oportunidade, chamamos a atenção para o interessantíssimo ensaio de kreyenbühl no periódico philosophische monatshefte [cadernos filosóficos mensais], vol. 18, nº3.57 ele expõe de maneira correta como as máximas do nosso atuar procedem de determinações imediatas de nossa individualidade; e como nada do que é eticamente grandioso é incutido pelo poder da lei moral, e sim executado em virtude do impulso direto de uma idéia individual. somente esta opinião possibilita uma verdadeira liberdade do homem. se o homem não trouxer em si os fundamentos do seu atuar, precisando orientar-se conforme mandamentos, estará agindo sob um jugo, estará sujeito a uma necessidade, quase como um mero ser natural. nossa filosofia é, portanto, eminentemente uma filosofia da liberdade.58 primeiro mostra teoricamente como devem ser suprimidas todas as forças, etc. que guiavam o mundo de fora, para que então o homem se torne seu próprio senhor, no melhor sentido da palavra. quando o homem age moralmente, para nós isto não é cumprimento do dever, mas a expressão de sua natureza completamente livre. o homem não age porque deve, e sim porque quer. göethe também tinha esta opinião em vista ao dizer o seguinte: —

lessing, que sentia contrariado muitas restrições, faz um de seus personagens dizer: “ninguém deve dever.” um homem espirituoso, de bom humor, disse: “quem quer, deve.” um terceiro, aliás um erudito, acrescentou: “quem entende, também quer.”59 portanto, não existe outro impulso para o nosso atuar além do nosso discernimento. sem que se acrescente qualquer imposição, o homem livre atua conforme seu discernimento, conforme 56 vide o poema de göethe proemion, na coletânea gott and welt. (n.e. orig.)

57 j. kreyenbühl, ‘die etische freiheit bei kant’. philosophische monatshefte

xviii, heidelberg, 1882, p. 129 ss. (n.e. orig.) 58 as idéias desta filosofia foram posteriormente desenvolvidas em minha obra die philosophie der ereiheit. (na. 1924) [título da edição brasileira: a filosofia da liberdade (3. ed. são paúlo: antroposófica, 2000). (n.e.)] 59 goethes naturwissenschaftliche schriften (cit., vol. v: sprüche in prosa, p. 460. (n.e. orig.)

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mandamentos que ele próprio outorga a si. era em torno destas verdades que girava a conhecida controvérsia entre kant e schiller.60 kant assumia o ponto de vista do mandamento obrigatório. ele acreditava degradar a lei moral caso a tornasse dependente da subjetividade humana. segundo sua opinião, o homem só age moralmente quando, no atuar, se despoja de todos os impulsos subjetivos e se curva puramente àmajestade do dever. schiller via nessa opinião uma degradação da natureza humana. seria esta, afinal, tão ruim que precisaria eliminar completamente seus próprios impulsos se quisesse ser moral? a cosmovisão de schiller e göethe só pode reconhecer para si a opinião que indicamos. É no próprio homem que deve ser buscado o ponto de partida de seu agir. por isso, tampouco na história, cujo objeto é o homem, é permitido falar de influências externas à atuação deste, de idéias existentes na época, etc.; menos ainda de um plano subjacente a ela. a história nada mais é senão o desenvolvimento de atos humanos, opiniões, etc. “em todos os tempos, foram apenas os indivíduos que atuaram em prol da ciência, e não a época. foi a época quem envenenou sócrates; foi a época quem queimou huss; as épocas sempre permaneceram iguais”, diz goethe. toda construção apriorística de planos que deveriam fundamentar a história é contra o método histórico resultante da essência da história. esta tem por meta perceber com quê os homens contribuíram para o progresso de sua espécie; descobrir que objetivos esta ou aquela personalidade se propôs, que rumo deu à sua época. a história deve ser completamente fundamentada na natureza humana. deve captar seu querer, suas tendências. nossa ciência gnosiológica exclui completamente que se atribua à história uma finalidade como, por exemplo, a de os homens serem educados para um grau superior de perfeição a partir de um inferior, etc. da mesma maneira, à nossa opinião parece errôneo querer, como faz herder em ideen zur philosophie der geschichte der menschheit [idéias para a filosofia da história da humanidade], compreender os acontecimentos históricos como os fatos naturais segundo a sucessão de causa e efeito. as leis da história são justamente de natureza bem superior. um fato da física é determinado por outro de modo tal que a lei está acima dos fenômenos. um fato histórico é, como algo ideal, determinado por um fator ideal. aí só se pode falar de causa e efeito ficando bem na superficialidade. quem poderia acreditar que alguém estivesse relatando a verdade ao denominar lutero a causa da reforma? a história é essencialmente uma ciência ideativa. sua realidade já são idéias. por isso, a dedicação ao objeto é o único método correto. tudo o que o ultrapasse deixa de ser histórico. a psicologia, a etnologia e a história são as principais formas das ciências humanas.61 seus métodos, conforme vimos fundamentam-se na apreensão imediata da realidade ideativa. seu objeto é a idéia, o espiritual, da mesma forma como o da ciência inorgânica era a lei natural e da orgânica, o tipo.

20. otimismo e pessimismo o homem se nos mostrou como centro da ordem mundial. ele alcança, como espírito, a forma mais elevada da existência, e realiza no pensar o mais perfeito processo do mundo. só pelo modo como ele ilumina as coisas é que estas são reais. esta é uma opinião segundo a qual o homem contém em si próprio o esteio, a meta e o cerne de sua existência. ela faz do homem um ser autosuficiente. ele tem de encontrar em si o apoio para tudo o que nele existe — portanto, também para sua felicidade. caso a obtenha, será graças a si próprio. toda potência que lhe ofertasse felicidade de fora o condenaria à privação de liberdade. não é possível proporcionar algo 62 de satisfação a uma pessoa a quem esta faculdade não tenha sido primeiro outorgada por ela própria. para que algo signifique um prazer para nós, primeiro nós mesmos devemos conferir-lhe o poder de conseguir isso. prazer e desprazer só existem para o homem, em sentido superior, na medida em que ele os sente como tais. com isto desmorona todo e qualquer otimismo e todo e qualquer 60 vide kant, kritik der praktischen vernunft [crítica da razão prática], 1788, i parte, livro 1, cap. 3:

‘von der triebfedern der reinen praktischen vernunft; e a réplica de schiller na xênia: “escrúpulo: ‘gosto muito de servir aos amigos, mas infelizmente o faço por inclinação, / e assim me mortifica sempre o fato de eu não ser virtuoso. — decisão: ‘não há outro conselho — deves procurar ficar atento a ela, / e então, com repulsa, fazer como o dever te obriga.’ ” (n.e. orig.) 61 depois de ter elaborado os vários campos do que denomino ‘antroposofia’, eu deveria — caso escrevesse este livro hoje — incluir aqui essa ‘antroposofia’. quarenta anos atrás, ao escrevê-lo empregando o termo ‘psicologia’ (num sentido, aliás, não usual), eu tinha perante os olhos algo que encerrava a contemplação de todo o ‘mundo do espírito’ (pneumatologia). disso, porém, não se deve concluir que naquela época eu quisesse excluir esse ‘mundo do espírito’ do conhecimento do homem. (na. 1924) 62 ‘algo’: palavra inserida de acordo com uma correção [posterior] de rudolf steiner. (n.e. orig.)

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pessimismo. o primeiro argumenta ser o mundo de natureza tal que tudo nele é bom, e que ele conduz o homem à mais alta satisfação. mas, para isso ocorrer, o próprio homem deve extrair dos objetos do mundo algo pelo qual anseie, ou seja: ele não pode tornar-se feliz graças ao mundo, mas apenas graças a si mesmo. o pessimismo, por sua vez, crê que a organização do mundo é de natureza a deixar o homem eternamente insatisfeito, de modo que ele nunca pode ser feliz. a objeção acima vale, naturalmente, também aqui. o mundo externo não é, em si, bom nem ruim; ele só vem a sê-lo por intermédio do homem. o homem precisaria tornar a si próprio infeliz para o pessimismo ter fundamento; precisaria ter anseio de infelicidade. porém a satisfação de seu anseio fundamenta justamente sua felicidade. o pessimista deveria, por conseguinte, admitir que o homem vê na infelicidade sua felicidade. com isto, porém, sua opinião se desfaria novamente em nada. esta única ponderação é o bastante para mostrar claramente o caráter errôneo do pessimismo.

g. conclusão 21. cognição e criação artística nossa teoria do conhecimento despojou a cognição de seu caráter meramente passivo que em geral lhe é atribuído, compreendendo-o como atividade do espírito humano. habitualmente, acredita-se que o conteúdo da ciência seja recebido de fora; entende-se até mesmo que a objetividade da ciência possa ser mantida em grau tanto maior quanto mais o espírito se abstenha de qualquer adição própria ao material captado. nossas explicações mostraram que o verdadeiro conteúdo da ciência não é, em absoluto, a matéria exterior percebida, mas a idéia mentalmente apreendida, que nos introduz mais profundamente na engrenagem do mundo do que toda dissecação e observação do mundo exterior como mera experiência. a idéia é confeúdo da ciência. com isso, diante da percepção obtida passivamente a ciência éum produto da atividade do espírito humano. com isso nós aproximamos a cognição da criação artística, que aliás também é uma produção ativa do homem. ao mesmo tempo, contudo, também provocamos a necessidade de esclarecer a mútua relação de ambas. tanto a atividade cognitiva quanto a artística se baseiam no fato de o homem se elevar da realidade enquanto produto à realidade enquanto produtora; ascender do elemento criado ao processo criador, da casualidade à necessidade. enquanto a realidade externa sempre nos mostra apenas uma criação da natureza,nós nos elevamos em espírito à unidade natural que se nos manifesta como a criadora. cada objeto da realidade nos apresenta uma das infinitas possibilidades ocultas no seio da natureza criadora. nosso espírito se eleva à visão da fonte onde estão contidas todas essas possibilidades. ciência e arte são, então, os objetos nos quais o homem imprime o que essa visão lhe oferece. na ciência isto só acontece sob forma de idéia, isto é, no meio espiritual imediato; na arte, num objeto perceptível de modo espiritual ou sensorial. na ciência a natureza se manifesta como “aquilo que abrange tudo o que é individual”; na arte, um objeto do mundo exterior se manifesta representando esse algo abrangente. o infinito, que a ciência procura no finito e se esforça para representar na idéia, a arte cunha num material retirado do mundo da existência. o que na ciência se manifesta como idéia, na arte é imagem. o mesmo infinito é objeto tanto da ciência quanto da arte, só que naquela se manifesta diferentemente do que nesta. o modo de representação é diferente. por isso göethe censurava o fato de se falar de uma idéia do belo como se o belo não fosse simplesmente o resplendor sensorial da idéia.63 aqui se evidencia como o verdadeiro artista deve haurir diretamente da fonte primordial de todo o existir, como ele imprime em suas obras o elemento necessário que, na ciência, nós procuramos idealmente na natureza e no espírito. a ciência desvenda na natureza as leis que a regem; a arte não menos, só que ainda as implanta na matéria bruta. um produto da arte não émenos natureza do que um produto desta, só que as leis da natureza lhe foram vertidas tal qual se ,

63 goethes

naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. v: sprüche in prosa, p. 379: “no âmbito estético, não se faz bem em dizer ‘a idéia do belo’; com isso se individualiza o belo’; que no entanto não pode ser pensado individualmente.”

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manifestaram ao espírito humano. as grandes obras de arte que goethe viu na itália 64 lhe pareceram expressão imediata do elemento necessário que o homem percebe na natureza. para ele, portanto, a arte também é uma manifestação de leis naturais ocultas.65 na obra de arte, tudo depende de como o artista implantou a idéia na matéria. o importante não é o que ele trata, mas como o faz. se na ciência a matéria percebida de fora tem de submergir completamente, de modo que apenas remanesça sua essência — a idéia , no produto artístico ela deve permanecer, só que sua peculiaridade e sua contingência devem ser completamente superadas pelo tratamento artístico. o objeto deve ser totalmente isolado da esfera do casual e transposto para a do necessário. no belo artístico não deve permanecer nada em que o artista não haja imprimido o seu espírito. o quê deve ser vencido pelo como. a superação do sensorial pelo espírito é a meta da arte e da ciência. esta supera o sensorial dissolvendo-o completamente em espírito; aquela, implantando-lhe o espírito. a ciência olha através do sensorial para a idéia; a arte enxerga a idéia no sensorial. para concluir nossas considerações segue-se um texto de göethe, expressando essas verdades de modo abrangente: penso que se poderia chamar a ciência de conhecimento do genérico, de saber obtido; a arte, ao contrário, seria ciência aplicada à ação; a ciência seria razão e a arte seu mecanismo, e por isso também se poderia denominá-la ciência prática. por fim, então, a ciência seria o teorema, e a arte, o problema.66

64 italienische reise, roma, 6.9.1787: “estas elevadas obras de arte são, ao mesmo tempo, produzidas por pessoas como as supremas metas da natureza, segundo leis verdadeiras e naturais: tudo o que é voluntário, imaginado, coincide; isso é necessidade, isso é deus.” 65 goethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. v: sprüche in prosa, p. 494: “o belo é uma manifestação de leis naturais secretas, que sem sua manifestacão nos permaneceriam eternamente ocultas.’ 66 ibidem, p. 535.

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