Sonhos Refeitos

  • June 2020
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Sonhos Refeitos Bárbara Martins/Sérgio Corrêa Rio de Janeiro, duas da tarde. Faltavam poucos minutos para o plano de Letícia se concretizar. No quintal da casa, Seu Oscar cuida do jardim de bromélias embelezadas nas cores do outono. Joel terminara de limpar a piscina e fôra ao encontro de Bianca, que ainda recolhia a louça do almoço de um sábado de sol. A casa sem as crianças causava um eco vazio. No final de semana iam pra casa do pai e levavam um pouco do sorriso de sua mãe, que para não deixar a saudade enrugar sua face, passava as tardes gastando em cosméticos, roupas e salões. Letícia carregava consigo a serpente do paraíso. Um corpo modelado e uma pele banhada de sol. Seus cabelos deslizavam por entre os ombros e terminavam em uma costa macia, revelando uma pequena tatuagem na cintura. Sua idade era um mistério. Afirmava ter dezoito, mas seu sorriso era de uma menina encantada com sua boneca. Pôs a perna no mundo quando ao defender sua mãe de mais uma agressão, recebeu um forte tapa de seu padrasto. Com as lágrimas escondidas, encontrou abrigo na casa de sua irmã mais velha. Bianca nunca foi considerada normal. Parecia artista, mas era arteira. Viveu como nômade com um grupo de hippies durante um bom tempo. Participou de protestos, brigou com a polícia, dormiu na cadeia. E foi numa dessas hospedagens criminais que conheceu Joel. Ele foi o responsável pela mudança na vida de Bianca. Graças a ele, passou a ter uma vida menos conturbada... Conseguiu trabalhar como manicure, daquelas que colocam nas unhas desenhos de várias formas. Talento adquirido nos artesanatos de bicho- grilo. Joel era um faz-tudo. Quando jovem, vendia jornais velhos e garrafas para garantir o dinheiro da pipa, sua grande paixão. Cresceu se equilibrando nos ping-pongs da vida. Um concerto aqui, outro ali. Um embrulho pra lá, outro pra cá. Até favores para senhoras desamparadas de carinho ele fez. E pequenos furtos também. Por esse serviço, conseguiu várias vezes assistir ao sol nascer quadrado. Mas seus olhos brilharam quando cruzaram com os de Bianca. Nunca havia observado tanta beleza em um rosto tão maltratado. Naquela noite prometera abandonar os delitos para seguir sua vida ao lado da mulher amada. E assim fizeram... Enquanto Bianca dividia seu tempo entre a casa e o salão, Joel trabalhava como motorista particular. Conseguiram manter as despesas durante bons anos, mas não lhes sobrava muito e Joel já pensava em retornar às atividades ilícitas. Foi quando seu pai interferiu lhe oferecendo trabalho com maior remuneração. Seu Oscar trabalhava há muitos anos na família Ribeiro. Foi contratado para ser o motorista, mas o seu jeito atrapalhado acabou o colocando como jardineiro. Era adorado por todos na casa e por isso, conseguiu um emprego para o filho, antes que ele voltasse a dormir na cadeia. Joel continuava sendo um coringa. Levava as crianças para a escola no carro da família, fazia as compras pra madame, consertava a televisão do patrão. E conseguiu aumentar a renda em sua casa. Quando a madame teve que mandar a cozinheira embora, lembrou-se de Bianca, que já fazia sua unha nos finais de semana, e a contratou para o serviço. Bianca teve facilidade, pois apesar do status de nobreza, a família gostava mesmo era do trivial, deixando de lado os pratos sofisticados e de nomes esquisitos. Depois de oito anos de casamento, o Sr. Ribeiro resolveu abandonar o lar. Dizem que ele achava a esposa frígida, mas Bianca afirmava ser outro o motivo, já que nas noites de insônia, era fácil ouvir os gemidos vindos do quarto. A ida do Sr. Ribeiro mexeu com a cabeça da madame. Passava o dia chorando, quase não saía de casa, vivia tomando calmantes. Seu Oscar, que morava na residência dos fundos, destinada aos empregados, ficou preocupado

com as atitudes da patroa, e sugeriu que Bianca se aproximasse mais como uma amiga. E essa atitude, tranqüilizou-a realmente. Começaram a sair juntas e aos poucos as coisas foram voltando a normalidade. Quando Letícia chegou, logo agradou as crianças. Seu jeito carinhoso, fez com que madame colocasse as crianças sob sua proteção. E ela gostava de contar histórias e pôr as crianças para dormir. Parecia que fazia o que sempre teve vontade que fizessem com ela. Brincavam de jogar água, corriam pelo quintal, se enfeitavam com as flores. Mas por algum motivo, não gostava muito de madame. Talvez, por invejar a vida fácil que a familia lhe concedeu. Quando as crianças iam visitar o pai, Letícia saía e só voltava no domingo à noite. Ninguém sabe para onde ia e nem o que fazia. Mas o sorriso que trazia no rosto, indicava que valera a pena. Assim os dias se passaram. E depois de dois meses após a chegada de Leticia, a maçã do pecado era oferecida. Naquele fim de semana, ela não saiu... xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx O plano já estava definido. Letícia entrou na cozinha anunciando o momento da ação. Bianca adentrou o quarto da patroa e recolheu embaixo da cama um baú onde a chave do cofre se encontrava. Entregou-a para Joel que ao abrí-lo, deparou-se com jóias, dólares e reais. Olhou para trás, como se quisesse ouvir uma desistência de última hora. Já havia se acostumado com a familia. Nunca se sentiu tratado como empregado. Agradecia todos os dias pela oportunidade que o Sr. Ribeiro lhe deu. Pela primeira vez achava que não estava fazendo a coisa certa. Para surpresa de todos, quem entrou no quarto pedindo para que terminassem logo, foi o Seu Oscar. Já estava cansado de cuidar do jardim dos outros. Queria ter seu próprio canteiro. Pegaram tudo que havia no cofre. Sabiam que a patroa não gostava de bancos, pois achava que perdia muito dinheiro com taxas e juros cobrados. Para ela, o melhor lugar para se guardar dinheiro era em casa. Puseram tudo em uma bolsa de viagem. Deixaram suas próprias roupas, só levaram documentos. Passaram pelos seguranças dizendo que levariam Letícia na Rodoviária para visitar sua mãe. E foram os quatro, rumo à felicidade. Letícia tinha passagens de ônibus. Rumaram para uma cidade do interior paulista. O silêncio se fez por boa parte do trajeto. Bianca pensava na amiga que conseguiu fazer pela primeira vez. Quantas vezes riram dos relatos dos tempos em que Bianca andava pregando paz e amor? Em troca, madame contava fatos engraçados das pessoas da elite. Bebedeiras, traições e exageros dos socialytes. Uma lágrima chegou a embaçar sua visão. Joel já fazia planos. Queria dirigir seu próprio carro. Organizar suas próprias festas. Achava que finalmente, poderia fumar seu charuto gozando de boa vida. Em nenhum momento pareceu arrependido. Agradecia à Deus por ter colocado Leticia no seu caminho. Quem diria, uma menina com pensamentos tão audaciosos? Porquê não pensara nisso antes? Daria boa vida pro velho, que passou anos trabalhando desde que ficou viúvo e sempre se preocupou com a vida que seu filholevava. Merecia um bom descanso... Mas Seu Oscar não pensava nisso. Dedicou sua vida àquela família. Acompanhou o crescimento das crianças. Levou o filho e a nora para trabalharem na mansão. E nunca imaginou que isso pudesse acontecer. Mas aceitou e participou do plano. E não poderia mais mudar. Não sabia ao certo para onde estava indo, mas resolveu calar-se e entregar seu destino nas mãos de uma menina, de olhar doce, que convencera a todos com uma facilidade, que lhe fez lembrar de sua saudosa esposa, quando essa, em seu último suspiro, lhe pediu um beijo, como se fosse o primeiro e foi descansar no paraíso... xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx O ônibus parou na estrada, e os quatro seguiram por uma estrada de terra em

direção ao centro da pequena cidade do interior. Letícia não desgrudava da bolsa, que levava o sonho de quatro destinos. Um pedaço de papel amassado trazia um endereço. Parou em uma padaria para pedir informações. Os olhares curiosos dos moradores, assustaram Bianca. Eram estranhos em um lugar desconhecido. Caminharam até uma rua ao lado do mercadinho e pararam em frente ao sobrado que ficariam. Uma casa antiga que ainda carregava na fachada o ano da fundação, 1912, hábito comum nas contruções do século passado. A residência tinha dois andares. No andar de baixo, havia uma floricultura e Seu Oscar logo lembrou-se do jardim que ficou pra trás. Por muitas vezes, o Sr. Ribeiro pedia para que colhesse algumas bromélias, para que ele pudesse ofertar sua esposa, nos tempos de amor e poesia. O Sr. Ribeiro tinha o hábito de levar presentes para sua amada, sempre acompanhado de um bouquet do seu próprio jardim. Quando isso acontecia, sua patroa fechava as cortinas da janela, e um delicioso perfume se espalhava ao vento. Eram os dias de paz... Entraram na porta ao lado da floricultura e subiram as escadas em direção a um corredor. Leticia tinha a chave de um dos quartos. Dos seis cômodos da casa, apenas dois estavam com as portas fechadas. Lentamente, a porta foi aberta, e os quatro entraram observando a mobília. Letícia informou que o quarto era de um casal de amigos que havia viajado. Ninguém perguntou mais nada. Bianca deitou-se na cama para descansar. Joel abriu a bolsa para contar o dinheiro. Seu Oscar abriu a geladeira à procura de algo para beber. Descobriu que não tinha mais nada, além de garrafas vazias e um prato com resto de comida. O plano era ficar até o dia seguinte, mas precisavam comer algo. Leticia preferiu comprar comida para que não tivessem que ficar na rua. Pegou alguns trocados e foi buscar mantimentos. Entrou no mercado e comprou arroz, feijão, carne, biscoitos, refrigerante, pão e queijo. Na saída, passou pela praça e avistou um senhor grisalho que recebia galanteios de uma velha feia e acabada que passeava com seu cachorrinho, talvez mais velho que ela. Sorriu, e seguiu seu caminho de volta, quando percebeu que o velho lhe seguia apressadamente. Perto do seu ombro, ele sussurrou algo indecente que fez com que Letícia tivesse nojo. Mas o velho insistente continuou atrás dela. Na porta da hospedaria, Leticia descobriu que ele era marido da dona da floricultura, responsável pela casa. A ninfeta então, resolve ser provocante e ao subir a escada, deixa que o velho veja seu belo corpo. Ele não resiste e passa a mão na menina, que pára o corpo em sua frente e começa a seduzí-lo com um bailado insinuante. O velho pergunta onde ela está hospedada e ela diz que é amiga de Odete, e estava lá para ajudar a retirar os seus pertences, já que ela não queria reencontrar o ex marido em hipótese alguma. O velho, extasiado com a beleza da menina, concordou com tudo, e cheio de desejos, voltou pra casa. Seu Pereira, já estava com mais de sessenta anos. Casado com dona Filomena há 38 anos, era um pervertido. Conhecido na cidade como um velho babão, por ficar correndo atrás das garotinhas na praça. Costumava pagar sorvetes em troca de carinhos. Na vizinhança, todos tinham pena de Filó, como era carinhosamente chamada a dona da floricultura. Enquanto ela cuidava dos negócios, seu marido assanhado ia para a praça, observar os casais enamorados. Certa vez, arrumou confusão com um jovem, que ficou incomodado com os olhares que ele jogava para sua namorada. Só não apanhou porque o guarda noturno passava pelo local e conseguiu acalmar o rapaz. Mesmo assim, continuava com as suas investidas. Pobre da moça que trabalhava na quitanda. Uma noite, ele a aguardou na saída e resolveu seguí-la no trajeto para sua casa. A moça, com medo, teve que correr e nunca mais quis voltar para o trabalho. Os moradores queriam que ele fosse preso por causa do assédio exagerado, mas com dó de dona Filomena, não levaram a acusação adiante. Quando ele entrou em casa, Filó comentou com ele que ouviu passos no quarto, mas não sabia se era Odete ou Dorival que estava lá. Seu Pereira explicou o que a ninfeta lhe contou e os dois foram jantar...

Leticia entrou no quarto com as compras e uma repulsa enorme do velho tarado. Contou a todos o ocorrido e pediu para que guardassem a estória. Enquanto preparavam a comida, ouviram um barulho na escadaria. Era Odete que chegava com um amigo para buscar seus objetos. Odete, era dois anos mais nova que Dorival. Branca, de lisos cabelos de um castanho forte, chamava a atenção por onde passava. Resolvera se separar depois que começou a desconfiar do marido. Ficava dias e noites sozinha em casa, enquanto o marido trabalhava. Dorival era motorista de ônibus, passava o dia na estrada e à noite, ninguém sabia. De vez em quando, ela ajudava Filó na floricultura para passar o tempo. Tinha vontade de contar o que Seu Pereira fazia na praça, mas tinha quase certeza que ela sabia, e não se incomodava mais. Não tiveram filhos e ela sempre dizia que Deus não lhe deu esse prazer porque não mereciam. Muito católica, ia nas missas de domingo e sempre ajudava nas quermesses. Não queria mais ficar na cidade por ter vergonha de ser chamada de mulher traída pelos moradores. Mas prometera jogar as coisas de Dorival na rua, só por vingança. Ao chegar no quarto, deparou-se com os quatro estranhos e se espantou. Letícia, mais uma vez, tomou a frente e disse que eram amigos de Dorival. Estavam lá para ter certeza que Odete realmente queria a separação. Se assim fosse, eles teriam que retirar os pertences do amigo, antes que tudo fosse para o lixo. Odete disse ter tomado sua decisão definitiva, e os ladrões rapidamente começaram a juntar tudo, assimilando a idéia de Letícia. Nesse momento, Dorival chega na porta da casa, trazendo junto uma patrulha da policia. Vinha buscar suas coisas antes que a ex jogasse tudo fora. O quarto ficou pequeno para tanta confusão. Dona Filomena, vendo o burburinho se formando em frente a sua casa, resolveu largar a floricultura e subir para ver o que estava acontecendo. Seu Pereira foi atrás. No corredor, Bianca e Joel estavam abraçados. Seu Oscar sentou-se na escada. Na porta do quarto, Leticia, Odete, Dorival, o amigo de Odete e dois policiais, tentavam entender o que estava acontecendo. O atrapalhado Oscar, queria saber porque Leticia mentira em relação ao casal já que ela disse que conhecia os dois e ficou visível que Odete nunca tinha a visto. Todos olharam para a ninfeta diabólica, que corajosamente assumiu ser a amante de Dorival. O conhecera na rodoviária. Era com ela que ele passava as noites depois do trabalho. Dorival ficou sem voz diante da afirmação da traição. Odete partiu pra cima da loirinha com bastante raiva. Seu amigo não conseguiu segurá-la. Bianca quis agredir Dorival por ter envolvido sua irmã mais nova nessa aventura extraconjugal. Joel tentava acalmar a esposa. Os policiais tiveram dificuldade para controlar a situação. Seu Pereira pegou um copo d’água para Filó, que levou a mão ao coração. Seu Oscar permaneceu sentado na escada, lembrando das flores do jardim... Os policiais deram voz de prisão à Dorival por bigamia, Odete, por agressão, e os três ladrões, por invasão de privacidade. Foram todos para a delegacia. Seu Pereira foi mandar os curiosos de volta para suas casas. Dona Filomena foi arrumar o quarto. Apagou o fogo do arroz queimado, e começou a guardar as coisas, quando deparou-se com a bolsa aberta deixada em cima da cama. Mais uma vez pôs as mãos no coração. Nunca vira tanto dinheiro e jóias juntas. Começou a juntar as peças daquele enigma. Pensou em levar a bolsa para a delegacia. Ao mesmo tempo, sentia que poderia mudar sua vida. Levou a bolsa para dentro da sua casa e não disse mais nada... Na manhã seguinte, Seu Pereira não encontrou a mesa posta para o café. A floricultura estava fechada. Ninguém nunca mais ouviu falar de Filó...

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