Singer Poder Politica Educacao

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  • Words: 70,074
  • Pages: 120
Revista Brasileira de Educação

Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1 ISSN 1413-2478

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Editorial

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Poder, política e educação Paul Singer

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

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Você disse “popular”? Pierre Bourdieu

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Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero: perspectivas comparativas Nelly P. Stromquist

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Sociedade, Estado e educação: notas sobre Rousseau, Bonald e Saint-Simon Luiz Antônio Cunha

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Ensino e historiografia da educação: problematização de uma hipótese Clarice Nunes

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O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai e a ação político-educativa dos mediadores Maria Stela Marcondes de Moraes

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Espaço Aberto Participação popular na melhoria do ensino público Celso de Rui Beisiegel

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Revista Brasileira de Educação

Resenhas Notas de Leitura Resumos/Abstracts Normas para Colaborações Assinaturas

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Revista Brasileira de Educação é uma publicação quadrimestral da ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. As opiniões emitidas são de responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta revista, desde que citada a fonte. ANPEd

Secretaria Geral: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Setor de Pós-Graduação em Educação Rua Ministro Godói, 969 3º andar - Sala 311-A CEP 05015-000 São Paulo - SP Tel./Fax (011) 62-0855 Presidente: Maria Malta Campos Vice-Presidentes: Jacques Velloso; Nilton Bueno Fischer; Sofia Lerch Vieira Secretária-Geral: Ester Buffa Secretária-Adjunta: Marli E.D.A. André Revista Brasileira de Educação

Secretaria da Revista: Ação Educativa - Assessoria, Pesquisa, Informação Av. Higienópolis, 901 CEP 01238-001 São Paulo - SP Tel. (011) 825-5544 Fax (011) 825-7861 Editores Responsáveis: Sérgio Haddad Maria Malta Campos Marilia Pontes Sposito Secretária de Redação: Thereza Christina Pegoraro Conselho Editorial: Alceu Ravanello Ferraro; Ana Teberosky; Anne-Marie Chartier; Ana Luiza Smolka; Antonio Novoa; Antonio Flavio Barbosa Moreira; Carlos Roberto Jamil Cury; Clarice Nunes; Demerval Saviani; Fernando Becker; Gaudêncio Frigotto; Glaura Vasques de Miranda; Guacira Lopes Louro; Jacques Velloso; Justa Ezpeleta; Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos; Luiz Antônio Cunha; Magda Becker Soares; Maria Alice de Lima Nogueira; Maria Julieta Costa Calazans; Marta Kohl de Oliveira; Michael Young; Marta Maria Chagas de Carvalho; Miriam J. Warde; Osmar Fávero; Paolo Nosella; Ramon Flecha; Sara Morgenstern; Sofia Lerch Vieira; Sonia Kramer; Terezinha Fróes Edição: Preparação de originais e revisão: Opera Editorial Versão para o inglês: Robert E. Verhine, Anne Marie Speyer Projeto e produção gráfica: Bracher & Malta Tiragem: 1.500 exemplares Apoio: Fundação Ford

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Editorial

O lançamento de uma nova revista é sempre acompanhado por expectativas e esperanças. No caso da Revista Brasileira de Educação não é diferente. Após a circulação do número zero no segundo semestre do ano passado, e da sua calorosa acolhida, é nossa expectativa, com a série que agora se inicia, poder produzir uma revista de qualidade com a esperança de que ela possa ser lida por um número cada vez maior de interessados na área da educação. A sua concepção e amadurecimento são decorrentes de um processo de crescimento e consolidação da ANPEd como associação científica que congrega educadores, pesquisadores e Programas de Pós-Graduação em Educação. Isto pode ser verificado a cada reunião anual, onde o número de pesquisadores presentes está crescendo e a qualidade da sua produção científica evolui positivamente. A revista deve

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refletir este movimento ao se comprometer com a divulgação dos seus resultados. Mas a revista é, também, produto da oportunidade que se apresenta na conjuntura brasileira de discussão da temática educacional junto aos mais diversos setores de nossa sociedade que hoje se mostram sensibilizados para os seus problemas. Nosso desafio é o de colocar em pauta os temas da conjuntura, fazendo da revista um suporte para a análise dos problemas e das propostas deles decorrentes. Outro desafio é o de ampliar o debate científico para além das fronteiras nacionais. Se é verdade que a revista é prioritariamente um veículo de divulgação e discussão da pesquisa e dos problemas nacionais, temos a certeza que as discussões não prescindem da produção científica internacional, ademais em um mundo onde os problemas e as soluções se mostram cada vez mais globalizados.

Para enfrentar estes desafios, a Diretoria da ANPEd constituiu um corpo de editores responsáveis que mediante um apoio de um conselho editorial e de consultores “ad hoc”, vem se empenhando em concretizar as expectativas e realizar as esperanças desta nova revista. Este conjunto de pessoas se mantém paralelo aos trabalhos que envolvem a Diretoria da ANPEd, com rotinas e mandatos próprios, visado a dar maior autonomia e continuidade às tarefas afeitas à lógica da produção de uma revista. Vale ressaltar, ainda, o apoio da Fundação Ford que desde o princípio acreditou na viabilidade da revista. É nossa esperança que este primeiro número possa ser o primeiro passo na constituição de um novo veículo que contribua para a socialização do conhecimento na área da educação, tendo em vista nossas expectativas de realização de uma sociedade mais justa e democrática.

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Poder, política e educação Paul Singer Faculdade de Economia e Administração, Universidade de São Paulo

Conferência de abertura da XVIII Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, outubro de 1995.

O grande debate educacional hoje Mais do que nunca, a educação está hoje em debate, no Brasil e em todo do mundo. O universo dos educadores, educandos, administradores de aparelhos educacionais, políticos e gestores públicos está dividido e polarizado em duas visões opostas dos fins da educação e de como atingi-los. Os dois lados são entusiásticos defensores da educação, que consideram importantíssima. Mas, além disso, quase nada têm em comum. A sua caracterização, a seguir, deliberadamente acentua as diferenças, mesmo sabendo que devem existir muitos que se posicionam de forma menos extremada. É que as diferenças permitem compreender melhor o teor do debate e ajudam a dele participar. Vamos chamar a primeira posição de civil democrática, porque ela encara a educação em geral e a escolar em particular como processo de formação cidadã, tendo em vista o exercício de direitos e obrigações típicos da democracia. Essa visão da educação centra-se no educando e em particular no educando das classes desprivilegiadas ou não-proprietárias.

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O grande propósito da educação seria proporcionar ao filho das classes trabalhadoras a consciência, portanto a motivação (além de instrumentos intelectuais), que lhe permita o engajamento em movimentos coletivos visando tornar a sociedade mais livre e igualitária. É óbvio que a educação escolar também deveria cumprir muitos outros propósitos, que poderiam ser resumidos na habilitação do indivíduo a se inserir de forma adequada na vida adulta: profissional, familiar, esportiva, artística, etc. A visão civil democrática da educação não vê contradição entre a formação do cidadão e a formação do profissional, da futura mãe ou pai de família, do esportista, do artista e assim por diante. O laço que une os procederes educativos é o respeito e a preocupação pela autonomia do educando, portanto, pela autoformação de sua consciência e pela sua gradativa capacitação para se libertar da tutela do educador e poder prosseguir, sozinho ou em companhia de seus pares, sua auto-educação. A ênfase, nessa visão, é num tipo de relação entre educador e educando em que o primeiro conduz o segundo por vias que vão sendo determinadas cada

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vez mais pelo último. Há muita discussão, evidentemente, sobre como se deve constituir essa relação, mas o que une todos os que compartilham essa visão é a idéia de que toda criança deseja “naturalmente” aprender e que esse desejo deve ser respeitado e alimentado. O limite desse respeito pela individualidade do educando é dado pelas necessidades e interesses dos demais — educandos, educadores, pais e familiares etc. —, o que exige disciplina, outro tópico controverso. O que se contrapõe a essa visão é a que denominarei produtivista. Esta concebe a educação sobretudo escolar como preparação dos indivíduos para o ingresso, da melhor forma possível, na divisão social do trabalho. Não custa repetir que também a visão produtivista não despreza outros propósitos do processo educacional, mas enfatiza o que é chamado pelos economistas de acumulação de capital humano. Cada indivíduo é encarado como tendo capacidade produtiva potencial, cujo desenvolvimento exige esforço tanto do próprio como de seus instrutores e familiares. Esse esforço se traduz num custo, que pode ser formulado em termos pecuniários e representa o valor do capital humano de que dispõe cada indivíduo. Esse capital humano provém não apenas da educação escolar mas também de cuidados com a saúde e outros que contribuem para desenvolver a capacidade produtiva do indivíduo. Educar seria primordialmente isto: instruir e desenvolver faculdades que habilitem o educando a integrar o mercado de trabalho o mais vantajosamente possível. Cumpre atentar para o pressuposto crucial dessa visão: o de que a vantagem individual, que se traduz em ganho elevado e outras condições favoráveis de usufruto material, é simultaneamente social. O bem-estar de todos é o resultante da soma dos ganhos individuais, que, em um mercado de trabalho livre e concorrencial, são proporcionais ao capital humano acumulado em cada um dos indivíduos. Em outras palavras, a educação promove o aumento da produtividade, que seria o fator mais importante para elevar o produto social e dessa maneira eliminar a pobreza.

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As duas visões valorizam a educação como meio de melhorar a sociedade, acentuando determinados efeitos daquela. Mas as concepções de como a sociedade e a economia funcionam, que subjazem a cada visão, são muito diversas e se integram em legados ideológicos opostos. Cumpre observar que há outras visões de educação além das duas aqui esquematizadas, mas que porém são atualmente ofuscadas pelo grande debate em andamento. Para compreender esse debate, cumpre retornar às origens das visões em confronto. A exigência democrática da educação universal A visão civil democrática da educação decorre do grande movimento pela igualdade dos dois últimos séculos, que culminou na batalha pelo sufrágio universal, da qual resultou a democracia moderna. Convém diferenciar aqui a ideologia democrática da liberal. Esta confinava a igualdade entre os cidadãos aos resultados da competição no mercado. Os homens (mas não as mulheres) deviam ser iguais em direitos jurídicos, para poderem competir nos mercados, porém nada deveria reduzir a desigualdade “natural” entre ganhadores e perdedores. Sendo justas as regras do jogo do mercado, que constituiriam a liberdade perfeita de Adam Smith, qualquer interferência nos resultados reduziria o sagrado direito à liberdade. A premissa era a de que os ganhadores obtêm a preferência dos compradores por servi-los melhor e utilizam com mais parcimônia e sabedoria o excedente de renda a que fazem jus. Transferir dos ganhadores aos perdedores parte desse excedente, além de injusto, piora a utilização do excedente com prejuízo para toda a sociedade. Pior ainda, desincentiva os ganhadores, ao privá-los de seu prêmio, e também os perdedores, ao anular suas perdas. A ideologia democrática parte de premissas diferentes. Coloca igualdade e liberdade no mesmo pé e nega a legitimidade dos resultados do jogo do mercado pelo fato de a sociedade capitalista estar

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Poder, política e educação

dividida em classes, que agrupam de um lado os proprietários de capital e do outro os que são obrigados a ganhar a vida com seu trabalho. De acordo com essa ideologia, os detentores do capital entram no mercado com vantagens decisivas em relação aos trabalhadores, que dependem dos primeiros para poder participar da produção social. Perdedores e ganhadores, portanto, já estão predeterminados e, se nada for feito para atenuar as diferenças entre eles, estas tendem a se aprofundar. Daí as reivindicações democráticas de universalização não apenas dos direitos políticos de votar e ser votado mas também do acesso à educação e ao seguro social de saúde, de velhice, de morte, de acidentes de trabalho e de desemprego. A demanda de acesso universal à educação escolar tinha como propósitos principais capacitar as crianças, sobretudo das camadas mais desprivilegiadas, a exercer plenamente os direitos políticos que a conquista do sufrágio universal lhes proporcionava, bem como dar acesso a essas camadas a oportunidades culturais e profissionais que exigem escolarização. Convém lembrar que, nos albores da democracia, o ensino universitário era explicitamente elitista e era exigido para o exercício das chamadas profissões liberais, que gozavam de nível relativamente elevado de ganho e grande prestígio social. Foram as feministas que lideraram boa parte das grandes lutas tanto pelo sufrágio universal como pela educação universal, que naturalmente tinha de ser gratuita e, portanto, pública. O liberalismo em face da democracia Existe hoje uma tendência a minimizar as diferenças entre liberalismo e democracia, cunhandose a expressão liberal-democracia ou democracia liberal. Essa tendência correspondeu a uma realidade histórica, que durou de certo modo da década de 30 à década de 60 deste século. Nesse período, a resistência liberal à democracia cedeu e grande parte das correntes mais conservadoras, que tinham o liberalismo clássico como bandeira, acabou acei-

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tando as principais conquistas democráticas. Pelo que sabemos, nenhum país em que o sufrágio universal foi implantado voltou atrás e restaurou o sufrágio censitário. (Regimes democráticos foram muitas vezes derrubados e substituídos por ditaduras, em que não se votava ou as eleições eram farsas, mas isso não significava um retorno ao liberalismo pré-democrático.) Era correto então caracterizar a direita antifascista como liberal democrática. Foi durante esse período que, ao menos nos países capitalistas adiantados, parte importante da plataforma democrática se tornou realidade, principalmente sob a forma do Estado de bem-estar social. E foi no âmbito deste que a universalização da educação escolar, sob a forma de ensino público, foi implantada num importante número de países. A geração atual de adultos, nos países do Primeiro Mundo, foi possivelmente a primeira que teve realmente acesso universal ao ensino básico. Governos conservadores (liberal-democratas) contribuíram, ao lado de governos social-democratas ou trabalhistas, para que isso fosse logrado. Na realidade, a fusão do liberalismo com a democracia, que em meados deste século parecia um fato consumado e irreversível, foi revertida pelo ressurgimento de forte onda liberal anti-democrática, que tomou o nome de neoliberalismo. Essa reversão foi, é bom dizer desde logo, parcial. A adesão ao sufrágio universal foi mantida, mas o apoio às outras conquistas democráticas, no campo da seguridade social e da educação universal, foi retirado. Portanto, as referências à liberal-democracia devem ser hoje fortemente qualificadas. As principais correntes de direita não-autoritária, a partir de meados da década de 70, deram uma volta de 180º e se tornaram neoliberais, retornando sob muitos aspectos à postura ideológica que tinham tido no século passado. A crítica neoliberal aos serviços sociais do Estado A visão produtivista da educação se origina da crítica neoliberal aos serviços sociais do Estado. Os

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principais pontos dessa crítica têm sido os seguintes: > Paternalismo. Serviços sociais como auxílio aos desempregados, às mães solteiras, às famílias numerosas oferecem incentivos aos beneficiários para que reiterem comportamentos que os levaram a essa condição. Assim, os desempregados tendem a permanecer desempregados, moças solteiras são estimuladas a engravidar, famílias com muitos filhos tendem a se multiplicar. > Ineficiência. O seguro social, para não estimular a simulação de situações falsas de necessidade, requer um extenso aparelho de controle e acompanhamento, o qual acaba absorvendo uma parcela desmedida dos recursos destinados ao seguro. Além disso, a organização de serviços sociais públicos não apresenta qualquer incentivo ao aumento da produtividade dos funcionários ou da eficiência no uso dos recursos. Em conseqüência, os aparelhos de prestação de serviços sociais apresentariam quase sempre excesso de empregados e desperdício de recursos. > Corporativismo. Os profissionais dos serviços sociais do Estado têm interesse na ampliação dos aparelhos em que atuam e por isso se aliam às clientelas desses serviços para pressionar o poder público no sentido de ampliar os referidos serviços e aumentar as dotações orçamentárias que os sustentam. A crise fiscal do Estado, diagnosticada pelo neoliberalismo como raiz da estagflação, que tem afetado as economias capitalistas nos últimos vinte anos, seria o resultado de tais mazelas. A visão produtivista propõe reformar o ensino público seguindo-se linhas decorrentes dessas críticas. O paternalismo seria o resultado da gratuidade do ensino: como o aluno e sua família nada pagam, eles não têm incentivo para melhorar o aproveitamento do primeiro e evitar que repita de ano. A gratuidade também torna o aluno passivo perante a má qualidade do ensino. Para evitar esses males, o ensino deveria se tornar pago ou ao

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menos competitivo. A reforma escolar chilena é muitas vezes citada como modelo: o Estado concede bolsas aos estudantes, que têm liberdade de escolher sua escola. Espera-se que a competição entre escolas públicas e privadas pelas bolsas leve ao aumento da qualidade. Na visão produtivista, o ensino público não atende, por falta de estímulo, as necessidades da demanda por trabalho. A proposta que formula é de que a rede escolar esteja sujeita às regras do mercado, de modo que os diretores e os professores tenham interesse em formar ganhadores, pois esta seria a melhor forma de eles próprios ganharem o jogo concorrencial. Cada escola seria julgada pelo “mercado”, isto é, pelos alunos ou seus pais, em função da qualidade de seu produto, avaliada pelo maior ou menor êxito dos seus ex-estudantes na vida econômica e social. E a escola avaliaria seus professores pelos mesmos critérios. Espera-se da implementação desse tipo de reformas que o ensino escolar melhore de qualidade e baixe de custo, seja para os indivíduos seja para o Estado. A visão produtivista não é contrária à universalidade da educação, mas prefere que ela resulte da livre preferência dos indivíduos em vez de coerção legal, amparada em ampla oferta de vagas gratuitas no ensino público. O que fundamenta esse tipo de proposta é a idéia de que a competição em mercado é o melhor meio para promover a eficiência, ou seja, a combinação de qualidade com baixo custo, com pleno respeito à liberdade de opção de cada indivíduo. A crise do Estado de bem-estar social Já é tempo agora de colocar esse debate, que é fundamental para os destinos da educação, em seu contexto. Como ficou claro, ele surge como resultado da reviravolta neoliberal, que no campo do ensino passou a sustentar uma alternativa à escola pública gratuita e obrigatória, que até então (década de 70) só tinha contra si os que favoreciam o ensino confessional. Coincidindo com essa reviravolta, o Estado de bem-estar social entrou em crise nos

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Poder, política e educação

principais países do Primeiro Mundo. Embora possa parecer que essa crise tenha sido provocada pela chegada do neoliberalismo ao poder na Grã-Bretanha (Tatcher, 1979), nos EUA (Reagan, 1981) e em seguida em outros países, tudo indica que a causalidade foi inversa. A crise do Estado de bem-estar se manifesta antes, desde meados da década de 70, e foi ela que provavelmente preparou o terreno para a ascensão do neoliberalismo. O fato fundamental é que por volta de 1974, com o primeiro choque do petróleo, se encerrou um período histórico conhecido como o dos anos dourados do capitalismo, caracterizado por taxas elevadas, historicamente as mais altas, de crescimento da produção e da produtividade, por pleno emprego e intenso aumento do consumo. Esse período se iniciou com o fim da Segunda Guerra Mundial, e nele se operou, nos países capitalistas adiantados, uma transformação fundamental: as classes trabalhadoras foram arrancadas de sua pobreza ancestral e passaram a usufruir níveis de consumo (inclusive de escolaridade) comparáveis aos das classes até então privilegiadas. Obviamente os gastos e os investimentos sociais, que constituíam o Estado de bem-estar social, foram extremamente importantes para esta transformação. O encerramento dos anos dourados mudou tudo isso: o crescimento da produção e da produtividade caiu a níveis muito mais baixos, sendo periodicamente interrompido por recessões mais longas e severas; o desemprego voltou cada vez mais até atingir níveis acima de 10% em grande número de nações industrializadas. Finalmente, a piora do desempenho econômico limitou a arrecadação tributária; as reformas neoliberais, que reduziram impostos que recaíam sobre as camadas mais ricas, contribuíram para o crescimento dos déficits nas contas públicas, ao mesmo tempo em que pressões inflacionárias, desconhecidas em épocas de paz nos países adiantados, levavam pânico aos meios empresariais. E partiu desses meios e de seus intelectuais orgânicos a denúncia dos serviços sociais do Estado, caracterizando efetivamente a crise do Estado de bem-estar social.

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A crítica neoliberal explicitou uma crise que a mudança econômica tinha causado. O fato é que nos anos dourados o extraordinário dinamismo da economia tinha tornado o encargo representado pelos serviços sociais bastante leve. O pleno emprego reduzira ao mínimo o gasto com auxílio aos desempregados. O peso das aposentadorias era contrabalançado pela entrada maciça de jovens da geração do baby boom (termo cunhado em referência à alta das taxas de natalidade nas primeiras décadas de pós-guerra) no mercado de trabalho. A redução da jornada e a melhoria das condições de trabalho possivelmente reduziram os riscos à saúde e à vida, do que dá testemunha a persistente queda da mortalidade no período. Tudo isso mudou para pior, a partir de meados da década de 70. O aumento do desemprego, a redução do número de jovens e a enorme dificuldade para encontrarem emprego, a piora das condições de saúde, com o aumento da violência e do consumo de drogas, tudo isso expandiu fortemente o gasto com os serviços sociais do Estado, agravando o efeito deficitário da contração da receita tributária. Dados interessantes são oferecidos por S. Bodington, M. George e J. Michaelson (1986, p. 211), que citam resultados de pesquisas do dr. Harvey Brenner e equipe, da Universidade John Hopkins em Baltimore: um aumento de 1% na taxa de desemprego por seis anos está correlacionado a um aumento de 36.887 mortes prematuras e outros aumentos significativos de enfermidades. Pesquisa semelhante na Grã-Bretanha mostra que um milhão de desempregados a mais eleva em 50 mil o número de admissões em hospitais de doenças mentais num período de cinco anos e causa 50 mil óbitos adicionais. Os custos públicos desses efeitos somam cerca de um bilhão de libras. É claro que a crise do Estado de bem-estar social, induzida pela piora do desempenho econômico, foi em seguida fortemente agravada pelos cortes de verbas para os serviços sociais (inclusive ensino) que as políticas de ajuste estrutural passaram a impor. Nos países com governos neoliberais, o

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aumento da demanda pelos serviços sociais do Estado foi respondido com a restrição de recursos para os mesmos, o que só podia resultar em déficits de atendimento, em congestionamentos dos equipamentos e finalmente em perda brutal de qualidade dos serviços prestados. Ficou evidente para a opinião pública que os serviços sociais do Estado estavam deixando de corresponder às necessidades e portanto precisavam de ser reformados. E o neoliberalismo estava com propostas prontas de reformas, o que originou o presente debate na área de educação e outros análogos em outras áreas. No Brasil, não chegou a se institucionalizar um “Estado de bem-estar social” no nível alcançado no Primeiro Mundo, mas os seus fundamentos estavam sendo desenvolvidos, desde a década de 30 até a década de 70, em ritmo crescente. Durante o “milagre econômico” (1968-1976), sistemas abrangentes, tendentes à universalidade, de ensino básico, saúde e previdência foram criados. A partir da recessão de 1981-1983, a pior já registrada em nossa história, todos esses sistemas entraram em crise. O aumento brutal do desemprego levou finalmente à criação de um seguro-desemprego, mas com abrangência tão restrita que ficou mais como testemunha do esgotamento prematuro do modelo. O aumento da demanda por serviços de saúde pública, assim como de vagas escolares na rede pública, foi respondido com cortes sucessivos de verbas para essas atividades. O que resultou não em encolhimento da rede ou dos equipamentos que a compõem, mas em arrocho brutal dos salários dos profissionais: professores, médicos, enfermeiras, etc. Os acontecimentos dos últimos anos deixam claro que, sem a recuperação do crescimento econômico e do equilíbrio orçamentário, nos três níveis de governo, a solução da crise dos serviços sociais do Estado fica impossível. Em 1989 entrou em vigor a Constituição de 1988, que transferiu recursos fiscais da União a estados e sobretudo a municípios. Conseqüentemente, nos anos seguintes, os serviços sociais dependentes de recursos federais e estaduais entraram quase em colapso, ao passo que os que dependiam de erários municipais foram preservados

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e, onde os novos governos municipais priorizaram tais serviços, eles puderam ampliar o atendimento e elevar a qualidade. Em muitas capitais estaduais, o pessoal de educação e de saúde, quando empregado pela municipalidade, ganhava algo como o dobro do que era pago pelo Estado. Ficou claro que a deterioração dos serviços sociais relacionava-se à dependência de níveis de governo em crise fiscal. Tal deterioração não atingiu, obviamente, os serviços sociais cuja base material pôde ser preservada. A despeito disso, a crise do Estado de bemestar, no Brasil, bem como provavelmente em outros países, não poderá ser resolvida apenas mediante a restauração dos recursos que o financiam. A nova etapa em que entrou o capitalismo, com a Terceira Revolução Industrial, criou novas circunstâncias e necessidades diferentes das que inspiraram os serviços sociais públicos, projetados e instalados no período dos anos dourados. Além da forte desaceleração do crescimento e do ressurgimento brutal do desemprego, a atual etapa trouxe novas formas de exclusão social, que tornam a crise do Estado de bem-estar social de certa forma estrutural. Além da necessidade de reabilitá-lo materialmente, ele terá de ser realmente reformado, ou no sentido das propostas neoliberais ou em outro sentido, em consonância com uma visão mais estrutural e coletiva da sociedade e da economia. A exclusão social decorrente da Terceira Revolução Industrial e da globalização econômica A aplicação da tecnologia decorrente da microeletrônica suscitou a criação de novos ramos de produção, na área de informática — hardware (equipamentos) e software (programas) — e de telemática, com significativa expansão de postos de trabalho, dos quais alguns exigem habilidades especiais cuja obtenção se dá apenas em graus elevados de escolaridade. Ao mesmo tempo, a aplicação dos computadores ao projetamento e à produção eliminou grande quantidade de postos de trabalho ocupados por operários semi-qualificados. A per-

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Poder, política e educação

da líquida de empregos é mais do que compensada pela multiplicação de unidades prestadoras de serviços, desde redes de fast food, videolocadoras, lojas de conveniência, agências de viagem (dada a enorme expansão do turismo) até academias de ginástica, clínicas alternativas, centros de cultos e o que mais se possa imaginar. A contração de postos de trabalho é apenas aparente. O que está desaparecendo é o emprego padrão de antes, com carteira assinada, seguro saúde e perspectiva de carreira. São as relações de produção que estão mudando. Nas grandes empresas o emprego se contrai em termos absolutos e se diferencia entre um núcleo vital de empregados altamente qualificados, estáveis, bem remunerados e com perspectiva de carreira e uma grande periferia de empregados pouco qualificados, facilmente substituíveis, que pode ser ocupada por mulheres e estagiários em tempo parcial e sem registro ou por pessoal subcontratado de empresas fornecedoras de mão-de-obra. Nas pequenas empresas, que se multiplicam inclusive pela difusão do franqueamento, o núcleo é formado pelo dono ou pelos sócios e a periferia por trabalhadores terceirizados, com o status de prestadores de serviços ou de empregados sem registro. De uma forma geral, uma massa crescente de empregos está mergulhando na informalidade, escapando dos efeitos da legislação do trabalho. O resultado dessa evolução é o crescimento incessante da exclusão social. A massa de autônomos, pretensos ou verdadeiros, não está sujeita à limitação da jornada de trabalho fixada pela legislação e pelos acordos coletivos de trabalho. Como em geral ganham por tempo de serviço ou por produção, eles têm todo incentivo para prolongar ao máximo o seu trabalho, o que evidentemente agrava o desemprego. Marx já escrevia há 130 anos que muitos deixavam de ter trabalho porque o capital obrigava aos outros a trabalhar demais. Ele julgava que a limitação legal da jornada de trabalho poderia ao menos atenuar essa contradição. Mas como as relações de produção, estimuladas pela nova etapa tecnológica, não se sujeitam à legislação, o mercado de trabalho retorna às condições do século passado...

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A globalização do capital tem efeitos semelhantes. Esforços persistentes das nações capitalistas adiantadas, lideradas pelos EUA, ao longo dos últimos cinqüenta anos conseguiram revogar os controles governamentais sobre a movimentação internacional tanto de mercadorias como de capitais. Criaram-se assim, aos poucos, mercados verdadeiramente globais tanto de produtos como de transações financeiras. Só a movimentação do trabalho continuou cerceada, pois continuam em vigor as restrições erguidas desde a crise da década de 30 à migração internacional. O Primeiro Mundo, que seria o alvo natural de vastas correntes migratórias vindas do Leste europeu e asiático, do Sudoeste latinoamericano e do Sul africano, continua cerrado e cerrando-se cada vez mais ao que este mundo privilegiado enxerga como hordas de bárbaros. Mas a lógica mostra que se o capital e os produtos do capital dispõem de mercados globais, nada pode impedir de que se estabeleça também um mercado global de trabalho virtual. Só que nesse mercado, estando a oferta imobilizada, é a procura que se movimenta. E é ao que estamos assistindo. O capital em quantidades crescentes percorre o mundo inteiro à procura de condições vantajosas de inversão, o que significa acima de tudo mão-de-obra capacitada e barata. O capital abandona os países e as regiões em que os trabalhadores estão fortemente organizados, têm direitos reconhecidos em lei e recursos para fazê-los serem respeitados pelos empregadores. E penetra nos países e regiões em que o desemprego estrutural é grande e a organização sindical é débil, onde a legislação do trabalho é parca ou pode ser ignorada. A globalização livrou o capital industrial da necessidade de se localizar perto dos grandes mercados para seus produtos. E o progresso técnico barateou o transporte, permitindo que bens produzidos nos antípodas possam competir com outros produzidos na vizinhança. Como resultado, surge forte tendência à homogeneizição das condições de compra e venda de força de trabalho em âmbito mundial. No mundo industrializado, o emprego manufatureiro se contrai e os salários dos trabalha-

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dores de linha despencam, ao passo que, nos países chamados recém-industrializados (dos quais o Brasil foi um dos primeiros), a atividade industrial para a exportação se multiplica, assim como o emprego industrial, possivelmente com tendência ascendente do nível salarial. É preciso advertir que a globalização é bastante recente e suas potencialidades recém começaram a ser exploradas. (Por exemplo: a grande reserva de força de trabalho barata está nos gigantes asiáticos — China, Índia, Indonésia — e mal começou a ser integrada na nova economia global.) Mas já foi suficiente para ocasionar sensível perda de empregos industriais no Primeiro Mundo, onde a massa salarial se polariza visivelmente entre uma minoria de posições muito bem pagas e uma maioria de novos pobres. A projeção dessas tendências para o futuro lança uma luz sinistra sobre as perspectivas de progresso social e aprofundamento da democracia nessas nações. E a América Latina vai se lançando gradativamente ao vértice globalizador: primeiro foi o Chile de Pinochet, em seguida o México, que acabou se integrando ao NAFTA (North America Free Trade Agreement) e mais recentemente a Argentina. Das grandes economias do continente, o Brasil foi o último, mas tudo leva a crer que agora chegou nossa hora. Sendo uma economia semi-desenvolvida, o Brasil será menos afetado de imediato do que países que estão nos extremos. Mesmo assim, a abertura do mercado interno às importações, no último ano, já afetou sensivelmente diversos ramos industriais. Apesar dos baixos salários pagos aqui, várias de nossas indústrias não conseguem concorrer no mercado nacional com as importações asiáticas. A continuar a abertura comercial irrestrita e a debilidade das políticas industriais, é provável que essas indústrias fechem ou mergulhem na informalidade. A crise do sistema escolar É no contexto dessas mudanças que se insere a atual crise do sistema escolar, que pode ser con-

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siderada mundial. Para os diretamente envolvidos, principalmente educadores e educandos, a crise parece, provavelmente, ser causada pelo corte de verbas, baixa dos salários, perda conseqüente do pessoal melhor qualificado e declínio da qualidade do ensino. E não há dúvida de que esses fatos existem e tornam a crise tão profunda e destrutiva como ela está se revelando. Mas se o diagnóstico ficar limitado a isso, um aspecto fundamental da crise deixa de ser examinado, o que fragiliza de maneira fatal os que se posicionam em defesa da escola pública gratuita e de acesso universal. Esse aspecto é a alienação do ensino escolar das novas características tanto do mercado de trabalho como do panorama político e social. Que tipo de pessoa nossas escolas estão formando e para que tipo de sociedade? Se a democracia é uma conquista irreversível — e quero crer que é —, qual é o modelo de cidadão consciente que inspira nosso ensino? Será que os nossos currículos correspondem adequadamente ao desejo natural de aprender dos jovens, motivando-os a participar ativamente do processo educativo? Há motivos para acreditar que o cerne da crise do sistema de ensino está nessas questões, embora, repito, a degradação material do sistema não permita que isso aflore. É notório que, já há muito tempo, o forte crescimento de matrículas no ensino público e privado não tem sido correspondido por crescimento análogo de resultados, tanto em termos de número de formados como de grau de adestramento destes. É como se a desejável massificação do ensino, que ao cabo de tantos anos de luta acabou sendo lograda, tivesse reduzido a eficiência do sistema. A abertura das portas da escola à massa dos menos afortunados não produziu os efeitos esperados e desejados, ou seja, o encaminhamento daqueles a melhores oportunidades de inserção econômica, política e social. Em vez de a escola elevar os filhos dos marginalizados, foram aparentemente estes que degradaram a escola ao multiplicar as repetências e a evasão, ao introduzir nas salas de aula seu cotidiano de violência e alienação.

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Poder, política e educação

Essa experiência não é apenas nossa. Demerval Saviani apresenta o seguinte quadro do ensino público nos EUA: [..] escolas mal equipadas, drop-outs, falta de professores e um número enorme de diplomados do 2º grau que continuam sem saber ler, escrever e fazer contas, que não passariam no mais tolerante dos testes de aptidão. O índice de evasão relativo aos alunos que freqüentam a escola secundária se aproxima dos 30%. Mas o sintoma mais alarmante do fracasso da escola pública talvez não esteja nos que pulam fora, e sim nos que permanecem dentro e não aprendem nada. Os especialistas chamam-nos de “analfabetos funcionais”: embora possuam diplomas, isto é, sejam nominalmente alfabetizados, na prática são incapazes de entender, por exemplo, como funciona o metrô, e não conseguem consultar uma lista telefônica ou ler uma bula de remédio. Em Nova York, segundo as últimas pesquisas, há 2 milhões de indivíduos nessas condições.1 (Saviani, 1992, p. 10).

Considerei necessária essa longa transcrição para deixar claro que a crise do ensino não é apenas nossa. Saviani, no mesmo texto, informa que também na Argentina, no Uruguai e no Chile o ensino está em crise. Convém considerar que a crise resulta não apenas da fragilização da escola pública pelas políticas de ajuste estrutural, mas também do fato de que a sociedade civil, ou ao menos os alunos ou seus pais, tampouco acorrem em sua defesa. De alguma forma a escola, mesmo antes de sua degradação material, já não correspondia plenamente às necessidades ou expectativas dos educandos e essa inadequação provavelmente se tornou muito maior com a massificação do ensino, ou seja, quando a escola passou a atender a uma nova clientela, de extração social distinta. O que quero expor daqui em diante tem caráter hipotético, mas pode sugerir, quem sabe, formas alternativas de pensar a crise do ensino. O en-

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A fonte citada por Saviani é Sala de Aula, 1990,

nº 21.

Revista Brasileira de Educação

sino público, ao menos no Brasil, continua sendo direcionado a uma classe média, para a qual o certificado escolar é instrumento de diferenciação social. O que significa que o ensino escolar tem por finalidade básica (embora não admitida) proporcionar aos filhos de pais educados a oportunidade de sucedê-los em posições econômicas e sociais que têm determinados níveis de escolaridade como pressuposto. Esta era indubitavelmente a situação quando apenas uma minoria tinha acesso ao ensino básico e uma minoria muito menor aos níveis mais elevados. A hipótese aqui é que o espírito do ensino jamais foi adaptado à sua universalização. Esse ensino diferenciador e implicitamente elitista preocupava-se em dotar o aluno de conhecimentos que ele dificilmente poderia adquirir fora da escola. Toda “cultura inútil” que costuma entupir nossos currículos teria precisamente essa função. Ela daria ao escolarizado acesso a um universo cultural privado, do qual o não-escolarizado estaria excluído. O vocabulário assim adquirido funcionaria como senha que permitiria aos membros da elite reconhecer seus iguais e discriminar os “outros”. Ao se abrir aos “outros”, a escola pública não se repensou, continuando a competir com a escola privada na formação de uma elite educada. Se assim foi, não seria de surpreender que a matrícula dos filhos dos marginalizados questionasse a escola, já que ela jamais se reformulou para acolhê-los. É costumeiro ouvir que os filhos dos pobres não têm em suas casas um ambiente que os estimule e ampare no enfrentamento das tarefas escolares, o que seria a principal causa de seu freqüente fracasso, evidenciado pela elevada repetência principalmente no primeiro ano e pela evasão subseqüente. Essa constatação parece-me quase uma confissão de que a escola pública — e falo só dela porque é a única acessível ao pobre — não se adaptou nem pretende se adaptar à nova realidade de que agora ela está oferecendo um serviço universal, ou seja, para todos. Ela continua preparando uma minoria e naturalmente expulsa como corpo estranho os descendentes da maioria não escolarizada. Em outras palavras: se a escola necessita que os alunos

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Paul Singer

tenham pais escolarizados, ela obviamente não se ajustou à tarefa de educar os filhos dos que nunca puderam freqüentar a escola. Se a escola pública quiser ser fiel à sua origem e vocação democrática, ela terá de se ajustar ao novo papel de educadora universal e principalmente das crianças de famílias socialmente excluídas. O que significa repensar-se por inteira e recolocar o conteúdo da instrução, a metodologia didática, a formulação de regras de conduta e o disciplinamento dos participantes do processo educativo. Chego a pensar que a reforma requerida pode beirar uma revolução, à medida que exige de professores, que provavelmente sempre se enxergaram como diferenciadores, a conquista de uma nova identidade. É um desafio bem-vindo o de pensar a educação não como antídoto da exclusão social, o que está além de seu alcance, e sim como formação de cidadãos ameaçados de exclusão mas que podem dispor de recursos sociais e políticos para enfrentar a ameaça. De volta ao grande debate Retornemos então ao nosso tema inicial. O ensino, no Brasil e fora do Brasil, está em crise e esta já deu lugar a um impasse. De um lado, a posição produtivista propõe reformas que são consistentes com a concepção liberal da sociedade. Do outro, a posição civil democrática clama pela preservação da escola pública em nome do direito universal à educação e enfatiza a necessidade de restaurar a base material indispensável para que a escola possa cumprir sua missão. A posição produtivista mais consistente parece estar concretizada hoje no sistema escolar chileno. As escolas públicas naquele país foram todas municipalizadas e o governo se responsabiliza pelo pagamento de um valor mensal a qualquer escola, pública ou privada, por aluno matriculado. Os alunos ou seus pais têm portanto a chamada “livre escolha” da escola que desejam utilizar. As escolas é que competem entre si pela preferência dos alunos e pode-se supor que as escolas mais bem-sucedidas terão recursos para melhor pagar seus profes-

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sores. O sistema combina engenhosamente gratuitidade, e portanto universalidade, com a privatização do ensino, pois mesmo as escolas municipais acabam se portando como as escolas privadas. Se esse sistema realmente maximiza a eficiência e proporciona elevada produtividade aos que por ele passam é dificil saber. A informação que o candidato à matrícula e seus pais possuem sobre cada escola é insuficiente para que possam fazer uma escolha racional pelo tipo de educação que preferem. E a livre escolha da escola pelo aluno pode afrouxar os laços que deveriam ligar o educando à comunidade em que se forma, ou seja, uma relação que deveria ser de compromisso e de identificação pode correr o risco de se reduzir a uma transação de compra e venda, em que o cliente insatisfeito tende meramente a mudar de fornecedor. Mas se a reforma produtivista (representada pelo modelo chileno) apresenta esses prováveis defeitos, é preciso reconhecer que a competição entre as escolas pode ser um estímulo para que administradores e docentes procurem aumentar a eficiência e elevar a qualidade do ensino que oferecem. No Brasil, as escolas privadas que oferecem ensino de qualidade costumam ser bem caras, talvez porque a presença de uma clientela rica viabilize essa opção. No caso de uma rede de escolas públicas que recebem um valor limitado por aluno, a possibilidade de que a competição baste para fazê-las superar suas atuais deficiências é duvidosa. Não obstante, acredito que esse tipo de reforma traria melhoras em relação ao atual status quo do ensino público. Melhor que uma reforma produtivista, que mercantilizasse o sistema educativo, seria uma reforma civil democrática que o politizasse. Seria uma reforma que democratizasse o processo educativo, reconhecendo que ele deve ter por agentes educador e educando e, no caso deste ser menor, a família (se ele a possui) ou quem preencher o papel. Isso significa que a escola se responsabilizaria integralmente pelo aluno e, no caso de ele não ter um lar adequado, trata de arranjar um para ele. O que pode significar algum tipo de educação em tempo integral ou parceria entre escola e outras instituições

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Poder, política e educação

que cuidam de jovens sem família. O mais importante aqui é que a escola deixa de exigir que o aluno se adapte a ela, optando por um relacionamento em que o aluno constitui a prioridade. A democratização do processo educativo deveria ir além, tratando de construir em cada escola uma verdadeira comunidade de todos os envolvidos, em que a natural superioridade dos professores e administradores fosse compensada por respeito pela vontade e pelos sentimentos dos outros membros, sobretudo dos mais jovens e mais fracos. A reforma democrática deveria se preocupar com as críticas neoliberais aos serviços sociais do Estado, pois, mesmo discordando das propostas produtivistas, é preciso reconhecer que as críticas têm base na realidade. A reforma democrática teria de ter engenhosidade suficiente para combinar um processo educativo não-mercantilizado com o combate ao paternalismo, à ineficiência e ao corporativismo. Acredito que ensino público gratuito de acesso universal pode ser salvo da crise em que se encontra, desde que seus defensores o submetam a uma autocrítica radical, a partir da qual sua reforma possa ser proposta. Uma parte dessa proposta terá, provavelmente, de ser a descentralização do sistema, para que mil flores de experimentos diversos possam florescer, dando espaço a muitas vocações educacionais que hoje não têm como se realizar. Esse é um aspecto positivo da proposta produtivista que os adversários deveriam incorporar. O grande debate sobre a crise educacional pode dar frutos, se os que defendem a tradição democrática e igualitária conseguirem passar à ofensiva, com propostas tão audazes e imaginosas quanto seus oponentes. E sobretudo se conseguirem implementar essas propostas, abandonando uma postura meramente defensiva de conquistas pretéritas.

Revista Brasileira de Educação

PAUL SINGER é Professor Titular da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, fundador e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), foi Secretário de Planejamento da Prefeitura de São Paulo no período 1989-1992 (gestão Luiza Erundina). Escreveu entre outros livros: O que é economia? (1989) e Um governo de esquerda para todos (no prelo).

Referências bibliográficas BODINGTON, S., GEORGE, M., MICHAELSON, J. (1986). Developing the socially useful economy. Londres. SAVIANI, Demerval. (1992). Neo-liberalismo ou pós-liberalismo? Educação pública, crise do Estado e democracia na américa latina. In: Estado e educação. Campinas: Papirus.

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Você disse “popular”? Pierre Bourdieu Collège de France

Tradução de Denice Barbara Catani Este texto foi publicado sob o título “Vous avez dit ‘populaire’?”, em Actes de la recherche en sciences sociales , nº 46, março, 1983, p. 98-105, Paris.

POPULAIRE adj. (Populeir, XIIe; lat. Popu-

au peuple, au plus grand nombre. Henri IV était un

laris). 1° Qui appartient au peuple, émane du peuple.

roi populaire. Mesures populaire. “Hoffmann est

Gouvernement populaires. “Les politiques grecs qui

populaire en France, plus populaire qu’en Allemagne”

vivaient dans le gouvernement populaire” (MON-

(GAUTIER). 4° Subst. (Vx). Le populaire, le peuple.

TESQ). V. Démocratique. Démocraties populaires. In-

ANT. (Du 3°) Impopulaire.

surrection, manifestation populaire. Front populaire: union des forces de gauche (communistes, socialistes, etc.) Les masses populaires. 2 ° Propre au peuple. Croyance, traditions populaires. Le bon sens populaire. - Ling. Qui est crée, employe par le peuple et n’est guère en usage dans la bourgeoisie et parmi les gens cultives. Mot, expression populaire, locution populaire. Latin populaire. Expression, location, tour populaire. À l’usage du peuple (et qui en emane ou nom). Roman, spectacle populaire. Chansons populaires. Art populaire (V. Folklore). - (Personnes) Qui s’adresse au peuple. “Vous ne devez pas avoir de succes comme orateur populaire” (MAUROIS). Qui se recrute dans

As locuções que comportam o epíteto mágico de “popular” estão protegidas contra a análise pelo fato de que toda crítica de uma noção que diz respeito de perto ou de longe ao “povo” corre o risco de ser imediatamente identificada como uma agressão simbólica à realidade designada — logo, imediatamente fustigada por todos aqueles que se sentem no dever de tomar o partido e defender a causa do “povo”, assegurando, assim, os lucros que também podem ser obtidos, sobretudo nas conjunturas favoráveis, com a defesa de “boas causas”.1

le peuple, que frequente le peuple. Milieux, classes populaires. “Ils ont trouvé une nouvelle formule: travailler pour une clientele franchement populaire” (R OMAINS). Origines populaires. V. Pléibéien. Bals populaires. Soupes* populaires. 3° (1559). Qui plait

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1

O fato de os custos da objetivação científica serem particularmente elevados para um ganho especialmente fraco — ou negativo — não significa nada para o estado do conhecimento nessas matérias.

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Você disse “popular”?

Isso vale para a noção de “linguagem popular”, que a exemplo de todas as locuções da mesma família (“cultura popular”, “arte popular”, “religião popular” etc.) define-se apenas relacionalmente, como o conjunto daquilo que é excluído da língua legítima, entre outras coisas, pela ação contínua de inculcação e imposição mesclada de sanções que é exercida pelo sistema escolar. Como os dicionários de gíria ou do “francês não-convencional” revelam com toda clareza, o léxico dito “popular” é o conjunto de palavras excluídas dos dicionários da língua legítima ou que aparecem ali afetadas por “marcas de uso” negativas: fam., familiar, “isto é, corrente na língua falada comum e na língua escrita mas um pouco livre”; pop., popular, “isto é, corrente nos meios populares das cidades, mas censurada ou evitada pelo conjunto da burguesia cultivada” (Petit Robert, 1979, p. XVII). Para definir com todo o rigor essa “língua popular” ou “não-convencional”, que seria muito proveitoso passar a chamar de pop. — para impedir que as condições sociais de sua produção sejam esquecidas — seria necessário precisar o que se coloca sob a expressão “meios populares” e o que se entende por uso “corrente”. Tal como os conceitos de “classes populares”, “povo” ou “trabalhadores”, conceitos de geometria variável cujas virtudes políticas se devem ao fato de que se pode ampliar à vontade o referente até incluir nele — em período eleitoral, por exemplo — os camponeses, os executivos e os gerentes ou, ao contrário, restringi-lo somente aos operários da indústria, isto é, aos metalúrgicos (e a seus representantes nomeados), a noção de “meios populares”, de extensão indeterminada, deve suas virtudes mistificadoras, na produção erudita, ao fato de que qualquer um pode, como num teste projetivo, manipular inconscientemente essa extensão para ajustá-la aos seus interesses, preconceitos ou fantasmas sociais. Assim, em se tratando de designar os locutores da “linguagem popular”, todo mundo estará de acordo em pensar sobre o “meio”, em nome da idéia segundo a qual os “machões” desempenham um papel determinante na produção e circulação da gíria, decididamente

Revista Brasileira de Educação

afastada dos dicionários legítimos. Também não se deixará de incluir os operários de origem urbana que a palavra “popular” evoca quase automaticamente, enquanto os camponeses serão rejeitados sem mais justificativa (sem dúvida por se saber que estes estão destinados à região, ao regional). Mas nem mesmo se chegará a perguntar — e eis aí uma das funções mais preciosas das noções muito amplas, dessas que abrigam de tudo — se seria ou não necessário excluir os pequenos comerciantes e em especial os gerentes de restaurantes, que sem dúvida a imaginação populista rejeitará mesmo que em termos de cultura e língua eles estejam indiscutivelmente mais próximos dos operários do que dos empregados e executivos médios. E, em todo caso, é certo que o fantasma — mais alimentado de filmes de Carné do que de observações — que orienta com mais freqüência a adesão folclórica de trânsfugos nostálgicos para os representantes mais “puros”, mais “autênticos” do “povo” exclui liminarmente todos os imigrantes, espanhóis ou portugueses, argelinos ou marroquinos, sudaneses ou senegaleses, os quais, como se sabe, ocupam na população dos operários da indústria um lugar mais importante do que no proletariado imaginário.2 Bastaria submeter a um exame análogo as populações que supostamente produzem ou consomem o que se chama de “cultura popular” para encontrar a confusão na coerência parcial que quase sempre recobre as definições implícitas: o “meio”, que desempenha um papel central no caso da “linguagem popular”, será aqui excluído, assim como o lumpemproletariado, enquanto que a eliminação dos camponeses já não será tão evidente, ainda que a coexistência dos operários,que são inevitáveis, com camponeses não se faça sem dificuldades. No caso da “arte popular”, como poderá evidenciar um exame desta outra objetivação do “popular” que são os “museus de artes e tradições populares”, o “povo” pelo menos, até recentemente, reduzia-se

2

É conhecido o papel que podem desempenhar semelhantes exclusões, conscientes ou inconscientes, na utilização que o nacional-socialismo faz da palavra völkisch.

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aos camponeses e aos artesãos rurais. E o que dizer da “medicina popular” ou da “religião popular”? Neste caso, os camponeses, ou as camponesas, são tão imprescindíveis quanto os “machões”, no caso da “língua popular”. Em seu esforço de tratar como uma “língua” — isto é, com todo o rigor que se costuma reservar à língua legítima — todos os que tentam descrever ou escrever o pop., lingüistas ou escritores, são condenados a produzir artefatos quase sem relação com o falar coloquial que os locutores mais estranhos à língua legítima empregam em suas trocas internas.3 Assim, para se conformar ao modelo dominante do dicionário, que só deve registrar palavras atestadas “por freqüência e duração apreciáveis”, os autores dos dicionários do francês não-convencional apóiam-se exclusivamente nos textos4 e, operando uma seleção no interior de uma seleção, submetem cada linguajar em

tão profundamente encerradas na rede de representações confusas que os sujeitos sociais engendram, para as necessidades do conhecimento corriqueiro do mundo social e cuja lógica é a da razão mítica. A visão do mundo social e, em especial, a percepção dos outros, de sua hexis corporal, da forma e do volume de seu corpo e sobretudo de seu rosto, mas também da sua voz, da sua pronúncia e do vocabulário, organiza-se, de fato, segundo oposições interconectadas e parcialmente independentes, das quais se pode fazer uma idéia recenseando os recursos expressivos depositados e conservados na língua, em particular no sistema de pares de adjetivos que os usuários da língua legítima empregam para classificar os outros e julgar sua qualidade e nos quais o termo que designa as propriedades imputadas aos dominantes representam sempre o valor positivo.6

estudo a uma alteração essencial no tocante às fre-

Se a ciência social deve ter uma posição privile-

qüências que fazem toda a diferença entre as lingua-

giada para a ciência do conhecimento cotidiano do

gens e os mercados nos quais o falar é mais ou menos

mundo social, isso não é somente com uma intenção

tenso ou pouco à vontade;5 esquecem, entre outras coi-

crítica e com vistas a desembaraçar o pensamento do

sas, que para escrever um linguajar que, tal como o

mundo social de todos os pressupostos que ele tende

das classes populares, exclui a intenção literária (e não

a aceitar mediante as palavras e os objetos que elas

a transcrição ou os registros), é preciso ser oriundo das

constróem (‘linguagem popular’, ‘gíria’, ‘dialeto’ etc.).

situações e mesmo da condição social na qual ele é falado; esquecem também que o interesse pelos “achados” ou o simples fato de se fazer uma adesão seletiva, ao excluir tudo o que se encontra também na língua padrão, confunde a estrutura das freqüências.

Se, a despeito de suas incoerências e incertezas, e também graças a elas, as noções pertencentes à família do “popular” podem prestar muitos serviços, e até no discurso erudito, é porque elas es-

3 Cf. H. Bauche (1920), P. Guiraud (1965), e, também,

na mesma perspectiva, H. Frei [1929] (1971). 4 5

Cf. J. Cellard e A. Rey (1980, p. VIII).

Basta indicar, por exemplo, que no discurso colhido no mercado mais informal — uma conversa entre mulheres — o léxico da gíria está quase totalmente ausente; só aparece, no caso observado, quando uma das interlocutoras

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refere-se às conversas de um homem (“Some já daqui”), de quem ela rapidamente diz: “É assim que ele fala, é um velho malandro de Paris, não tem dúvida, ele tem um jeito meio cafajeste, com aquele boné sempre de lado, a gente logo vê!”. Um pouco mais adiante a mesma pessoa reemprega a palavra “grana” pouco depois de ter contado as conversas de um gerente de restaurante na qual a palavra apareceu (cf. Y. Delsaut, 1975, p. 33-40). A análise empírica deveria limitar-se a determinar o sentimento que os locutores têm da inclusão de uma palavra na gíria ou na língua legítima (ao invés de impor a definição do observador) o que permitiria, entre outras coisas, compreender vários traços descritos como “falhas”, que são o produto de um senso de distinção mal-investido. 6

É por essa razão que, sob a aparência de girar em círculo ou no vazio, como tantas definições circulares ou tautológicas da vulgaridade e da distinção, a linguagem legítima torna-se, com tanta freqüência, privilégio dos dominantes.

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Você disse “popular”?

Também esse conhecimento prático contra o qual a ciência deve se construir — e de início esforçando-se por objetivá-lo — é parte integrante do próprio mundo que a ciência visa a conhecer: ele contribui para fazer esse mundo contribuindo para constituir a visão que os agentes podem ter e orientando por ela suas ações, em particular aquelas que visam a conservá-lo ou a transformá-lo. Assim, uma ciência rigorosa da sociolingüística espontânea que os agentes operam para antecipar as reações dos outros e para impor a representação que querem dar de si próprios permite, entre outras coisas, compreender uma boa parte daquilo que, na prática lingüística, é o objeto ou o produto de uma intervenção consciente, individual ou coletiva, espontânea ou institucionalizada: por exemplo, todas as correções que os locutores se impõem ou lhes são impostas — na família ou na escola — com base no conhecimento prático, parcialmente registrado na própria linguagem (o “sotaque parisiense”, “marselhês”, “faubourgueano” ou de subúrbio* etc.), de correspondências entre as diferenças lingüísticas e as diferenças sociais, bem como a partir de uma correção mais ou menos consciente de traços lingüísticos marcados ou identificados como imperfeitos ou falhos (notadamente em todos os hábitos lingüísticos do tipo “diz-que-diz-que”), ou, ao contrário, como formas de valorização e distinção.7

A noção de “linguagem popular” é um dos produtos da aplicação de taxionomias dualistas que

* A tradução “sotaque parisiense” corresponde a accent pointu que é a forma pela qual os habitantes da região sul da França se referem à pronúncia dos parisienses, que consideram desagradável. Sotaque “faubourgueano” ou de subúrbio corresponde a accent faubourien, expressão que designa o sotaque de bairros parisienses periféricos, ditos populares. (N. T.) 7

Sendo determinado o papel que a sociolingüística espontânea e as intervenções expressas das famílias ou da escola (que ela suscita e orienta) desempenham na manutenção ou na transformação da língua, uma análise sociolingüística da mudança lingüística não pode ignorar essa espécie de direito ou de costume lingüístico que comanda principalmente as práticas pedagógicas.

Revista Brasileira de Educação

estruturam o mundo social segundo as categorias de alto e baixo (a linguagem “baixa”), do fino e do grosseiro (as palavras grosseiras), do licencioso (as brincadeiras pesadas), do distinto e do vulgar, do raro e do comum, da ordem e da negligência, logo, da cultura e da natureza (não se fala de “gíria de bandidos” e de “palavras cruas”?). São essas categorias míticas que introduzem um corte nítido no continuum dos linguajares, ignorando, por exemplo, todos os entrecruzamentos do linguajar relaxado dos locutores dominantes (o fam.) e do linguajar tenso dos locutores dominados (que observadores como Bauche ou Frei incluem no pop.), e sobretudo a diversidade extrema dos linguajares que são globalmente lançados na classe negativa de “linguagem popular”.8 Mas, por uma espécie de desdobramento paradoxal, o que constitui um dos efeitos corriqueiros da dominação simbólica, os próprios dominados, ou pelo menos certas frações dentre eles, podem aplicar ao seu próprio universo social princípios de divisão (tais como forte/fraco, submisso; inteligente/sensível, sensual; duro/frouxo, flexível; direito, franco/torto, astucioso, falso etc) em cuja ordem se reproduz a estrutura fundamental do sistema de oposições dominantes em matéria de linguagem.9 Essa representação do mundo social re-

8

Mesmo aceitando a divisão que está no princípio da própria noção de “linguagem popular”, Henri Bauche observa que “a fala burguesa no seu uso familiar apresenta numerosos traços comuns com a língua vulgar” (1920, p. 9). E, mais adiante: “As fronteiras entre a gíria — as diversas gírias — e a linguagem popular são algumas vezes difíceis de determinar. Também são bastante vagos, por um lado, os limites entre a linguagem popular e a linguagem familiar e, por outro, entre a linguagem popular propriamente dita e a linguagem de pessoas comuns, simplórias, daquelas que, sem serem precisamente do povo, têm falta de instrução ou educação: aqueles que os ‘burgueses’ qualificam de simples” (idem, p. 26). 9

Ainda que por razões complexas, e que será necessário examinar, a visão dominante não ocupe aí uma posição central, a oposição entre o masculino e o feminino é um dos princípios a partir dos quais se engendram as oposições

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Pierre Bourdieu

tém o essencial da visão dominante por meio da oposição entre a virilidade e a docilidade, a força e a fraqueza, os verdadeiros homens, os “machos”, os “valentões” e os outros, seres femininos ou efeminados, destinados à submissão e ao desprezo.10 A gíria, de que é feita a “linguagem popular” por excelência, é o produto desse desdobramento que leva a aplicar à própria “linguagem popular” os princípios de divisão dos quais ela é produto. O sentimento obscuro de que a adequação lingüística encerra uma forma de reconhecimento e de submissão, destinada a fazer duvidar da virilidade dos homens que a ela se sacrificam,11 junto com a busca ativa da diferença distintiva, que faz o estilo, conduzem à recusa do “fazer demais”. Isto leva a rejeitar os aspectos mais fortemente marcados do falar dominante, em especial as pronúncias ou as formas sintáticas mais difíceis, simultaneamente a uma pesquisa da expressividade, baseada na transgressão das censuras dominantes — principalmente em matéria de sexualidade — sobre uma vontade de se distinguir das formas de expressão correntes.12 A transgressão das normas oficiais, lingüísti-

mais típicas do “povo” como massa fêmea, versátil e ávida de prazer (segundo a antítese da cabeça e do ventre). 10

É o que faz a ambigüidade da exaltação do falar “autêntico”: a visão de mundo que aí se exprime e as virtudes viris dos “machões” acham seu prolongamento natural no que tem sido chamado “direito popular” (cf. Z. Sternhell, 1978), combinação fascistóide de racismo, nacionalismo e autoritarismo. E compreende-se melhor a aparente bizarrice que representa o caso de Céline. 11

Tudo parece indicar que, com o prolongamento da escolaridade, o personagem do “machão” se constitui hoje a partir da escola e contra todas as formas de submissão que ela impõe. 12

O que leva a excluir inconscientemente a própria possibilidade de uma diferença (de tato, de invenção, de competência etc.) e de uma busca de diferença é um dos efeitos do racismo de classe, para o qual todos os “pobres”, como os amarelos e os negros, se assemelham. A exaltação indiferenciada do “popular” que caracteriza o populismo pode conduzir, assim, a um êxtase ingênuo diante de manifestações que os “nativos” julgam ineptas, imbecis ou gros-

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cas ou outras, é dirigida tanto contra os dominados “comuns” que a ela se submetem, quanto contra os dominantes ou, a fortiori, contra a dominação enquanto tal. A licença lingüística faz parte do trabalho de representação e evidencia o que os “machões”, sobretudo adolescentes, devem providenciar para impor aos outros e a si próprios a imagem do “valentão” desiludido de tudo e pronto a tudo, que se recusa a ceder ao sentimento e a sacrificar-se às fraquezas da sensibilidade feminina. E, de fato, a degradação sistemática dos valores morais ou estéticos, na qual todos os analistas reconhecem a “intenção” profunda do léxico da gíria, é de início uma afirmação de aristocratismo, mesmo quando consegue, ao se difundir, corresponder à propensão de todos os dominados a incluir a distinção, ou seja, a diferença específica, no gênero comum, na universalidade do biológico, por meio da ironia, do sarcasmo ou da paródia. Forma distinta — aos próprios olhos de alguns dominantes — da linguagem “vulgar”, a gíria é o produto de uma busca de distinção, mas dominada e condenada; daí produzir efeitos paradoxais, que não podem ser compreendidos, encerrando-os na alternativa da resistência ou da submissão, que comanda a reflexão comum sobre a “linguagem (ou a cultura) popular”. Basta, com efeito, sair da lógica da visão mítica para perceber os efeitos de contrafinalidade que são inerentes a toda posição dominada; uma vez que a busca de distinção leva os dominados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo mesmo em nome do que são dominados e constituídos como vulgares, segundo uma lógica análoga à que leva os grupos estigmatizados a reivindicarem o estigma como princípio de sua identidade, é necessário falar de resistência? E quando, inversamente, eles trabalham para perder o que os marca como vulgares e para se apropriar do que lhes permite serem assimilados, pode-se falar de submissão?

seiras ou, o que dá no mesmo, pode levar a reter apenas aquilo que foge ordinariamente do “comum” e a considerá-lo como representativo da linguagem ordinária.

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Para escapar aos efeitos do modo de pensamento dualista que leva a opor uma linguagem “padrão”, medida de toda linguagem, e uma linguagem “popular”, é preciso voltar ao modelo de toda produção lingüística e redescobrir o princípio da extrema diversidade dos linguajares que resulta da diversidade de combinações possíveis entre as diferentes classes de habitus lingüísticos e de mercados. Entre os fatores determinantes do habitus que parecem pertinentes do ponto de vista da propensão a reconhecer (no duplo sentido) as censuras constitutivas dos mercados dominantes ou a se beneficiar das liberdades necessárias oferecidas por alguns mercados livres de uma parte, e, de outra parte, da capacidade de satisfazer às exigências de uns e de outros, pode-se assim apontar: o sexo, princípio de relações muito diferenciadas com os diferentes mercados possíveis — e, em particular, no mercado dominante —; a geração, isto é, o modo de geração, familiar e sobretudo escolar, da competência linguística; a posição social, caracterizada, principalmente, do ponto de vista da composição social do meio de trabalho e das trocas socialmente homogêneas (com os dominados) ou heterogêneas (com os dominantes, no caso, por exemplo, do pessoal do setor de serviços) que ela favorece; a origem social, rural ou urbana e, nesse caso, antiga ou recente e, enfim, a origem étnica. Certamente, é com os homens e, entre eles, com os mais jovens e os menos integrados, atualmente e sobretudo de forma potencial, na ordem econômica e social, como os adolescentes oriundos de famílias imigradas, que se encontra a recusa mais marcante à submissão e à docilidade implicadas na adoção de maneiras de falar legítimas. A moral da força — que encontra seu complemento no culto da violência e nos jogos quase-suicidas, moto, álcool ou drogas pesadas, onde se afirma a relação com o futuro para aqueles que nada têm a esperar do futuro — é, sem dúvida, apenas uma das maneiras de fazer da necessidade, virtude. A opção ostensiva pelo realismo e pelo cinismo, a recusa ao sentimento e à sensibilidade, identificadas a uma compaixão feminina ou efeminada, essa espécie de dever de dureza, tanto para si como para os outros, que con-

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duz a audácias desesperadas do aristocratismo de pária, são um modo de fazer parte de um mundo sem saída, dominado pela miséria e pela lei da selva, a discriminação e a violência, onde a moralidade e a sensibilidade não trazem nenhum proveito.13 A moral que constitui a transgressão como dever impõe uma resistência ostensiva às normas oficiais, lingüísticas ou outras, que só pode ser mantida permanentemente ao preço de uma tensão extraordinária e, sobretudo para os adolescentes, com o reforço constante do grupo. Como o realismo popular, que supõe e produz o ajustamento das esperanças às oportunidades, ela constitui um mecanismo de defesa e de sobrevivência: aqueles que têm obrigação de se colocar fora da lei para obter as satisfações que outros obtém nos limites da legalidade conhecem bem o alto custo da revolta. Como bem observa Paul E. Willis (1978, especialmente p. 4850), as poses e posturas de bravata (por exemplo, com relação à autoridade e diante da polícia) podem coexistir com um conformismo profundo para tudo o que toca às hierarquia, e não somente entre os sexos; e a dureza ostentatória que impõe o respeito humano não exclui de maneira simples a nostalgia da solidariedade, isto é, da afeição que, ao mesmo tempo, plena e reprimida pelas trocas altamente censuradas do bando, exprime-se ou se trai nos momentos de abandono. A gíria — e aqui está, com o efeito de imposição simbólica, uma das razões de sua difusão, bem além dos limites do “meio” propriamente dito — constitui uma das expressões exemplares e, se pudermos dizer ideais, com a qual a expressão propriamente política deverá contar, isto é, compor, da visão edificada, no essencial, contra a “fragilidade” e a “submissão” femininas (ou

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Os jovens “machões” oriundos de famílias imigradas representam sem dúvida, um limite ao qual podem chegar até a recusa total da sociedade “francesa”, simbolizada pela escola e também pelo racismo cotidiano; representam a revolta de adolescentes oriundos de famílias mais desprovidas econômica e culturalmente que, com freqüência, encontra sua origem nas dificuldades, decepções ou fracassos escolares.

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efeminadas), que os homens mais desprovidos de capital econômico e cultural têm da sua identidade viril e de um mundo social inteiramente ordenado sob o signo da dureza.14 É preciso cuidado, entretanto, para não ignorar as transformações profundas que sofrem, em sua função e sua significação, as palavras ou as locuções emprestadas quando passam para o linguajar comum das trocas cotidianas. Nesse sentido alguns dos produtos mais típicos do cinismo aristocrático dos “machões” podem, em seu uso comum, funcionar como uma espécie de convenção neutralizada e neutralizante que permite aos homens dizer, nos limites de uma estrito pudor, a afeição, o amor, a amizade, ou simplesmente nomear os seres amados, os pais, os filhos, a esposa (o uso, mais ou menos irônico, de termos de referência como “a patroa”, “rainha-mãe” ou “minha burguesa” permitem, por exemplo, escapar às formas “minha mulher” ou o simples prenome, percebidos como familiares demais).15

No extremo oposto na hierarquia das disposições com relação à linguagem legítima estariam, sem dúvida, as mais jovens e as mais escolarizadas entre as mulheres, que, mesmo ligadas pelo ofício ou pelo casamento ao universo de agentes pouco

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Manifestação exemplar desse princípio de classificação e da amplitude de seu campo de aplicação, é o caso daquele pedreiro (antigo mineiro) que, convidado a classificar os nomes de profissões (num teste concebido sobre o modelo de técnicas empregadas para a análise componencial de termos de parentesco) e a dar um nome para as classes assim produzidas, exclui com um gesto de mão o conjunto das profissões superiores, cujo paradigma para ele era o apresentador de televisão, dizendo: “todos pederastas” (Pesquisa de Yvette Delsaut, Denain, 1978). 15

De modo mais geral, pelo fato de que a evocação mais ou menos brutal das coisas sexuais e a projeção atenuante do sentimental sobre o plano do fisiológico com freqüência têm o valor de eufemismos por hipérbole ou antífrase e que, inversamente e por meio da negação, dizem mais por dizer menos, é que esse léxico muda completamente de sentido ao mudar de mercado, com a transcrição romanesca ou a adesão lexicológica.

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dotados de capital econômico e cultural, sem dúvida, têm uma sensibilidade para as exigências do mercado dominante e uma capacidade para responder a elas que as aproxima da pequena burguesia. Quanto ao efeito da geração, este se confunde no essencial com o efeito das transformações do modo de geração, isto é, do acesso ao sistema escolar que, sem dúvida, representa o mais importante dos fatores de diferenciação entre as idades. Entretanto, não é certo que a ação escolar exerça o efeito de homogeneização das competências que ela se atribui e que se tem tentado imputar-lhe. De início, porque as normas escolares de expressão, mesmo quando aceitas, podem permanecer circunscritas, em sua aplicação, às produções escolares orais e sobretudo escritas. A seguir, porque a Escola tende a distribuir os alunos em classes tão homogêneas quanto possível, segundo os critérios escolares e, correlativamente, do ponto de vista dos critérios sociais, de maneira que o grupo dos pares tende a exercer efeitos de tal natureza que, conforme se desce na hierarquia social dos estabelecimentos e ciclos, e, portanto das origens sociais, a oposição aos efeitos produzidos pela ação pedagógica é mais forte. E enfim porque, paradoxalmente, ao criar grupos duráveis e homogêneos de adolescentes em ruptura com o sistema escolar e, através dele, com a ordem social, colocados em situação de quase inatividade e de irresponsabilidade prolongada,16 — esses agrupamentos homogêneos aos quais são relegadas as crianças das classes mais desprovidas e, principalmente, os filhos de imigrantes, sobretudo magrebinos — tem-se, sem dúvida, contribuído para oferecer as condições mais favoráveis à elaboração de uma espécie de “cultura delinqüente”, que se exprime, entre outras manifestações, por um linguajar em ruptura com as normas de linguagem legítima. Ninguém pode ignorar completamente a lei lingüística ou cultural e todas as vezes que os do16

O equivalente dessa situação só se encontra sob a forma do serviço militar, que era, sem dúvida, um dos principais lugares da produção e da inculcação de formas de falar da gíria.

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minados entram numa troca com os detentores da competência legítima e, sobretudo, quando se encontram em situação oficial, eles são condenados a um reconhecimento prático, corporal, de leis de formação de preços os mais desfavoráveis às suas produções linguísticas, que os condenam a um esforço mais ou menos desesperado de correção ou ao silêncio. Em todo caso, pode-se classificar os mercados com os quais se defrontam segundo seu grau de autonomia: desde os mais completamente submetidos às normas dominantes (como aqueles que se instauram na relação com a justiça, a medicina ou a escola) até os mais completamente livres dessas leis (como aqueles que se constituem nas prisões ou em bandos de jovens). A afirmação de uma contralegitimidade lingüística e, ao mesmo tempo, a produção de discursos fundada na ignorância mais ou menos deliberada das convenções e das conveniências características dos mercados dominantes são possíveis apenas nos limites dos mercados livres, regidos por leis de formação de preços que lhes são próprias, isto é, nos espaços próprios das classes dominadas, antros ou refúgios de excluídos — dos quais os dominantes são de fato excluídos, ao menos simbolicamente —, e para os detentores habituais dotados da competência social e lingüística que é reconhecida nesses mercados. A gíria do “meio”, enquanto transgressão real dos princípios fundamentais da legitimidade cultural, constitui uma afirmação conseqüente de uma identidade social e cultural, não somente diferente, mas oposta, e a visão de mundo que aí se exprime representa o limite para o qual tendem os membros (masculinos) das classes dominadas nas trocas lingüísticas internas à classe e, em especial, nas mais controladas e regulares dessas trocas, como aquelas do café, que são dominadas por completo pelos valores da força e da virilidade, um dos únicos princípios de resistência eficaz, junto com a política, contra as maneiras dominantes de falar e agir. Os próprios mercados internos se distinguem segundo a tensão que os caracteriza e, simultaneamente, segundo o grau de censura que impõem, e pode-se levantar a hipótese de que a freqüência das

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formas mais pesquisadas (da gíria) decresce à medida que decresce a tensão dos mercados de competência lingüística dos locutores: mínima nas trocas privadas e familiares (nesse caso, estão em primeiro lugar as trocas no seio da família), onde a independência em relação às normas do linguajar legítimo marca-se sobretudo pela liberdade, mais ou menos plena, de ignorar as convenções e as conveniências do linguajar dominante, sem dúvida, ela encontra o apogeu nas trocas públicas (quase exclusivamente masculinas) que impõem uma verdadeira pesquisa estilística, como os torneios verbais e lances ostentatórios de certas conversas de café. Apesar da enorme simplificação que supõe, esse modelo evidencia a extrema diversidade dos discursos gerados, praticamente, na relação entre as diferentes competências lingüísticas correspondentes às diferentes combinações de características vinculadas aos produtores e às diferentes classes de mercados. Mas, o modelo permite, por sua vez, esboçar o programa de uma observação metódica e reconhecer os casos das figuras mais significativas, entre as quais se situam todas as produções lingüísticas dos locutores mais desprovidos de capital lingüístico: primeiramente, as modalidades de discursos oferecidas por virtuoses nos mercados livres mais tensos — isto é, públicos — e em especial, a gíria. Em segundo lugar, estariam as expressões produzidas pelos mercados dominantes, ou seja, pelas trocas privadas entre dominantes e dominados ou pelas situações oficiais que podem tomar a forma da palavra embaraçada ou confusa pelo efeito da intimidação ou do silêncio, a única forma de expressão que, com freqüência, resta aos dominados. E enfim, os discursos produzidos pelas trocas familiares e privadas — por exemplo, entre mulheres —, essas duas últimas categorias de discursos sendo sempre excluídas por aqueles que, ao caracterizar as produções lingüísticas pelas características únicas dos locutores, deveriam, segundo a boa lógica, incluí-los na “linguagem popular”. O efeito de censura que exerce todo mercado relativamente tenso exerce pode ser observado no fato de que as conversas em lugares públicos reser-

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vados (pelo menos em certas horas) aos homens adultos das classes populares, como alguns cafés, são fortemente ritualizadas e submetidas a regras estritas: não se vai ao bar somente para beber, mas também para participar ativamente de um divertimento coletivo capaz de proporcionar aos participantes um sentimento de liberdade com relação às necessidades comuns, de produzir uma atmosfera de euforia social e de gratuidade econômica para a qual o consumo de álcool, com certeza, só pode contribuir. Estão lá para rir e fazer rir e cada um deve, na medida de suas condições, lançar na troca suas boas palavras e brincadeiras, ou no mínimo, levar sua contribuição à festa, colaborando com o sucesso de outros pelo reforço ao riso, com exclamações de aprovação (“Ah! É isso aí!”). A posse de um talento de animador, capaz de encarnar, ao preço de um trabalho consciente e constante de pesquisa e acumulação, o ideal do “tipo brincalhão”, que traz em si uma forma aprovada de sociabilidade, é uma forma de capital muito precioso. Nesse sentido, o bom gerente de bar acha na sabedoria das convenções expressivas, conveniente a esse mercado, brincadeiras, boas histórias, jogos de palavras que sua posição permanente e central lhe permite adquirir e exibir. E também acha no seu conhecimento especial das regras do jogo e das particularidades de cada um dos jogadores, dos prenomes, apelidos, manias, defeitos, especialidades e talentos de que pode tirar partido, os recursos necessários para suscitar, entreter e também conter, por apelos ou discretos chamados à ordem, as trocas capazes de produzir a atmosfera de efervescência social que seus clientes vêm procurar e que se deve oferecer a eles17. A qualidade da con-

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O pequeno comerciante e, sobretudo, o gerente de restaurante, particularmente quando detém as virtudes da sociabilidade que fazem parte dos requisitos profissionais, não são objeto de nenhuma hostilidade previsível ou regular por parte dos operários (contrariamente ao que tendem a supor os intelectuais e os membros da pequena burguesia com capital cultural, que deles estão separados por uma verdadeira barreira cultural). Eles dispõem, com bastante freqüência, de uma certa autoridade simbólica — que pode

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versa mantida depende da qualidade dos participantes, que depende, por sua vez, da qualidade da conversação, logo, de quem está no centro e deve saber negar a relação mercantil, afirmando sua vontade e sua capacidade de se inscrever como um participante comum no circuito das trocas — com a “ronda do gerente” ou os jogos de dados oferecidos aos fregueses habituais — e assim contribuir para colocar em suspenso as necessidades econômicas e as obrigações sociais, que se espera do culto coletivo da boa vida.18 É compreensível que o discurso articulado nesse mercado só aparente liberdade total e naturalidade absoluta para aqueles que ignoram as regras ou os princípios: assim, a eloqüência apreendida pela percepção externa como uma espécie de verve desabrida não é nem mais nem menos livre em seu gênero do que as improvisações da eloqüência acadêmica. Ela não ignora nem a busca do efeito, nem a atenção ao público e às suas reações, nem as estratégias retóricas destinadas a captar benevolência ou complacência; ela se apóia nos esquemas de invenção e expressão considerados mais próprios a dar àqueles que não os possuem o sentimento de assistir a manifestações fulgurantes da fineza de análise ou da lucidez psicológica ou política. Pela enorme redundância que sua retórica permite, pelo lugar que dá à repetição de formas e fórmulas rituais que são as manifestações obrigatórias de uma “boa educação”, pelo recurso sistemático às imagens concretas do mundo conhecido, pela obstinação excessiva com que reafirma, até mesmo na renovação formal, os

ser exercida até mesmo no plano político, ainda que o tema seja tacitamente tabu nas conversas dos cafés — em razão da comodidade e da segurança que detêm graças, entre outras coisas, à sua disponibilidade econômica. 18

Seria necessário verificar se, além dos gerentes dos cafés, os comerciantes e, em particular, os profissionais da “boa conversa” e da “lábia” — os camelôs e os vendedores ambulantes de feiras e mercados, e também os açougueiros e os cabeleireiros, num estilo diferente, qual seja, que corresponde a estruturas de interação diferentes —, não contribuem mais do que os operários, simples produtores ocasionais, para a produção de invenções ou achados.

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valores fundamentais do grupo, esse discurso exprime e reforça uma visão de mundo profundamente estável e rígida. Nesse sistema de evidências, incansavelmente reafirmadas e coletivamente garantidas, que assinala para cada classe de agentes sua essência, logo, seu lugar e sua categoria, a representação da divisão do trabalho entre os sexos ocupa um lugar central, talvez porque o cultivo da virilidade, isto é, da rudeza, da força física e da grosseria ríspida, instituída como recusa eletiva do refinamento efeminado, seja uma das maneiras mais eficazes de lutar contra a inferioridade cultural na qual se encontram todos aqueles que se sentem desprovidos de capital cultural, sejam ou não ricos de capital econômico, como os comerciantes.19 No extremo oposto, na classe dos mercados abertos, o mercado de trocas entre familiares (e especialmente entre mulheres) distingue-se pelo fato de que a própria idéia de busca e de efeito está quase ausente, de maneira que o discurso que aí circula difere na forma, como se viu, daquele das trocas públicas do café: é na lógica da privação, mais do que na da recusa, que ele se define com relação ao discurso legítimo. Quanto aos mercados dominantes, públicos e oficiais ou privados eles sugerem, aos mais desprovidos econômica e culturalmente, problemas tão difíceis que, a se ater à definição dos linguajares fundados nas características sociais dos locutores que adotam implicitamente as formas da “linguagem po-

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Essa representação assinala, no masculino, uma natureza social — a do homem “resistente” e “incansável”, avaro de confidências e que recusa os sentimentos e as sensibilidades exageradas, sólido e inteiro, “íntegro”, franco e confiável, “com o qual se pode contar” etc. —, que a dureza das condições de existência lhe impuseram, mas que ele se sente no dever de escolher porque ela se define por oposição à “natureza” feminina, fraca, doce, dócil, submissa, frágil, cambiante, sensível, sensual, e ao “invertido” (“contrário à natureza”, efeminado). Esse princípio de divisão atua no seu campo de aplicação específico, isto é, no domínio das relações entre os sexos, e também de uma maneira muito geral, impondo aos homens uma visão estrita, rígida, em uma palavra, essencialista, de sua identidade e, mais geralmente, de outras identidades sociais, para além de toda ordem social.

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pular”, é preciso dizer que a forma mais freqüente dessa linguagem é o silêncio. De fato, é ainda segundo a lógica da divisão do trabalho entre os sexos que se resolve a contradição resultante da necessidade de afrontar os mercados dominantes sem se sacrificar à busca de correção. Por se admitir (e de início entre as mulheres, que podem fingir deplorá-lo) que o homem é definido pelo direito e dever de constância a si, que é constitutivo de sua identidade (“eu sou como sou”) e pode manter-se num silêncio próprio a lhe permitir salvaguardar sua dignidade viril, ele incumbe freqüentemente a mulher — socialmente definida como flexível e submissa por natureza — de fazer o esforço necessário para afrontar as situações perigosas: receber o médico, descrever-lhe os sintomas e discutir com ele acerca do tratamento, tomar as providências junto à professora ou à assistência social etc.20 Segue-se que as “falhas” ligadas por princípio a uma busca infeliz de correção ou a uma preocupação de distinção mal-orientada e que, como todas as palavras deformadas, principalmente as médicas, são substituídas sem piedade pelos pequeno-burgueses — e pelas gramáticas da “linguagem popular” — são, sem dúvida, muito freqüentes entre as mulheres (e elas podem ser xingadas por “seus” homens — o que ainda é uma maneira de remeter as mulheres à sua “natureza” de afetadas e de causadoras de embaraços).21 De fato, mesmo nesse caso, as manifestações de docilidade jamais são destituídas de ambivalência e sempre ameaçam retornar como agressividade à menor “resposta brusca”, ao menor sinal de ironia ou de distância que converta os homens em homenagens obrigatórias da dependência estatutária: aquele

20 É óbvio que essas condutas estão sujeitas a variações segundo o nível de instrução da mulher e, sobretudo talvez, segundo a diferença de níveis de instrução entre os esposos. 21

Observa-se que, segundo essa lógica, as mulheres têm sempre suas razões em sua natureza (meio confusa). Os exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito: no caso em que a mulher é incumbida de resolver algo, se ela tem êxito é porque era fácil; se fracassa é porque não soube fazê-lo.

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que, ao entrar numa relação social muito desigual, adota de modo bastante visível a linguagem e as maneiras apropriadas, expõe-se a ser constrangido a pensar e a viver a reverência escolhida como submissão obrigatória ou servilidade interessada. A imagem do empregado doméstico, que deve uma adequação ostensiva às normas dominantes da conveniência verbal e dos uniformes, persegue todas as relações entre dominados e dominantes, e principalmente as trocas de serviços, como testemunham os problemas quase insolúveis colocados pela “remuneração”. É por isso que a ambivalência com relação aos dominantes e seu estilo de vida — tão freqüente entre os homens que exercem funções no serviço doméstico, os quais oscilam entre a inclinação à resignação ansiosa e a tentação de se permitir familiaridades que degradam os dominantes alçando-se até eles — representa, sem dúvida, a verdade e o limite da relação que os homens mais desprovidos de capital lingüístico e destinados à alternativa da grosseria e da servilidade mantêm com o modo de expressão dominante.22 Paradoxalmente, é apenas nas ocasiões em que a solenidade justifica a seus olhos que eles se situem no registro mais nobre, sem se sentirem ridículos ou servis — por exemplo, para falar do seu amor ou para manifestar sua simpatia no luto —, que eles podem adotar a linguagem mais convencional, porém a única conveniente por seu sentido para dizer as coisas graves, isto é, nas próprias ocasiões em que as normas dominantes sugerem que se abandone as convenções e todas as fórmulas feitas para manifestar a força e a sinceridade dos sentimentos.

Assim, parece que as produções lingüísticas e culturais dos dominados variam profundamente segundo sua inclinação e atitude para beneficiar-se das liberdades reguladas oferecidas pelos mercados livres, ou para aceitar as obrigações impostas pelos mercados dominantes. Isso explica que, na realidade polimorfa obtida ao se considerar todos os linguajares produzidos por todos os mercados para todas as categorias de produtores, cada um daqueles que se sente no direito ou no dever de falar do “povo” pode encontrar um suporte objetivo para seus interesses ou seus fantasmas.

PIERRE BOURDIEU (1930) é professor do Collège de France desde 1982, cadeira de Sociologia. Dentre seus inúmeros livros destacam-se La reproduction (1970), Leçon sur la leçon (1982), Homo academicus (1984), La noblesse d’État: grandes écoles et espirit de corps. (1989), Réponses: por une anthropologie réflexive (1992), La misère du monde (1993) e Raisons pratiques: sur la théorie de l’action (1994). Vários de seus livros estão traduzidos para o português e o mais recente foi editado entre nós em 1996, A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer (original de 1992).

Referências bibliográficas BAUCHE, H. (1920). Le langage populaire: Grammaire, syntaxe et vocabulaire du français tel qu’on le parle dans le peuple de Paris, avec tous les termes d’argot usuel. Paris: Payot. CELLARD, J. & REY, A. (1980). Dictionnaire du français non conventionnel. Paris: Hachette. DELSAUT, Y. (1975). “L’économie du langage populaire”. Actes de la recherche en sciences sociales 4, jul.

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A intenção de infringir uma marca simbólica (pela injúria, pela tagarelice ou pela provocação erótica, por exemplo) ao que é percebido como inacessível guarda a mais terrível confissão de reconhecimento de superioridade. Assim, como bem mostra Jean Starobinsky (1970, p. 98-154), “a conversa grosseira, longe de preencher a diferença entre os segmentos sociais, a mantém e agrava, sob o colorido de irreverência e de liberdade, transborda no sentido da degradação, é a autoconfirmação da inferioridade” (refere-se às conversas dos domésticos a propósito de Mademoiselle de Breil; cf. J.J. Rousseau, Confessions, III, in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard; Pléiade, 1959, p. 94-96).

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FREI, H. ([1929] 1971). La grammaire des fautes. Paris/ Genebra: Slatkine Reprints. GUIRAUD, P. (1965). Le français populaire. Paris: Presses Universitaires de France. Col. Que sais-je?, n° 1172. STAROBINSKY, Jean (1970). La relation critique. Paris: Gallimard. STERNHELL, Z. (1978). La droite revolutionnaire, 18851915: Les origines françaises du fascisme. Paris: Seuil. WILLIS, P.E. (1978). Profane Culture. London: Routledge and Kegan Paul.

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Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero Perspectivas comparativas

Nelly P. Stromquist School of Education, University of Southern California

Tradução de Vera M.D. Renoldi Trabalho apresentado no II Simpósio Anual de Missouri sobre Pesquisa e Política Pública Educacional, Universidade de Missouri/Columbia, 30 a 31 de março de 1995.

Compreendendo as políticas públicas O termo política pública* é um conceito de definição vaga. Na verdade, afirma-se que nenhum outro, na área de ciências sociais, tem sido subme-

* Em português tanto o termo policy ou policies quanto o termo politic ou politics são traduzidos pelo termo política ou políticas. Em inglês, os termos têm acepções diversas, embora sua origem etimológica seja originalmente a mesma. Politic ou politics significa a arte ou a ciência de governar, regulando e controlando os homens que vivem em sociedade, ocupando-se da organização, administração e direção de unidades políticas, como nações e Estados. No caso de policy ou policies o sentido é o de um método ou curso de ação definido e selecionado — seja por instituições, grupos, indivíduos ou governos — entre diferentes alternativas e à luz de determinadas condições, para determinar decisões presentes ou futuras. Essas decisões específicas, ou o conjunto de decisões, carregam consigo as ações relacionadas à sua implementação. O conceito engloba também o sentido de um programa projetado que consiste de duas partes: os objetivos a atingir e os meios necessários para

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tido a tantos equívocos e abusos nas últimas décadas (Leichter, 1979). Em princípio, ele se refere a declarações oficiais de intenção de agir sobre determinados problemas. Entretanto, na prática, as políticas públicas podem assumir múltiplas formas: legislação, recomendações oficiais em relatórios de organismos e departamentos governamentais e resultados apurados por comissões apontadas pelos governos. Cada vez mais essas políticas públicas estão sendo estabelecidas por organismos internacionais, por meio de conferências também internacionais, e criam para os países um compromisso moral de seguirem recomendações específicas, embora não sejam convenções e portanto não imponham nenhuma obrigação legal. Nos países em desenvolvimento, há uma outra forma de criação de políticas públicas, derivadas de projetos realizados em países que contam com apoio externo.

atingi-los. Esses meios seriam a formulação da política. A tradução mais correta seria, portanto, política pública, considerando-se que cada política implica sua própria estratégia. (N. T.)

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Quando em forma de declarações públicas, as políticas públicas educacionais seguem um processo de quatro fases, no mínimo, iniciando-se com a identificação do problema, evoluindo para a formulação e a autorização da política pública (leis aprovadas), implementação das mesmas e finalização ou mudança (Harman, 1984). Uma vez que estas fases colocam em ação diferentes atores, é comum existir uma falta de conexão entre elas e, ocasionalmente, bons programas no papel são mal implementados em campo. Entretanto, estudantes de política pública têm também consciência de que políticas públicas não se apresentam como “um objeto ou texto concreto e constante que se transmite de um local para outro”. Pelo contrário, são produzidas por indivíduos atuando dentro de contextos, os quais ora apresentam limitações, ora oportunidades (Hall, em elaboração). Uma compreensão da complexidade dessas políticas públicas deveria nos conscientizar da existência de múltiplos elementos em ação, tais como intencionalidade, instrumentalidade, interação, poder e temporalidade que condicionam os contextos sociais (Hall, 1995). Ozlack (1984, p. 5) define-as como “um conjunto de tomadas de decisão face a face com temas socialmente problematizados”. Essa conceitualização acurada ajuda a reconhecer que as políticas públicas apresentam a intenção de solucionar problemas identificados, que essas soluções devem contar com um mínimo de apoio da sociedade e que a definição do problema evolui através de sucessivas ondas de tomadas de decisão. Em outras palavras, contrariando a visão que postula a seqüência linear na formulação de uma política pública, começamos a apreender que, pelo fato de vários atores estarem implicados no processo — de políticos a burocratas a equipes escolares — essas pessoas inserem certas modificações nas políticas públicas, alterações que têm origem em sua interpretação sobre as políticas públicas em si e na extensão de sua concordância em relação a elas. Entretanto, a presença de fatores contingentes na formulação e na implementação de políticas públicas não deve ser interpretada como uma suges-

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tão de que todas as políticas públicas sejam imprevisíveis. Desvios da intenção e dos objetivos originais, ao longo do tempo, revelam-se particularmente verdadeiros no caso de políticas públicas controvertidas ou não consensuais como são as políticas públicas de gênero. Existem fortes elementos de surpresa e contingência circundando essas políticas públicas, em especial na sua implementação. Contudo, enquanto elas continuarem a ser um território disputado por forças em oposição, pode-se prever, ocasionalmente, vitória das partes mais fortes. Este trabalho não descarta a possibilidade de fatores contingentes no processo de estabelecimento e implementação de políticas públicas. Nós queremos descrever o caráter e os objetivos das políticas públicas educacionais de gênero e explicar até que ponto essas tem se empenhado em promover mudanças significativas dentro do sistema educacional. Portanto, nosso interesse está em captar a semelhança existente em políticas públicas, que se mostram aparentemente diferentes, a respeito de gênero na educação. Este trabalho pretende fornecer uma apreciação comparativa das políticas públicas de gênero na educação, tanto as internas como as de outros países, documentando a gama de significados e compreensões que tem caracterizado as políticas públicas de gênero sobre a igualdade educacional e oferecendo explicações para as conquistas das mesmas. Políticas públicas de gênero A formulação de uma política pública, que supõe exigências diretas sobre o Estado, tem sido buscada por muitas feministas. Os temas englobados nessas exigências são a igualdade de status para as mulheres, a remoção da discriminação sexual, a introdução de regulamentos contra assédio sexual e a introdução de cotas que garantam a representatividade feminina. Entretanto, não existe um consenso, dentro do movimento feminista, em relação ao papel do Estado nas relações de gênero. O grupo geralmente caracterizado como “feministas liberais” conside-

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Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

ra que o Estado é neutro e corrigirá desigualdades de gênero quando lhe forem fornecidas informações pertinentes sobre as disparidades existentes. Um outro grupo, compreendendo feministas com perspectivas “radicais” ou “socialistas”, está mais inclinado a considerar o Estado como uma instituição patriarcal que reflete divisões de gênero ao mesmo tempo que as produz. Nessas situações, as mulheres são geralmente excluídas de um acesso direto aos recursos estatais devido a sua ausência nos departamentos estatais e, de forma indireta, por forças políticas “sexistas” que atuam sobre o Estado (Connell, 1987; Pateman, 1988). Na verdade, segundo o Human Development Report, as mulheres representam apenas 10% dos representantes parlamentares no mundo e bem menos de 4% de ministros de gabinete ou posições de autoridade executiva similares.1 O Estado molda as relações de gênero através de regulamentações relativas ao divórcio, ao casamento, ao aborto, à anticoncepção, à discriminação salarial, à sexualidade, à prostituição, à pornografia, ao estupro e à violência contra a mulher (Walby, 1990). Entretanto, a natureza patriarcal do Estado não é considerada estática. Afirma-se que forças dominantes modernizaram a posição feminina ao permitir a participação plena das mulheres no mercado de trabalho. Mas, simultaneamente, o Estado tem neutralizado as exigências feministas através de várias concessões as quais, embora melhorem a situação, não eliminam os obstáculos fundamentais para a igualdade feminina. Uma das respostas estatais na área de educação é a de admitir

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Os dados disponíveis não permitem comparações claras. Entretanto, poder-se-ia argumentar que a mulher tem um nível mais baixo de representação na política formal do que no setor de economia formal: em 35 países, as mulheres representam mais de 25% das posições administrativas e de gerência (dado de 1990), mas apenas em 28 países elas constituem mais do que 15% dos ministros e submininistros e em 25 países representam pelo menos 20% dos representantes parlamentares (as duas informações são dados de 1994) (ONU, 1995, p. 151-155).

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o princípio de igualdade de oportunidade em vez de reconhecer a necessidade de uma educação antisexista (Yates, 1993; Kelly, 1988). Com o tempo, a posição feminista de distanciamento do Estado evoluiu para a utilização de uma estratégia dupla: trabalhar com o Estado através de pressões e desenvolver um trabalho independente através de grupos de mulheres, particularmente organizações não-governamentais (ONGs). Essa nova postura passou a existir como conseqüência do reconhecimento de que as mulheres tem maiores chances de aumentar sua influência no processo político — em alianças com homens que apóiam a causa e fazem lobby pelos interesses das mulheres — do que através do mercado ou das ONGs, que tendem a ser pequenas e fragmentadas (Young, 1988). Numa apreciação do comportamento dos Estados, as teóricas feministas observaram que as políticas estatais nem sempre tendem para o status quo. Enquanto os Estados consideram a mulher e a família como um duo inseparável, no qual os problemas de uma se tornam os problemas da outra, com freqüência assumem políticas públicas contraditórias em relação às mulheres. Por um lado, a necessidade de contar com elas como sendo mães e esposas induz o Estado a formular projetos muito convencionais nas linhas de gênero. Por outro, a necessidade de depender das mesmas como força de trabalho — ainda que este seja facilmente explorável, barato e manipulável — cria oportunidades para que elas se insiram no mercado de trabalho, adquiram um relativo padrão de autonomia financeira e, eventualmente, questionem sua condição de subordinação. Da mesma forma, tendências globais a favor de normas democráticas obrigam os Estados a oferecer direitos iguais para todos os cidadãos. Essas contradições criam janelas de oportunidade para possibilidades de transformação e ação organizada. As desigualdades relativas às mulheres nas áreas econômicas, sociais e políticas em todo o mundo persistem a despeito de vinte anos de trabalho ativo por parte do movimento de mulheres. Um dos indicadores mais aceitos do bem estar sócio-econômico é o

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Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) publicado anualmente no Relatório de Desenvolvimento Humano, produzido pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD). Esse índice sintetiza a condições da população em um determinado país em termos de expectativa de vida no nascimento, desempenho educacional e GPD real ajustado per capita. A PNUD também desenvolveu um IDH sensível ao gênero, fundamentado na posição das mulheres em relação à dos homens em termos de expectativa de vida, alfabetização na idade adulta, salários e anos de instrução básica. O Relatório de Desenvolvimento Humano de 1993 constatou que o IDH médio das mulheres é apenas 60% daquele dos homens2 (PNUD, 1993, p. 260). Denominando as mulheres como “o maior grupo excluído no mundo”, o mesmo relatório também verificou que elas sofrem uma séria desvantagem em comparação aos homens em relação a emprego, educação superior, direitos legais, patrimônios financeiros e representação política. Esse relatório fornece uma evidência clara de que a industrialização não é concomitante à igualdade das mulheres, sendo o exemplo mais notável o do Japão, cujo IDH é o primeiro do mundo mas, quando ajustado à disparidade de gênero, ocupa o décimo-sétimo lugar. Da mesma forma que o gênero, o aspecto étnico é uma outra variável de importância na criação da desigualdade sócio-econômica: se a população dos Estados Unidos fosse dividida em grupos étnicos, o IDH da parcela branca estaria em primeiro lugar entre todas as nações, com a parcela negra ocupando o trigésimo-primeiro lugar e a parcela hispânica estando “ainda mais abaixo” (PNUD, 1993, p. 26). Embora não exista uma concordância entre as teóricas feministas sobre o papel do gênero sob o capitalismo, aceita-se, de forma crescente, que as mulheres sejam um dos elementos importantes no processo de acumulação (através de seu trabalho 2

Poder-se-ia sugerir que o fato de dados desse tipo existirem, em 1991, apenas para 33 países — dos quais 22 são países industrializados — seria um indicativo da limitada importância dada à mulher nos países em desenvolvimento.

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doméstico reprodutivo) o qual suplanta divisões de classe e é também apoiado por relações extra-econômicas de dominação (Feijóo, 1993). Entretanto, as mulheres não representam um grupo homogêneo e nem todas vêem a si mesmas em circunstâncias iguais. Os temas abordados por mulheres da classe média enfocam melhoria de acesso à educação superior, direitos das mulheres casadas, melhoramentos na legislação trabalhista. Esses interesses não são partilhados pela mulher pobre porque muito poucas freqüentam universidades, casam-se legalmente ou trabalham no setor formal da economia. Pelo contrário, os problemas das mulheres pobres se concentram em moradia, débitos, saúde e desemprego (Fisher, 1993). A emergência de assuntos abrangendo todas as classes sociais, como o direito de controlarem seus próprios corpos (incluindo-se o aborto) e a preponderância do tópico de violência contra a esposa são temas que estão criando uma maior unidade entre as mulheres. Políticas públicas de gênero na educação Conforme declarado anteriormente, o Relatório de Desenvolvimento Humano de 1993, da PNDU, evidencia a substancial desvantagem das mulheres. Entretanto, não aponta causas ou atores/ instituições responsabilizáveis por essa situação. Trata-se de um posicionamento comum às declarações de muitos governos e organismos internacionais. Existe uma nítida preferência para a elaboração de projetos destacando as desigualdades para o acesso das mulheres à instrução e à força de trabalho, enquanto enfatiza-se bem menos a identificação das forças sociais, econômicas e ideológicas que estão subjacentes à subordinação e à dominação femininas. A fim de se compreender a intenção dos elaboradores de políticas públicas (como também ajudá-los na criação de políticas públicas eficazes), os estudiosos se concentraram no exame dos instrumentos da política pública — “mecanismos que transformam os objetivos de uma política pública

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Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

substantiva em ações concretas” (McDonnell e Elmore, 1987, p. 133).3 Com o intuito de analisar as políticas públicas de gênero, minha proposta é uma classificação embasada no nível de transformação social pretendido pela legislação. Três tipos de legislação podem ser identificados: > Leis de coerção — as ativadas para prevenção no caso de ocorrer ou de continuar ocorrendo qualquer discriminação sexual (o aspecto “vara de marmelo” da lei); > Leis de apoio — as criadoras de organismos para promover ou monitorar a implementação de novas práticas (isto é, criação de comissões e unidades compostas por mulheres e ministérios encarregados de assuntos femininos, etc.) > Leis de construção — as promotoras de incentivos para novas práticas nas instituições educacionais, relacionadas a desenvolvimento de programas e cursos, treinamento de professores, maior número de bolsas de estudo para mulheres, etc. (o aspecto “isca” da lei). A Tabela 1 apresenta uma classificação de políticas públicas genéricas e com enfoque no gênero, comparando a tipologia oferecida por McDonnell e Elmore (1987) com as minhas.

TABELA 1. Comparação entre políticas genéricas e sensíveis a gênero (continuação) POLÍTICAS GENÉRICAS (continuação) Modelos

Efeito desejado

Mecanismos de aplicação

Mudança do sistema

Devolução de autoridade, criação de novos organismos

Boa vontade do Estado, fundos para criar novas instituições

Criação de capacidade

Novas capacidades em indivíduos e instituições

Recursos para provisão de serviços

Incentivos

Provisão de novos serviços e administração de novos serviços POLÍTICAS SENSÍVEIS A GÊNERO

Modelos

Efeito desejado

Mecanismos de aplicação

De coerção

Eliminar discriminação de gênero

Retirada de contratos ou multas para encorajar obediência

De apoio

Instituições/ unidades para promoverem problemas de gênero e monitorar legislação de gênero, coerção e de construção

De suporte

Unidades/ instituições para promoverem assuntos de gênero e monitorar legislação de gênero coerciva e construtiva

De construção

Novos comportamentos conhecimentos e atitudes relativas a mulheres e homens na sociedade

TABELA 1. Comparação entre políticas genéricas e sensíveis a gênero POLÍTICAS GENÉRICAS Modelos

Efeito desejado

Mecanismos de aplicação

Comando

Eliminar discriminações, desperdícios, danos etc.

Punições para encorajar obediência

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Ao examinar vários tipos de políticas públicas, McDonnell e Elmore propõem uma classificação para políticas públicas em geral. Essa classificação genérica não pode ser aplicada diretamente em políticas públicas de eqüidade de gênero, cuja maioria deveria visar, necessariamente, uma mudança social sistemática.

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Se a sutileza das diferenças de gênero na sociedade estão intimamente ligadas à influência da ideologia e do discurso, a teoria feminista argumentaria que as políticas públicas são necessárias a fim de modificar as práticas pelas quais as escolas criam o gênero e preparam estudantes tanto do sexo masculino como feminino para a paternidade, a maternidade e a vida doméstica. As políticas públicas deveriam também desenvolver alternativas para a divisão sexual convencional de trabalho na família nuclear e na economia (Deem, no prelo). Com a finalidade de apoiar essa dupla de objetivos, deveriam se promover pesquisas, em particular estudos qualitativos da educação, a fim de tornar transparentes o “submundo sexual da educação”, através de linguagem e provocação sexual e racialmente abusivas, comportamento condescendente para com estudantes do sexo feminino e noções racistas de feminilidade e masculinidade (Arnot, 1993). Em outras palavras, são obrigatórias as políticas públicas construtivas. As políticas públicas de gênero podem ser de três tipos, em termos de seu alcance: as de enfoque genérico contra discriminação (cobrindo todas as áreas, não apenas a da educação), as específicas para a área educacional, mas referindo-se às mulheres apenas por implicação nas mencionadas políticas, e as que se referem especificamente à educação das mulheres. As genéricas contra a discriminação são, obviamente, coercitivas por natureza. As específicas para a área educacional e as enfocadas nas mulheres em especial podem ser de coerção, de apoio ou construtivas.

vidos também estão sendo estudados e incluem Argentina, Burkina Faso, Sri Lanka, Uruguai, Coréia do Sul e Zimbabwe.4 De acordo com a visão da maioria dos governos, o problema chave na educação das mulheres é essencialmente o de acesso — ou seja, “garantir uma oportunidade igual para as mulheres em todos os níveis de educação”. Eles também reconhecem a necessidade de lhes assegurar um acesso adequado ao treinamento, à ciência e à tecnologia. Quando se considera o conteúdo educacional, eles exigirão, sem grande relutância, a eliminação de estereótipos sexuais de livros didáticos e outros materiais educativos. A ênfase no acesso feminino à instrução e às habilitações fornecidas pela educação traz em seu bojo o pressuposto de que escolas sejam “instituições neutras, as quais proporcionarão conhecimentos às mulheres da mesma forma que aos homens e que estes serão de igual valor para ambos os sexos” (Kelly, 1988, p. 12). Consciente ou inconscientemente, são evitados, de maneira constante, os temas curriculares mais complexos como a modificação dos modelos de conhecimento transmitidos e a inclusão de novas visões de uma sociedade com maior eqüidade de gênero. Este fato ocorre não apenas nos níveis mais baixos de instrução, mas também no nível universitário. O resultado é que o conhecimento obtido nessas instituições não chega sequer a tocar as mensagens ideológicas e as práticas educacionais que reproduzem as identidades femininas e masculinas. Por exemplo, textos econômicos em nível de faculdade invocam modelos de “excesso de procura” ocupacional ou modelos estatísticos de dis-

Políticas públicas de gênero na educação em âmbito nacional 4

Começam a emergir diversos estudos empíricos sobre políticas públicas educacionais de Estado relativas a gênero. Esta pesquisa abrange principalmente as políticas públicas em países desenvolvidos como Suécia, Austrália, Dinamarca, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, França, Itália, Espanha, Canadá e Hungria. Mas os países menos desenvol-

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Para um estudo comparativo de políticas públicas educacionais entre treze países industrializados e países em desenvolvimento, ver Sutherland e Baudoux, 1994. Para este estudo, baseei-me em dados primários para todas as referências aos Estados Unidos (Stromquist, 1993a) e em dados secundários para os outros países. Estes últimos apresentam um alto grau de variação quanto aos problemas que abrangem e, como resultado, os dados são inexistentes no que diz respeito a vários aspectos.

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criminação para explicar a renda relativamente mais baixa das mulheres, contudo não oferecem uma explicação para o fato das mulheres ou das minorias continuarem a adquirir as habilitações tradicionais que irão provocar o mencionado excesso de procura ocupacional e em explicar as escolhas ocupacionais como resultado de um comportamento de supervalorização por parte das pessoas, com base em preferências de origem exterior, tais como tecnologias, talentos individuais e instituições (Feiner e Roberts, 1990). Quando se desenvolvem políticas públicas para aumentar o número de estudantes do sexo feminino em cursos de matemática e ciências, o problema se estrutura sobre a reduzida representação feminina em carreiras não tradicionais. Essa visão condiciona o problema a uma questão de resultado de escolhas individuais e de realização, desviando a atenção do setor de serviços, que é a maior área de emprego para mulheres (Yates, 1993). A área de conteúdo educacional — ou currículo — deveria ser da maior importância no desenvolvimento de políticas públicas de gênero. Conforme comenta Connell, “o quanto e quem (isto é, o acesso) não podem ser separados do quê”. Em suas próprias palavras: Cada maneira particular de construir o currículo (isto é, de organizar o campo de conhecimento e definir o que deve ser ensinado e ser aprendido) traz em seu bojo efeitos sociais. O currículo fornece poder e o retira, autoriza e desautoriza, reconhece correta ou erradamente grupos sociais diferentes, seus conhecimentos e suas identidades. Por exemplo, o currículo desenvolvido em instituições acadêmicas controladas por homens tem, das mais diversas maneiras, autorizado as práticas e as experiências masculinas, marginalizando as femininas” (Connell, 1994, p. 14).

A despeito da importância do conteúdo, a reforma curricular — nos poucos casos em que é tentada — mostra-se dependente de estratégias de assimilação. Ao examinar o relatório da Comissão de Escolas de 1987, que apresentou a Política Nacional para Educação Feminina nas Escolas Australianas, Yates descobriu que o relatório aponta a ne-

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cessidade de ampliar a perspectiva das estudantes, salientar sua participação e sua realização, prover suas necessidades, aumentar sua confiança na matemática e garantir conteúdo, práticas, processo e ambientação de ampla abrangência (1993, p. 174), mas evita tocar em qualquer política pública de significado contestatório. Desconsiderando-se níveis econômicos de desenvolvimento e filosofia política (esta última encaminhando-se, de forma generalizada, para uma uniformização, em especial no estado democrático com economia de mercado), todos os países apresentam fortes semelhanças nas condições de educação para as mulheres e para os homens. Entre essas semelhanças destacam-se as seguintes: a) seus sistemas educacionais estão passando por um processo de contínua expansão; b) com o aumento crescente de admissões, também há uma tendência de aumento na participação educacional de estudantes do sexo feminino; c) na maioria dos países, os livros didáticos continuam a apresentar estereótipos sexuais; d) os professores tendem a evidenciar expectativas mais baixas em relação às meninas e a tratá-las de forma diferenciada dos meninos; e) embora existam muitas professoras, poucas mulheres são administradoras; f) existem poucas mulheres em posições administrativas nas universidades; g) ainda persiste uma grande concentração de mulheres nas áreas de estudo tradicionalmente femininas e uma baixa representatividade em campos importantes para o desenvolvimento nacional, tais como agricultura, ciência e tecnologia e, como conseqüência, persiste a segregação ocupacional e o diferencial de renda entre homens e mulheres; h) quase universalmente, as mulheres apresentam um percentual mais alto de analfabetismo. No Brasil, também existem posições de paridade de gênero em todos os níveis de educação, mas os efeitos compostos de gênero, residência rural, etnia (o ser negro), criam desvantagens educacionais substanciais. O engajamento dos Estados em trabalhos com o objetivo de aumentar a consciência feminista das mulheres adultas é muito limitado. Existe um for-

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te paralelo entre o tratamento de jovens na escola e mulheres em programas educacionais para adultos: ambos são apolíticos, ampliando e promovendo definições convencionais de feminilidade e masculinidade. Em termos genéricos, muitas das políticas públicas governamentais continuam a ver as mulheres como recipientes passivas do bem-estar social. Sendo assim, as políticas públicas são orientadas em sua maior parte para as mulheres de baixa renda da área urbana, da área rural ou autóctones, a fim de que elas possam melhorar suas habilitações na costura, na nutrição, na saúde, no planejamento familiar e no artesanato, e para que seus filhos possam ter melhores oportunidades de vida. Essas políticas públicas refletem a propensão do Estado em prover bem-estar social para a maioria das mulheres carentes, mas não de proporcionar autonomia, nem a estas, nem às mulheres como um grupo. Com escassas exceções — casos em que educadores feministas se posicionaram dentro da burocracia estatal, como na Índia e na Argentina, os únicos grupos que trabalham para promover uma consciência de gênero entre as mulheres adultas são as organizações de mulheres não governamentais (ONGs).

Políticas públicas educacionais de gênero em países desenvolvidos A fim de concretizar as afirmações anteriores, apresento as políticas públicas educacionais de três nações industrializadas com maiores detalhes. Esses países foram escolhidos por terem culturas predominantemente anglo-saxônicas e uma total paridade de gênero nos níveis escolares primário e secundário, permitindo assim uma análise de políticas públicas educacionais que ultrapasse o enfoque de acesso básico. Reino Unido — Este país tem três sistemas educacionais separados, os quais determinam suas próprias políticas públicas: Inglaterra e País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte. Em âmbito nacional, há uma política pública de gênero ampla, o Ato de Discriminação Sexual de 1975, o qual proíbe discriminação de gê-

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nero direta ou indireta — esta última incluindo a colocação de condições não necessárias para um cargo, mas com tendência a serem preenchidas mais dificilmente pelas mulheres do que pelos homens, tais como anos de experiência de trabalho no exterior. A Parte III desse ato estipula acesso igual à instrução, instalações e cursos para as mulheres. O Ato também cria uma Comissão de Oportunidade Igual para trabalhar em prol da eliminação da discriminação, promover igualdade entre homens e mulheres e monitorar a implementação do ato. A Comissão pode desenvolver investigações, prestar assistência a pessoas a fim de evitarem discriminação e estabelecer pesquisas. O orçamento da Comissão é pequeno e foi reduzido em termos reais nos últimos anos (Sutherland, 1994). Em 1977, os três governos do Reino Unido deram expressão ao seu compromisso para com a igualdade de oportunidade e de condições na educação ao acrescentar ao Green Paper on Education in the Schools de 1977 um documento subseqüente, o The School Curriculum, o qual visava estabelecer tratamento igual para homens e mulheres no currículo. Notadamente, as duas políticas públicas não foram concomitantemente apoiadas por um treinamento de professores. Algumas feministas no Reino Unido exigiram currículos “mais abrangentes quanto a gênero” a fim de dar maior cobertura às realizações das mulheres em diversos setores, além da exclusão de perguntas de exames que fossem genericamente sexistas. Também requisitaram o desenvolvimento de diversas estratégias e iniciativas para superar os problemas de sexismo na educação, entre os quais uma auto-avaliação por parte dos professores (o Genderwatch é um manual para esse tipo de avaliação). Essas exigências ainda não foram atendidas (Deem, no prelo). Canadá — Este país apresenta um interesse digno de nota porque é considerado, de forma geral, um dos mais adiantados no tratamento de problemas de gênero. O governo nacional aprovou uma lei geral sobre Direitos Iguais (incluindo a área de educação) em 1977, a qual proíbe discriminação relativa a gêne-

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ro. Uma vez que cada província é responsável pela educação, ocorre uma considerável variação neste nível. Todas as províncias têm leis antidiscriminatórias na educação, mas apenas uma, Ontario, dá obrigatoriedade a programas que promovam igualdade de acesso educacional. Duas províncias (Quebec e Nova Scotia) elaboraram leis educacionais abrangentes. Três províncias contam com políticas públicas de treinamento anti-sexista para professores, mas este é voluntário. Dados sobre conquistas políticas públicas indicam que poucas províncias se dedicaram a mudanças no programa escolar. A maior parcela de progresso realizou-se em termos de abertura de cursos de economia industrial e doméstica a meninos e meninas, na remoção de estereótipos sexuais dos livros didáticos; atualmente, no mundo francófono, considera-se a província de Quebec como sendo a líder na remoção do sexismo na linguagem. Seis províncias modificaram seus programas de educação superior a fim de permitir que mulheres voltassem a estudar através de educação à distância e programas universitários de período parcial ou recebendo créditos por experiências relevantes. Apenas duas províncias estabeleceram ajuda financeira para algumas categorias de mulheres. Na educação, apenas algumas províncias direcionam-se para eliminar estereótipos sexuais, mas a maioria delas oferece serviços de creche em instituições acima do nível secundário. Os estudos disponíveis sobre as políticas públicas canadenses de gênero não fazem referência a recursos, mas parece claro que houve uma alocação dos mesmos, pelo menos para cursos de treinamento de professores e ajuda financeira para mulheres (Baudoux, 1994). Estados Unidos — Este país aprovou políticas públicas relacionadas a gênero em âmbito federal e estadual. Como no caso do Canadá, os EUA apresentam uma considerável variação quando se trata dos estados, com treze deles contando com leis que proíbem a discriminação em todos os níveis de educação e 31 apenas nos programas de educação primária e secundária. Aqui, enfocarei apenas políticas públicas na

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esfera federal. O governo federal aprovou, em 1972, um ato abrangente sobre eqüidade de gênero na educação. O Título IX proíbe discriminação de estudantes em inúmeras áreas como: admissões, recrutamento, salários, bolsas de estudo, moradia, acesso a cursos, assistência financeira e esportes. Esse mesmo título também proíbe discriminação no corpo de funcionários das escolas, como professores, administradores e conselheiros. O governo federal também passou o Ato de Eqüidade Educacional para as Mulheres (WEEA), aprovado em 1974, o qual financia governos estaduais, centros de pesquisa e pesquisadores individuais para desenvolver, avaliar e disseminar currículos e livros didáticos, fornece serviços de treinamento prévios e no interior das escolas, aperfeiçoa a orientação de carreiras e promove a qualidade de educação para mulheres. Uma outra legislação de importância, o Vocacional Education Act5 se dirige à educação vocacional e técnica, financia esforços para eliminar preconceitos sexuais e discriminação, além de fornecer programas de aconselhamento para encorajar a participação de mulheres em ocupações femininas não tradicionais. O Ato de Educação Vocacional presta serviço a estudantes secundários e pós-graduados no sistema de educação vocacional e recebeu recursos substanciais para seus programas relativos a gênero. Num nítido contraste, o Título IX e a WEEA — que prestam serviço à grande maioria dos estudantes — receberam fundos muito limitados para sua implementação. Durante as administrações Reagan e Bush, os tribunais redefiniram a intenção da legislação referente ao Título IX e o reduziram consideravelmente, ao interpretar que sua autoridade se aplicava apenas a programas e não a toda instituição ou universidade recebendo fundos federais. A WEEA deveria receber 49 milhões de dólares por ano. Em seu ponto

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Os atos sobre educação vocacional foram promulgados três vezes. Inicialmente conhecidos como Ato Vocacional Educacional, a versão atual é chamada Carl Perkins Vocational and Applied Technology Act of 1990.

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máximo, recebeu dez milhões e, a partir daí, a quantia diminuiu para apenas um milhão por ano até chegar a meros quinhentos mil em 1993 (Stromquist, 1993a). Sob o governo Reagan, o Estado se mobilizou, direta e indiretamente, contra o feminismo e outras causas progressistas e então as feministas precisaram usar o Estado não mais para promover novas conquistas e sim para defender as previamente alcançadas (Nelson e Johnson, 1994). Em 1994, durante os anos de tendência mais socializante da administração Clinton, a WEEA foi novamente autorizada a receber cinco milhões de dólares por ano. Essa soma, para cobrir um país com quinze mil distritos escolares locais, três mil e quinhentas faculdades e universidades e nove mil instituições de educação pós-graduada, representa um investimento de 181 dólares por instituição. O caráter das políticas públicas de gênero promulgadas nos três países desenvolvidos discutidos acima proporciona o seguinte panorama: no Reino Unido, as políticas públicas educacionais de gênero são em sua maioria de coerção e, em menor amplitude, de construção e de apoio. No Canadá, elas cobrem toda a gama: são de coerção, apoio e construção. Os Estados Unidos se dedicam mais às de coerção e, em menor escala, às de construção. Com exceção do Ato Vocacional, o qual autoriza a indicação de funcionários em escala distrital para monitorar e promover a implementação dessa legislação, os Estados Unidos não tem aprovado políticas públicas de apoio. Deveria se notar que nenhum desses três países, nem outros nos quais se encontram disponíveis estudos de política pública de gênero (Sutherland e Baudoux, 1994), estão engajados em uma discriminação positiva, uma política pública que dê preferência a membros de um grupo, para educação, empregos ou promoção, sobre pessoas com iguais ou melhores qualificações. No máximo, os Estados se dedicaram a ação positiva ou ação afirmativa, isto é, o fato dos empregadores considerarem a promoção de oportunidades iguais a mulheres e minorias étnicas (Carter, 1988).

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Políticas públicas educacionais de gênero nos países em desenvolvimento Países em desenvolvimento apresentam sérios problemas quanto à participação de mulheres na escola, mesmo nos níveis básicos de educação. Na América Latina, o acesso de meninas e mulheres à educação está alcançando paridade em termos de coeficientes brutos, mas a disparidade na instrução primária entre meninos e meninas atinge 33 pontos percentuais na África e 18 pontos percentuais na Ásia. No nível secundário, as disparidades atingem uma diferença de 37 e 26 pontos percentuais para África e Ásia, respectivamente (ONU, 1991, p. 50-53). No Brasil, como em muitos outros países da América Latina, existe uma relativa paridade entre meninos e meninas, na educação. Curiosamente, no Brasil, as mulheres têm um percentual de matrículas ligeiramente mais alto que o dos homens nos níveis secundários e terciários de instrução. Muitas dessas mulheres se matriculam em escolas para professoras e outras continuam sua educação como um meio de ter condições de reduzir a discriminação de gênero na força de trabalho. Segundo o ECLAC (1995), a discriminação salarial na região é equivalente a cerca de quatro anos de educação formal (isto é, a mulher deve ter quatro anos de educação a mais do que o homem para ganhar o mesmo salário). As políticas públicas educacionais do Sri Lanka e da Argentina apresentam interesse porque esses países são dos mais adiantados, no Terceiro Mundo, em termos de educação. Sri Lanka — Este país evidenciou admissões na educação primária e secundária bastante próximas a uma paridade de gênero desde o início da década de sessenta. Orientando-se por essa paridade, o governo concluiu não serem necessárias políticas públicas específicas de gênero para assegurar o acesso de meninas e mulheres à educação, passando a considerar a implementação de políticas públicas neutras em relação a gênero. O Estado admite dificuldades de acesso de meninas à educação primária nas populações muçulmanas na Província Leste e entre os

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trabalhadores das plantações de chá de origem sulindiana. O Estado nota que os meninos abandonam a escola mais do que as meninas, em especial no nível secundário o que, presumivelmente, os torna mais desfavorecidos do que as meninas. Os livros didáticos não foram modificados, embora pesquisas tenham detectado estereótipos sexuais nos mesmos. O governo do Sri Lanka também reconhece que as mulheres podem ser admitidas em apenas uma das três faculdades de agricultura do país e, nessa única faculdade que lhes permite o ingresso, elas representam apenas 20% do total das matrículas. Também nota que 75% das mulheres nos colégios técnicos são admitidas em cursos comerciais e as mulheres em cursos vocacionais são admitidas em aulas de secretariado e costura. Como o Estado segue uma política pública neutra em relação a gênero, não se destinam fundos para direcionar esforços para problemas de gênero (Jayaweera, 1994). Incidentalmente, o caso do Sri Lanka é muito semelhante ao da Hungria em seus dias de socialismo. Por terem alcançado paridade na instrução primária e secundária, declarou-se que as mulheres húngaras não enfrentavam problemas na área de educação. Argentina — Como parte do retorno da Argentina ao regime democrático, o governo mostrou-se muito cooperativo para com as exigências da sociedade civil. Em 1991, criou um Programa Nacional para a Promoção de Oportunidade Igual para Mulheres na Área Educacional (PRIOM), estabelecido mediante um acordo entre o Ministério de Educação e Cultura e o Conselho Nacional das Mulheres. Este programa identificou e implementou uma agenda abrangente: aumentando a consciência de gênero e fornecendo treinamento para professores, estudantes e equipe administrativa; fornecendo programas especiais de todos os níveis e modelos a fim de melhorar o potencial educacional das mulheres; fornecendo orientação vocacional, profissional e educacional para incentivar a participação e o desempenho das mulheres na vida política, profissional e social; introduzindo temas femininos nos livros didáticos a fim de descrever não apenas o papel da

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mulher na família, mas também na história, na economia, na política e na sociedade; conduzindo projetos de pesquisa a fim de obter um conhecimento amplo, sistemático e permanente das condições das mulheres na educação e criando um banco de dados sobre os problemas enfrentados pelas mulheres na esfera educacional (Ministerio de Cultura y Educación, 1992). O PRIOM implementou seu programa em vinte províncias. Também estabeleceu ligações com as Unidades de Mulheres nos governos das províncias, com as universidades e com as ONGs femininas. Em 1995, exatamente quando o PRIOM se encaminhava para integrar o novo currículo de gênero nos esforços em andamento para uma melhoria dos currículos nacionais em outros aspectos, a Igreja Católica da Argentina atacou seu trabalho, acusando a coordenadora do PRIOM de estar tentando destruir a família e introduzir a homossexualidade nas escolas. Um dos motivos principais da oposição da Igreja — à qual o governo respondeu com o fechamento do programa — era que o trabalho do PRIOM estava comprometido com as questões de educação sexual e o controle das mulheres sobre seus próprios corpos. Políticas públicas de gênero na educação em âmbito internacional As políticas públicas educacionais que afetam as mulheres são moldadas através de uma grande variedade de meios: as prioridades institucionais dos organismos bilaterais e multilaterais, as conferências internacionais tratando de problemas de desenvolvimento (nas quais a educação costumeiramente surge como um fator importante) e as diversas conferências internacionais sobre a mulher (já se realizaram quatro destas e em todas a educação foi um subtema persistente).

Financiamento internacional de organismos bilaterais e multilaterais Ao se discutir políticas públicas educacionais nos países em desenvolvimento (e de maneira crescente também políticas públicas para outros servi-

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ços sociais), é necessário fazer referência à ajuda externa. Nestes dias de retração econômica em muitos dos países desenvolvidos, a ajuda internacional para o desenvolvimento provê o meio crucial para se engajar em outros esforços além dos que suprem a educação regular. Nos países mais pobres, a ajuda internacional é necessária até para a expansão das escolas. Existem dois conjuntos principais de atores fornecendo essa ajuda externa: as organizações bilaterais e as multilaterais — estas últimas são essencialmente as que pertencem ao sistema da ONU. Organismos de desenvolvimento bilateral representam seu próprio Estado doador. As multilaterais — essencialmente as da família da ONU — refletem também seus Estados membros.6 O papel mediador dos membros das equipes desses organismos pode fornecer uma definição maior quanto à natureza dos problemas internos do setor educacional e resultam em maior ou menor apoio para programas e projetos de gênero. O poder de ação desses organismos na introdução de esforços voltados para gênero está relacionado ao tamanho de suas contribuições e a outras formas de apoio político doado aos países receptores. No presente momento, os países desenvolvidos evidenciam muito interesse em expandir o acesso das meninas às escolas primárias. Com esse objetivo, um certo número de países está — com ajuda externa — envolvendo-se em esforços como a construção de escolas mais próximas às moradias dos estudantes, a eliminação ou redução de mensalidades escolares para meninas, eliminação da necessidade de uniforme (que prejudica as famílias mais pobres), a construção de mais escolas com residência para adolescentes do sexo feminino e a con-

6 O filósofo Stephen Toulmin chama a ONU de “cartel

de governos de Estado” (1995, p. 4), uma vigorosa descrição que acentua o fato de certos Estados influenciarem a política pública não apenas na área doméstica como também no exterior, a despeito de esforços retóricos de minimizar a “intervenção” em outros países.

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tratação de mais mulheres como assistentes e professoras a fim de encorajar os pais a matricularem suas filhas (cuja sexualidade passa a não correr perigo). Apenas em um punhado de casos, os livros didáticos foram revisados sob o enfoque de estereótipos sexuais e corrigidos de forma a eliminá-los. O conteúdo anti-sexista em livros e em atitudes raramente foi incentivado (Stromquist, 1994). No geral, esses esforços se acomodam ao patriarcado em vez de desafiá-lo. É importante dizer que esses esforços não foram codificados como políticas públicas nacionais, embora representem as medidas que mais se aproximam da existência de uma política pública. Na verdade, como esses projetos são, freqüentemente, os únicos voltados para problemas de gênero, alguns observadores confundem projetos pontuais com política pública nacional (ver, por exemplo, o recente trabalho de King e Hill, 1993). Existem algumas ocorrências — certamente não muitas — de projetos promovendo o aumento de poder ou a autonomia de mulheres adultas. Estes projetos, com raras exceções, estão sendo conduzidos por ONGs de mulheres (Stromquist, 1994).

Conferências internacionais Através da realização de conferências internacionais são criadas importantes formas de apoio para o trabalho em problemas de gênero. Além disso, essas conferências atingem tanto países desenvolvidos como em desenvolvimento. As várias conferências mundiais da ONU sobre a mulher (México, 1975; Copenhague, 1980; Nairóbi, 1985; Beijing, 1995) serviram para definir mais claramente a natureza e a gama de problemas que afetam as mulheres e propiciaram a elaboração de programas e políticas públicas sensíveis a gênero. Durante essas conferências mundiais sobre a mulher, às quais compareceram funcionários do Estado, as mulheres das ONGs realizaram conferências paralelas que denominaram de “contra-encontros”, nas mesmas cidades, e apresentaram suas deliberações e recomendações a seus representantes junto ao Estado, freqüentemente com sucesso considerável em termos de conseguir que seus pontos de vista fossem

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incorporados nos documentos oficiais finais. Na opinião da historiadora Francisca Miller, o legado mais importante da Década da ONU para a Mulher foi o fato de os partidos políticos e governos em busca de legitimidade agora considerarem vantajoso abordar problemas da mulher (1981, p. 188). Um dos documentos mais poderosos da ONU, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em vigor desde 1981 e ratificado por 148 Estados em julho de 1995 — o Brasil é um dos países que retificou o CEDAW —, é um acordo com obrigações legalizadas e representa a mais forte acusação contra o domínio patriarcal, ao investir contra violência conjugal, casamentos precoces e discriminação sexual na educação e no trabalho. Embora muitos países tenham expressado suas reservas sobre certos artigos dessa Convenção, existe uma pressão mundial crescente para a implementação da mesma. A Conferência de Direitos Humanos em Viena (1993) agiu como uma importante força de pressão na renovação de ímpeto para a CEDAW e conseguiu que os direitos da mulher fossem incluídos entre os direitos humanos. As recentes conferências por todo o mundo, como a de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio, 1992), População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995) e a Quarta Conferência sobre a Mulher (Beijing, 1995)7 foram de especial importância para manter os problemas de gênero presentes nas agendas governamentais como também para desenvolver laços de solidariedade

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Os vários esforços internacionais nas linhas de gênero sempre foram iniciados por grupos de mulheres, geralmente mulheres nas redes de desenvolvimento (WID) dentro das ONGs (Maguire, 1984). A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação recebeu um forte apoio após o encontro de 1975, no México, durante o Ano Internacional da Mulher. As idéias contidas na convenção se originaram de esforços da Comissão da Mulher na Organização dos Estados da América desde 1920. A Quarta Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995) incluiu, pela primeira vez, delegações de jovens, facilitando assim a criação de uma nova geração de feministas.

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entre as nações. Um dos problemas em comum é a identificação da violência doméstica como um problema social amplamente difundido que afeta as mulheres. Desde o Ano Internacional da Mulher, em 1975, os governos assumiram compromissos a fim de garantir igualdade de acesso a todos os modelos e níveis de educação e a reformular o conteúdo e a prática da educação de forma a torná-lo mais sensível ao gênero. Pode-se discernir algumas conquistas quanto ao acesso à instrução, mas não está claro até que ponto estas não passam de simples produtos de uma propensão do sistema educacional em crescer com o tempo. Muitas das recomendações educacionais (uma forma de política pública) das diversas conferências mundiais sobre a mulher continuam não atendidas, mas esses problemas estão sendo definidos, de forma crescente, em termos muito mais precisos e nítidos, assim como discutidos por grupos sempre maiores de formadores de opinião. Embora tenha sempre existido o fenômeno de contágio social entre países, este se acelerou em virtude da criação formal de blocos econômicos. Em 1982, a Comissão Econômica Européia autorizou a formação de um Conselho para a Paridade entre a Mulher e o Homem, a níveis nacionais. Tal política pública levou a Itália e a Espanha a estabelecerem organismos desse tipo. O Tribunal de Justiça Europeu, criado para impor obediência ao Tratado de Roma, toma decisões que impõem obrigações aos estados membros. Seu tratamento de problemas como igualdade salarial, pensões e aposentadoria teve repercussões na legislação de outros países europeus. A Corte Européia de Direitos Humanos, em Estrasburgo, vem abordando questões de discriminação sexual e racial de imigrantes. As decisões desses organismos supranacionais têm (e continuará tendo) efeitos indiretos na eqüidade de gênero na educação. A conferência de Nairóbi, em 1985, encerrou a Década da ONU sobre a Mulher com um documento, Estratégias para o futuro (FLS), o qual identifica áreas de ação em setores específicos tais

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como emprego, educação, saúde, agricultura e indústria, para serem conduzidas pelos governos nacionais e organismos internacionais. Especificamente na área de educação, o FLS apresenta muitas recomendações sobre acesso, livros didáticos, treinamento de professores, programas de alfabetização para mulheres, educação vocacional e aconselhamento de carreira. Esse valioso conjunto de recomendações a ser implementado pelas nações do mundo revela, dez anos depois, apenas um débil teor de implementação. A maioria dos relatórios feitos para avaliação do desempenho do país no FLS concentra-se em números relativos a admissões nos três níveis de educação. Certamente, cresceram as admissões, embora persista uma concentração de gênero em certos campos de estudo. Não fica claro até que ponto esse crescimento de admissões é simplesmente uma manifestação da inexorável expansão da instrução: à medida que os pais recebem mais educação, querem mais educação para seus filhos. A conferência de Beijing, em 1995, reiterou a recomendação do FLS em um novo documento, Plataforma de ação. Este documento apresentou um conjunto de recomendações mais completo e coeso, tornando mais rígidos os mecanismos de aplicação e monitoria. Embora identificasse unidades dentro da ONU e dos governos para servirem de mecanismos monitores, não teve sucesso em estabelecer mínimos financeiros para garantir a implementação. Apesar de tudo, as conferências internacionais têm um enorme valor como fórum público, com muita participação e troca de pontos de vista. Esses fóruns internacionais atraem a atenção para a mulher e trazem a público um enfoque altamente visível sobre o trabalho dos Estados. Em geral, esses encontros terminam com as recomendações — sejam elas consensuais ou duramente disputadas. Embora recomendações cujo acordo foi feito durante conferências internacionais não possuam valor legal — em oposição àquelas assinadas em convenções internacionais — essas declarações oficiais podem ser usadas como pontos de apoio.

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Motivos para diferenças entre políticas públicas nacionais e internacionais Políticas públicas supranacionais originárias de blocos econômicos envolvem uma legislação, em sua maior parte, de coerção e, em menor escala, de apoio. As recomendações aceitas em encontros internacionais propõem todos os três tipos de legislação, com esforços que vão de coercitivos a construtivos. Já as políticas públicas nacionais tendem a se concentrar em políticas públicas coercitivas ou, como tem sido denominadas “políticas públicas de gênero neutras”. David (1981) comenta que, sob uma perspectiva feminista, as regras da política pública não podem ser identificadas “sem compreender o motivo dos contornos dos fenômenos envolvendo a criação e a manutenção do gênero” (p. 116). Ela argumenta que a análise baseada em uma abordagem de economia política pública pode ser eficaz para fornecer explicações sobre políticas públicas de Estado. Dentro dessa estrutura, caberia a pergunta: “Por que as políticas públicas de gênero sugeridas em escala internacional são abrangentes e portanto mais enfocadas em uma mudança do sistema social do que as políticas públicas nacionais?” Talvez a explicação se encontre na ausência de uma obrigação legal contida nessas recomendações internacionais. Ao endossar as diversas políticas públicas que são recomendadas, os Estados assumem a aparência de ser cooperativos e sensíveis ao gênero. No clube das nações, ganham importância por se mostrarem progressistas; entre seus próprios cidadãos, são vistos como democráticos e justos. O endosso de declarações de conferências internacionais não obriga os países a se empenharem em uma implementação e portanto servem ao papel mais importante, o de legitimação, em vez do papel corretivo. Na área doméstica, os países se mostram mais cautelosos. Embora estejam respondendo, de forma crescente, à pressão feminista ao aprovar uma legislação de eqüidade de gênero, as evidências sugerem certas características comuns nessas leis. Freqüentemente, a legislação apresenta parâmetros

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estreitos, concentrando-se mais na proibição de comportamentos indesejáveis do que no desenvolvimento de atitudes e de conhecimento significativos para a construção de uma ordem social alternativa. As poucas medidas legislativas visando objetivos construtivos tendem a oferecer recursos limitados, decididamente desproporcionais à necessidade global. Realizaram-se inúmeros esforços para garantir uma legislação de apoio através da criação de unidades de mulheres ou organizações similares. Há necessidade de maiores estudos sobre os fundos e a autoridade que essas leis possam proporcionar; a evidência existente revela que tais unidades têm sido, em geral, pouco beneficiadas em termos de pessoal, recursos e influência global. As exceções são raras: entre elas está o Canadá, que estabeleceu um Ministro Responsável pela Posição da Mulher, na esfera federal, e várias unidades de mulheres operando na esfera das províncias, além das unidades semelhantes existentes em países escandinavos.8 Por que se tem um número maior de leis coercitivas do que construtivas no âmbito nacional? Existem vários motivos. Leis coercitivas são consideravelmente menos dispendiosas do que as dos dois outros tipos. Elas podem ser ou não seguidas de mecanismos de execução e, se as unidades encarregadas desses mecanismos tiverem uma autoridade limitada, a implementação das mesmas ficará seriamente enfraquecida. As leis também podem ser formuladas de forma que a ação seja limitada. Segundo a observação de Meehan e Sevenhuijsen sobre os atos de eqüidade de gênero aprovados no Reino Unido e nos Estados Unidos, essas leis individualizam a igualdade de oportunidades de modo a haver necessidade de uma interminável luta da mulher para que ocorram até os mais insignificantes tipos de mudança. As leis de apoio são ainda mais ameaçadoras porque estabelecem organismos governamentais, os

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O ministro federal é apoiado por um departamento chamado Status of Women Canada, o qual se reporta diretamente a ele. É interessante notar que essa posição ministerial existe desde 1971 e o SWC, desde 1976, precedendo o movimento feminista.

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quais exigem recursos estatais regulares e podem, eventualmente, ameaçar o acesso de alguma das outras instituições do Estado a esses recursos. Revisando a legislação de gênero nos países nórdicos, Eduards et al. (1985) nota que a maioria das leis de gênero promulgadas na região são neutras quanto ao gênero, formas passivas de legislação que oferecem as mesmas oportunidades aos dois sexos, mas evitam conflito. A análise de Gelb e Palley sobre cinco iniciativas relativas a gênero nos Estados Unidos chegou à conclusão de que as leis tem sucesso quando a mulher se submete “às regras políticas do jogo”. Eles apontam e descrevem quatro dessas normas: 1. serem reconhecidas como legítimas; 2. enfocarem problemas emergentes; 3. fornecerem informação e se concentrarem na mobilização de aliados; 4. definirem a situação pela manipulação de símbolos favoráveis à sua causa. Esses autores descobriram que a legislação relativa a gênero de menor sucesso nos Estados Unidos — o Título IX — mesmo sendo meramente coercitiva, criou problemas quando a oposição sentiu que o acesso das meninas aos esportes poderia resultar em políticas públicas de mudança de papel, “os quais parecem produzir mudança no papel feminino dependente de esposa, mãe e dona de casa, contendo um potencial para maior liberdade sexual e independência em variados contextos” (1982, p. 6). Um ponto semelhante foi ressaltado por Nelson (1984), o qual estudou o problema de violência contra a criança nos Estados Unidos. Ela observou que, embora alguns aspectos relativos à violência contra a criança não apresentassem ameaças ao status quo, a exemplo as “leis de denúncia de assédio”, outras, por exemplo as que autorizam “medidas de custódia protetora”, traziam todo o tipo de implicações e conexões com problemas maiores como pobreza, racismo e patriarcado. Em conseqüência disso, a legislação referente à violência contra a criança que foi aprovada era muito limitada. Nelson atribui esses resultados à existência de um Estado liberal, o qual se predispõe a apoiar mudanças gradativas e não

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radicais. Ela também lançou um desafio às feministas, declarando: Elas podem apoiar mudanças incrementais, alimentando alguma esperança de sucesso, mas sabendo que seus esforços não serão proporcionais ao problema. Ou podem apoiar uma mudança mais abrangente cujo momento nunca chegará. No Estado liberal, o “bom” habitualmente triunfa sobre o “melhor”, pelo menos por algum tempo (p. 137).

Leis construtivas na educação requerem treinamento para professores com orientação quanto ao gênero,9 desenvolvimento de currículo e elaboração de material curricular, livros didáticos novos ou suplementares, disseminação do novo material educacional e pesquisa para identificar novos problemas relativos à experiência de gênero na escola e na sociedade ou para avaliar o impacto da legislação existente. É evidente que a legislação construtiva requer consideráveis recursos financeiros. Num nítido contraste, a legislação coercitiva permite que o Estado não apenas se mostre simpático, moderno e cooperativo, mas também obtenha esses benefícios de percepção com um investimento muito reduzido. Promotores de política pública de gênero Carter (1988) observa que: as tentativas individuais de usar a lei sem a retaguarda de uma organização adequada e num contexto político-econômico desfavorável poderá, no melhor

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Poucos professores consideram que seja tarefa sua alterar a divisão de gênero. Esse fato não deveria causar surpresa uma vez que os professores, como o restante da população, foram socializados dentro de conceitos tradicionais de feminilidade e masculinidade. Além do mais, descobriu-se que os estudantes do sexo masculino se opõem à eqüidade de gênero nas salas de aula. Estudos sobre instrução primária e secundária mostram que os meninos exigem mais tempo do professor do que as meninas (Carter, 1988; AAUW, 1992).

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dos casos, resultar apenas em sucessos limitados. Mas a lei poderá ser um instrumento de valia para mudança se for bem estruturada e aplicada, se for apoiada por pressão política pública e suplementada por ação positiva e por políticas públicas econômicas e sociais generalizadas que fortaleçam a posição da mulher.

Uma variedade de agentes sociais têm surgido em apoio do assuntos de gênero na sociedade em geral e na educação em particular. Entre eles se incluem coalizões entre ONGs (domésticas e internacionais), como também atores individuais estrategicamente situados em instituições estatais (ministérios e outros departamentos), organismos bilaterais e multilateriais e universidades. Também tem sido importantes fontes de apoio os elementos masculinos simpatizantes e em posições de liderança nos organismos internacionais de desenvolvimento. Feministas e ONGs As feministas têm utilizado dois canais para promover mudanças educacionais: 1) pressionar o Estado a fim de conseguir melhorias na educação formal pública; 2) estabelecer e expandir ONGs independentes, operadas por mulheres. Cada canal apresenta possibilidades diferentes: o Estado é uma das instituições mais fortes na sociedade, sendo assim capaz de atingir um grande número de pessoas, mas é relutante no engajar-se em ação substancialmente transformadora. As mulheres em ONGs tendem a ser muito mais propensas à transformação, mas seu trabalho é realizado em escala micropolítica e limitado em sua extensão geográfica e numérica. PNUD (1993) observou que: Até o início dos anos sessenta, a maioria das intervenções das ONGs eram cegas quanto ao gênero, como os demais organismos de desenvolvimento. Embora houvesse um pequeno número e projetos e programas interessados em apoiar grupos de mulheres de baixa renda, as necessidades específicas da mulher em programas gerais contra a pobreza eram freqüentemente ignoradas (p. 96).

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Mas em termos de ações transformadoras relacionadas a gênero, é aceito de forma generalizada que as ONGs dirigidas por mulheres funcionem como organismos chave para qualquer transformação social feminista (Deere e León, 1987). Alguns observadores das ações executadas por grupos de mulheres coincidem ao avaliar seu trabalho como um esforço consciente para redefinir e reconstituir os limites entre o público e o privado e entre as esferas políticas e a pessoal. Dentre as ONGs de mulheres, deve-se fazer menção especial aos grupos de mulheres profissionais com elevado nível de acesso às instâncias decisórias do Estado. Um desses grupos é o Fórum da Mulher Africana em Assuntos e Educação (FAWE), uma organização de afiliados que reúne mulheres em ministérios de educação, vice-reitoras de universidade e outros cargos de alto escalão na formulação de políticas públicas de educação. Fundada em 1992 como uma ONG internacional sem fins lucrativos, a FAWE procura promover investimentos na educação em geral e na educação de meninas em particular. É importante salientar algumas diferenças de classe social entre os grupos de mulheres. Muitas ONGs de mulheres tendem a ser dirigidas por representantes da classe média mas, por outro lado, existe uma ação significativa sendo executada por pessoas de baixa renda em comunidades urbanas pobres. Esses últimos grupos, envolvidos em movimentos de bairro, têm lutado para obtenção de assistência econômica para moradia, alimentação, empregos e educação para seus filhos. Esses esforços decorrem dos interesses e necessidades coletivas das mulheres e se direcionam basicamente às “necessidades práticas” (Molyneux, 1985; Radcliffe e Westwood, 1993; Moulin e Pereira, 1994). Embora essas mulheres pobres não tenham rejeitado seus papéis domésticos, elas os usaram como pivôs para conseguir força e legitimidade às suas demandas ao Estado. Há evidências de que, em muitos casos, essas mulheres levaram suas preocupações domésticas à arena pública, redefinindo os significados que são associados à domesticidade a fim de incluir par-

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ticipação e luta (Safa, 1990; Stromquist, 1993b; Radcliffe e Westwood, 1993; Schild, 1994). A Organização da Mulher para Meio Ambiente e Desenvolvimento (WEDO), uma coalizão de ativistas e acadêmicas do movimento feminista, promoveu uma reunião especial em dezembro de 1994, à qual compareceram 148 mulheres de cinqüenta países. Como resultado das deliberações, a WEDO iniciou uma “campanha global das mulheres”, de 180 dias, destinada a chamar atenção para assuntos de gênero e para desenvolver uma lista de objetivos, estratégias e ações. Em seu preâmbulo, o documento promulgado na reunião afirmava: Nos anos finais do século vinte, o movimento internacional da mulher encontra-se maior, com mais atividades, mais abrangente e com objetivos mais amplos, mais diversificado nas linhas demarcatórias de cultura, classe, cor, etnia, idade, orientação sexual, situação econômica, ideologias, religiões e geografia do que jamais aconteceu antes na história. Também está mais criativa, mais analítica, mais enfocada na luta, com maiores conhecimentos sobre a história e as realizações da mulher, mais experiente politicamente, mais bem treinada na parte de organização e com uma visão mais ampla quanto ao tipo de futuro que nós desejamos para meninas e mulheres, meninos e homens, crianças e para nossa vida nesse planeta no próximo século (WEDO, 1994, p. 91).

As propostas colocadas pela WEDO estão entre as mais incisivas e claras na arena internacional. A WEDO colocou a Secretaria da ONU e todo o seu sistema como alvo de mudança. Procurou expandir o mandato da Comissão do Status da Mulher, relativo aos chamados “assuntos de gênero”, para o papel mais amplo de aplicar as perspectivas de gênero a todos os itens da agenda da ONU. A WEDO também requereu um orçamento anual de 300-400 milhões para o Fundo Unido de Desenvolvimento da Mulher (UNIFEM) e para o Instituto de Pesquisa e Treinamento para a Mulher (INSTRAM) — os quais funcionavam, juntos, com cerca de dezesseis milhões em 1995 — apoiando uma realocação de recursos (WEDO, 1994, p. 9) e requerendo mais acadêmicos

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e especialistas de ONGs para trabalharem com a Divisão da ONU para Promoção da Mulher. As participantes da WEDO estão convencidas de que alterações nas linhas de gênero exigirão “acesso maior e continuado aos recursos humanos e financeiros que o Banco Mundial e o PNUD possuem, a fim de assegurar que seja alcançada e mantida a eqüidade de gênero (WEDO, 1994, p. 9). Ao examinar o relatório da WEDO, torna-se evidente que existe um estado de consciência política de alto nível entre as participantes do movimento. Uma indicação desse estado é sua relutância em apoiar um “enfoque em áreas específicas de necessidades como educação ou emprego para meninas”. Elas temem que isso resulte em “isolar tais necessidades do conjunto de direitos que estabelecerão o direito das mulheres aos serviços e programas”. A não visualização dos direitos é crítica para o avanço e o fortalecimento da mulher (WEDO, 1994, p. 11). Feministas de nível acadêmico — incluindo-se homens nesta área — também desempenharam um papel significativo. Particularmente os acadêmicos do Reino Unido fizeram um exame cuidadoso da política pública governamental com relação ao gênero. Sua análise foi incisiva e eles argumentaram que a ausência de intervenção nos conflitos sexuais ou raciais na instrução constitui um “ato político significativo a favor da ordem de gênero em curso” (Arnot, 1993). Nas universidades de todo o mundo, mas em especial nas dos países industrializados, têm surgido estudos sobre a mulher, propiciando uma concepção de cultura e de conhecimentos mais rica e mais diversificada. Avalia-se que, nos Estados Unidos, existam mais de seiscentos programas de estudos sobre a mulher. Embora não se possa afirmar que esses programas tenham influenciado o restante das universidades, eles conseguiram levar um grande número de estudantes a adotar pontos de vista mais críticos quanto ao gênero na sociedade. É possível apenas conjeturar que as novas gerações promoverão políticas públicas diferentes das realizadas no passado.

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Homens líderes em organizações de desenvolvimento internacionais Staudt (1985) afirma que as políticas públicas de gênero são redistributivas porque, em última análise, buscam realocar recursos entre homens e mulheres. As políticas públicas de gênero implicam numa alteração profunda de valores e ideologias, não apenas entre os receptores, mas também entre o pessoal do organismo provedor.10 Nos últimos dez anos, os organismos internacionais de desenvolvimento se tornaram mais sensíveis aos interesses da mulher, criando unidades de mulheres em suas organizações, subsidiando pesquisas importantes e estabelecendo projetos melhores e mais sensíveis ao gênero (Stromquist, 1994). A despeito desse progresso significativo, a maioria dos profissionais em um bom número de organismos bilaterais e internacionais não se mostra interessado em promover projetos que beneficiarão a mulher em especial. Devido a essas condições, a defesa dos líderes dos organismos internacionais (que são principalmente homens), têm sido uma base importante para mudança nesses próprios departamentos.

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Diversos homens em posições de liderança nas organizações internacionais expressaram posições que foram de amplo apoio para assuntos de gênero. Entre esses se inclui Lawrence Summers que, enquanto economista chefe do Banco Mundial, produziu um artigo de grande influência e muito citado, denominado “Investindo em Todas as Pessoas” (1992). Um outro homem que apoia a causa da mulher é Jan Pronk que, em setembro de 1990, sendo Ministro do Exterior da Holanda, apresentou ao parlamento holandês um trabalho denominado “Um Mundo de Diferença”. Este documento endossa a autonomia como conceito central para a melhoria das condições da mulher nos países em desenvolvimento (The Netherlands Ministry of Foreign Affairs, 1991). O status desses dois indivíduos, mais o fato de serem homens, contribuiu para dar uma legitimidade substancial à noção de problemas de gênero. Notese que os trabalhos de posicionamento tanto de Lawrence quanto de Pronk buscaram subsídios nas contribuições feministas de sua equipe (no caso do Banco Mundial) e acadêmicas (no caso da Holanda).

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Mulheres em organismos internacionais de desenvolvimento e organizações acadêmicas As organizações de mulheres têm desafiado não apenas a agenda da política pública tradicional, mas também o modo de fazer política tradicional. Essas organizações mostraram a importância da vida cotidiana (Fisher, 1993) e colocaram o treinamento e a educação como uma prioridade para ajudar a mulher no que concerne a sua falta de experiência política. Embora as mulheres tenham se manifestado com reclamações quanto a ações de transformação externas ao Estado (através de sua participação em ONGs), também foram tomadas posições importantes dentro do mesmo. Organismos bilaterais contam com mais especialistas em gênero do que há dez anos atrás e, em muitos casos, estabeleceram as Unidades de Mulheres (Stromquist, 1994). O papel dessas mulheres têm sido essencial no auxílio da formação da política pública de gênero desses organismos, embora suas contribuições ainda não tenham sido objeto de estudos de pesquisa. Ironicamente, embora as escolas e as salas de aula sejam amplamente aceitas hoje em dia como locais em que se transmitem, impõem e produzem cultura e ideologia, as intervenções feministas para atingir o conteúdo e a experiência da instrução não foram tão intensas nem tiveram o sucesso desejado. A idéia anti-sexista, que não ataca apenas o sexismo e o racismo, mas também procura encorajar a criação de uma ordem social alternativa, com concepções modificadas de feminilidade e masculinidade, de diferença e de poder, ainda precisa ser exigida de formas mais sistemáticas e maciças. Atualmente, muitos observadores consideram que a educação seja “um terreno disputado entre aqueles que querem utilizar escolas mantidas pelo Estado como um meio de disciplinar, controlar e excluir grupos subordinados, frente aos que visualizam a educação como um meio de atingir a democracia” (Weiler, 1993, p. 223). Entretanto, essa conscientização tem sido muito mais pronun-

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ciada entre educadores progressistas e feministas do que entre as feministas de outras disciplinas. Como um todo, o feminismo ainda não dedica atenção suficiente ao papel ideológico do Estado e tende a se concentrar em assuntos relativos a trabalho (público e privado) e a outros problemas tangíveis, tais como assistência à criança, saúde e violência doméstica. Conclusões As políticas públicas governamentais predominantes — na educação e em outros campos sociais — não visam promover um processo que altere as estruturas de poder. Políticas públicas de coerção facilitam a distribuição mais do que a redistribuição dos bens sociais porque, embora aumentem a representação dos grupos oprimidos, não despertam neles novas compreensões e visões sociais. Conforme documentadas neste trabalho, podem ser fornecidas várias hipóteses alternativas para o padrão de comportamento do Estado: 1. Uma hipótese se estrutura em teorias relativas à adoção e implementação de inovações e trata as políticas públicas de gênero como uma ocorrência de significativa inovação organizacional. Embasada em uma síntese de pesquisa persuasiva sobre a implementação de inovações, Fullan (1994) afirma que se as características da inovação forem imprecisas, ou se os governos tiverem um grande número de burocratas incompetentes, que não possuam capacidades de implementar a inovação dentro de seu sistema ou não contem com o conhecimento técnico para avaliar os custos da nova prática, a inovação a ser tentada fracassará em ser implementada (ver também Deble, 1988; McDonnell e Elmore, 1987). Ao revisar as várias políticas públicas de gênero, parece haver a necessidade de uma maior clareza concernente à natureza das inovações, mas a disposição dos Estados em operar principalmente através de políticas públicas de coerção e de destinar poucos recursos para todos os tipos de políticas públicas de gênero sugere que esta hipótese não se encaixe na realidade.

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2. Uma segunda hipótese, utilizando e ampliando os conceitos de pluralismo e políticas públicas de interesse de grupo propostos por Dahl (1967), argumenta que os Estados não implementarão inovações se não encontrarem pressão suficiente para que o façam. Sob esta perspectiva, poderia se dizer que as políticas públicas de gênero emergiram através da pressão dos movimentos de mulheres e de feministas mas, embora estes atores tenham encontrado condições de exercer pressão para a adoção de legislação, seus pontos de apoio subseqüentes em questões de alocação de fundos e de monitoria da política pública de implantação foram muito fracos. Um segmento social que poderia ter servido como um poderoso promotor de políticas públicas de gênero na educação — os sindicatos de professores — manteve-se ausente nos esforços de criar uma educação sensível ao gênero por intermédio da arena da política pública. As poucas feministas nos governos e aquelas dentro do movimento feminista exauriram suas energias na fase de transformação da política pública em lei. Esta hipótese não encontra apoio nos casos nacionais que revisamos. 3. Uma terceira hipótese recorre às teorias feministas sobre a construção do Estado como uma entidade masculina e patriarcal (Pateman, 1988; Connell, 1987) e no conceito de legitimidade proposto por Habermas (1975). De acordo com essa hipótese, o Estado não considera prioritários os problemas de gênero porque eles ameaçam tanto o status quo quanto sua própria hegemonia. Os Estados procuram satisfazer, em primeiro lugar, as necessidades da economia e posteriormente as que são uma conseqüência da ideologia patriarcal. Entretanto, por existir, no momento, uma crise de legitimidade — com Estados industrializados sendo contestados e criticados ao mesmo tempo e de forma crescente — eles precisam se envolver em ações simbólicas, democráticas mas relativamente inócuas, a fim de demonstrar sua boa vontade em responder a todos os cidadãos (ver também Edleman, 1972). Como a maioria das políticas públicas de gênero não questionam relações entre mulher e homem, mas tratam o gênero como uma “catego-

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ria aditiva” (Agarwal, 1994), as estruturas sociais básicas são mantidas. Numa colocação contrária à posição assumida por Gelb e Palley (1982) de que os Estados mudam lentamente porque são liberais e preferem se envolver em mudanças incrementais, poderia se argumentar que estes — liberais ou não — mudam lentamente porque são patriarcais e não desejam alterar um status quo que é benéfico a seus interesses. De qualquer forma, inúmeras políticas públicas de gênero poderão ser formuladas, mas a ênfase em sua aprovação será nitidamente simbólica. Como resultado, a implementação de políticas públicas se enfraquece pela limitada alocação de fundos e pela redução desses recursos com o tempo, pela redefinição das intenções legais ou pela afirmação de que o “problema” de gênero foi solucionado. Esta hipótese é vigorosamente validada pelas análises apresentadas acima. A educação oferece retornos simbólicos substanciais para o Estado. Por sua própria natureza, a educação contém a promessa de inclusão e de justiça distributiva. Conforme observa Weiler, a educação fornece uma legitimação compensatória porque enfatiza a importância dos símbolos poderosos de legalidade, racionalidade e democracia (1983). Nos Estados industriais mais desenvolvidos, foi feita uma legislação específica sobre as condições da educação da mulher; entretanto, os aspectos principais de gênero ficaram circunscritos à baixa representação da mulher em carreiras não tradicionais. Mas, como Yates aponta de maneira incisiva (1993), a maioria das mulheres trabalha no setor de serviços, um padrão que continua a se realizar sem interrupções. Nos países em desenvolvimento, a agenda política pública foi definida em termos de acesso à instrução, dessa forma deferindo os objetivos mais cruciais de transformação social. Com poucas exceções — principalmente em países com considerável participação das mulheres na força de trabalho — a legislação sobre a eqüidade de gênero foi acompanhada por quantias mínimas de recursos financeiros. Entretanto, os esforços desenvolvidos pelas mulheres foram decisivos para a introdução de uma nova agenda social

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e para considerar o Estado publicamente responsável pela resposta aos assuntos de gênero. O terreno simbólico é um terreno em que operam tanto as feministas quanto o Estado. Um corolário desta hipótese é que políticas públicas controvertidas ou com pouco apoio serão menos suscetíveis às condições de contingência do que outras políticas públicas. O motivo para essa trajetória relativa e previsível é que as políticas públicas controvertidas são as que tendem a afetar valores e normas arraigadas na sociedade. Sendo assim, a oposição a elas será mais ampla e com possibilidades de vir à tona em muitos pontos; além disso, os aspectos regulatórios dos comportamentos de Estado tornam essas políticas públicas previsíveis. Conforme observa Harding, em sociedades com indicações de raça, etnia, classe, gênero, sexualidade e outros indicadores, as atividades dos que estão no controle “não só organizam como também colocam os limites no que as pessoas que exercem tais atividades podem compreender sobre si mesmas e sobre o mundo ao seu redor” (Harding, 1993, p. 54). Embora a forma e o momento dessa oposição possam variar, a constante será a tendência de derrotar a intervenção. Para concluir, deveria ser sublinhado que as feministas precisam aprender a ver as escolas como parte do Estado em vez de parte da sociedade civil. As escolas representam muito mais o poder organizado da sociedade do que as percepções e desejos de grupos generalizados. Esta posição é crucial. Deste ponto privilegiado, deveria se perguntar: sob que circunstâncias a política pública do Estado encorajará a organização das mulheres a formar organizações autônomas? Isto talvez não venha a ocorrer num futuro próximo, o que não deve deter as iniciativas das feministas. Por outro lado, as feministas deveriam se acautelar com relação a políticas públicas que, por adaptar a mulher ao status quo, servirão para reforçar as relações patriarcais e a divisão sexual de trabalho.

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NELLY P. STROMQUIST é professora de desenvolvimento internacional da educação na University of Southern California (Los Angeles). Dedica-se a pesquisa que trata de questões de gênero, eqüidade política e educação de adultos em países em desenvolvimento. Seu livro mais recente é Literacy for Citizenship: Gender and Grassroots Dynamics in Brazil (Suny Press, no prelo). Organizou também recentemente um volume sobre Gender Dimensions in Education in Latin America (Organization of American States, 1996).

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Sociedade, Estado e educação Notas sobre Rousseau, Bonald e Saint-Simon

Luiz Antônio Cunha Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo (Pesquisador-visitante, bolsista FAPESP)

Este texto foi apresentado em seminário promovido pela área temática “Estado, sociedade e educação” do Programa de Pós-Graduação em Educação e pelo Grupo de Pesquisa “Educação, Sociedade Civil e Estado” do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da USP, realizado em novembro de 1995.

Estas notas visam destacar passagens do pensamento desses três precursores da sociologia no que diz respeito, especialmente, a uma questão que mantém sua atualidade: a distinção social entre a educação pública e a educação privada. Considerando que a sociologia, pelo menos em sua forma universitária, nasceu de uma pedagogia, pelo magistério de Durkheim, propus-me a uma revisão do pensamento dos precursores da disciplina, no que concerne à educação, com o objetivo de identificar gérmens da sociologia da educação. Na primeira aproximação, cujos resultados são apresentados neste texto, foram examinadas obras de Rousseau e Bonald, que escreveram trabalhos especialmente dedicados ao tema. Do primeiro, temos o celebrado Emílio, e, do segundo, o desconhecido Théorie de l’éducation sociale. Saint-Simon não dedicou a esse tema nenhum livro, mas atrevo-me a focalizar a projeção do pensamento que ele poderia ter tido a respeito, deduzindo-o de seu industrialismo. Para tanto, vou me valer do livro de Júlio Verne, Paris no século XX. Rousseau foi um típico filósofo do Iluminismo, movimento de idéias predominante no século

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XVIII.1 Ainda que não fossem homogêneos nas idéias a respeito do homem e da sociedade, os filósofos iluministas pretendiam que a razão iluminasse as trevas da superstição e da ignorância com suas luzes, de modo que as descobertas científicas pudessem se estender por todo o mundo Para isso, seria necessário, em primeiro lugar, recusar o princípio de autoridade (tão caro à Igreja Católica e seus dogmas) e a concepção de que o homem é escravo da história: ele deveria ser o seu senhor. O processo revolucionário ainda estava em seu início quando surgiu toda uma nova concepção do homem e da sociedade, que passou a ser utilizada, também, como força material de uma contra-revolução que, de alguma maneira, se esperava ou se preparava. Onde os filósofos iluministas viam superstições, passou-se a perceber as idéias fundamen-

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A produção filosófica de Rousseau permite o encontro em seus escritos de posições que serão assumidas e radicalizadas pelos românticos, seus críticos. Neste texto, serão focalizadas apenas as posições iluministas, dominantes no pensamento rousseauniano.

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tais que constituíam a sociedade. Ao invés de festejarem a razão e o novo, os românticos celebravam o sentimento e a tradição. No lugar da autonomia individual, a sujeição à autoridade. Ao invés do mecânico, o orgânico. As mudanças decorrentes da Revolução Francesa e de seus desdobramentos criaram condições para um pensamento novo que desse conta das novas condições sociais, inclusive e particularmente da industrialização. Embora mais atrasada do que a Inglaterra na produção industrial, a França passava por profundas mudanças trazidas por um novo modo de produzir e de pensar, que acarretavam novos conflitos e até mesmo novos atores sociais, como a classe operária. Ora, tanto o Iluminismo (esgotado pela própria política revolucionária) quanto o romantismo (ultrapassado pelo dinamismo social) mostravam-se incapazes dessa tarefa. Saint-Simon defrontou-se com as duas tradições de pensamento e procurou uma síntese que desse conta dessa nova realidade. Passemos, então, a cada um dos pensadores anunciados. Rousseau: a educação do homem individual/social Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) nasceu em Genebra, na Suíça, filho de um culto relojoeiro. Órfão de mãe muito cedo, foi criado pelos tios. Com 16 anos abandonou Genebra e foi para Annecy, na Sabóia (Reino da Sardenha), onde passou a viver numa espécie de pensionato para jovens. Aí se converteu ao catolicismo (era protestante de origem) e completou sua formação humanística. Em 1741, então com 29 anos, mudou-se para Paris, onde passou a manter-se dando aulas de música e copiando partituras, atividade que exerceria até o fim da vida. Rousseau publicou textos sobre música (inclusive um dicionário especializado) e teatro; compôs duas óperas — uma delas chegou a ser representada para Luís XV. Já no ano seguinte ao de sua chegada à capital francesa, estabeleceu relações com os filósofos iluministas (Voltaire, Diderot, D’Alembert), tendo sido

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convidado a escrever verbetes para a Enciclopédia, entre eles o de economia política. Incentivado por Diderot, Rousseau escreveu o Discurso sobre as ciências e as artes para o concurso da Academia de Dijon, obtendo efetivamente o primeiro prêmio (1750). Mas foi com o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, escrito para o mesmo propósito, que, embora não alcançando o mesmo resultado, veio a ter reconhecimento editorial (1755). Seu sucesso se estendeu à literatura de ficção, com Júlia ou a nova Heloísa (1761). Rousseau havia se transformado, então, no autor da moda em Paris. As idéias germinadas no segundo discurso foram desenvolvidas no Contrato social e em Emílio ou da educação, ambos publicados em 1762. As reações contra essas duas obras foram tremendas, e de diferentes lados, inclusive de seus amigos filósofos e do clero, que desfechou ataques contra quem consideravam um inimigo da ordem pública (isto é, da monarquia) e da religião. O Parlamento de Paris condenou Emílio à fogueira e o autor à prisão, de que escapou fugindo, sendo acolhido por David Hume na Inglaterra (1766). Embora o segundo discurso tivesse sido dedicado à cidade de Genebra, cujos cidadãos e magistrados foram elogiados pela liberdade de que gozavam e pela sabedoria com que geriam os negócios públicos; embora, ainda, Rousseau tivesse sido entusiasticamente recebido em sua cidade natal em 1754, Emílio foi também aí condenado. Em 1767, Rousseau recebeu autorização para retornar à França, onde retomou as cópias de partituras musicais, os estudos de botânica e os escritos autobiográficos, assim como a poesia. Mas foi nesse período de declínio de sua obra de filosofia social que ele exerceu sua mais controvertida atividade, a de assessor político. A exemplo do que fizera em 1765, redigindo, a pedidos, uma Constituição para a Córsega, o filósofo elaborou, em 1772, um projeto de reforma do governo da Polônia. Esses textos de política prática foram muito criticados, como se eles renegassem sua obra teórica, orientada para a igualdade e a liberdade.

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Rousseau foi contemporâneo da Revolução Industrial, então em curso na Inglaterra, e pôde assistir a todas as conseqüências que acarretava para o advento de um mundo novo. Diante desse fato, o filósofo, que não prezava o mundo feudal, buscava retardar e se prevenir diante das mudanças ameaçadoras que se anunciavam. Manifestava um marcante pessimismo, que se expressa na idéia que permeia seus trabalhos, a de que o homem é naturalmente bom, a sociedade é que o corrompe. Como também na surpreendente primeira frase de uma obra pedagógica: “Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem” (Emílio, p. 9). No entanto, seu pensamento acabou por ser adotado por quem queria acelerar a destruição do mundo feudal e a construção da sociedade capitalista. De fato, mais do que um ideólogo datado, Rousseau deu à história das idéias uma importante contribuição, inclusive para o nascimento da sociologia. Se eu tivesse de me restringir a uma pequena citação que resumisse a contribuição do pensamento de Rousseau para o nascimento dessa disciplina, minha escolha seria a seguinte: “É preciso estudar a sociedade pelos homens, e os homens pela sociedade; os que quiserem tratar separadamente da política e da moral nunca entenderão nada de nenhuma das duas” (Emílio, p. 266). Ao contrário de Montesquieu, que se propôs compreender as leis tal como existem, a partir das condições reais que as geraram, Rousseau inicia O contrato social com a preocupação de tomar os homens como são e as leis como podem ser. Sua preocupação é unir o que o direito permite e o interesse prescreve, a fim de que a justiça e a utilidade não fiquem separadas. Seu ponto de partida é a surpreendente constatação: “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles” (Contrato, p. 28). Essa ordem social aprisionadora não se origina na natureza, mas se funda em convenções. Só a família, a mais antiga de todas as sociedades, é natural e não resulta de convenções. Ela é o primeiro

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modelo das sociedades políticas, estas sim criadas por convenções. A convenção fundamental, o contrato social, é apresentada por Rousseau não como uma certeza nem como um axioma, mas como uma suposição — uma hipótese de trabalho. Assim ele inicia o capítulo sobre o pacto social: “Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria” (Contrato, p. 37, grifo meu). Conservar seus bens e a si mesmo seria o motivo racional para que os homens efetivassem o contrato social. Sua razão então seria: “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes” (Contrato, p. 38). Isso implica na “alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda”. (Contrato, p. 39) O ato de cada um pôr em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral é vantajoso porque: 1) cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos; e 2) sendo assim, ninguém se interessa por tornar essa condição onerosa para os demais. “Enfim, cada um dando-se a todos, não se dá a ninguém.” (Contrato, p. 39) O que cada indivíduo perde com o contrato social é a liberdade natural e a posse (efeito da força ou o direito do primeiro ocupante); por outro lado, ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Qualquer que seja a forma pela qual se dê a aquisição de bens pelos indivíduos, o direito que cada um tem sobre seus bens está sempre subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos, sem o que o liame social não teria solidez, nem o exercício da soberania teria uma força verdadeira.

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Foi a oposição dos interesses particulares que exigiu o estabelecimento das sociedades. Mas foi o acordo desses mesmos interesses que possibilitou o contrato social, quer dizer, o nascimento das sociedades. O Estado é uma pessoa moral, que consiste na união de seus membros. Sua maior preocupação é com a conservação desses membros, para o que precisa dispor de uma força universal e compulsiva para mover e dispor cada parte de maneira mais conveniente a todos. “Assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha, como já disse, o nome de soberania” (Contrato, p. 54).

*** Enquanto o filósofo celebra a vontade geral e a prevalência dos negócios públicos sobre os particulares, bem como estuda a gênese e a anatomia da desigualdade entre os homens (no segundo discurso e no Contrato social), em sua obra pedagógica Emílio, ele valoriza a educação típica da nobreza: não só seu aluno paradigmático é um jovem abastado e “de berço”, como, também, a relação pedagógica é a que une o preceptor ao discípulo. Em “Economia política”, verbete da Enciclopédia, publicada no mesmo ano do Discurso sobre a desigualdade (1755), Rousseau apresenta uma concepção social da educação bem distinta do individualismo que emana de Emílio. Naquele curto texto, a educação pública é a mais importante tarefa da economia política, entendida como administração pública. Ela é um dos princípios fundamentais do governo popular ou legítimo. Se é bom saber empregar os homens tais quais são, é muito melhor tornar quais se tem necessidade que sejam: a autoridade mais absoluta é aquela que penetra no íntimo do homem e que se exerce sobre a

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vontade tanto quanto sobre as ações. É certo que os povos, em grande parte, são aquilo que o governo os faz ser (“Economia”, p. 160).

Mas formar cidadãos não é tarefa de um dia. Seria preciso educar os indivíduos ainda meninos. Eles deveriam ser exercitados a não levar em conta sua própria individualidade, a não ser em suas relações com o corpo do Estado. Sua existência individual deveria ser percebida como parte da existência do Estado. A conseqüência esperada por Rousseau é que os jovens se identificassem com esse “todo maior”, que se sentissem membros da pátria e passassem a amá-la. Se as crianças fossem educadas em comum e em absoluta igualdade; se assimilassem as leis do Estado e os princípios da vontade geral; se fossem educadas para respeitar esses princípios acima de tudo; se fossem cercadas de exemplos e de coisas que lhes remetessem à “terna mãe que os nutre” e do amor que ela tem por todos, o filósofo acreditava que o sentimento fraternal seria compartilhado por todos. Como resultado, iriam querer apenas aquilo que a sociedade quisesse. A educação preconizada para as crianças deveria ser bem regulada, calcada mais nos deveres do que nos direitos. Desde o primeiro momento da vida é preciso começar a merecer a viver; uma vez que, nascendo, tornamo-nos participantes dos direitos dos cidadãos, o momento de nosso nascimento deve ser o início do exercício de nossos deveres. Se existem leis para a idade adulta, devem ser também para a infância: que ensinem a obedecer aos outros e, como não se deixar a razão de cada homem ser o único árbitro dos seus deveres, tanto menos se deve deixar às luzes e preconceitos dos pais a educação dos filhos, que concerne mais ao Estado que aos pais; de fato, e segundo o curso natural das coisas, a morte subtrai ao pai os últimos feitos da educação que começara, enquanto a pátria sente seus efeitos cedo ou tarde: o Estado permance, a família se dissolve (“Economia”, p. 169).

Rousseau não pretende diminuir o papel dos pais na educação das crianças com a posição proe-

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minente atribuída ao Estado nessa matéria. Para ele, os pais nada mais fazem do que trocar de nome, já que, como cidadãos, têm em comum a mesma autoridade que exerciam sobre os filhos, separadamente, no âmbito familiar. A educação pública seria exercida por magistrados indicados pelo Estado, conforme regras por ele prescritas. A “magistratura educacional” deveria ser o prêmio do trabalho, o doce e honrado repouso da velhice, o ápice de todas as honras para aqueles que tenham assumido dignamente as outras funções públicas. No entendimento de Rousseau, apenas três povos antigos praticaram a instrução pública, no sentido assim definido: os cretenses, os lacedemônios e os persas, estes com o maior sucesso.2 Quando as nações se tornaram demasiado grandes para serem bem governadas, a educação pública já não foi mais utilizada. Além dessa razão, Rousseau alude a outras razões “que o leitor pode facilmente perceber”, responsáveis pela inexistência da educação pública em qualquer povo moderno. Suponho que o filósofo quisesse que o leitor da Enciclopédia pensasse na Igreja Católica, especialmente na Companhia de Jesus.3 Enquanto o filósofo celebra a vontade geral e a prevalência dos negócios públicos sobre os parti-

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Rousseau não esconde sua admiração pelo fato de que os romanos puderam alcançar o sucesso que a história registra sem a educação pública. Se ele não consegue explicar essa anomalia, convida o leitor a aceitar que isso se deve a um milagre que o mundo não pode esperar rever. 3

Com efeito, os conflitos entre os jesuítas e os governos de vários países europeus estava eclodindo. Depois de serem expulsos de Portugal e colônias em 1759, os jesuítas foram expulsos da Espanha em 1764 e, em 1767, da França. Em 1779, o papa chegou a suprimir a Companhia de Jesus, que só continuou a funcionar na Rússia, protegida por Catarina, a Grande. A ordem só voltou a ser oficialmente reconhecida em 1814. Em substituição às escolas jesuítas, Portugal montou, com professores leigos, o primeiro sistema educacional público (no sentido de estatal, sem as ambigüidades do monopólio da Igreja ligada ao Estado) de toda a Europa.

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culares no Contrato social, em sua obra especificamente pedagógica, Emílio, ele valoriza o individualismo mais extremado, a ponto de dizer que seria preciso optar entre formar o homem e fazer dele cidadão. Vejamos como essas idéias se articulam. Num alentado texto de mais de quinhentas páginas, Rousseau apresenta bem mais do que um tratado de pedagogia. Coerente com sua posição de que para bem educar é preciso dispor de toda uma visão do homem e da sociedade, ele inclui boa parte do Contrato social no Emílio. Vou apresentar um resumo do pensamento aí exposto, focalizando, especialmente, dois temas que me parecem centrais: o trabalho, a religião e a mulher. Embora o filósofo diga que escreveu essa obra motivado pela vontade de agradar “a uma boa mãe que sabe pensar”, seu alcance ultrapassa a destinatária, se é que realmente existiu. Para a concepção de homem e de sociedade de Rousseau, suas idéias teriam de resultar numa pedagogia. Para ele, tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos quando adultos, nos é dado pela educação. Ela provém da natureza, dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e o ganho de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas. Dessas três, a educação dos homens é a única que podemos realmente controlar e, mesmo assim, por suposição. Mas nem por isso Rousseau mostra apreço pela educação escolarizada. Apesar da estima que declarou ter por certos professores da Universidade de Paris, não via como “uma verdadeira instituição pública esses estabelecimentos ridículos a quem chamam colégios” (Emílio, p. 14). Resta a educação doméstica, sobre a qual Rousseau vai concentrar sua atenção. A ela o filósofo dá uma especial importância: [...] a educação do homem começa com seu nascimento; antes de falar, antes de compreender, já ele se instrui. A experiência adianta-se às lições; no mo-

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mento em que conhece sua ama, já muito ele adqui-

cação comum é o estado de homem, e quem quer seja

riu. Surpreenderiam-nos os conhecimentos do homem

bem educado para esse, não pode desempenhar-se mal

mais bronco, se seguíssemos seu progresso desde o mo-

dos que com esse se relacionam. Que se destine meu

mento em que nasceu até aquele a que chegou. Se se

aluno à carreira militar, à eclesiástica ou à advocacia,

dividisse toda a ciência humana em duas partes, uma

pouco me importa. Antes da vocação dos pais, a na-

comum a todos os homens, outra peculiar aos sábios,

tureza chamou-o para a vida humana. Viver é o ofí-

esta seria muito pequena em comparação com a outra.

cio que lhe quero ensinar. Saindo de minhas mãos, ele

Mas não pensamos quase nas aquisições gerais, por-

não será, concordo, nem magistrado, nem soldado,

que elas se fazem sem que nelas pensemos e até antes

nem padre; será primeiramente um homem. Tudo o

da idade da razão. De resto, o saber só se faz notar

que um homem deve ser, ele o saberá, se necessário,

pelas diferenças e, como nas equações de álgebra, as

tão bem quanto quem quer que seja; e por mais que

quantidades comuns não contam (Emílio, p. 42).

o destino o faça mudar de situação, ele estará sempre

Para apresentar suas idéias pedagógicas, o filósofo construiu uma situação ideal que se assemelha à rigorosa construção do objeto de pesquisa nas Ciências Sociais. Na educação imaginada, o próprio filósofo seria o preceptor de um jovem nobre. Com esse artifício, ele não queria dizer como deveria ser a educação dos jovens nobres. Seu interesse estava com o homem em geral, vale dizer com a educação de uma criança que não ficasse restrita a sua condição social. Aliás, trata-se de um ponto em que Rousseau foi incisivo ao defender uma educação que levasse em conta a possibilidade de mudanças sociais que pudessem levar a mudanças revolucionárias. Se o senhor tivesse de se tornar mendigo, que não levasse consigo os preconceitos de sua condição anterior; se um rico empobrecesse, que não persistisse no desprezo pelos pobres. Até mesmo o monarca pode tornar-se súdito. Logo, o melhor a fazer nesse tempo de tão profundas mudanças é educar não em função da condição imediata da criança, mas a prepará-la para viver em qualquer situação. Para isso seria preciso justamente atuar sobre o homem abstrato.

em primeiro lugar (Emílio, p. 15).

A ocupação produtiva (“que pode outorgar a subsistência ao homem”) que mais se aproxima do estado natural é o trabalho artesanal. Para Rousseau, o artesão só depende de seu trabalho. Ele é tão livre quanto o lavrador é escravo, pois este está preso ao campo, cuja colheita está à mercê de outrem. O inimigo, o príncipe, um vizinho poderoso, um processo, podem tomar-lhe a terra. Por sua dependência, o lavrador pode ser humilhado de mil maneiras, o que não acontece com o artesão, pois diante de uma situação adversa, ele toma sua bagagem e seu braço e vai-se embora.4 Entretanto, a agricultura é o primeiro ofício do homem: o mais honesto, o mais útil, e por conseguinte o mais nobre que se possa exercer. Emílio aprenderá a agricultura mas não irá praticá-la. Vai aprender e praticar um ofício artesanal — e isso é para Rousseau questão fechada. Trata-se menos de aprender um ofício, para saber um ofício, do que para vencer os preconceitos que o desprezam. Nunca sereis forçado a trabalhar para viver. Tanto pior. Mas pouco importa; não trabalheis por necessidade, trabalhai por prazer. Abaixai-vos à

Na ordem social, em que todos os lugares estão

condição de artesão para que fiqueis acima da vossa.

marcados, cada um deve ser educado para o seu. Se

Para dominar a sorte e as coisas, começai tornando-

um indivíduo, formado para o seu, dele sai, para nada

vos independente. Para reinar pela opinião começai

mais serve. A educação só é útil na medida em que sua

reinando sobre ela (Emílio, p. 215).

carreira acorde com a vocação dos pais; em qualquer outro caso ela é nociva ao aluno, nem que seja apenas em virtude dos preconceitos que lhe dá. [...] Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vo-

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Essa referência é a seu pai, relojoeiro que acabou tendo de deixar Genebra por questões políticas.

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O ofício que ele gostaria que seu discípulo aprendesse é o de marceneiro: é limpo e útil, pode ser exercido em casa, mantém o corpo em atividade, exige do artesão engenho, habilidade, elegância e gosto. Ademais, se Emílio viesse a se dedicar às “ciências especulativas”, ele poderia empregar o que aprendeu para fazer instrumentos como lunetas, telescópios etc. Se o pedagogo mostrou a preferência pela marcenaria, não deixou de evidenciar seu desprezo por outros ofícios artesanais, pelo automatismo que neles via ou pela força que exigiam: [...] não gostaria dessas profissões estúpidas em que os operários, sem engenho e quase autômatos, só exercitam suas mãos no mesmo trabalho; os tecelões, os fazedores de meias, os canteiros: que adianta empregar nesses ofícios homens de bom senso? É uma máquina que conduz outra (Emílio, p. 222).

Bonald: a educação do homem social Louis de Bonald (1754-1840) era visconde, oficial dos mosqueteiros do rei e prefeito (maire) de Millau, na França, sua cidade natal, quando eclodiu a Revolução. De início ele foi favorável às idéias revolucionárias, mas reformulou sua posição logo após a Constituição Civil do Clero (1791). Depois de seis anos de exílio na Alemanha (Constança e Heidelberg), retornou à França. Napoleão, que apreciou seu livro Théorie du pouvoir politique et religieux (1796), nomeou-o conselheiro titular da Universidade da França (1810), mas ele se recusou a assumir encargos docentes. Com o fim do poder de Napoleão e a restauração da monarquia (1814), foi deputado (1815-1823), ministro de Estado de Luís XVIII, diretor da censura de Carlos X e par de França. Foi eleito para a Academia Francesa (de Letras). Seu pensamento político e social foi sintetizado na Démonstration philosophique du principe constitutif de la societé (1830). Ao contrário do que queriam os iluministas, o homem é, para Bonald, indissociável da socieda-

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de, principalmente da sociedade religiosa. Deus governa os homens por meios humanos, por isso é que se fez homem para regenerar as sociedades humanas. “Os olhos maldosos do ódio só se fixaram num canto do quadro, eles só viram o particular, o homem; eu só vi o geral, a sociedade. Eles acreditaram que o homem fez a sociedade, mas eu creio que que a sociedade faz o homem [...]” (Démonstration, p. 444). Nessa completa inversão da concepção rousseauniana da relação indivíduo-sociedade, Bonald tem o conceito de sociedade como central em seu pensamento: “A sociedade é a reunião de seres semelhantes para sua produção e sua conservação mútuas, e de seus elementos naturais e constitutivos” (Démonstration, p. 440). Essa definição se aplica tanto à sociedade em geral como às diferentes espécies de sociedades particulares — doméstica, civil e religiosa —, assim como às suas combinações. Elas se distinguem das associações (como as empresariais), que são obras humanas, e podem ser dissolvidas à vontade. Bonald foi procurar na religião a constituição natural e geral da sociedade. A definição de religião do filósofo é a seguinte: “[...] uma consciência mais ou menos distinta e razoável de um ser invisível e todo poderoso, criador dos seres subordinados, a quem o homem atribui os bens e os males da vida, e do qual ele se esforça por merecer os benefícios ou de aplacar a ira” (Démonstration, p. 501). O homem não encontra em si mesmo e em sua razão individual o fundamento das crenças religiosas, sejam elas quais forem. Elas só podem ser encontradas na sociedade. O filósofo se pergunta, encaminhando a resposta positiva, se a facilidade com que o cristianismo havia se propagado na Antigüidade pelos povos pagãos e, no seu tempo, pelos “povos selvagens”, não poderia ser resultado (independentemente das obras sobrenaturais que acompanhavam sua presença) de alguma coisa que se agregasse aos pensamentos, aos sentimentos do homem social, mesmo sem o seu conhecimento, para os esclarecer e dirigir. Seria uma espécie de

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assimilação, da mesma forma como se dá com as substâncias alimentares que ingerimos, que nutrem nossos corpos, sem que conheçamos sua natureza e sua relação conosco, sem saber como elas agem em nosso organismo e se convertem em nosos diferentes humores. Uma vez que a idéia da divindade entrou no mundo (pela revelação, de alguma maneira), ela se diversificou ao infinito, fosse pelo desenvolvimento que os homens lhe deram, fosse pelas alterações que lhe impuseram. De todo modo, transmitida pela língua, de geração a geração, ela não sai jamais da sociedade. Embora Bonald chame a sociedade religiosa de “mãe de todas as sociedades”, é na família que ele vai encontrar o modelo comum a todas as sociedades. O gênero humano começou por uma família e continua constituído por famílias. Cada família tem três elementos — pai, mãe, filho. Ao contrário dos animais, que nascem perfeitos, o homem, além de produzir, tem de conservar sua prole. O homem nasce apenas perfectível, e tem de tudo receber da sociedade. A cada um dos elementos da sociedade doméstica corresponde uma pessoa social. Ao pai, à mãe e ao filho correspondem o poder, o ministro e o súdito. O pai age tanto para a produção quanto para a conservação. E o faz pelo ministério da mãe, que concorre para a realização da vontade e da ação do poder. O filho, submetido a essa vontade e a essa ação, é o produto de um e de outro, no que diz respeito à produção e à conservação. Se o pai é poder, a mãe é autoridade, pois necessita ser autorizada pelo esposo. A sociedade política, também chamada de Estado ou governo, é uma sociedade de produção e conservação de famílias. O poder público não foi resultado de um contrato nem de uma imposição. Ele foi necessário, conforme a natureza da vida dos seres humanos em sociedade. As causas e a origem do poder público foram todas naturais. Os homens foram unidos para enfrentar um perigo comum diante de inimigos poderosos ou de animais. Além desse inimigo externo, existiu, tam-

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bém, a necessidade de reprimir um inimigo interno que, movido pelas paixões, ameaçava a tranqüilidade da cidade e o repouso das famílias. Por uma razão, por outra ou por ambas, a criação do poder público se deu mediante a iniciativa de um homem forte. Em conseqüência, foi o poder que distinguiu e classificou as demais pessoas sociais, conforme procedimentos que não nos permitem encontrar o mais leve traço de soberania popular. As funções essencias do poder são julgar e combater. As dos ministros, o conselho e o serviço para secundar sua ação. Como na sociedade política tudo é feito para a utilidade dos súditos, eles não têm propriamente nada a fazer. Os súditos só têm poder e funções na sociedade doméstica. O poder público só pode ser independente (com relação aos súditos) se for proprietário da terra, pois toda outra riqueza, imobiliária ou comercial, depende dos homens e de seus eventos. Em suma, a família torna-se povo e a religião, de doméstica, torna-se pública. Na sociedade civil como na sociedade religiosa, Bonald vê sempre poderes que comandam, súditos que obedecem e, entre eles, com diversos nomes, ministros, meios ou intermediários, que, submetidos ao poder, recebem deste para transmitir aqueles. Esta hierarquia de pessoas e de funções forma a “constituição natural de toda a sociedade”, também chamada de “sistema eterno da sociedade”. Na monarquia real, as três sociedades que compõem o “edifício social” são a sociedade religiosa (o clero), a sociedade política (a nobreza) e a sociedade doméstica (o terceiro estado). Essas três ordens representam as três coisas que constituem toda sociedade: as luzes, a propriedade e o trabalho. Elas integram os Estados Gerais.

*** Na Teoria da educação social, Bonald trata de várias questões além da educação propriamente dita. Aos capítulos sobre a educação doméstica, dos colégios, dos alunos, ele acrescenta outros sobre a administração geral, a nobreza, o exército, os costumes, as letras, a filantropia pública, as finanças,

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o comércio. O que dá unidade a todo esse conjunto, justificando o título da obra, é a preocupação geral com a constituição da sociedade. Na sociedade conturbada de seu tempo, sacudida por revoluções, cumpria dirigi-la para o caminho natural de onde havia sido desviada. Assim, a educação social no pensamento de Bonald pode ser entendida em dois sentidos bem articulados: a educação dos jovens para que exerçam uma “profissão social” e a educação dos adultos no sentido de conservar a sociedade. Três tipos de pessoas estão na sociedade mais do que são dela. Pertencem mais à sociedade natural do que à sociedade política; pertencem mais às suas famílias do que ao Estado. São as crianças, as mulheres e o povo, que correspondem, respectivamente, à fraqueza da idade, do sexo e da condição social. Essas pessoas mantêm com a sociedade uma relação assimétrica: a sociedade deve protegê-las, mas elas não são feitas para proteger a sociedade. O povo, isto é, os que exercem profissões puramente mecânicas e contínuas, permanecem no estado habitual da infância, são apenas coração e sentimento. Seu espírito não pode se aplicar suficientemente sobre os objetos dos conhecimentos humanos, a ponto de ser possível e útil dar-lhes esses conhecimentos. A razão do povo deve ser seu sentimento. Portanto, é seu coração que deve ser dirigido e formado, não seu espírito. No entanto, nessa classe encontram-se pessoas que a natureza eleva acima de sua esfera, que ela destina ao exercício de alguma profissão útil à sociedade. Para que essas pessoas possam cumprir seu destino, a sociedade lhes dá os primeiros elementos dos conhecimentos, que nem a natureza nem a razão podem suprir. Esse é o objetivo das pequenas escolas situadas nas cidades e vilas, onde se ensina a ler, a escrever, os princípios da religião e da aritmética. Bonald diz que um erro muito comum nos que muito leram, pouco meditaram e menos ainda observaram é acreditarem na existência de talentos latentes na maioria das pessoas. Os philosophes (os iluministas?) crêem também na existência de espíritos que eles não vêem. Nesse sentido, muitos au-

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tores que escreveram sobre a educação pública tiveram essa quimera na mente. E, por quererem desenvolver os talentos escondidos, eles não cultivaram ou não formaram as disposições conhecidas e comuns a todos os homens. Eles só observaram o povo de suas janelas e só o estudaram nos livros. Saber ler e escrever não é mesmo necessário à felicidade física ou moral do povo ou aos seus interesses. A sociedade dá ao povo uma garantia mais eficaz contra a trapaça e a má-fé. O que todo o povo precisa é da religião, dos costumes e de uma honesta comodidade. Ele precisa do sentimento para manter a religião; de bons exemplos e das leis executadas para manter os costumes; e de trabalho para manter a comodidade. Para Bonald, o homem é espírito, coração e sentimento, mas suas faculdades só se desenvolvem uma depois da outra. A criança só tem sentimento, depois o coração se revela. Ambos devem ser objeto da educação doméstica, que se destina ao homem natural. Mais tarde, propiciado pelos conhecimentos elementares fornecidos pela educação doméstica, o espírito se desenvolve. Agora começa o homem social, cujo espírito é dado pela sociedade. Ele tem vontades e opiniões, que é preciso regular e guiar. O objeto da educação social é, então, orientar para seu uso todas as faculdades do homem; ela tem o direito de formar para a utilidade geral todas as suas faculdades: a faculdade de querer, de amar, de agir — seu espírito, seu coração e seu sentimento. Há na sociedade profissões que são necessárias à conservação da sociedade natural, e outras, necessárias à conservação da sociedade política. Assim, há famílias políticas ou sociais e famílias naturais. Se as primeiras não tiverem os meios para dar a suas crianças uma educação social, a sociedade, em seu próprio interesse, deve vir em sua ajuda. Bonald examina a objeção de que se o Estado está obrigado a educar as crianças das famílias sociais que não dispuserem dos meios de fazê-lo por si mesmas, disso resultaria desigualdade entre os diversos membros da sociedade. Para contestar essa objeção, ele recorre à explicação sobre as diferen-

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ças entre os homens. Para conhecer aqueles que trabalham mais e melhor (obrigação que a natureza impõe a todos os homens), que cumprem melhor seu dever, há um método infalível, público, isento de toda contestação: é pela sua fortuna. Aquele que enriquece é portanto aquele que trabalha mais e que trabalha melhor, que cumpre mais

estabelecimentos públicos e, assim, facilitar-lhes os meios de serem úteis. Assim, a sociedade deverá admitir em seus estabelecimentos de educação pública todas as crianças sãs de corpo e de espírito, cujas famílias tenham a intenção e os meios de lhes dar a educação social. Só não poderá assumir os encargos financeiros desses estabelecimentos.

perfeitamente com seus deveres naturais, que apresen-

É preciso que os pais sejam persuadidos de que

ta a melhor garantia de sua aptidão em preencher os

a educação social não tem por objetivo tornar os jo-

deveres políticos, que merece ser distinguido e sua fa-

vens mais sábios, mas, sim, torná-los bons e próprios

mília, ser enobrecida (Théorie, pp. 247-248).

para receber a educação particular da profissão à qual

Assim, o homem que enriquece e enobrece sua família pela compra de cargos nada mais faz do que provar à sociedade que ele merece que sua família seja admitida a cumprir com os deveres políticos, pela sua aplicação e sua aptidão no cumprimento dos deveres naturais. Bonald nem mesmo aceita a objeção de que possa haver meios desonestos de enriquecimento numa sociedade constituída. Não se poderia admitir que o enobrecimento proviesse apenas dos serviços distinguidos prestados à sociedade, senão apenas duas famílias por século seriam admitidas à nobreza, enquanto que as necessidades da sociedade exigem um número um pouco maior. Bonald defende que deverão ser admitidos nos colégios (no ensino secundário) os filhos de todas as famílias que devam ou que possam lhes dar a educação social ou pública.5 Toda família que não exerce uma profissão social, mas que deseja dar a suas crianças uma educação social (ou pública), demonstra que tem a intenção de torná-las úteis à sociedade, e pode se elevar ao nível das famílias sociais ou distinguidas. A sociedade não pode pagar a educação dessas crianças porque ignora se elas vão querer ou se vão poder abraçar uma profissão social ou se sua família terá as qualidades necessárias para se elevar ao nível de uma família social. Mas deve admiti-las nos

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É um sentido do termo educação pública semelhante ao que persiste até hoje na Inglaterra, onde as public schools são privadas...

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estão destinados, e que eles estão no colégio menos para se instruírem do que para se ocuparem (Théorie, p. 249-250).

Saint-Simon: a educação do homem industrial Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon (1760-1825), desde muito jovem mostrou inconformidade com as condições sociais, buscando mudanças em seu modo de vida pessoal. Participou como capitão do corpo expedicionário francês na luta dos colonos da América contra a dominação britânica. Conheceu, então, uma sociedade bem diferente da sua. Deparou com um modo de vida onde o comércio e a indústria eram atividades muito valorizadas, livres dos entraves feudais que persistiam na França. De volta a seu país, apoiou a Revolução, abriu mão de seu título nobiliárquico, mas não desempenhou nenhum papel ativo, por julgar que as pessoas de origem aristocrática deveriam aguardar o desfecho das disputas políticas. Enquanto o processo revolucionário se estabilizava, Saint-Simon dissipou sua fortuna na promoção de uma convivência mundana com intelectuais e artistas, aproveitando para se instruir. Freqüentou cursos na Escola Politécnica e na Escola de Medicina, onde a interação com os professores propiciou-lhe a participação em diversas experiências. Foi só após 1805, completamente arruinado financeiramente, que ele veio a escrever a quase totalidade de sua obra, valendo-se do amparo de amigos no governo.

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Além de ser um protagonista político, SaintSimon extraiu das lutas de que participou elementos para a construção de uma verdadeira matriz teórica, unindo teoria e prática política de um modo original. Criador do positivismo como filosofia, desenvolveu incansável atividade panfletária contra os “ociosos” e em prol dos industriais, os únicos que poderiam assessorar o rei na direção dos negócios públicos, de preferência exercendo eles o poder diretamente. A ciência foi anunciada como a substituta da religião, depois sua parceira na condução da humanidade em direção à harmonia e ao bem comum. Como um dos pioneiros do socialismo enquanto doutrina social, insistiu na distinção entre sociedade e Estado, condição para se empreender uma organização social e até um governo da sociedade sem poder estatal, no sentido político do termo; na igualdade entre os homens em cooperação, em lugar da exploração do homem pelo homem; no fim do direito de herança; na contribuição de cada um segundo suas capacidades e na retribuição a cada um conforme suas necessidades individuais. Como os filósofos do Iluminismo, ele confiava no poder da razão para transformar o mundo, recusando-se a aceitá-lo como estava, adotando uma posição internacionalista e otimista quanto ao futuro da humanidade. Afastava-se deles na avaliação da Idade Média, não aceitando seu julgamento de que teria sido uma época dominada pela superstição e pela ignorância. Não escondia sua admiração pela sociedade feudal, no que tinha de força coesiva representada pelo clero, e a religião como idéia dominante, propiciando a unidade de toda a Europa, tendo no papa a direção intelectual. Mas, ao contrário dos românticos, não aceitava que a Idade Média européia pudesse ser o modelo do mundo novo, pois a ciência e a indústria, desde que estas apareceram na sociedade feudal, determinaram a sua morte e se converteram nos princípios essenciais de uma nova sociedade. Saint-Simon insistiu em mostrar a existência, na França pós-revolucionária, de uma contradição entre o progresso constante da indústria e as idéias comuns dos industriais. As idéias dominantes do

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feudalismo persistiam, impedindo os industriais de desenvolverem todas as suas possibilidades objetivas. Eles continuaram pensando como discípulos dos “metafísicos” (principalmente os iluministas), com aspirações à nobreza, não desenvolvendo uma consciência dos interesses de sua classe, prolongando, assim, sua posição subalterna. O lugar ocupado pela burguesia deveria ter sido preenchido por um poder espiritual intermediário, já que os homens não podem passar de uma só vez e inteiramente de uma doutrina a outra. O único papel desse poder espiritual passageiro seria o de operar a transição de um sistema para outro, que, plenamente em funcionamento, o dispensaria. Esse poder espiritual não seria o do clero atual, que tinha se tornado “um encargo sem benefício para a última classe da sociedade”, já que todas as suas prédicas se destinavam a levar os pobres à obediência passiva dos ricos e dos privilegiados, os quais, por sua vez, deveriam obedecer cegamente, primeiro ao papa, depois ao rei. Mas, se o clero estava ultrapassado, o mesmo não acontecia com o Cristianismo, doutrina de grande atualidade na sociedade industrial. Em De l’organisation sociale, Saint-Simon dizia que o poder espiritual ou científico deveria ser institucionalizado em duas academias separadas. A Academia de Ciências definiria um código de interesses, enquanto que a Academia de Belas Artes trataria de um código de sentimentos. Elas atuariam conjuntamente no estabelecimento de uma doutrina relativa à instrução pública. Embora a religião e o clero tivessem perdido o lugar que ocupavam na sociedade feudal, a sociedade industrial plenamente constituída necessitaria de seu equivalente funcional. O pensamento científico substituiria o dogma religioso e os cientistas ocupariam o lugar do clero. Mas a ciência não poderia ser apreendida da mesma maneira por todos os indivíduos. Para os que fossem intelectualmente menos capazes, a verdade científica seria difundida mediante rituais, cultos e processos místicos. A elite educada, ao contrário, apreenderia a ciência diretamente. Assim, uma nova força

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coesiva se desenvolveria, garantindo a unidade da sociedade. Aí está o lugar do pensador social como protagonista na difusão das novas formas de pensamento: a difusão de uma ética baseada no pensamento positivo. Para se concluir o processo da Revolução, seria preciso acabar com o poder dos ociosos e transferi-lo aos industriais. Saint-Simon dizia que todos os cidadãos dedicados a ocupações úteis desejavam que os agricultores, negociantes e fabricantes de mais sucesso fossem os dirigentes dos negócios públicos, pelo menos da elaboração do orçamento. Isso porque eles eram tidos como os mais interessados no aperfeiçoamento da moral pública e privada, bem como no impedimento das desordens. Eles sentiriam mais do que ninguém a utilidade das ciências positivas e os serviços que as belas artes poderiam prestar à sociedade. Além do mais, os industriais de sucesso já teriam provado ser os mais capazes em seus negócios particulares, razão pela qual se poderia esperar que fizessem o mesmo nos negócios públicos. Para mostrar a indispensabilidade dos industriais, Saint-Simon convidava o leitor de uma de suas cartas ao rei, incluída em Du système industriel, a fazer uma suposição. Se a França perdesse de repente três mil cidadãos pertencentes aos diversos ramos das ciências, das belas artes e da agricultura, da manufatura e do comércio, “ela se tornaria um corpo sem alma”, em situação de inferioridade diante da nação rival. Se, ao contrário, ela conservasse seus “homens de gênio” e perdesse trinta mil personagens consideradas as mais importantes dentre os funcionários públicos, os militares, os legisladores, os clérigos, os proprietários ociosos, não resultaria disso nenhum mal político para o Estado, e a nação conservaria sua posição elevada entre os povos civilizados. Refinando sua análise, Saint-Simon distingue dentre os industriais, no sentido estrito, os proprietários dos não-proprietários, a quem chama de proletários ou de classe proletária. Reconhece a existência de conflitos entre eles, bem como entre os dirigentes e os executores, entre os “chefes de tra-

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balhos industriais” e os proletários, entre estes e os especialistas. Em certas passagens, onde enfatiza a oposição entre os industriais, a burguesia e os ociosos, ele sugere que os conflitos entre aquelas classes seriam espontaneamente resolvidos mediante conciliação. Já em outras passagens, reconhece que o egoísmo desmedido dos ricos e a rebeldia dos pobres teriam efeitos desorganizadores que comprometeriam a própria unidade social. Ele entendia a sociedade como um corpo social, no qual as diversas partes contribuem, cada uma a seu modo, para a vida em comum. Nas suas palavras, “mais do que um aglomerado de seres vivos, a sociedade é sobretudo uma verdadeira máquina organizada na qual todas as partes contribuem de uma maneira diferente para o funcionamento do conjunto” (“De la physiologie sociale”, Oeuvres, tomo V, p 177, grifo meu). No sistema positivo de pensamento, característico da etapa científica, todo o universo humano substituiria a idéia de uma regulação divina pela da gravitação, como Newton havia estabelecido como hipótese para os corpos celestes. Com os arranjos convenientes, o princípio da gravitação viria a tomar o lugar, com idéias claras e precisas, de todos os princípios que a teologia ensinava até então.6 A indústria, depois de ter sido a causa da evolução (que levou à Revolução), vai tornar-se o próprio fim da vida social, penetrando todas as atividades, impondo-lhes suas características, inclusive na política. O governo militarizado do feudalismo estava orientado para a ação sobre os homens, por isso era hierarquizado. Já a indústria tem por fim agir sobre a natureza, sobre as coisas, por isso o governo que lhe corresponde estará orientado para a organização. A indústria opera uma nova socialização dos indivíduos, criando um tipo radicalmente novo de solidariedade: é o trabalho que se torna o princípio de coesão e de integração social. Essa é a igualdade própria da sociedade industrial, onde

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Cf. “Memoire sur la science de l’homme”, Oeuvres, tomo V, pp. 271 e 286.

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não existem privilegiados por razão de nascimento nesta ou naquela família. A plena realização do industrialismo como modo de vida implicaria o desaparecimento dos ociosos, com o triunfo dos industriais, vindo o trabalho a ser o princípio organizativo de toda a sociedade. Assim, tendendo a tornar-se a única classe da sociedade, os industriais (com suas diferenciações) forneceriam a base social para o princípio da igualdade com diferenciação de funções. O sistema industrial estaria, então, baseado no princípio da igualdade perfeita, opondo-se aos direitos de nascimento e a todo tipo de privilégio.

*** Na linha de Rousseau, Saint-Simon considera que a educação (no sentido lato) é mais importante do que a instrução propriamente dita, tendo em vista o bem-estar social. É aquela que forma os costumes, que desenvolve os sentimentos e amplia a capacidade de previsão. Para os proletários, particularmente, a educação é muito mais importante do que a instrução, haja vista a capacidade que o filósofo reconhece nesta classe de exercer a administração das empresas. Isso não quer dizer que Saint-Simon condene o proletariado à educação espontânea. Ao contrário, ele reconhece que essa classe tem mostrado disposição de se instruir, quando encontra condições para isso, apesar de os filhos dos ricos, notadamente dos ociosos, terem mais tempo e recursos para se dedicarem aos estudos. Para o filósofo, a instrução deveria ficar sob a responsabilidade do poder espiritual, devendo dela ser retirada o conteúdo inerente à cultura dos ociosos, em especial as línguas clássicas e os autores gregos e latinos. As ciências positivas é que deveriam ocupar o lugar deixado vago, especialmente a matemática, a física, a química e a história natural. Detalhando seu propósito de renovar a mentalidade dos industriais, Saint-Simon sugeriu a Napoleão (quando este retomou o poder em 1815) que instituísse cátedras públicas de política. Em 1825, no Catecismo dos industriais, propôs a criação de três cátedras para o ensino dos principais elemen-

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tos da ciência social: uma cátedra de direção política e industrial; outra, de moral; e outra, de pesquisa científica. Em 1816, num opúsculo enviado à assembléia geral da Sociedade de Instrução Primária, entidade privada destinada à promoção da instrução popular, notadamente mediante o ensino mútuo, Saint-Simon sugere a adoção de medidas insólitas para sua época. Embora considerasse preferível e mais fácil a educação das crianças da classe média do que da “última classe da sociedade”, ele recomendou a atração dos filhos das famílias ricas para estudarem junto aos pobres; o prolongamento dos estudos dos “societários” até a escola secundária; e a adaptação do currículo da escola primária às necessidades da indústria. Lamentavelmente, pouco mais se sabe a respeito da feição que assumiria a educação, especificamente a instrução, na sociedade industrial preconizada por Saint-Simon. Quatro décadas depois de sua morte, Júlio Verne escreveu (em 1863) um romance de antecipação (ficção científica), inédito até 1994, denominado Paris no século XX, onde projetou para a década de 1960 os processos que considerava em curso na sociedade francesa de seu tempo, assim como a educação. Nessa projeção, a presença do positivismo de Saint-Simon pode ser facilmente reconhecida na rejeitada caricatura do futuro parisiense. Chama a atenção o fato de o romancista ter imaginado como seria a educação coerente com o industrialismo pregado pelo filósofo, a que ele próprio não havia dado tal importância. Júlio Verne apresenta nesse romance uma visão profundamente pessimista do progresso. As maravilhas tecnológicas não teriam resultado, um século após, na melhoria da vida humana. A educação, particularmente, levou ao amesquinhamento das pessoas, formadas exclusivamente para o trabalho lucrativo na indústria e no comércio. Assim, focalizar a imagem “industrialista” da educação, em Júlio Verne, é uma espécie de mirada no negativo da imagem que dela teria Saint-Simon, pelo menos pela ótica de seu lado positivista mais extremado.

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Passemos, então, à Paris do futuro. O livro começa focalizando a distribuição dos prêmios anuais da Sociedade Geral de Crédito Instrucional, que “correspondia perfeitamente às tendências industriais do século XX”. Os capitais liberados pela estatização das ferrovias foram empregados numa empresa com fins educacionais. O que não teria nada de espantoso. “Ora, para um empresário, construir ou instruir é tudo a mesma coisa, visto que, para falar a verdade, a instrução não passa de um tipo de construção, um pouco menos sólida” (Paris, pp. 32-33). Em 1937, durante o reinado de Napoleão V (Júlio Verne escrevera durante Napoleão III), o barão de Vercampin, um bem-sucedido homem de negócios, obtivera autorização do Estado para fundir os liceus públicos e privados numa única instituição, que cobria a França inteira, mantida por uma sociedade anônima, aprovada por decreto imperial. No conselho administrativo estavam um diretor de ferrovias, um banqueiro, um senador, um deputado, um coronel da polícia e o diretor geral do estabelecimento de ensino. “Como se vê, nenhum nome de sábio ou professor no Conselho Administrativo. Era mais tranqüilizador para a instituição comercial” (Paris, p. 34). Um inspetor do governo acompanhava as operações da companhia e as relatava ao ministro competente. O autor nada diz sobre o ensino superior, a não ser que a Escola Politécnica havia sido “supressa” em 1889. Nem sobre o ensino primário. Foi o ensino secundário que mereceu sua atenção. Nos cerca de 150 mil alunos da companhia, cuja idade e currículo leva a crer serem do ensino secundário, “a ciência era incutida por meios mecânicos” (Paris, p. 34). As letras e as línguas mortas, como o latim e o grego, foram relegadas a um segundo plano, com tendência à extinção. As línguas vivas, com a exceção do francês, eram muito cultivadas, com objetivos comerciais, especialmente depois da conquista francesa da Cochinchina (Indochina). A Sociedade tinha construído uma verdadeira “cidade instrucional” no Campo de Marte, onde cabiam milhares de estudantes e mestres. Sinto-

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maticamente, no mesmo lugar onde a federação havia sido aclamada pela massa revolucionária, 150 anos antes. Os negócios iam muito bem: o lucro do exercício de 1960 já superava o preço de emissão das ações. Os estudantes premiados foram sendo chamados para ouvirem seus feitos celebrados na matemática e nas ciências. Mas, quando foi chamado Michel Dufrénoy, primeiro prêmio em versos latinos, a gozação do público foi geral, pelo desprezo que se tinha por essa “disciplina” remanescente. O incrível foi o prêmio que o herói do livro (homônimo do filho de Júlio Verne) ganhara: o Manual do bom fabricante, que ele jogou no chão. Michel vivia numa “família eminentemente prática” (título de um capítulo do livro). Orfão, foi criado pelos tios. O Sr. Stanilas Boutardin era o produto natural daquele século de indústrias; desenvolvera-se numa estufa quente, em lugar de crescer em plena natureza; homem eminentemente prático, nada fazia que não fosse útil, conformando suas menores idéias ao útil, com um desejo incontido de ser útil que ia dar num egoísmo verdadeiramente ideal; unindo o útil ao desagradável, como teria dito Horácio; sua vaidade transparecia em suas palavras, mais ainda que em seus gestos, e ele não teria permitido que sua própria sombra o precedesse; exprimia-se por gramas e centímetros e andava com uma bengala métrica fosse qual fosse o clima, o que lhe dava um grande conhecimento das coisas deste mundo; desprezava solenemente as artes, principalmente os artistas, para dar a entender que os conhecia; para ele, a pintura não ia além da água forte, o desenho da cópia, a escultura da fôrma, a música do apito das locomotivas, a literatura dos boletins da Bolsa (Paris, p. 53).

O tio de Michel, banqueiro e industrial, crescera cercado pela mecânica, por isso explicava sua vida pelas engrenagens ou transmissões. Movia-se regularmente com o mínimo de atrito possível, como um pistão num cilindro perfeitamente calibrado. Transmitia seu movimento uniforme à mulher, ao filho, aos empregados, aos criados de casa, to-

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dos eles verdadeiras máquinas-ferramentas de que ele, o grande motor, tirava o melhor partido possível. Era um mau-caráter, incapaz de um bom ou de um mau movimento. Fizera uma imensa fortuna, animado pelo “elã do século”. Mostrava-se reconhecido para com a indústria, que adorava como se fosse uma deusa.7 Sua mulher, a tia de Michel, era, por sua vez, “uma verdadeira administradora, bem uma fêmea de administrador” (Paris, p. 55). A história é da desventura de Michel em tentar ser “um homem prático”, exigência do tio que o queria empregado em seu banco. E sua tentativa frustrada de ser um literato numa sociedade onde o primeiro dever do homem era ganhar dinheiro. Para os poetas, restava a única oportunidade de celebrar em seus versos as maravilhas da indústria. A língua francesa estava recheada de palavras inglesas. Os inventores, os comerciantes de cavalos e os vendedores de carros foram buscar na língua inglesa as palavras de que precisavam para valorizar seus produtos.8 Na Sociedade, as cátedras de letras seriam extintas em 1962, em decorrência de uma decisão tomada em assembléia geral dos acionistas. Dizia o desconsolado professor de retórica: “Quem quer saber de gregos e latinos, que só servem, no máximo, para fornecer uma ou outra raiz para as palavras da ciência moderna!” (Paris, p. 132). Mas não só os literatos eram uma espécie em extinção. A carreira de soldado foi extinta porque

não havia mais exércitos nem guerras. No século anterior (o XIX), o desenvolvimento das máquinas de guerra havia atingido tal ponto que o desarmamento foi o desfecho inevitável. As nações européias suprimiram o Estado militar e, com ele, o espírito de luta. Antecipando o equilíbrio bélico da guerra fria da década de 1960, Júlio Verne dizia que “efetivamente, as máquinas mataram a bravura e os soldados transformaram-se em mecânicos” (Paris, p. 138). O industrialismo teria imprimido sua marca na sociedade tão fortemente (como vaticinava SaintSimon, o filósofo positivista) que até mesmo as mulheres mudaram seu modo de ser — acabarão sendo substituídas por máquinas de ar comprimido. Já era possível ver como as mulheres entraram em decadência fisiológica. O diagnóstico do pianista Quinsonas, marginal como Michel, é bem depressivo, mostrando a adaptação da mulher ao industrialismo e ao americanismo, seu modo de vida correspondente: A atitude envolvente da parisiense, seu porte gracioso, seu olhar vivo e terno, seu amável sorriso, sua carnadura ao mesmo tempo adequada e firme, em pouco tempo deram lugar a formas longas, magras, áridas, descarnadas, emaciadas, depauperadas, de uma desenvoltura mecânica, metódica e puritana. A cintura perdeu a curva, o olhar ficou austero, as juntas enrijeceram; um nariz duro e rígido inclinou-se sobre os lábios finos e chupados; o passo espichou; o anjo da geometria, antigamente tão pródigo no fornecimento de suas curvas mais atraentes, entregou a mulher a todo o rigor da linha reta e dos ângulos agudos. A

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A Bolsa de Valores era a catedral do momento, o templo dos templos. 8

O memorialista barroco Saint-Simon (o duque, não o conde, este o filósofo que nos ocupa neste texto) é mencionado por Júlio Verne ao lado de Bossuet e de Fénélon, como homens de letras que não conseguiriam reconhecer a língua francesa do século XIX. Ela havia se descaracterizado não só devido aos numerosos termos ingleses importados, mas, também, pela duplicidade, pelo equívoco e pela mentira próprios da diplomacia (o francês havia sido escolhido no século XVII como língua diplomática justamente por suas qualidades de franqueza e transparência).

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francesa virou americana; fala gravemente dos negócios graves, encara a vida com rigidez, cavalga sobre o lombo magro dos costumes, veste-se mal, sem gosto, e enverga coletes de tecido galvanizado, capazes de resistir às pressões mais intensas. Meu filho, a França perdeu sua verdadeira superioridade; suas mulheres, no delicioso século de Luiz XV, haviam afeminado os homens; de lá para cá passaram para o gênero masculino e já não valem o olhar de um artista nem a atenção de um amante! (Paris, p. 144-145).

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Ao contrário de Saint-Simon, o filósofo positivista, Verne imaginava o aumento do poder do Estado. Apesar da industrialização acionada pelos empresários privados, ele via a França dos próximos cem anos marcada pela centralização estatal, movida por dez milhões de funcionários públicos. A propósito, alguém disse a Michel sobre a possibilidade de arranjar um emprego público: “sempre é tempo de se funcionarizar”. Como as ferrovias, os teatros haviam passado para o controle do governo. Depois que Michel demonstrou sua incapacidade para o trabalho no banco do tio, de onde fugira após provocar grande prejuízo, seus amigos, marginais como ele, mas com relações vantajosas, arranjaram-lhe um emprego no Grande Armazém Dramático. Apesar da boa vontade do diretor, ele fracassou em todas as tarefas que lhe foram atribuídas na máquina burocrática do entretenimento oficial. Deserdado pelo tio banqueiro, incapaz de se adaptar no emprego público, a miséria chegou em pleno inverno rigoroso. Perdeu contato com os amigos, marginais como ele, perdeu-se da amada e acabou morrendo de fome e frio. Morto pela sociedade industrializada, que não admitia um poeta como ele, do mesmo modo que condenava os artistas. À guisa de comparação Pelo exposto, podemos ver que os três pensadores focalizados — Rousseau, Bonald e SaintSimon — entendem diferentemente as relações entre sociedade, Estado e educação. Para o Rousseau da Enciclopédia, educação pública é sinônimo de educação estatal, e seus destinatários são todas as crianças nascidas na sociedade, em especial na república. Já no Emílio, o filósofo nem ao menos trata a educação pública como tema a ser considerado, pois sua preocupação é a educação de um indivíduo abastado e “de berço”. Para Bonald, há uma educação pública sinônima de educação estatal, pelo menos no tocante ao ensino secundário, cujos destinatários são apenas os jovens oriundos das “famílias sociais”, isto é, da nobreza, aos quais se juntariam os filhos das

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famílias burguesas que desejassem investir no ingresso nesse estamento. Além do mais, o texto do filósofo reconhece a existência de escolas primárias nas cidades e nas vilas, destinadas a crianças das “famílias naturais” que, sem se transformarem naquelas, haviam se elevado um pouco acima de sua condição original. Tais escolas não são apresentadas pelo autor como escolas públicas. Possivelmente, elas seriam mantidas por entidades constituintes da Sociedade Religiosa, portanto escolas privadas. Para Saint-Simon, finalmente, poucas são as referências à educação mantida pelo Estado. Ele se referiu, certa vez, à Escola Politécnica (estatal) como o mais perfeito estabelecimento de ensino existente, e chegou a propor a Napoleão a criação de cátedras para a educação dos industriais, possivelmente dos mais instruídos. No que diz respeito ao ensino elementar, sua filiação à Sociedade de Instrução Primária — entidade civil filantrópica — destinada a promover a educação das crianças proletárias, o filósofo apresenta sua atividade como sendo de caráter público, embora não estatal. No mesmo sentido, a direção de toda instrução pública não ficaria a cargo do Poder Público (do Estado), mas, sim, do Poder Espiritual, constituído da Academia de Ciências e da Academia de Belas Artes. Se a expressão educação pública não-estatal está ausente dos escritos desse filósofo, a concepção está bem presente. Ela veio a ser reforçada, na ótica do positivismo, por Augusto Comte (1830)9 e pela projeção ficcional saint-simoniana de Júlio Verne (1863). Já na ótica socialista, também tributária do pensamento de Saint-Simon, a educação pública nãoestatal veio a ser defendida por Karl Marx, pelo menos na exposição ao Conselho Geral da Associação Internacional do Trabalho (1869).

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Esse ano marca sua participação como co-fundador da Associação Politécnica para a Instrução Popular. Embora não seja aqui o lugar para uma comparação entre o pensamento de Saint-Simon e de Comte sobre a questão educacional, cumpre adiantar que este substitui o protagonismo educativo dos industriais pelo clero positivista.

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LUIZ ANTÔNIO CUNHA é sociólogo, mestre e doutor em educação. Lecionou na PUC/RJ, no IESAE/FGV, na UNICAMP, na UFF, na USP e na FLACSO. Foi pesquisador-visitante da Faculdade de Educação da USP, com bolsa da FAPESP. Dentre seus livros, os mais importantes são Educação e desenvolvimento social no Brasil (1975), Educação, Estado e democracia no Brasil (1991), a trilogia sobre a universidade brasileira (Temporã, 1980; Crítica, 1983; Reformanda, 1988) e, o mais recente (1995), Educação brasileira: projetos em disputa (Lula x FHC na campanha presidencial).

__________, (1992). Emílio ou da educação. Rio de Janeiro: Bertrand. __________, (sd). Do contrato social. Discurso sobre a economia política. São Paulo: Hemus. SALINAS FORTES, Luiz (1976), Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Ática. __________, (1989). Rousseau: o bom selvagem. São Paulo: FTD. TRINDADE, Liana S., (1978). As raízes ideológicas das teorias sociais. São Paulo: Ática. SAINT-SIMON, Claude-Henri de, (1966). Oeuvres. Paris: Anthropos.

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ARON, Raymond, (1967). Les étapes de la pensée sociologique. Paris: Gallimard. BONALD, Louis de, (1966).Théorie du pouvoir politique et réligieux. Théorie de l’éducation sociale. Paris: Union Générale d’Éditions. [1796] __________, (1985). Démonstration philosophique du principe constitutif de la societé. Méditations politiques tirés de l’Evangile. Paris: Vrin. [1830] BOTTOMORE, Tom, NISBET, Robert A. (orgs), (1978). A History of Sociological Analysis. Nova York: Basic Books. DURKHEIM, Emile, (1966). Montesquieu et Rousseau précurseurs de la Sociologie. Paris: Librairie Marcel Rivière. __________, (1992). Le socialisme. Sa définition - ses débuts. La doctrine saint-simonienne. Paris: PUF [1928]. JONAS, Friedrich, (1991). Histoire de la Sociologie - des lumières à la théorie du social. Paris: Larousse. NISBET, Robert, (1977). La formación del pensamiento sociológico. Buenos Aires: Amorrortu, 2 vols. ROMANO, Roberto, (1981). Conservadorismo romântico - origem do totalitarismo. São Paulo: Brasiliense. ROUSSEAU, Jean-Jacques, (1973). Do contrato social, Ensaio sobre a origem das línguas, Discurso sobre as ciências e as artes, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural. __________, (1982). Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma projetada. São Paulo: Brasiliense.

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Ensino e historiografia da educação Problematização de uma hipótese

Clarice Nunes Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense

Trabalho apresentado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.

Este artigo foi originalmente redigido com o objetivo de nortear a discussão da pesquisa “Visões da história da educação”.1 Esta pesquisa preocupase com o ensino de história da educação produzido em conjunturas diversas, mas com a mesma intenção: realizar uma sistematização geral dessa história e, por intermédio dela, levar o leitor a apreendê-la como uma área de conhecimentos que tem um “domínio próprio”, uma “certa tradição” e maneiras próprias de perceber a sociedade e as relações entre sociedade e educação. Colocamos nossos esforços de investigação no plano da interlocução aberta por uma reflexão a 1

Esta pesquisa conta com o financiamento do CNPq e apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal Fluminense. Está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação dessa universidade com professores ligados ao Departamento de Fundamentos Pedagógicos. O grupo de investigação é composto, além da autora deste artigo, que o coordena, pelos alunos Cristiane Gonçalves de Souza e Júlio Cláudio da Silva e pelas professoras Daisy Guimarães de Souza, Haydée da Graça Ferreira de Figueiredo e Rose Claire Pouchain Matela.

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serviço do ensino da história da educação e de tudo o que ela significa em termos da construção de uma nova forma de compreender legados interiorizados, rotas percorridas e caminhos já desbravados. O que pretendemos é apreender como se constitui, na sociedade brasileira, uma história da educação enquanto disciplina escolar, através de livros cujas intenções e concepções nos remetem ao substantivo plural visões. Entendemos por visões da história da educação as diferentes maneiras pelas quais, em diferentes lugares e momentos, uma determinada “realidade pedagógica” é construída ou, como diria Roger Chartier, “dada a ler”. A descoberta desses modos de construção pode ser feita através de vários itinerários e com outras fontes, impressas ou não, como os discursos ministeriais, as circulares, os pareceres, os programas escolares, os relatórios de inspeção, os projetos de reformas, os artigos, os manuais destinados aos docentes, as polêmicas críticas, os planos de estudo, os planos de curso, os relatos de bancas examinadoras, os debates de comissões especializadas, etc. Focalizamos os livros, no entanto, por considerá-

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los como os principais mediadores do ato pedagógico, instrumentos materiais e simbólicos que guardam múltiplos significados e permitem uma leitura diversificada. Priorizamos, portanto, uma produção que costuma ser recorrente em bibliografias e bibliotecas e que, pelo menos hipoteticamente, seria consultada por professores e estudantes dos cursos de formação de educadores. Dos livros identificados durante a elaboração do projeto de pesquisa, produzidos entre 1889 e 1990, selecionamos 28 títulos referentes a história da educação geral e história da educação brasileira, dos quais sete são traduções de obras francesas, norte-americanas, italianas e argentinas.2 A Companhia Editora Nacional, através da sua coletânea Atualidades Pedagógicas, criada com o claro objetivo de formar a biblioteca dos professores primários e secundários, recorrendo para isso, quase sempre, aos serviços de tradução e notas de Luís Damasco Penna e J.B. Damasco Penna, tem papel destacado na divulgação dessas obras didáticas estrangeiras, seguida pela Cortez & Autores Associados e pela Mestre Jou. Problemas operacionais e falta de recursos impediram, até o momento, o aprofundamento da pesquisa junto a essas e outras editoras, o que permitiria o levantamento de indicadores preciosos não só quanto aos livros de história da educação como mercadorias em circulação, mas também quanto ao alcance da contribuição de autores hoje

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Ficaram de lado, nessa fase da pesquisa, não só os livros de história da educação não traduzidos e de circulação restrita junto aos professores, mas também todos os livros dedicados a temas ou períodos específicos dessa história. A pesquisa está possibilitando também descobrir novos títulos que deverão ser incorporados à listagem inicial: Dr. Bento C. Freitas, Evolução histórica do ensino no Brasil (1752-1930) (Edições do autor, s/d); Hélio Vianna, Synthese de uma história da educação no Brasil. (In: Formação brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1935, p. 223-253). Jair Fonzar, Pequena história da educação brasileira: tradicionalismo e modernismo - duas tendências que marcam a filosofia pedagógica brasileira. (Curitiba, Scientia et Labor, Folha de Rosto, 1989).

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esquecidos pela recente produção na área, que, no entanto, tiveram destaque ímpar na difusão desses conteúdos junto aos cursos de formação de professores primários e secundários. É espantoso, por exemplo, que Theobaldo Miranda Santos, autor de Noções de História da Educação, publicado pela Companhia Editora Nacional e que alcançou, de 1945 a 1964, dez edições consecutivas sem qualquer alteração significativa, tenha ultrapassado a tiragem de 15 milhões de exemplares apenas no que diz respeito a suas publicações lançadas pela Editora Agir.3 Algumas editoras que lançaram compêndios de história da educação nas primeiras décadas do regime republicano não mais existem. É o caso da Pongetti, por exemplo. De qualquer forma, a consulta aos arquivos das editoras ainda em plena atividade, se isso for possível, é tarefa necessária que remeterá à discussão da política e das práticas editoriais interessadas não só em responder a demandas específicas provenientes do público leitor, mas, em determinadas conjunturas, voltadas incisivamente para a criação desse público; entre essas, destacamos em particular a Companhia Editora Nacional e a Editora Vozes. Permitiria também avaliar o papel de certos órgãos e comissões governamentais que traçaram um percurso para a política do livro didático no país. Lembramos, principalmente, a necessidade de se examinar o papel da Comissão Nacional do Livro Escolar, criada em 1938, e que promoveu não só a revisão das obras didáticas no país, mas controlou a sua vinculação e distribuição junto às escolas públicas, visando, dessa forma, forjar uma opinião atrelada ao poder autoritário do Estado. A equipe vinculada ao projeto trabalha, nesta fase da pesquisa, com 20 livros produzidos no Brasil, realizando levantamentos sobre autor (nome completo, data de nascimento, formação, títulos, atividades profissionais), livro (título, ano da pu-

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Informação do editor Candido Guinle de Paula Machado (Jornal do Brasil, 21/03/1971).

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blicação, número de edições e modificações a cada reedição, dados pertinentes ao prefácio, apresentação e índice, fichamento do texto, resenhas e críticas existentes, recorrência de citação entre os pares da mesma área) e contexto do livro (dados conjunturais relativos ao período de sua emergência). Esta fase da pesquisa ainda está em processo, mas a leitura do material fichado até o momento permite identificar a produção de religiosos e leigos católicos, de médicos, de técnicos educacionais, de políticos profissionais e professores universitários. Esta classificação não é exclusiva no caso de alguns autores, os quais foram, no entanto, inseridos numa ou noutra categoria, dependendo da predominância e importância que as características nelas implícitas assumem no conjunto da produção intelectual e da identificação de cada autor enquanto profissional.4

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Entre os religiosos e leigos católicos, temos: Madre Francisca Peeters e Madre Maria Augusta Cooman, Pequena história da educação (São Paulo, Melhoramentos, 1936); Theobaldo Miranda Santos, Noções de história da educação (São Paulo, Nacional, 1945); Ruy de Ayres Bello, Esboço de história da educação (São Paulo, Nacional, 1945); José Antonio Tobias, História da educação brasileira (São Paulo, Juriscredi, 1974). Entre os médicos: José Ricardo Pires de Almeida, L’instruction publique au Brèsil (Rio de Janeiro, G. Leuzinger & Filhos, 1889); Júlio Afrânio Peixoto, Noções de história da educação (São Paulo, Nacional, 1933) e Raul Briquet, História da Educação — Evolução do pensamento educacional (São Paulo, Renascença, 1946). Entre os técnicos educacionais: João Roberto Moreira, Educação e desenvolvimento social no Brasil (Rio de Janeiro, CEPAL, 1960) e Lauro de Oliveira Lima, Estórias da educação no Brasil — De Pombal a Passarinho (Rio de Janeiro, Ed. Brasilia/Rio, s/d). Entre os políticos profissionais: Raul Alves, Esboço histórico e crítico geral da educação (Rio de Janeiro, Pongetti, 1929) e Arnaldo Niskier, Educação brasileira: 500 anos de história — 1500-2000 (São Paulo, Melhoramentos, 1989). Entre os professores universitários: Ângelo Salvador, Cultura e educação brasileiras (Petrópolis, Vozes, 1974); Manfredo Berger, Educação e dependência (Porto Alegre, Difel, 1976); Fernando de Azevedo, A cultura brasileira (São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL, 1976); Maria Glória de Rosa, A história da educação através dos textos (São Paulo, Cultrix, s/d.); Otaíza de Oliveira Roma-

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De um modo geral — e este é um aspecto marcante no inventário em curso —, em sua esmagadora maioria, os livros selecionados aparecem como casos pontuais e oportunos dentro das trajetórias intelectuais dos seus autores, os quais apenas esporadicamente assumem o papel de historiadores da educação, lançando compêndios que engrossam uma bibliografia extremamente diversificada e que inclui textos para teatro, literatura, didática, filosofia, sociologia, geografia, biologia, psicologia, estrutura e funcionamento do ensino, administração escolar, educação física, textos especializados da área médica, odontológica e de legislação, técnicas comerciais, religião, gramática e cartilhas. Nos livros escolhidos, o título, as raras ilustrações, a forma de organização dos assuntos ou as lacunas temáticas, a bibliografia, os anexos e os apêndices podem constituir objetos de interrogação reveladores de certas formas de narrar a história e de conceber a formação docente. Em parte deles, a história da educação brasileira aparece em capítulo específico ao final da publicação ou como apêndice. Alguns trazem em anexo os programas das escolas normais, segundo as circulares ministeriais em vigor. Os títulos por si sós mereceriam um estudo pormenorizado, uma vez que, sendo um dos aspectos decisivos para a chamada e venda do livro, manifestam uma certa imagem dos leitores a que se destinam e fornecem indicações dos recortes a que submetem a área de conhecimentos na qual se inserem. No primeiro caso, predominam os esboços, as noções e as pequenas histórias que pressupõem um público leitor iniciante ou com exiguidade de

nelli, História da educação no Brasil (Petrópolis, Vozes, 1978); Maria Luiza Santos Ribeiro, História da educação brasileira (a organização escolar) (São Paulo, Cortez & Moraes, 1979); Nélson Piletti, História da educação (São Paulo, Ática, 1986); Maria Lúcia de Arruda Aranha, História da educação (São Paulo, Moderna, 1989) e Paulo Ghiraldelli Jr., História da educação (São Paulo, Cortez & Autores Associados, 1990).

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tempo para a leitura. No segundo caso, há definição das perspectivas privilegiadas, seja o pensamento educacional, seja a organização escolar.5 Chamam a atenção, sobretudo, certos estereótipos publicitários que um vocabulário recorrente revela. Assim, a história da pedagogia é sempre apresentada no singular (“a história”). O único plural é irônico (“estórias”). É evolutiva (“da Antiguidade aos nossos dias”, “de 1500 a 2000” etc). Algumas vezes, localizada (“no Brasil”). Poucas vezes demonstra engajamento, como quando, por exemplo, remete o debate ao desenvolvimento social, à dependência ou à cultura. Para nossa pesquisa, no ponto de partida da apreciação dos títulos está a concepção não só da sua fidelidade aos conteúdos que encerram, mas também da sua função de suporte, ao lado desses mesmos conteúdos, para certas concepções ideológicas. Muito se poderia conjecturar sobre os aspectos sumariamente apresentados até o momento, mas é oportuno aguardarmos o avanço da pesquisa, que nos possibilitará uma reflexão conseqüente. O que apontamos, no entanto, é suficiente para colocar desde já uma indagação: existiria, de fato, uma historiografia da educação? Esta pergunta pressupõe uma teoria explicativa acerca da produção historiográfica, o que não conseguimos ainda clarear em nossas leituras e nem temos condições, no momento, de elaborar. Por este motivo, esclarecemos que o termo “historiografia” é aqui entendido como o

conjunto de trabalhos tidos consensualmente como sendo de “história da educação”.6 Sem condições de apresentar um ponto de vista mais acabado sobre uma possível teoria da historiografia, permitimo-nos apenas ensaiar uma hipótese sobre a historiografia da educação produzida no Brasil para os cursos de formação docente. Ela é expressão do registro da permanência dos valores de uma civilização cristã. Apesar das concepções teóricas, da formação e dos pertencimentos institucionais de seus autores, a história da educação difundida entre os professores primários e secundários tem uma função e um efeito doutrinário que se prolonga e se atualiza, revelando o peso da influência religiosa apesar de todo o movimento de secularização da sociedade e do Estado a partir da implantação do regime republicano. Esta hipótese pode parecer trivial quando considerada a produção ligada aos momentos iniciais desse regime até a década de 60, já que até então predominavam, se considerarmos apenas o número de reedições das obras de história da educação em seu conjunto, os lançamentos de autores religiosos e leigos afinados com a doutrina da Igreja católica. Por outro lado, pode parecer forçada se considerarmos a relativa diversidade da produção emergente na década de 70 e até mesmo das décadas de 80 e 90, quando grande parte do que se escreveu

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Sobre a importância da análise dos títulos, Roger Chartier (1976, p. 109) mostra que: “considerar a soma dos títulos de um período de tempo é atribuir-lhe um estoque de vocabulário aceito na emanação lúcida das noções que recobre. As ausências são tão pertinentes porque revelam uma ignorância, a falta de um conceito ou o peso de uma proibição quando o campo de estudo escolhido é também sensível à censura social, como as noções relativas ao amor e à sexualidade”. Chartier também mostra que é possível, num projeto ambicioso, tratar o conjunto de títulos como uma vasta lista de enunciados em que a palavra tem interesse apenas em função de sua posição na totalidade do campo lexical em que se encontra (idem).

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Para José Roberto Amaral Lapa, o ciclo do conhecimento percorre um circuito ininterrupto que vai do objeto à crítica da avaliação que se produziu sobre seu conhecimento. Assim ele distingue: o objeto do conhecimento histórico (História); o conhecimento histórico, que resulta do processo de reconstituição, análise e interpretação daquele objeto; a historiografia, que vem a ser a análise crítica do conhecimento histórico e historiográfico e do seu processo de produção. Esta análise seria também um conhecimento que equivaleria a um segundo nível de realidade (1981, p. 19). Esta distinção do autor não parece ser rigorosamente seguida por ele mesmo no seu texto. Decidimos, neste trabalho, sem entrar no mérito desta discussão, considerar historiografia como o estudo do evento histórico, mesmo que este estudo não seja, boa parte das vezes, assinado por historiadores.

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foi contribuição de professores ligados aos cursos de pós-graduação em educação no país, que optaram predominantemente por uma matriz filosófica materialista de interpretação da realidade. Eis um ponto que vale a pena aprofundar. As primeiras questões a serem explicitadas são: quais indícios estão sendo procurados e encontrados nas leituras sucessivas dos livros e na pesquisa bibliográfica e arquivística que apontam para o registro da permanência dos valores de uma civilização cristã? Que valores são esses? Por enquanto, a maior evidência emerge dos próprios textos. Os historiadores da educação, com raras exceções, posicionam-se como quem constata. Apagam a diferença entre empiria e reflexão. Parecem convictos de que a descrição de uma série de eventos garante por si a constituição da história da educação enquanto um continuum. Esta continuidade emerge de um conjunto de enunciados que não distingue a história da educação da história da civilização ou da história do país (no caso, o Brasil). O efeito de continuidade remete à concepção de unidade. É nela e a partir dela que a periodização aparece subsumida à cronologia pura e simples, ou sofrendo recortes a partir de indicadores econômicos e políticos que não têm seu caráter interpretativo explicitado. O tempo histórico da educação, em todos os compêndios, é o tempo linear. A imagem da linha como expressão de uma sucessão contínua de momentos, presente na concepção cristã de tempo, foi aquela que se impôs gradativamente na civilização européia, distinguindo-se não só da perspectiva antiga, rotativa e exclusivamente voltada para o passado, mas também da perspectiva judaica, incisivamente dirigida para o futuro. O tempo histórico do cristianismo, na acepção de Gourevitch, que retomamos neste texto, é específico por admitir a evolução e a mudança. É dramático, pois narra a história terrestre como história da salvação da humanidade, na qual a vida é vivida em dois planos: o dos eventos empíricos e o da prescrição divina. É percebido como fato psicológico, como experiência interior da alma. Por oposição ao tempo pagão e ao tempo judaico, o

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tempo cristão valoriza da mesma forma o passado e o futuro (Gourevitch, 1975, p. 263-283). Esta valorização é explicitada por Júlio Afrânio Peixoto na introdução do seu Noções de história da educação (1933), quando afirma que a educação olha o futuro, futuro esperado ou temido, no qual se configura a resolução da experiência anterior do passado humano. Para ele, o presente está reduzido à ponta extrema do passado (Peixoto, 1942, p. 9). Presos ao tempo linear, os livros de história da educação examinados constroem seu conteúdo a partir de dois eixos: a organização escolar e o pensamento pedagógico. O primeiro também define não só um lugar privilegiado a partir do qual se registra a memória educacional (o Estado), mas também as fontes privilegiadas para sua reconstituição (os instrumentos legais e normativos), além de conferir um tratamento legalista à narrativa. O segundo eixo elege a evolução das idéias pedagógicas como conteúdo desta história, compila dados biográficos de educadores selecionados e confere um tratamento tipológico à narrativa, isto é, o autor afirma-se como alguém que escreve não com a intenção de expor fatos e sim com o intuito de descrever tipos ou modelos de educação e de educadores. Que motivos teriam levado nossos autores a elegerem estes dois eixos para a constituição dessa disciplina escolar e de que forma ambos se fixaram no conjunto dos livros em exame como dois domínios de significado? Em que momento esta definição ocorreu? Para além da evidência dos textos, das redes de solidariedade e ruptura que se tecem entre eles e que a equipe de pesquisa muito vagarosamente vai mapeando, particularmente através do confronto entre as obras, para avaliar se os autores se citam e de que maneira o fazem, outros indicadores parecem reforçar a permanência dos valores cristãos nos trabalhos lidos. Um inquérito realizado pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, do antigo estado da Guanabara, em maio de 1961, com o intuito de colher opiniões dos chefes de distrito, diretores e subdiretores de escolas primárias, responsáveis pelo expediente das escolas elementares sobre o curso de

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formação do professor primário, entre vários aspectos, examinou a opinião de 600 profissionais sobre os objetivos dos programas de ensino. As respostas deste questionário revelam que 99% dos entrevistados apontaram como função da disciplina Fundamentos da Educação fornecer aos futuros professores o conhecimento dos objetivos do ensino elementar na civilização cristã e democrática. Não só o conhecimento, mas também os hábitos, atitudes e interesses a serem interiorizados deveriam corresponder a esta projeção de sociedade segundo a apreciação de elementos experimentados e que haviam atingido as mais altas funções na educação primária da Guanabara. Entre os assuntos que, por certo, mereceriam estudo aprofundado, segundo as respostas colhidas pelo instrumento de avaliação, destaca-se a origem e a evolução dos problemas da educação brasileira (MEC/INEP, 1962, p. 127). O dado que mais chama atenção neste inquérito é justamente o alto índice de reconhecimento deste objetivo. A possibilidade de uma análise comparativa do número de edições e, sobretudo, de tiragens dos livros de história da educação em circulação nos Institutos de Educação e Escolas Normais, nas décadas de 30 a 60, relacionada à obtenção de dados sobre a expansão desse grau de ensino a partir da década de 40, e do peso que nela assumiram as iniciativas confessionais, poderia criar um contorno mais preciso do alcance dessa produção da história da educação e do seu sentido como disciplina escolar. Estamos fortemente inclinados a supor que, ainda na década de 60, nossos livros de história da educação reforçavam o ideal educativo por excelência já configurado no Diálogo da conversão do gentio, do padre Manoel de Nóbrega, escrito em 1558 (1557?) e que Serafim Leite considera a primeira obra literária brasileira. Que ideal seria esse? A formação de um país grande, uno e cristão. Com um acréscimo: essa formação, no nosso século, dependendo em grande parte das mulheres, principais destinatárias desses cursos, exigia que elas se tornassem guardiãs da consciência moral da sociedade. Teria a relativa diversificação da história da educação, produzida a partir da década de 70, efe-

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tuado uma ruptura com relação a esse molde cristão? Nossa posição, até o momento, é a de que não houve propriamente uma ruptura. A produção surgida nesse período, seja ou não proveniente dos programas de pós-graduação em educação, move-se ainda dentro mesmo molde, ainda quando pretende fazer-lhe a crítica e criar novos conteúdos ideológicos. Se as tentativas de distanciamento de uma concepção civilizadora cristã já incorporam a compreensão das formas simbólicas e institucionais da educação escolarizada como campo de lutas, mesmo quando constroem seus argumentos com o auxílio de certas contribuições provenientes de disciplinas como a geografia, a história, a sociologia ou ainda a filosofia não tratam porém a escola a partir de um descentramento dela própria. A educação é concebida como um bloco monolítico a reboque de uma contextualização que tem seus centros ancorados em aspectos economicos e políticos. Os historiadores que não se preocupam em contextualizar operam como se extraíssem a educação do “resto” da história e, desejando fazer apenas história da educação, não realizam nem história, nem história da educação. Se o saber religioso parece não mais marcar esta história, a motivação religiosa ainda está na base da trama social que forja o historiador da educação e até, em certas circunstâncias, das condições pelas quais ele realiza o seu trabalho de historiador. Com relação à motivação, escolhemos trecho do depoimento de uma das nossas autoras mais lidas: Maria Luiza Santos Ribeiro.7 Seu livro História da educação brasileira: a organização escolar, cuja primeira edição é de 1978, teve, até o momento da redação deste texto, doze edições, sendo a última de 1993. Diz ela: Sou filha de um médico-sanitarista que, depois de formado, conheceu um colega, também sanitarista, através do qual foi “encantado”, do ponto de vis-

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Reiteramos nossos agradecimentos à solidariedade de Maria Luiza Santos Ribeiro, que teve a gentileza de responder ao nosso questionário por escrito.

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ta filosófico, pelo materialismo histórico-dialético e, do ponto de vista político, pelo comunismo.

Este amigo do pai de Maria Luiza Santos Ribeiro, Dr. Aldino Schiavi, italiano de nascimento e de formação, segundo ela nos relata, exerceu influência ideológica considerável sobre seus amigos mais diletos. A autora afirma ter tido, por intermédio dele, o “privilégio de conhecer a simplicidade dos sábios” e, por intermédio de seu pai (apesar da influência religiosa protestante de denominação batista da mãe), ter tido a oportunidade de abraçar o materialismo histórico. Meu pai é que, muito dogmaticamente, [me] indicou o caminho do materialismo histórico-dialético e do comunismo. Desde os treze ou quatorze anos tive que, sentada ao lado dele, escutar longas preleções que iam da origem do mundo ao futuro da humanidade... O embate contra a religião causou-me um certo receio... Mas, por outro lado, algumas idéias, desde logo, despertavam-me interesse, uma vez que parecia que essa versão filosófico-política, que meu pai tentava impor-me pela via cerrada da doutrinação, fazia com que encarássemos com mais coerência um princípio cristão que, para mim, era de fundamental importância — o princípio do amor ao próximo como a nós mesmos —; princípio este que dava sentido à adoção de uma opção religiosa.

O depoimento de Maria Luiza Santos Ribeiro é significativo pois traz para o primeiro plano a influência dos médicos sanitaristas que, aliás, foram de fato nossos primeiros historiadores da educação, como, por exemplo, José Ricardo Pires de Almeida, autor de História da instrução pública no Brasil (1500-1889), obra originalmente escrita em francês e republicada por ocasião do seu centenário, em 1989, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP). Voltemos ao depoimento da autora. Além de único, ele é importante ainda por revelar, na sua própria interpretação, num primeiro momento, o conflito entre a formação religiosa da mãe e as concepções filosófico-políticas do pai, conflito que aparece conciliado e finalmente supe-

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rado na sua trajetória pela opção de uma certa matriz filosófica de leitura da realidade. Chamamos a atenção para o fato de que a experiência pessoal de Maria Luiza Santos Ribeiro remete à uma questão teórica. Quem, em nossa perspectiva, melhor formulou a questão teórica à qual nos referimos foi Michel de Certeau em seu livro Artes de fazer — a invenção do cotidiano (1994, p. 277-291), quando reflete sobre o significado e o processo de constituição das credibilidades políticas nas sociedades modernas. Ao entender por crença menos o seu objeto e mais o investimento das pessoas em uma proposição, e realizar uma espécie de arqueologia das representações da credibilidade, o autor efetiva uma instigante análise entre as estranhas e antigas relações dos dois “depósitos” tradicionais de crenças acionados para injetar credibilidade nos corpos individuais e sociais: as organizações religiosas e políticas. Em sua análise, Michel de Certeau mostra o paulatino e sucessivo deslocamento da energia das crenças nas sociedades pagãs para o cristianismo, deste para a política monárquica, desta política para as instituições republicanas, da educação pública aos socialismos. Segundo ele, por um processo contínuo de “conversão”, as energias da crença foram sendo transportadas e transformadas em convicções. O que não era transportável, ou não fora ainda transportado, recebia o rótulo de superstição (1994, p. 279). O que nos interessa em sua rica e complexa reflexão, que culmina com o exame das táticas do “fazer crer” usadas pela oposição de esquerda na França, é sua demonstração de como as organizações políticas tomaram o papel das Igrejas enquanto lugares das práticas crentes. Sem entrar no detalhamento da sua análise, o que destacamos é a sua afirmação de que a distinção entre o temporal e o espiritual, como duas jurisdições diversas, continua inscrita estruturalmente na sociedade francesa, mas — e isso é importante — agora dentro do sistema político. Afirma: O lugar antigamente ocupado pela Igreja ou pelas Igrejas em face dos poderes estabelecidos é ainda

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reconhecível, há uns dois séculos, no funcionamento de uma oposicão assim chamada de esquerda. Também na vida política, uma mutação dos conteúdos ideológicos pode deixar intacta uma “forma social” [...]. Seja lá como for o passado, e caso se deixem de lado as comparações demasiadamente fáceis (e apolíticas) entre os traços psicossociológicos característicos de toda militância, existe funcionalmente, em face da ordem estabelecida, uma relação entre as Igrejas que defendiam um outro mundo e os partidos de esquerda que, desde o século XIX, promovem um futuro diferente (De Certeau, 1994, p. 284).

O que há de semelhante, segundo Michel de Certeau, nas características funcionais entre as Igrejas e os partidos de esquerda é que a ideologia e a doutrina não lhes são dados pelos detentores do poder. Tanto nas primeiras, como nos segundos, o projeto de outra sociedade tem o efeito de priorizar o discurso (seja reformista, seja revolucionário ou socialista) contra a fatalidade ou a normalidade dos fatos. Ainda — e isso é, ao nosso ver, fundamental — tanto as Igrejas quanto os partidos de esquerda legitimam, seja pelos valores éticos, seja pela verdade teórica ou até pelo martirológio, um poder cuja legitimidade não virá mais do mero fato da sua existência. Há aí, portanto, um papel decisivo das “técnicas do fazer crer”. O que o autor quer assegurar com essas afirmações é que a analogia apontada tem razões estruturais. Ele não está pretendendo fazer uma psicologia da militância ou uma sociologia crítica das ideologias. Está querendo demonstrar, como afirma, a lógica de um “lugar” que produz e reproduz, como seus efeitos, as mobilizações militantes e as táticas do “fazer crer” (1994, p. 285). À luz das reflexões de Michel de Certeau, retomemos o depoimento de Maria Luiza Santos Ribeiro para avançarmos, mesmo que muito modestamente, além dele. E vamos retomá-lo no ponto em que se depreende a superação do seu conflito entre a influência religiosa da mãe e a opção política do pai. Esse traço específico de superação de conflito

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entre opções religiosas e políticas, seja dos pais — como no caso de Ribeiro — ou de professores e outros agentes sociais, não estaria presente nas trajetórias de outros historiadores da educação? Quais as relações entre cristianismo e marxismo, particularmente se considerarmos as transformações pelas quais a Igreja católica ou certas denominações protestantes passaram em nossa sociedade? Em que medida tais tranformações afetaram os autores dos livros de história da educação que examinamos? Não temos ainda respostas para essas perguntas. Gostaríamos, no entanto, de trabalhar a segunda questão, mesmo que parcialmente, pelo pano de fundo que essa tentativa de resposta pode criar no exercício que fazemos de problematizar a hipótese construída no âmbito da pesquisa. Do ponto de vista teórico, a improvável hipótese de conciliação dos conteúdos do cristianismo e do marxismo foi objeto de debate em revistas brasileiras de orientação marxista, como por exemplo Encontros com a Civilização Brasileira, no final da década de 60 e 70. Num número dessa revista, um artigo traduzido de Lucio Lombardo Radice, na ocasião membro do comitê central do Partido Comunista Italiano e autor de L’Educazione della mente, ao examinar o que denomina de fatos novos no pensamento e na consciência religiosa, chega a admitir a possibilidade da presença de um potencial revolucionário na religião em certas circunstâncias históricas e a examinar o modo como certos valores do cristianismo(como a paz entre os povos, a solidariedade, a fraternidade, a verdadeira liberdade e igualdade humanas) encontram correspondência nos valores socialistas. O autor, inclusive, declara: Para nós (marxistas), por certo, não tem nem mesmo sentido a problemática da “salvação da alma” que atormenta o cristão. Mas existe também na nossa ética um “estado de graça” de completa realização da nossa individualidade no movimento histórico das massas obreiras sem o qual a nossa individualidade não teria nem mesmo sentido; já tivemos também nós os nossos “santos” e quantos!, os companheiros que sacrificaram a própria vida pela redenção dos oprimi-

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dos, por um “mundo de irmãos, de paz e de trabalho” [...]. Uma nobre mulher cristã, mãe de um nosso companheiro comunista e materialista morto como “santo” na Resistência [ao fascismo], disse-me uma vez: “Ontem, na missa, no momento da elevação pensei: naquele cálice há também um pouco do sangue do meu filho”. Que diremos da fé cristã na “comunhão com o Redentor” sentida desta maneira: que é uma crença instilada nos ingênuos pelas classes possuidoras para conservar os seus privilégios? (Radice, 1967, p. 16).

Se Radice admite a incompatibilidade entre o materialismo ateu do marxista e a fé religiosa dos cristãos, considera também que a moral cristã plenamente vivida é diferente, mas não antagônica, daquilo que denomina de uma ética revolucionária comunista plenamente praticada. É deste ângulo de visão que marxistas brasileiros olharam, no final dos anos setenta, as modificações na Igreja católica no quadro geral da vida política brasileira. É da década de 70 a produção de dois textos que foram objeto de análise das relações entre cristianismo e marxismo por Leandro Konder: “Marginalização de um povo”, documento escrito e assinado por sete bispos do centro-oeste do Brasil, em 1973, e “Exigências cristãs de uma ordem política”, texto denunciador da opressão do povo brasileiro, de 1977, assinado por 217 bispos da Igreja católica (Konder, 1978). Sem nos determos sobre o significado destes textos, o que gostaríamos de enfatizar, à luz da notável reflexão que Roberto Romano faz das relações entre Estado e Igreja católica no Brasil, é que o choque da Igreja com os governos militares nos anos 60 e 70 foi o momento de um processo mais amplo da sua afirmação na base da sociedade, o que implicou a união — no seu discurso (do qual os documentos citados são exemplos) — entre a pregação de valores morais e religiosos e a necessidade de reformas sociais. Esta pregação foi acompanhada de uma penetração racional da Igreja na cultura como arma para instalar-se na “consciência do povo”. A Revista Vozes e a Revista Eclesiástica Brasileira, sob o comando do cardeal Evaristo Arns,

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que aliás cunhou essa expressão, formaram teoricamente os quadros clericais e laicos que passaram a movimentar a política de massas católica nesse período. O ponto principal da prática pastoral da Igreja brasileira a partir daí foi, segundo Romano, a transferência do lugar da eficácia político-religiosa, na medida em que a doutrina eclesiástica apropriou-se dos conteúdos das ciências humanas como instrumento de interpretação dos “sinais dos tempos”. Sua prática pastoral, portanto, passava a ser norteada por dois vetores. De um lado, a hermenêutica renovada da Tradição e da Revelação. De outro, o acolhimento das teorias sociológicas e econômicas consideradas ponta de lança da cultura contemporânea. Infelizmente não localizamos estudos analíticos tão elaborados como os de Romano, que nos ajudassem a vislumbrar o papel das denominações protestantes no que diz respeito à sua prática pastoral no período em questão. Obtivemos, porém, algumas informações interessantes, que necessitam ser aprofundadas. Através delas podemos supor, por exemplo, que a apropriação dos conteúdos das ciências sociais e/ou humanas numa prática pastoral mais ampla não foi prerrogativa exclusiva da Igreja católica.É possível admitir que organizações ligadas a denominações protestantes (mas não só a elas) tenham tido grande influência, via convênios, na formação de pesquisadores em educação, no início dos anos setenta, alguns dos quais, mesmo sem ter a pretensão de historiar as nossas organizações educativas, realizaram estudos que, mesmo com outros aportes, foram publicados, tornando-se referência para os educadores nas universidades brasileiras. Alguns destes trabalhos foram lidos e indicados em cursos como obras de história da educação. É o caso de Educação e dependência (1976), livro de autoria de Manfredo Afonso Berger. O curriculum vitae desse autor nos mostra que, além da sua passagem, em escola de nível médio, pelo Curso Humanístico do Instituto da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, ele obteve uma bolsa de estudos, no início da década de 70, junto

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à Organização Ecumênica Alemã, que, como nos informou Enno D. Liedke Filho, manteve um convênio com o Curso de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por meio do qual distribuía bolsas de estudos, no Brasil e no exterior, a partir de 1971. Este convênio teve grande importância pois objetivava a formação pós-graduada de professores e egressos do curso citado. Ele é um exemplo do que afirmamos anteriormente, isto é, de que a motivação religiosa aliada ao objetivo de uma penetração racional da(s) Igreja(s) na cultura ofereceu sua contribuição no sentido de forjar, em certas circunstâncias, as condições de trabalho e a produção dos pesquisadores em educação no país. Graças à bolsa de estudos recebida, Manfredo Berger pôde deslocar-se para a Alemanha com o apoio (orientação?) de Achim Schrader, e produzir sua tese de doutoramento transformada em livro, cuja referência explícita são as macro-explicações e interpretações propostas pela sociologia do desenvolvimento latino-americano. Dentro delas, o processo de secularização da sociedade via educação é a pedra de toque da própria definição das mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira. Difíceis de visualizar, estas imbricações — neste artigo apenas indicadas —, entre Igreja(s) ou órgãos a ela(s) ligados e instituições públicas de ensino, entre reflexões sociológicas e preocupações e leituras históricas, entre formação religiosa e política dos autores estudados precisam ser urgentemente investigadas. É o que a nossa pesquisa sugere. De qualquer forma, se considerarmos apenas as mudanças de performance apontadas por Romano com relação à Igreja católica brasileira, consideramos que elas muito iluminam a compreensão do processo de divulgação de certas obras no âmbito da história da educação lançadas por editoras católicas. Neste sentido, consideramos especialmente significativa a publicação de Cultura e educação brasileiras (1971), de autoria de Domingos Ângelo Salvador, e História da educação brasileira (1978), de autoria de Otaíza de Oliveira Romanelli, que já

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conta com aproximadamente 14 edições. Ambos os livros foram lançados pela Editora Vozes. Tendo presente que as modificações na performance tanto da Igreja católica como das denominações protestantes na vida política brasileira constituem a questão significativa das várias conjunturas em que os livros de história da educação foram produzidos, resta examinar a sutil articulação dessas mudanças com a criação e expansão da pós-graduação em educação nos anos 70 e 80. Em que medida, neste período, a pós-graduação em educação teria formado quadros que vieram a contribuir, através da sua produção, para a já mencionada transferência do lugar da eficácia político-religiosa na prática pastoral da Igreja ou das Igrejas? Esta questão parece-nos crucial por incorporar o debate das relações entre cristianismo e marxismo, focalizando os seus compromissos éticos com a transformação da sociedade e fazendo do protesto e da denúncia a possibilidade de acolher impulsos mobilizadores na “luta contra a injustiça”, luta esta que se fundiria, na percepção de Leandro Konder, independente das motivações subjetivas dos seus protagonistas, à luta de classes. Esta percepção de Konder nos impulsiona a pensar na possibilidade que Michel de Certeau nos apontou. A de que as Igrejas ou as religiões e mesmo as formações políticas, e num nível mais restrito, acrescentamos nós, as organizações políticas, podem ser compreendidas como variantes sociais das relações possíveis entre o ato de crer e aquilo em que se crê. Dentro dessas variantes, os funcionamentos da crença e do fazer crer se desdobram em táticas permitidas graças às exigências de um lugar, de uma posição ou das pressões históricas. Dentro delas, não importa agora sua peculiaridade, estão presentes dois dispositivos através dos quais a dogmática pode se impor à crença. O primeiro é a pretensão de falar em nome de um real que, supostamente inacessível é, ao mesmo tempo, o princípio daquilo em que se crê (uma totalização) e o princípio da ação de crer. O segundo é a capacidade de um discurso autorizado por um “real” converter-se numa rede de elementos organizadores de

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práticas ou, como Michel de Certeau afirma, em artigos de fé (1994, p. 285-286). Não temos, no momento, dados empíricos que revelem as escolas de formação secundária e universitária dos alunos, muitos dos quais, atuantes nesses cursos nas décadas de 70 e 80, obtiveram grande parte de sua formação em seminários. Seria preciso verificar ainda, mesmo entre aqueles que não os tenham freqüentado, que parcela esteve ligada a movimentos leigos de cunho social e educativo patrocinados pela Igreja católica, ou denominações protestantes nas décadas de 60 e 70. Supomos que essas informações, se obtidas, possam oferecer subsídios concretos à tese do deslocamento das técnicas do “fazer crer”, fornecendo indicadores que ajudem a compreender a conversão ou re-significação das crenças originadas em instâncias religiosas, ou elas ligadas, em crenças político-ideológicas cultivadas nas práticas acadêmicas desses cursos. Ora, não constituiriam as práticas educativas em nossa sociedade (e em qualquer outra) uma constelação de situações em que os discursos autorizados se convertem numa rede organizadora de suas ações ou artigos de fé? E não teriam se constituído os nossos programas de pós-graduação em educação, apesar da riqueza da sua reflexão e da sua elaboração crítica, em instâncias de produção de discursos autorizados que tiveram nas leituras, nem sempre problematizadoras do marxismo, instrumentos poderosos de metabolização das questões pedagógicas e educacionais? Se Leandro Konder resgatou os impulsos generosos presentes na mobilização de cristãos e marxistas, como já vimos, interessa-nos redesenhar, ainda que precariamente, a face menos luminosa desses mesmos impulsos e que, em nome da “luta contra a injustiça”, engendraram uma espécie de transformismo conservador, extremamente poderoso, que fez do dogma a fôrma privilegiada de apropriação das categorias marxistas dentro dos cursos de pós-graduação em educação. De fato, parte significativa da literatura pedagógica de inspiração marxista que emergiu nos últimos trinta anos não tem tido disposição para en-

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xergar a riqueza de significados dos próprios objetos que estuda. Uma leitura dogmática e simplificadora do marxismo, predominante nos cursos de pós-graduação em educação, contribuiu para criar uma estratégia discursiva que, associada a certos aspectos de retórica — o abuso do recurso da utilização do argumento de autoridade e a repetição contínua de certas expressõ·es polarizadas, como, por exemplo, “dominados e dominantes”, “conservadores e transformadores” —, criaram uma espécie de caixa de eco capaz de reforçar as convicções de quem escreve e extrapolar os limites da argumentação, tornando-se uma camisa-de-força que enquadra rigidamente a empiria na teoria. Como Shoshana Felman indica: Toute pratique répétitive véhicule una puissance d’hypnose, qui induit l’individu à des comportements sociaux ou mentaux stéréotypes dans lequels il abdique sa subjectivité [...] tout lieu comun, tout cliché, est en réalité une sorte de prière, fonctionant par le même mécanisme de répétition et de suggestion véhiculant dans la vie sociale la même puissance d’hypnose que celle des priéres dans la vie religieuse (Felman, apud Lopes, 1991, p. 83-84).

É como se os clichês da religião fizessem eco à religião dos clichês, arremata Felman. Que invisível e sutil rede de solidariedade pode existir entre assertivas religiosas e seculares, permitindo a transfiguração simbólica das primeiras nas segundas? O que estaria em jogo dentro dessa rede? Arriscamos uma resposta: a manutenção da fé na educação como símbolo do poder de intervenção no domínio das consciências. Em nome de que o conhecimento deve ser uma alavanca de transformação da sociedade que o produz, a versão dogmática do marxismo descartou o novo, conceptualizou o objeto antes de tê-lo efetivamente estudado, sem enfrentar, até porque não tinha condições de fazê-lo, o desafio da articulação teoria/empiria. Foi justamente a crença salvífica na transformação social que permitiu, em muitos casos, uma espécie de deslizamento das opções religiosas para o campo das opções político-ideológicas. Em ou-

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tras palavras, permitiu uma percepção mística do marxismo, através da qual o ideal cristão de uma nova ordem, de uma nova organização social surgiu desprovido do fundamento transcendente e cortado da raiz teológica da fé. O paradigma marxista funcionou, para muitos, como tese integradora que substituiu o suporte perdido da onipresença unificadora ou harmonizadora da divindade. Ao invés de uma direção de pesquisa, tornou-se o modelo interpretativo da realidade, a via apaziguadora da produção do conhecimento. A reflexão sobre suas limitações, hesitações e silêncios ficou seriamente comprometida em algumas práticas institucionais da pós-graduação em educação. É o que ainda se pode constatar, infelizmente, na produção de projetos de pesquisa e dissertações na área de educação em âmbito regional e nacional. O dogma se encarnou no clichê. Este termo, como salienta Maria Cristina Leandro Ferreira, vem sempre associado a ocorrências lexicais do tipo: lugar-comum, chavão, estereótipo. Os clichês circulam em diferentes classes sociais, atravessam gerações, reforçando uma unidade narrativa que tende a homogeneizar o que não é homogêneo. Eles seriam, de certa forma, contagiosos, representando ao mesmo tempo a plenitude e o esvaziamento de uma forma de dizer. Os clichês podem ser usados por adesão convicta, cumplicidade ou conveniência (Ferreira, 1993, p. 69-73). Quais seriam os clichês da nossa história da educação? Como os temos utilizado? Como romper com eles? Para desatar os sentidos da permanência fazse urgente uma análise dos nossos compêndios de História da Educação com o intuito não só de resgatar sua historicidade e as dos historiadores que os produzem, mas também para iluminar a historicidade dos processos de narrar. Isto é, trata-se de pensar como diferentes formas de narrar se instalam não apenas como possibilidade, mas como regra de narração para outros textos (Orlandi, 1993). A tentativa de desatar a pluralidade de sentidos dos livros de história da educação e os mecanismos que os constituem pressupõe admitir que eles são construídos mediante relações intratextuais

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(lógicas, lingüísticas), extratextuais (entre texto e conjuntura) e intertextuais (entre um texto e outros).8 Esta perspectiva tem levado nossa equipe de pesquisa a multiplicar os esforços para problematizar a hipótese inicial da investigação, aspecto que foi objeto de nossa exposição neste artigo, bem como estender o horizonte de leitura dos livros em exame e caminhar além deles, com a finalidade de descobrir relações significativas e repor o quadro de referência das obras estudadas, não só resgatando a sua peculiaridade, mas ultrapassando-a reflexivamente. Este tem sido o nosso desafio.

CLARICE NUNES é professora de História da Educação da Faculdade de Educação da UFF. Doutora em Ciências Humanas/Educação pela PUC/RJ e membro do GT de História da Educação da ANPEd, que coordenou pelo período de quatro anos. Livros publicados: Escola e dependência: o ensino secundário e a manutenção da ordem, Achiamé; Escola básica e cidadania; aprendizado e reflexão (org.), OEA/UFBa/EGBa; O passado sempre presente (org.), Cortez; Guia preliminar de fontes para a História da Educação Brasileira (coord.), INEP.

Referências bibliográficas BOURDIEU, Pierre, (1974). A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva. __________, (1968). Campo intelectual e projeto criador. In: Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar. CHARTIER, Roger, ROCHE, Daniel, (1976). O livro. Uma mudança de perspectiva. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre (orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves. __________, (1990). A história cultural (entre práticas e representações). Lisboa: Difel.

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Pode-se ter acesso a um exemplo do tratamento individual que cada livro tem recebido em nossa pesquisa no texto de nossa autoria intitulado “A instrução pública e a primeira história sistematizada da educação brasileira” (Nunes, 1995).

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Ensino e historiografia da educação

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O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai e a ação políticoeducativa dos mediadores Maria Stela Marcondes de Moraes Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense

Trabalho elaborado a partir dos capítulos VI, VII e VIII da tese de doutorado intitulada “No rastro da águas: pedagogia do Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai (RS/SC) - 1978/1990”, Departamento de Educação da PUC/RJ, março de 1994.

Introdução No processo de reorganização da sociedade civil, nos anos 80, a diversidade dos movimentos de trabalhadores rurais é um dos fenômenos mais impactantes. Eles chamam a atenção pela visibilidade que adquiriram e pelo que ensinam em termos das novas formas de exploração, expropriação, subordinação, expulsão e exclusão dos trabalhadores rurais. Neste quadro, destacam-se os movimentos dos trabalhadores rurais afetados pelas barragens construídas para irrigação ou para a implantação de usinas hidrelétricas. Os movimentos de resistência aos projetos de hidreletricidade são importantes não apenas por somarem forças na luta contra a expropriação, mas também pela sua capacidade de tocar em um dos pontos nevrálgicos do modelo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil: a produção de energia elétrica. Dentre as diferentes situações de barragens, em todo o país, o caso dos “atingidos” do Alto Uruguai (RS) ganhou destaque quando ficou patente a

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hegemonia dos dirigentes daquele movimento no interior do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens.1 A importância atribuída a este movimento foi reforçada pela escolha do Alto Uruguai para o estudo do potencial democrático dos movimentos sociais no campo por uma equipe de pesquisadores encarregada de desenvolver o Projeto Democracia e Desenvolvimento Rural, idealizado pelo prof. Jonathan Fox do Departamento de Ciência Política do MIT (EUA). Incorporada à equipe, participei da pesquisa sobre os quatro movimentos rurais daquela região: o Movimento Sindical, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais e o Movimento dos Atingidos por Barragens, ao

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O I Encontro Nacional dos Atingidos por Barragens ocorreu em Goiânia (GO), em 1988. Durante o II Encontro, em 1990, realizado em Brasília, foi formalizada a fundação do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens (MAB).

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qual dediquei atenção especial, por ser o objeto de estudo de minha tese de doutorado. Para entender aquele Movimento e sua organização, a Comissão Regional dos Atingidos por Barragens (CRAB),2 no contexto da democratização dos anos 80, foi necessário enfrentar o desafio de pensar questões de Ciência Política e outros temas que iam além do campo da educação popular. Era preciso conhecer a base social do movimento, o que requeria o resgate da formação da estrutura agrária do Rio Grande do Sul e das contradições engendradas pelo processo de colonização dos estados do Sul, principalmente da região do Alto Uruguai. A análise exigia, ainda, a compreensão da complexidade dos movimentos sociais no campo em pelo menos duas dimensões: 1. a das contradições criadas pelo processo de “modernização” da produção agrícola; 2. a da diversidade de formas com que a intervenção dos trabalhadores rurais vem traduzindo aquelas contradições em processos de construção de uma grande variedade de novos sujeitos sociais, com identidades e linguagens próprias. Além de situar o Movimento no conjunto das lutas no campo, foi preciso estudar seus determinantes específicos: as contradições da exploração do potencial hidrelétrico da Bacia do Rio Uruguai. Desbravamos temas como a formação do setor elétrico e as dimensões por ele assumidas no processo de desenvolvimento e oligopolização da economia brasileira.

O estudo daquele complexo de determinações mostrou que a implantação das barragens na bacia do Rio Uruguai sobrepõe-se a processos preexistentes e desencadeia um movimento simultâneo de afirmação/negação de novas e velhas identidades sociais em relação à própria especificidade da situação vivenciada (como é o caso das diferentes situações de barragens) e diante de identidades forjadas a partir de outras experiências (como as diversas frentes de luta dos trabalhadores rurais). Mas a identificação/reconhecimento de direitos, as representações de si mesmos e das forças antagônicas ou aliadas, bem como o processo de organização, constituição e expressão dos sujeitos sociais não se dão como resultados mecânicos da experiência vivida. A relação entre a vivência das contradições e a emergência dos movimentos sociais é quase sempre mediada pela intervenção dos chamados agentes de educação popular, ou “mediadores”, nos processos de socialização política, objetivados na dimensão político-educativa dos movimentos sociais, tema central deste trabalho3. A dimensão político-educativa dos movimentos sociais A dimensão político-educativa dos movimentos sociais se expressa através de processos informais e formais. É informal a socialização política individual e coletiva decorrente do engajamento e participação nos diferentes níveis de organização dos movimentos sociais. São os ensinamentos da

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A Comissão Regional dos Atingidos por Barragens (CRAB) é a organização representativa do Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai. Se inicialmente constituía-se de representantes dos municípios afetados pelas barragens de Itá e Machadinho, a partir de 1986 passou a representar o conjunto de 80 municípios gaúchos e catarinenses ameaçados pelo projeto de implantação de 22 barragens na bacia do Rio Uruguai. A partir de 1992 passou a chamar-se MAB/Região Sul. A pesquisa restringiuse à área afetada pelas duas primeiras barragens: Machadinho e Itá, no período de 1978 a 1990.

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Em se tratando de uma sociedade de classes, a definição de Educação Popular não pode limitar-se à participação e organização das lutas de resistência e afirmação de direitos. Deve, necessariamente, levar em conta a relação entre estas práticas “libertadoras” e as iniciativas inseridas em uma estratégia de dominação aberta ou de integração populista aos projetos das classes hegemônicas (Valla, 1986, p. 18; Ibañez, 1991, p. 7). A ênfase deste estudo recai, no entanto, sobre as práticas político-educativas ditas “libertadoras”.

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vida cidadã organizada na identidade de interesses e na luta por direitos. As ações político-educativas formais são práticas pedagógicas intencionais e sistemáticas que envolvem principalmente as lideranças e dirigentes dos movimentos, de um lado, e, de outro, a intervenção de mediadores como a Igreja Católica, os sindicatos, as entidades de “assessoria”. Em uma espécie de meio caminho entre o formal e o informal está a ação educativa dos dirigentes junto às bases dos movimentos. São as práticas de organização e participação interna, campo privilegiado para a construção de uma vontade coletiva voltada para a solidificação de uma nova cultura política, elemento fundamental da luta contrahegemônica. São as práticas formais e mais intencionais que, em grande medida, vão determinar os processos de informação, formação, organização e mobilização das bases sociais dos movimentos e moldar suas formas de luta e de constituição de diferentes sujeitos coletivos. Não queremos, com isto, estabelecer uma relação direta de causa e efeito entre “discursos” e “movimentos”4. A recíproca também é verdadeira e, muitas vezes, é a realidade das contradições e da luta social que se impõe, evidenciando a fragilidade teórica dos agentes e o distanciamento entre a “formação nos cursos” e a “formação na luta”, conforme distinção feita por um dos entrevistados. Ao longo da década, podemos distinguir três momentos na intervenção dos mediadores. O primeiro é marcado pela presença dos “setores progressistas” da Igreja Católica que, ao perderem a hegemonia, abrem espaço para a atuação das escolas sindicais, as quais vão dar a tônica do segundo momento. O terceiro se caracteriza pela chamada “formação técnica” que, a cargo de assessores especializados, enfatiza as necessidades imediatas.

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Este nos parece ser o caso da interpretação de Jorge Romano no texto Discursos e Movimentos: o efeito da teoria e a ação política dos trabalhadores rurais do sul do Brasil (Romano, 1988).

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A ação mobilizadora da Igreja popular (1978 a 1985) Também no Rio Grande do Sul e, especificamente, no Alto Uruguai, a Igreja Católica aparece como uma espécie de “nave-mãe” dos movimentos rurais, através da ação mobilizadora dos setores chamados “progressistas”.5 Com raízes históricas na “esquerda cristã” dos anos 50,6 parte desses setores vai constituir-se na chamada “Igreja popular”,7 cuja atuação se fundamenta nos princípios da “Teologia da Libertação”. A análise das entrevistas realizadas durante a pesquisa sobre os movimentos rurais no Alto Uruguai revela que: [...] pelo menos 90% dos quadros dirigentes e intermediários de todos os movimentos sociais, no primeiro período (1979 a 1986), “começaram a entender” pelas mãos da Igreja (Navarro, 1991, p. 4).

De fato, os processos de formação de agentes e lideranças comunitárias pelos “setores progressistas” desempenharam um papel destacado na mudança da visão conservadora das estruturas sociais, entre os agricultores, impulsionando as mobilizações que passaram a “agitar” o campo no Alto Uruguai. O voluntarismo e o espírito de militância de centenas de jovens que abraçaram a causa da construção da “nova sociedade” resultarão na organização simultânea, e pelas mesmas pessoas, de opo-

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Embora tenham muitos pontos em comum, é impossível homogeneizar as prioridades e orientações de agentes e assessores identificados com os “setores “progressistas”, “liberacionistas” ou adeptos da “Igreja dos pobres”. Sobre esta diversidade de posições, ver Novaes, 1993, p. 89-153. 6

A esquerda católica se constituía em um movimento vanguardista, de elite, movida por uma fé europeizada e secularizada que, ao enfatizar a ação política, tendia a se antagonizar, simultaneamente, com a religiosidade popular e com a hierarquia (Mainwaring, 1989, p. 94-95). 7

Sobre o processo de surgimento (1964/1973), desenvolvimento (1974/1980) e crise (1982/1985) da Igreja popular no Brasil ver Mainwaring, 1989, p. 82-282.

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sições sindicais, comissões provisórias de fundação do Partido dos Trabalhadores, núcleos de sem-terra, comissões de barragens, grupos de mulheres, de jovens e outros. O impulso para a “ação libertadora” deve-se à consolidação das posições mais “progressistas” que, entre 1977 e 1980, conseguem alargar espaços de atuação e liderança no interior da CNBB,8 ampliando-os ainda mais a partir de Puebla.9 O segredo da afirmação das posições reformistas progressistas estaria na maior clareza dos limites entre o político e o religioso (Mainwaring, 1989, p. 189). A Igreja popular valoriza o potencial libertador do “universo simbólico popular” (Novaes, 1993, p. 92) e tem uma ação pastoral mais próxima dos valores, das necessidades e da religiosidade populares, enfatizando a justiça social e a formação de lideranças de base (Mainwaring, 1989, p. 94-95). O ponto central desta prática educativa está na leitura da Bíblia sob a ótica do pobre, que possibilita descobrir o “Plano Divino da Salvação”, cujo aspecto principal está no objetivo de construir a “Sociedade Nova”. A elaboração deste conceito remete-nos ao polêmico debate sobre a relação dos católicos com o capitalismo e com o socialismo. As críticas ao capitalismo não são novas e sofrem modificações ao longo da História. Se, a princípio, a crítica objetivava muito mais os excessos do que o sistema propriamente dito, a década de 60 traz a recusa do capitalismo, incorporada, mais tarde, aos documentos de Medellín e Puebla. É de se ressaltar, porém, que em nenhum momento esta crítica trazia uma opção clara por uma alternativa socialista. “Era proibido falar em socialismo”, diz o Padre Valter,

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A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) foi fundada em 1952, por D. Hélder Câmara. Foi uma das primeiras do mundo e a primeira Conferência de Bispos da América Latina. Entre 1954 e 1964, a CNBB foi a mais importante força propulsora do reformismo (Mainwaring, 1989, p. 67). 9

A III Assembléia Geral do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) realizou-se em Puebla, em 1979.

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que há muitos anos se dedica à formação de lideranças no norte do Rio Grande do Sul. Ele afirma nunca ter havido clareza em relação à sociedade que se queria construir. Sabia-se apenas o que era preciso destruir, como, por exemplo, a ditadura, a opressão, a concentração da terra. “No começo era muito mais um trabalho em oposição a do que em vista de um projeto”, afirma o padre entrevistado. Como diz Navarro: “Formou-se assim a política da recusa.” (Navarro, 1991, p. 4, grifo nosso). A Igreja popular enfatiza o processo de mudança a longo prazo por meio de um trabalho de educação das lideranças de base, mediado pela “didática diatribe” do “ver, julgar e agir”. Acreditam que este trabalho seja capaz de criar novas relações entre os homens, baseadas na fraternidade, na solidariedade, na igualdade, na liberdade de expressão, no exercício da participação e da capacidade de decisão, mesmo que só nos limites da comunidade. Trata-se da construção da “democracia de base”, sem a preocupação de responder ao desafio de sua transformação em um projeto viável no nível macrossocietário. Na prática, porém, os limites entre o religioso e o político permanecem não muito claros. Há uma constante tensão entre, de um lado, os limites das Comunidades Eclesiais de Base, das Comissões Pastorais (da Terra, Operária, da Juventude etc.), preocupadas com a construção da “Nova Sociedade” e, de outro, os movimentos populares, sindicatos e partidos, cuja atuação dá visibilidade a questões de ordem política mais global que exigem a capacidade de intervenção e de controle das políticas governamentais. Como diz Grzybowski, há uma contradição entre o “basismo” da Igreja e a necessidade de eficácia política (Grzybowski, 1986, p. 950). Além da dificuldade de separar o político do religioso, a aproximação e valorização da religiosidade popular tem se revelado como uma relação contraditória, de constante tensão entre o respeito ao Evangelho e o respeito à “cultura do outro” (Novaes, 1993, p. 101). Se é verdade que a fé e a religião têm, quase sempre, “funcionado como uma

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fonte legitimadora da ordem social” (Geertz, apud Novaes, 1993, p. 92), o encontro do novo “racionalismo pastoral” (e seu projeto externo de mudança na relação entre Fé e Vida) com o “universo simbólico popular” tem implicado, ao mesmo tempo, um questionamento daqueles elementos que reforçam a subordinação (Novaes, 1993, p. 92). No Alto Uruguai, este “encontro” se deu no interior das relações de poder local da estrutura comunitária colonial preexistente. Estas relações determinavam a hierarquia dos cargos de direção das capelas e revelavam o enorme poder de controle social do pároco, no âmbito da comunidade rural. Foi esta mesma estrutura, constituída por capelas, paróquias, seminários, centros de formação, etc., que serviu de base para o trabalho de cooptação de agricultores para uma prática social mobilizadora. Em outras palavras, foi o jogo de forças entre o conservadorismo do “universo simbólico popular”, das direções de capela, das estruturas de poder local e municipal, de um lado, e, de outro, os valores da nova teologia, que moldou os espaços de penetração dos agentes pastorais e, conseqüentemente, alargou os limites de atuação dos militantes e lideranças dos movimentos que emergiram, no Alto Uruguai, no final dos anos 70. Os depoimentos dos entrevistados apontaram para duas das principais atividades de formação de lideranças comunitárias do Alto Uruguai, influenciadas pela Igreja popular: a Escola Diocesana de Servidores de Erechim e o curso TAPA (Teologia e Ação Pastoral). A marca deste tipo de formação, neste primeiro período, se faz sentir nas formas de organização e luta do Movimento de Barragens. Nos primeiros anos, a atuação voluntarista dos agentes pastorais leva à organização apressada de Comissões Locais, muito mais destinadas a espaços de participação comunitária, para a construção da “Sociedade Nova”, do que a se constituírem bases sólidas de um movimento politicamente forte. Muitas vezes, a questão das barragens funcionou como a “porta de entrada” para a penetração do trabalho da “Igreja renovada”, em comunidades mais pacatas e conservadoras; inversamente, também aqui

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se deu a instrumentalização da fé para a mobilização em torno de questões políticas. A influência da Igreja popular também se faz sentir na estrutura original da CRAB. Ela aparece como um “serviço” de atendimento às lideranças locais, no seu escritório em Erechim. Na prática, a direção era dada pelo Secretário Geral que, segundo um depoimento, “manejava com todo o eixo da roda”. Inspirado pelo espontaneísmo da “democracia de base” dos agentes da Igreja popular, o mesmo limitava-se a apoiar iniciativas de lideranças comunitárias mais aguerridas que organizavam manifestações político-religiosas localizadas. Assim, os atingidos se identificavam com as lideranças locais, muito mais enquanto representantes das paróquias do que da instância organizativa do Movimento dos atingidos. Mesmo assim, tem início o aprendizado do modo como se reunir, como se organizar, discutir e reivindicar. As primeiras reivindicações (indenizações justas, terra por terra e assentamentos) começam a tomar ares de direitos, afirmados em encontros regionais e estaduais, entre 1981 e 1983. Mas a falta de coesão e articulação interna resulta em um movimento difuso e disperso que, na sua atuação externa, não consegue sensibilizar seu principal interlocutor: a ELETROSUL. A indiferença da empresa e o início das obras de Itá, em 1983, vêm reforçar a visão de mundo divulgada pela Igreja popular, para quem as barragens, filhas do “mal” maior, o capitalismo, devem ser exorcizadas. É a partir desta concepção que a Igreja popular vai incentivar a “política da recusa”, que implica em negar e recusar o inimigo, em vez de dar visibilidade às contradições implícitas nas relações sociais vivenciadas pelos trabalhadores rurais. É essa “política da recusa” que se faz sentir no grito de guerra Terra sim, barragem não, marca da atuação do movimento entre 1983 e 1985. Ao mesmo tempo em que na sua atuação externa o movimento dá as costas para o inimigo, internamente sua base social tende a dispersar-se. Outra contradição, implícita na radicalidade da recusa, está na abertura de espaços para a atuação

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das forças pró-barragens. Os impasses trazidos pela radicalidade do “não” convidava a rever posições e reestruturar a organização. Vindos do centro urbano-industrial do país, os princípios e fundamentos do “sindicalismo combativo” já ecoavam na região.10 Antes mesmo de serem divulgados pelas escolas sindicais, instaladas a partir de 1986, sua influência já se fazia sentir sobre alguns jovens, lideranças intermediárias da CRAB, que começavam a sonhar com a transformação da “CRAB/serviço” em “CRAB/movimento”, inspirados no modelo de organização e luta do “sindicalismo combativo”. Para tanto, era preciso formar um coletivo de dirigentes e um grupo de lideranças preparadas para o trabalho de organização das bases. A formação destas lideranças foi assumida pelas escolas sindicais, instaladas a partir de 1986. A CRAB e o “sindicalismo combativo” (1986 a 1989) Também são duas as experiências de formação sindical: a Escola Sindical Margarida Alves (ESMA) e a Escola Sindical Alto Uruguai (ESAU), que, de 1986 a 1989, redirecionaram os rumos e a estrutura organizativa dos movimentos rurais, nos moldes do “sindicalismo combativo”. Na esteira da nova “onda”, também a CRAB se reestruturou internamente de forma hierarquizada e dividida em dirigentes, lideranças, base e massa. A grande contradição desse modelo está na tensa relação entre a “democracia de base”, de um lado, e, de outro, as práticas centralizadoras e hierarquizadas no nível da direção, sem a necessária

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Um dos entrevistados assim resume o modelo de “sindicato combativo”: 1. um sindicato que lutasse para ter democracia sindical no nível da direção e que esta trabalhasse com as bases; 2. um sindicato que tivesse um programa de formação de seus dirigentes e das bases; 3. um sindicato que tivesse participação da base e não fosse de cúpula; 4. um sindicato que tivesse movimentação e mobilizações com a participação das bases.

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mediação de lideranças intermediárias devidamente preparadas para o seu papel mediador. Constata-se uma divisão do trabalho político que reedita a separação entre concepção e execução, vigente nas relações que regem as sociedades contemporâneas. O mesmo “funil” que, na estrutura de uma sociedade de classes, barra a passagem do mundo da execução para o da concepção, acaba por obstruir os canais de ampliação da capacidade de controle dos dirigidos sobre as instâncias de direção, dificultando a ruptura com a “lei de ferro da oligarquia” que impera nos Movimentos Sociais. Originária da estrutura organizativa da Igreja Católica, a figura do “liberado” foi incorporada pelos movimentos sociais, aprofundando o abismo entre a composição social dos grupos dirigentes e aquela das bases (lideranças municipais ou locais e militantes). Os principais dirigentes e assessores são “liberados”, ou seja, remunerados para exercer os cargos de direção. Isto possibilita a concentração de saber e de poder nos níveis de direção, bem como das oportunidades de amadurecimento e crescimento político, reforçando a capacidade de decisão e, principalmente, de persuasão. Como disse um entrevistado: “A voz tem mais poder que o voto”. Desestimulados, os líderes intermediários sentem-se expropriados de seu direito de aprender e de interferir nos rumos do movimento, o que está muito bem expresso na frase de um deles: “Você cria um pinheiro grande e não deixa crescer pinheirinho embaixo, né...”. Este sentimento fragiliza a ligação entre direção e base. Se, na presente avaliação da prática das CEBs, constata-se a contradição entre uma “pastoral de elite” e uma “pastoral de massas”, o mesmo pode ser dito em relação aos movimentos sociais que, embora se inspirando nos princípios do “sindicalismo combativo”, não conseguiram escapar da contradição entre “movimentos de cúpula” e “movimentos de massa”. Essas contradições decorrrem da ausência de uma postura crítica perante tais modelos organizativos e da compreensão da possibilidade de sua superação histórica. Como lembra Gramsci, cons-

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tatar a existência real de dirigentes e dirigidos, implica desenhar a formação de dirigentes, a partir da seguinte questão: [...] pretende-se que existam sempre governados e governantes, ou pretende-se criar as condições em que a necessidade dessa divisão desapareça? Isto é, parte-se da premissa da divisão perpétua do gênero humano, ou crê-se que ela é apenas um fato histórico, correspondente a certas condições? (Gramsci, 1978, p. 19).

Apesar da hierarquização na estrutura organizativa é possível dizer que o Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai se encontra entre os mais democráticos, pois consegue manter uma rede de lideranças de base capazes de garantir a mobilização nas comunidades. Só assim foi possível deslanchar, em 1986, um processo de discussão dos direitos a serem reivindicados, os quais foram sistematizados no chamado “Documento de Getúlio” (porque elaborado em uma Assembléia realizada no município de Getúlio Vargas-RS). A radicalidade deste Documento denuncia a adoção, também pela CRAB, da “política do confronto”, inspirada nos ensinamentos das escolas sindicais. Trata-se de uma nova versão da instrumentalização da fé, só que agora são as reivindicações específicas que são usadas como isca para a promoção de grandes mobilizações em torno dos “interesses maiores da classe trabalhadora”, expressos em palavras de ordem genéricas como: “Por um país livre e democrático”; “Por um Brasil governado pelos trabalhadores”; “Pela Reforma Agrária”; “Pelo Socialismo”. No caso da CRAB, além daquelas genéricas palavras de ordem, seus dirigentes passam a enfatizar a luta pela Reforma Energética. Encontra-se, aí, uma das principais contradições do Movimento. A prioridade que empresta à sua intervenção no âmbito nacional é fonte de desperdício de recursos financeiros e humanos que poderiam estar voltados para a luta local e regional, em torno da qual teria maiores chances de aglutinar os trabalhadores ru-

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rais, de promover processos de socialização e democratização da participação política, bem como de desenvolvimento rural. São os processos de formação que explicam a existência de movimentos sociais que, durante muito tempo, negligenciaram o campo específico de sua atuação, o “corporativo”,11 preocupandose mais em atuar como partido político, voltado para a elaboração e implantação de um projeto de sociedade — ora a “nova sociedade”, idealizada pelos teólogos da libertação, ora o “socialismo”, tal como divulgado pelas escolas sindicais. Sem condições de perceber o que havia de orgânico e mais permanente nas demandas aparentemente “imediatas”, os dirigentes dos movimentos foram levados a vê-las como “questões táticas”, restritas ao seu aspecto ocasional. A pesquisa junto aos movimentos rurais no Alto Uruguai ilustra bastante bem o processo de instrumentalização dos interesses imediatos dos agricultores, visando a uma intervenção mais ampla, no jogo das forças político-militares em disputa pelo poder de Estado em todos os níveis (municipal, estadual e federal). A ênfase na militância político-partidária e na participação de dirigentes nos processos eleitorais é sintomática. A influência das escolas sindicais só fez agravar o fosso entre a visão de mundo que se construiu através das lentes quebradas das teorias ditas “marxistas”, vazias de sentido concreto, e as categorias do processo histórico real, objetivado no cotidiano do trabalho e da vida dos agricultores do Alto Uruguai. O resultado foi o total desencontro entre as “bandeiras de luta” lançadas pelos dirigentes dos movimentos e as necessidades imediatas.

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O termo “corporativo” significa o campo privilegiado de atuação e intervenção dos movimentos sociais que se articulam em torno de interesses específicos, base sobre a qual se constroem as possibilidades de atuação e intervenção em outros níveis: o da articulação de classe e o da luta político-ideológica na disputa pela hegemonia e controle dos mecanismos de poder político no sentido estrito (Gramsci, 1978, p. 49-51).

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É legítimo afirmar que dificilmente os agricultores teriam se mobilizado em torno daquelas palavras de ordem, ou pela necessidade de tomar o poder de Estado. Na verdade, foi o agravamento das condições de reprodução dos trabalhadores rurais que os levou às ruas nas grandes mobilizações de 1986 e 1987 em luta pela manutenção da pequena propriedade e do trabalho familiar, por preços justos, acesso ao mercado, facilidades de crédito, infraestrutura para os assentamentos etc. O contexto destas lutas mais específicas dos diferentes movimentos de trabalhadores rurais facilitou a conquista da assinatura do acordo de 1987 entre a CRAB e a ELETROSUL. A evidência do desencontro entre as bandeiras dos dirigentes e as necessidades imediatas dos agricultores chamou a atenção para a diversidade de formas de objetivação das relações de exploração, expropriação, subordinação, exclusão e marginalização no campo. A pressão das bases forçou os dirigentes a atentarem para o potencial políticoorganizativo das demandas mais imediatas, incluindo, na agenda democrática, a luta pela expansão dos direitos de cidadania e democratização das relações internas das organizações. A realidade mostrava sua cara e começava a chacoalhar o modelo de organização e luta difundido pelas escolas sindicais. Os grandes esquemas generalizantes de explicação da sociedade vão sendo abandonados na medida em que as reais contradições de classe, explicitadas pelas condições de trabalho e de vida dos agricultores vão imprimir mudanças também nos processos de formação de lideranças. A “formação técnica” por “uma vida melhor” (1990...) O ano de 1990 marca a consolidação de uma tendência que vinha sendo gestada nos dois últimos anos de funcionamento das escolas sindicais: a “formação técnica”. Desde 1989, os professores das escolas sindicais começavam a abandonar o “esquema fecha-

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do” das três classes (burguesia, pequena burguesia e assalariado). A multiplicidade de tipos sociais encontrada nos municípios, a partir de levantamentos feitos pelos próprios “alunos”12, alertou para a realidade das novas relações de produção no campo, que impunha outras categorias e forçava uma redefinição dos esquemas anteriormente aprendidos. O esforço de compreensão das categorias do real ressaltou o aspecto ideológico no jogo das forças sociais, mesmo que continuasse ausente dos “esquemas economicistas” das apostilas. Desta forma, as novas técnicas de ensino significaram muito mais do que uma “metodologia” que se propunha “partir da prática” para chegar à concepção teórica de classes sociais. O chamado “método dialético” mostrou as dificuldades concretas de análise e levou os próprios professores a repensarem sua concepção de classe social e de prática política. A concepção de formação político-ideológica e “etapista”, que norteara o trabalho daquelas escolas, não mais se sustentava diante da “crise do sindicalismo combativo”. A própria existência das escolas sindicais passa a ser supérflua na medida em que cada movimento assume as tarefas de formação de suas lideranças, apontando para uma ligação mais orgânica na relação formação/organização. Diz um dos entrevistados: A visão que se tinha nesse último momento era que a formação passava pela construção orgânica do movimento e passava também pelas lutas do movimento. [...] Ela vai trabalhar com dirigentes, com seminários, onde vai discutir a produção, vai discutir a questão da integração, estrutura sindical. Então, me parece uma questão muito mais vinculada do que quando era escola sindical.

12

Um dos documentos refere-se a uma técnica para abordar a questão das classes, em que os próprios alunos devem fazer um perfil dos sócios do sindicato (assalariados, integrados do fumo, do leite, do frango, do suíno etc.) e um levantamento das classes sociais no seu município, na cidade e no campo.

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As modificações introduzidas nos cursos das escolas sindicais, nos seus últimos anos de existência (1989/1990), já esboçavam o perfil da nova concepção em seus diferentes aspectos: a. conteúdo, b. metodologia, c. público alvo, e d. agentes da formação. Sendo impossível abordar, nos limites deste trabalho, estas quatro dimensões ficamos com as duas primeiras. Conteúdo: “questões do dia-a-dia” As escolas sindicais pecavam por não prepararem as lideranças para o cotidiano das lutas sociais. Neste sentido, os professores concluíram que: A gente tinha que começar a discutir questões do dia-a-dia do movimento sindical. No dia-a-dia ele não usa a concepção, não vai praticar a idéia de socialismo [...] e era fundamental começar a discutir o específico. (E)

A sintonia com o cotidiano das lutas provoca uma revisão na concepção de movimento e de formação que, como assinala um dos professores, implica [...] trabalhar para que cada um desses ramos específicos da produção, na área rural, possa ficar preparado para negociar com as respectivas empresas e,

ção de inserção no cotidiano, se direcionam para iniciativas renovadas de defesa da qualidade de vida. A tendência, agora, é reconhecer a vida cotidiana como espaço de construção de uma nova hegemonia e, portanto, colocar a organização em torno das questões imediatas no centro da construção de um projeto político (Basombrio, apud Ibañez, 1991, p. 12). Segundo o professor entrevistado, manter a referência de uma “visão ideológica” e estratégica pode indicar os caminhos do conhecimento crítico das questões específicas do cotidiano, ao mesmo tempo em que estas podem ajudar a enriquecê-la. É este caminho de mão dupla que, para o entrevistado, poderiam impedir que as questões imediatas se tornassem “imediatistas”. Teme-se que o excesso de “especialização” dificulte o resgate de um horizonte político comum, o que poderia aprisionar os movimentos na discussão meramente tecnicista e isolá-los na luta “econômico-corporativa”. A observação do encaminhamento real das lutas traz sérias dúvidas quanto à existência de um horizonte estratégico, aproximando-se mais do que se poderia chamar de “movimentos de resultados”. Navarro reforça esta idéia ao mostrar que a nova postura possibilitou uma visão “mais realista” do campo de intervenção dos movimentos:

no momento atual, negociar para que tenha uma vida

[...] pois a intensificação das relações comer-

melhor [...]. A formação sindical tem que subsidiar

ciais envolvendo o público associado e a conseqüen-

nesse sentido, possibilitando a capacitação profissio-

te mercantilização da vida social no meio rural obri-

nal, o poder de discutir, negociar e enfrentar o outro

ga o sindicato combativo a reconhecer que a questão-

lado, mas com uma clareza política e ideológica [gri-

chave, em processos de expansão capitalista (e, por-

fo nosso].

tanto, de remotas possibilidades de mudanças estru-

Esta visão corresponde às novas práticas de educação popular13 que, mantendo-se fiel à tradi-

turais ou do regime político) é agora disputar exatamente o “bolo do lucro” com a empresa (“reivindicar o máximo de conquistas”), mas não a existência mesma da empresa e sua legitimidade, pelo menos neste período” (Navarro, 1991, p. 26).

13

Esta nova postura consta como uma das “contribuições da Educação Popular para a renovação da política da esquerda peruana e latino-americana” em pesquisa realizada por Carlos Basombrio, cujos resultados aparecem sistematizados em seis pontos em texto de Ibañez (1991, p. 11-13).

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Diante disto, é impossível esquecer a observação de Luciano Martins que, citado por Weffort, afirma que ”o Brasil das últimas duas décadas foi tomado por uma notável e historicamente surpreendente generalização do ethos capitalista” (Weffort,

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1989, p. 24). Neste quadro, não surpreende a preocupação generalizada com a dimensão econômicocorporativa que, em última instância, desenha o perfil da “formação técnica”. Alerta um dos professores que o grande desafio da formação e da ação organizativa está em tentar evitar os dois extremos: o “ideologismo”, erro da concepção anterior, e o “tecnicismo”, ou corporativismo, armadilha da qual os movimentos não têm conseguido escapar. O “tripé metodológico” Para os professores entrevistados, o que pode impedir que se recaia em um daqueles dois extremos é o qus chamam de “tripé metodológico”: aprender, transmitir, intervir. Aprender e transmitir se complementam no caminho de mão dupla do que os professores chamam de “metodologia dialética”: o conhecimento vivenciado das questões específicas é transmitido ao “assessor especialista”, que leva os “alunos” a adquirirem uma compreensão mais elaborada e abrangente da sua experiência empírica, com uma perspectiva estratégica. Na prática, porém, o “método dialético” tem sido tratado de forma instrumental. Refere-se muito mais à relação entre “professor” e “aluno”, e à troca de seus “saberes”, do que à trajetória do pensamento de ambos na compreensão da dialética do real. Perde-se de vista a dimensão dialogal de ambos, “mestre e aprendiz”, com a práxis cultural (Chauí, 1982, p. 69)14. Sob a ótica do

14

“Com efeito, nos três filósofos (Platão, Rousseau e Hegel), mestre e aprendiz estão numa relação de palavra dividida ou partilhada — o logos a dois. No entanto, com quem fala o aluno platônico? Com o morto. Com quem fala o aluno rousseauista? Com o morto. Com quem fala o aluno hegeliano? Com o morto. Sócrates, o silêncio das origens e o trabalho da história são os mortos com quem se fala. Mas, que significa esse paradoxal diálogo? Significa que através de um outro silencioso, a palavra e o pensamento do aluno poderão nascer. É a dimensão simbólica do ensinamento e do aprendizado que se manifesta nesse diálo-

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pensamento dialético, a “formação técnica” requereria, dos assessores, a capacidade de aprofundar as causas genéricas e estruturais das contradições vividas no cotidiano, resultantes da síntese de múltiplas determinações em que se articulam elementos econômicos, políticos e sociais em uma perspectiva histórica, passíveis, portanto, de transformação. O “conhecimento técnico” ou o “saber popular” têm pouco valor transformador se desvinculados do trabalho de pensamento crítico: Conhecer é apropriar-se intelectualmente de um campo dado de fatos ou de idéias que constituem o saber estabelecido. Pensar é desentranhar a inteligibilidade de uma experiência opaca que se oferece como matéria para o trabalho da reflexão para ser compreendida e, assim, negada enquanto experiência imediata. Conhecer é tomar posse. Pensar é trabalho de reflexão. O conhecimento se move na região do instituído, o pensamento, na do instituinte (Chauí, 1982, p. 60).

Mas a prática nos mostra algo diferente: quanto mais “técnica” a assessoria, menor o preparo intelectual do assessor para fazer a passagem entre “a totalidade abstrata” e o “concreto pensado” (a negação da experiência imediata pelo trabalho de pensamento) ou mesmo para exercer o papel que lhes cabe na promoção de um novo consenso contra-hegemônico pela “reforma intelectual e moral” (Gramsci, 1978, p. 5). No dia-a-dia da formação, o “método dialético” tem se resumido ao empirismo da já mencionada “didática diatribe” (ver, julgar e agir). Ainda em termos metodológicos, fala-se de um “fazer juntos” que possibilitaria “tocar uma metodologia que seja uma construção e que o assessor seja assessor mesmo, que assessore naquilo que ele tem de competência [...]”, como diz um dos entrevistados. No entanto, difícil é “tocar uma metodologia que seja uma construção”, quando se dá

go com um outro que não é alguém, porque é o saber.” (Chauí, 1982, p. 55).

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tando valor à “competência” técnica do assessor. Como diz Chauí: Quando examinamos a ciência contemporânea, dificilmente poderemos vê-la como instrumento de liberação e, muito menos, como um pensamento criador que nos torna mais reais e mais ativos. Pelo contrário, condição e fruto do “progresso”, a ciência tornou-se poderoso elemento de intimidação sócio-política através da noção de competência. (Chauí, 1982, p. 58).

O “fazer juntos” é, sim, um desafio muito mais complexo do que possa parecer. Reproduz-se aqui o mesmo dilema que provoca o atual debate, entre assessores e agentes da Igreja Católica, sobre a contradição entre a “racionalidade pastoral” e o “universo simbólico popular”. Novaes lembra que não se trata apenas de aguçar a sensibilidade para “os padrões culturais do povo” ou para a expressão de sua experiência empírica, mas de atentar para o conjunto de relações e contradições a que estão sujeitos (Novaes, 1993, p. 107). Outra vez é Chauí quem afirma que, mais do que a competência, o “técnico” teria que desenvolver: Um pensamento que, abandonando o ponto de

O fato da hegemonia pressupõe indubitavel-

vista da consciência soberana, pensasse na imbrica-

mente que se deve levar em conta os interesses e as

ção das consciências e das relações sociais e estivesse

tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia

sempre atento para o problema da dominação do ho-

será exercida; que se forme certo equilíbrio de com-

mem sobre o homem e que se chama: luta de classes

promisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios

(Chauí, 1982, p. 62).

de ordem econômico-corporativa. (Gramsci, 1978,

Também não basta perceber e pensar este conjunto de relações. Cumpre desenvolver um tipo de práxis capaz de promover o que Gramsci chama de “catarse”: “o processo pelo qual uma classe supera seus interesses econômico-corporativos imediatos e se eleva a uma dimensão universal, ‘capaz de gerar novas iniciativas’” (apud Coutinho, 1981, p. 71). Isto nos remete ao terceiro aspecto do tripé metodológico: a intervenção. A julgar pela afirmativa de um dos entrevistados, a noção de intervenção amplia o significado do termo “técnico”: “Você tem que discutir o técnico em si, ou seja, como é que vão poder intervir nesse processo”. A intervenção

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se dá em pelo menos dois níveis: externo e interno. Externamente, os dirigentes devem estar capacitados para encaminhar reivindicações e negociações. No âmbito interno, deve ser capaz de intervir na organização e manter a capacidade de mobilização das bases. O discurso sobre o “técnico” refere-se, no entanto, a dois diferentes níveis de intervenção. No caso do sindicalismo, por exemplo, fala-se da intervenção na classificação do fumo para negociar uma “melhoria de vida” para o fumicultor e, ao mesmo tempo, procura-se intervir no processo de implantação do Mercosul. No caso da CRAB (hoje MAB/ Região Sul), a “melhoria de vida” se expressa na luta por itens de infra-estrutura nos assentamentos de atingidos. Simultaneamente, enfatiza-se a luta pela reforma energética. No caso do fumo e dos assentamentos de atingidos, por exemplo, estamos falando do nível de intervenção “econômico corporativo”. Trata-se de uma ação equivalente ao que Gramsci chama de “sindicalismo teórico”, que atua no âmbito do “movimento da livre troca”, restrito às regras das forças hegemônicas:

p. 33).

Os “sacrifícios” do grupo dirigente podem resultar em “melhoria de vida” para os grupos subalternos e, para além do mundo da produção, as pressões e negociações podem render conquistas significativas em termos de direitos de cidadania, dentro da ordem jurídica vigente. É inegável a importância da organização em torno das necessidades imediatas como elemento fundamental para a construção da identidade de sujeitos sociais, para a conquista de direitos e para a criação do “direito insurgente”. Isto não significa, contudo, uma intervenção automática naquilo que é essencial:

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Mas também é indubitável que os sacrifícios e o compromisso não se relacionam com o essencial, pois se a hegemonia é ético-política também é econômica; não pode deixar de se fundamentar na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica (Gramsci, 1978, p. 33).

Esta “função decisiva”, contudo, não é de natureza “técnica” ou “econômica” no sentido estrito, mas política: “[...] uma regulamentação de caráter estatal, introduzida e mantida por caminhos legislativos e coercitivos: é um fato de vontade consciente dos próprios fins, e não a expressão espontânea, automática, do fato econômico” (Gramsci, 1978, p. 32). Trata-se de programa político dos dirigentes do Estado, forças que atuam no nível político-militar, para usar a expressão gramsciana. Faz parte deste programa manter as classes subalternas no nível de intervenção corporativo, disperso e desarticulado. A intervenção pode, então, permanecer subordinada à ordem jurídica vigente, se não se colocar o desafio de se tornar grupo dirigente. Encontra-se aqui a grande contradição dos movimentos objetivada na dificuldade de conciliarem suas lutas específicas, por um lado, visando “resultados” capazes de manter a mobilização e as oportunidades de democratização nos níveis locais e regionais, e, por outro, a luta pela democratização das relações de poder de Estado. O caso do Movimento dos Atingidos é emblemático. No nível das necessidades imediatas enfatiza as conquistas de infra-estrutura para os assentamentos. No nível nacional, prioriza o enfrentamento com o setor elétrico, perdendo de vista o conjunto de forças responsáveis pelo modelo de desenvolvimento contra o qual pretendem se insurgir. A conjuntura de agravamento da recessão econômica e da crise do Estado vem contribuindo para mostrar os limites das lutas específicas e conquistas localizadas, quando desvinculadas de um projeto estratégico mais amplo de construção da hegemonia e dos mecanismos de controle do poder político e das decisões no nível das políticas governamentais. As

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dificuldades enfrentadas para que se cumpra o acordo de 1987 para a situação específica da Barragem de Itá, por exemplo, antecipam os obstáculos impostos à sua generalização para as outras situações de barragens no Alto Uruguai. Isto para não mencionar as demais, em âmbito nacional. De qualquer maneira, a politização da economia — e urge considerar isto — depende da politização e democratização das relações nas organizações de base. Gramsci atribui aos sindicatos e, por extensão, aos movimentos sociais, um papel que vai muito além da mera negociação por melhores condições de vida e de trabalho. Devem atuar como canais autônomos e democráticos de participação dos trabalhadores na sociedade civil e de interferência nos destinos da vida nacional (Deluiz, 1991, p. 90). É a democratização das organizações da sociedade civil que pode abrir ”novas cunhas entre o Estado (relações de poder) e a ‘economia’ (relação de produção)” (Grzybowski, 1987, p. 12): Quanto mais se ampliar a socialização da política, quanto mais a sociedade civil for rica e articulada, tanto mais os processos sociais serão determinados pela teleologia (pela vontade coletiva organizada) e tanto menos se imporá a causalidade automática e espontânea da economia (Coutinho, 1981, p. 76).

MARIA STELA MARCONDES DE MORAES é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Consultora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE).

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Participação popular na melhoria do ensino público Uma proposta de contribuição da universidade para a melhoria do ensino público

Celso de Rui Beisiegel Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo

Trabalho apresentado, em versão preliminar, no seminário “Autonomia da Escola Pública”, promovido pela Fundação para o Desenvolvimento da Educacional do Estado de São Paulo (FDE), maio-junho de 1992.

Nos primeiros meses de 1991, a Universidade de São Paulo apresentou ao governo do Estado uma proposta de colaboração envolvendo um amplo elenco de possibilidades de atuação nas áreas da saúde, da educação, da agronomia e dos setores produtivos em geral. Enquanto pró-reitor de graduação, fui incumbido pelo reitor, professor Roberto Lobo, de elaborar as sugestões de colaboração na parte relativa ao ensino de 1º e 2º graus. No documento que preparei, que será apresentado adiante, já se encontra explicitado um particular entendimento sobre a questão da participação popular na melhoria do ensino público. Considerando a importância que nos últimos anos vem sendo atribuída à participação popular ou à participação da comunidade nas questões do ensino, pareceume oportuno submeter ao debate acadêmico tan-

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to o documento quanto o conceito de participação nele envolvido. A proposta abrange três áreas de atuação: 1) a coordenação, pelas universidades públicas do Estado, de uma rede experimental de escolas de 2º grau; 2) um programa de elaboração de livros didáticos e de outros materiais didáticos de alto nível, por equipes da Universidade de São Paulo; e 3) um programa de aperfeiçoamento do pessoal docente do ensino público, apoiado sempre que possível nos livros e nos materiais didáticos preparados pela universidade. Na elaboração dessa proposta busquei apoio em diversas iniciativas e experiências anteriores. Ainda nos primeiros anos da década de 1970, procurando respostas para as intensas pressões por vagas na Escola de Aplicação da atual Faculdade de

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Educação da USP, o professor Laerte Ramos de Carvalho1 aventou a possibilidade de reivindicar para a universidade a coordenação das escolas públicas de ensino secundário situadas na periferia da Cidade Universitária. Submetidas ao mesmo regime de trabalho da Escola de Aplicação, essas escolas possibilitariam oferecer um melhor atendimento escolar às crianças dos servidores da universidade e dos moradores da região circunvizinha. Muitos anos depois, o professor José Mário Pires Azanha idealizou e coordenou um convênio celebrado entre a Secretaria da Educação e a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, com a finalidade de promover trabalhos conjuntos entre equipes de professores da faculdade e professores das escolas públicas de 1º e 2º graus das imediações da Cidade Universitária (Azanha, 1985). Essa atividade conjunta deveria possibilitar a elaboração de um plano de aperfeiçoamento (ou o que hoje se convencionou chamar de “projeto pedagógico”) de cada uma das escolas envolvidas. O objetivo mais amplo do convênio era chegar à construção de procedimentos que pudessem depois ser estendidos pela Secretaria da Educação às demais escolas da rede. Alguns anos depois, o professor José Goldemberg, então reitor da Universidade de São Paulo, inspirado em experiências realizadas na região de Boston, onde a universidade havia assumido a coordenação de parte da rede de escolas secundárias, promoveu algumas discussões sobre a possibilidade de realização de um programa semelhante no Estado de São Paulo. Quando, logo depois, assumiu a Secretaria da Educação, o professor Goldemberg reelaborou suas propostas e passou a examinar a possibilidade de criação de uma rede de “liceus”, com características de organização e funcionamento que possibilitassem a constituição de um novo patamar de referência para a qualidade do

ensino público de 1º e 2º graus. Participei, com os professores Alésio Caroli2 , Eunice Ribeiro Durham3 e Maria Aparecida Tamaso Garcia4 , dos estudos preliminares e da discussão do projeto então apresentado, pelo secretário, ao governo do Estado. Na parte relativa ao aperfeiçoamento do pessoal da rede, a proposta considerou a experiência acumulada pela USP em programas de capacitação de professores do ensino de 1º e 2º graus. Após a reforma de Secretaria da Educação, em 1977, essas atividades passaram a realizar-se mediante colaboração entre a universidade e a Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP). Coordenei as atividades da USP no âmbito dessa colaboração por alguns anos, durante a gestão do professor Goldemberg na Reitoria. Finalmente, a proposta embasou-se também em uma longa experiência pessoal de participação no Conselho Diretor da Fundação do Livro Escolar (FLE)5. O insucesso da fundação na criação de procedimentos que induzissem as editoras comerciais a um esforço de melhoria do nível de qualidade dos livros didáticos sugeria a procura de novos caminhos de realização desse objetivo. O envolvimento da universidade na produção de livros de alto nível poderia ser a chave para provocar a elevação de nossos padrões editoriais na área do livro didático. Assim, a proposta de colaboração procurava harmonizar três conjuntos de ações num só projeto bem articulado: a rede experimental de escolas, fixando um novo patamar de qualidade a ser reali-

2

Alésio Caroli, na época, era diretor executivo da FUVEST. 3

Eunice Ribeiro Durham foi responsável pela assessoria técnica da Secretaria da Educação durante a gestão Goldemberg. 4

Coordenadora da COGESP e da CEI durante a gestão Goldemberg. 1

O professor Laerte Ramos de Carvalho era na época diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) “Prof. Queiroz Filho” de São Paulo e diretor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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5

Durante a gestão de Pedro Paulo Poppovic em sua diretoria executiva (1985-1986), a FLE procurou desenvolver procedimentos voltados para a melhoria da qualidade dos livros didáticos editados no Estado de São Paulo.

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zado, progressivamente, em todas as escolas públicas do Estado; um programa de produção de livros e materiais didáticos de alto nível, cujos conteúdos seriam divulgados inclusive por meio do ensino à distância; e um programa de aperfeiçoamento de professores, organizado principalmente a partir dos conteúdos desses livros e materiais didáticos. A rede experimental de escolas cimentaria os diversos componentes do programa. Nessas escolas, professores preparados em programas de aperfeiçoamento para atuar aproveitando os livros e materiais didáticos produzidos na universidade teriam a função de demonstrar, para a coletividade, que é possível produzir educação de qualidade no ensino público.

*** Apresento, a seguir, os pontos mais relevantes da proposta. Na introdução, o documento intitulado “Subsídios para a política de educação do Estado de São Paulo”6 afirmava que ao assumir o Governo do Estado, a nova administração encontrará a rede pública de escolas de 1º e de 2º graus em inegável situação de crise. Analisada e discutida exaustivamente ao longo das últimas administrações do ensino, essa crise é bem conhecida e, neste momento, até dispensa novos diagnósticos. Conhecem-se, com razoável precisão, os principais componentes [intra-sistema] [...] das dificuldades ora enfrentadas. Assim, o que se impõe, agora, e com urgência é: primeiro, uma firme decisão política de recuperação do ensino público e, segundo, um programa de iniciativas que venham a possibilitar, de modo claro, um começo de reversão da perversa tendência à aniquilação de uma escola que já foi motivo de orgulho para a população do Estado de São Paulo.

***

As principais causas da crise do ensino público são realmente bem conhecidas. Apenas para situá-las, inicialmente é preciso atentar para a magnitude da expansão dos serviços educacionais no Estado levada a cabo nas últimas décadas. Num período de intenso crescimento populacional, assentado sobretudo na atração de migrantes de áreas rústicas, o poder público, em poucas décadas, estendeu oportunidades de acesso à escola a praticamente toda a população escolarizável. Mais ainda, incorporou à anterior escola primária básica, de quatro anos, a antiga escola secundária de 1º ciclo, ampliando, assim, de quatro para oito anos a escolaridade obrigatória. Em contrapartida, não foram investidos na educação os recursos exigidos por essa expansão do atendimento. A ampliação da capacidade de matrícula, nessas condições, foi em parte obtida mediante soluções emergenciais, bem exemplificadas na multiplicação dos períodos diários de funcionamento das escolas. Expedientes semelhantes foram mobilizados em relação aos professores do ensino público de 1º e 2º graus: a manutenção de níveis condignos de salário foi substituída pela diminuição do trabalho e por outras discutíveis “vantagens” corporativas. Como não poderia deixar de ocorrer, os resultados obtidos também foram contraditórios. Os indicadores da evolução do atendimento exprimem, ao mesmo tempo, o notável sucesso e o inaceitável fracasso da atuação educacional do Estado. Demonstram que ampliou-se a rede de escolas e que as oportunidades educacionais aumentaram em números impressionantes. Mas revelam também que em sua maior parte as crianças que entram na primeira série do ensino de 1º grau não concluem os estudos básicos. Finalmente, aquelas minorias que alcançam a 8ª série do ensino público comum ou o diploma do 2º grau não vêm obtendo instrução e formação sequer razoáveis.7

*** 6

Documento encaminhado em março de 1991 ao governador eleito, como parte das propostas de colaboração da Universidade de São Paulo com o governo do Estado.

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7

Cf. Beisiegel, Arroyo, Cury e Saviani, 1983.

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Todos sabem que a Secretaria de Estado da Educação vem tentando encaminhar soluções para a melhoria da qualidade do ensino público. Algumas iniciativas de grande potencial têm sido adotadas, nas diversas administrações da Secretaria, nos últimos governos. Incluem-se, entre elas, a instituição do “ciclo básico”; o início de implantação da denominada “jornada única”; o tímido começo de um processo de descentralização administrativa; a criação dos CEFANS e das “oficinas pedagógicas”; e os primeiros passos da ainda parcial e quase inexistente municipalização das atribuições concernentes ao ensino de 1º grau. Mas nada se fez de realmente significativo em outras questões fundamentais: a incipiente interação que vinha sendo desenvolvida entre a Secretaria da Educação e as universidades estaduais no setor do aperfeiçoamento do magistério entrou em colapso, a partir de 1989; não se avançou na indispensável instituição de uma carreira do magistério com melhoria salarial consistente baseada na produtividade, na dedicação e na competência profissional do professor; acentuou-se a perversa manipulação das questões do ensino pelos interesses político-partidários; não ocorreram avanços na questão crucial da autonomia da escola; a reforma administrativa da Secretaria da Educação e a criação de um adequado modelo pedagógico para a escola de 1º grau continuam à espera de novos tempos.

*** Nesse quadro de dificuldades, a escola pública de 1º e de 2º graus vem sendo objeto de um processo inadequadamente designado como de “nivelamento por baixo”. O que em geral se pretende afirmar com essa expressão é que o ensino público estaria sendo transformado no “ensino dos pobres”, freqüentado somente pelos segmentos da população que não podem ter acesso a serviços de melhor qualidade. Tais afirmações não retratam com fidelidade a situação das escolas públicas de 1º e de 2º graus. Não obstante, é inegável que nas grandes cidades, acompanhando o comportamento dos estratos mais privilegiados da população, as camadas

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médias e até mesmo famílias com escassos recursos econômicos têm procurado colocar suas crianças em escolas particulares. Muda progressivamente também o perfil do magistério: o ensino público de 1º e de 2º graus já não conta em seus quadros com porcentagens significativas de egressos das universidades estaduais ou das instituições superiores particulares de melhor qualidade. Aquelas figuras exageradas e ideologicamente viesadas da “escola dos pobres” e do “nivelamento por baixo” de certa forma estariam ganhando realidade, pelo menos nas grandes cidades e nas imensas periferias urbanas, consubstanciando-se na fuga dos setores mais exigentes da clientela e na recusa dos profissionais de melhor formação às condições de trabalho oferecidas pelo magistério público. A essas perspectivas preocupantes acrescenta-se um fenômeno palpável e da maior gravidade: nos últimos anos, tanto na administração quanto entre os usuários aceitam-se quase com naturalidade ações que perturbam o funcionamento regular do ensino sobretudo nas áreas mais problemáticas (grandes cidades e periferias urbanas), mas que de alguma forma afetam negativamente também o conjunto da rede de escolas, tais como prolongadas paralisações das atividades escolares, falta de aulas, até em disciplinas do núcleo comum, e diplomação de alunos que não tiveram cargas horárias suficientes em muitas disciplinas devido à inexistência de professores interessados em ministrá-las. Após cada uma das greves prolongadas e das controvérsias que sempre envolvem o processo de “reposição” das aulas perdidas, realmente aprofunda-se a perda de expectativas quanto à qualidade do ensino nas escolas públicas de 1º e de 2º graus. O evidente descaso das elites e a passiva reação de desalento da população em face dessas realidades inaceitáveis talvez constituam, neste momento, a expressão mais grave da crise e o indicador mais agudo da tendência ao completo descrédito do ensino público.

*** Um programa de iniciativas comprometidas com a recuperação da escola pública precisa neces-

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sariamente atuar, com urgência, na reversão dessas expectativas negativas quanto à qualidade do ensino público de 1º e de 2º graus. Talvez se encontrem exatamente aí algumas das melhores possibilidades de contribuição das universidades para o processo de recuperação do ensino público. Com os recursos humanos de que dispõem, as universidades públicas do Estado têm condições reais de desenvolvimento de um programa consistente de melhoria da formação dos professores da rede. Estão preparadas para promover um programa de produção de livros didáticos e de outros recursos didáticos de conteúdos modernizadores e de boa qualidade para o ensino de 1º e 2º graus.8 Mais ainda, podem mobilizar para essa tarefa os recursos da educação à distância ou de uma universidade aberta, a ser criada com o apoio ou da TV Cultura ou de uma TV universitária. E, por outro lado, seria perfeitamente exeqüível atribuir às universidades a criação, a organização e a coordenação de uma rede experimental de escolas de 2º grau, com a finalidade de instituir um novo patamar de qualidade, a ser atingido, depois, progressivamente, pelo conjunto das escolas públicas do Estado.9

*** Como é próprio em documentos dessa natureza, a proposta foi apresentada em linhas gerais. Somente a parte relativa à criação da rede experimental de escolas recebeu algum detalhamento. Estabeleciam-se, como suas finalidades principais,

8

No que se refere à produção de livros didáticos pela USP para o ensino de 2º grau, este programa foi efetivamente realizado. Desenvolvido mediante convênio firmado entre a USP e a FDE, previu a elaboração de um livro didático para cada uma das disciplinas do currículo do ensino de 2º grau, por equipes constituídas por intelectuais de alto nível. O programa já entregou ao público dois dos exemplares previstos: História do Brasil, de Boris Fausto; e Literatura brasileira dos primeiros cronistas aos últimos românticos, de Luiz Roncari. Outros exemplares encontram-se em preparação. 9

Cf. o documento “Subsídios para a política de educação do Estado de São Paulo” (já citado).

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[...] 1) propor procedimentos de organização e funcionamento que demonstrem a possibilidade de obtenção de altos níveis de qualidade do ensino na escola pública; 2) propor um modelo de organização da carreira do magistério fundada na formação, no interesse e na competência profissional do professor; 3) experimentar procedimentos de autonomia financeira, administrativa e didática das escolas; e 4) atuar em condições que não sejam excepcionais e de realização inviável na escola pública comum, para possibilitar a progressiva extensão dos novos modelos ao conjunto da rede de escolas.

O número inicial de escolas da rede experimental dependeria de decisão do novo governo, mas deveria possibilitar a instalação de unidades em áreas diversificadas, sobretudo nas grandes cidades. Os docentes seriam admitidos em caráter experimental, em processo seletivo aberto aos professores da rede e aos licenciados em geral. A carreira deveria afastar quaisquer concessões corporativas, admitindo regime de tempo integral nas disciplinas do núcleo comum. A promoção na carreira dependeria da formação específica, do interesse e da competência profissional do professor. Nas escolas instaladas nos primeiros tempos de funcionamento dessa rede experimental, os alunos seriam recrutados a partir de sua classificação nas respectivas escolas de 1º grau, reservando-se pelo menos metade das vagas para os egressos das escolas públicas. As escolas deveriam funcionar em dois períodos diurnos e um noturno. Os conhecimentos obtidos pelas escolas junto aos seus alunos seriam avaliados por meio de provas comuns, aplicáveis a todas elas de modo a possibilitar a comparação dos respectivos desempenhos e o estudo dos fatores de variação de seus resultados. Finalmente, seria necessário insistir em que essas escolas em nenhuma hipótese poderiam ser vistas como algo desligado da rede pública de ensino. Não havia na proposta a intenção de criar uma pequena rede de estabelecimentos privilegiados. Cuidava-se, tão-somente, de fixar novos patamares de qualidade e de testar modelos de organização e fun-

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cionamento que, uma vez aprovados, seriam progressivamente estendidos ao conjunto da rede. A extensão do modelo a outras escolas públicas deveria atender a cronogramas bem definidos e seria regida por critérios que levassem em conta os resultados conseguidos por essas escolas, considerando os níveis do aprendizado obtido junto aos seus alunos, os índices de promoção e conclusão de curso, a freqüência relativa dos professores, a qualificação funcional e a estabilidade do corpo docente.10

*** Afirmei, no início desta exposição, que a proposta da universidade envolvia um particular entendimento da questão da participação popular na melhoria do ensino. Explico, em seguida, o sentido dessa afirmação. É já bem antiga, entre nós, a defesa do incremento da participação popular nas atividades realizadas pelo Estado. São numerosas e bastante diversas as raízes dessa posição. Karl Mannheim, um autor de grande influência entre nossos intelectuais nas décadas de 50 e 60, nos trabalhos produzidos após sua mudança para a Inglaterra, buscava encontrar na tradição anglo-saxônica de valorização do pequeno grupo as possibilidades de defesa contra a massificação e as irracionalidades da grande sociedade.11 Antecedentes de origem semelhante aparecem também em Anísio Teixeira, quando defende a instituição de conselhos educacionais e a participação local na administração do ensino. Mas é sobretudo nos primeiros trabalhos de Paulo Freire que a importância da participação popular encontra sua afirmação mais radical. É preciso assinalar, aliás, que nesses primeiros trabalhos de Paulo Freire a presença de Mannheim e de Anísio Teixeira é marcante. Uma outra vertente que aponta para a defesa da participação popular estaria numa orientação comunitária cristã compartilhada por amplos seto-

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10

Idem.

11

Cf. Beisiegel, 1984, p. 76.

res do laicato católico, nas décadas de 50 e 60.12 Uma investigação mais aprofundada sobre as origens da valorização dessa participação não poderia prescindir da análise das orientações que prevaleciam, na época, nas escolas de serviço social. Independentemente de suas diferentes origens, a defesa da necessidade da participação avançou consideravelmente durante a fase final dos governos militares. Participação, na época, significava exatamente o oposto de uma estrutura de dominação autoritária ditatorial. Eram muitas, aliás, as virtudes atribuídas à participação: bandeira de luta contra o Estado autoritário; contraponto à impessoalidade burocrática e ao corporativismo das grandes organizações públicas; estímulo adicional à dedicação do funcionário no cumprimento de seus deveres; instrumento de fiscalização da atuação do Estado; garantia da presença dos interesses dos usuários nas orientações da atuação dos poderes públicos. Como freqüentemente ocorre em questões de interesse acadêmico ou de significado político, o tema da participação popular vem ganhando amplitudes não previsíveis nos seus pontos de partida. Na educação, por exemplo, advoga-se já a plena participação dos usuários na elaboração de currículos. Em todas as áreas, avançou-se consideravelmente nas expectativas favoráveis associadas ao envolvimento popular direto na gestão das instituições. Em algumas análises, a participação popular na gestão das instituições surge como condição indispensável à melhoria dos serviços. A importância da participação popular e suas possibilidades na promoção da melhoria da qualidade dos serviços prestados pelas instituições públicas são inegáveis. Cabe, no entanto, indagar se o avanço das expectativas associadas ao seu potencial não estaria correndo o risco de exceder os limites do razoável. Um eventual exagero participacionista não viria atribuir exclusivamente ao usuário a responsabilidade pela melhoria dos serviços?

12

Cf. Idem., p. 34.

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Ou, em outras palavras, não estaria liberando especialistas e instituições especializadas de suas respectivas responsabilidades na produção de serviços de qualidade? Não obstante a relevância dessas indagações, importa agora assinalar que, por mais diversas que sejam as razões alegadas em defesa de sua necessidade, nestas acepções a participação sempre envolve uma presença direta dos agentes nas atividades consideradas. A proposta da rede experimental de escolas também supõe a participação popular como elemento fundamental. Mas, neste caso a participação desejada é de natureza diferente, é menos direta do que a anterior. O que se pretende é demonstrar, com a rede experimental de escolas, que é possível obter um ensino de qualidade na escola pública e, a partir deste efeito de demonstração, levar a população a transformar-se no grande instrumento de luta pela generalização das condições que possibilitam a existência desse ensino público de qualidade. Constituída por escolas coordenadas pelas universidades públicas, com professores selecionados, melhor remunerados, contratados em regime de tempo integral nas disciplinas do núcleo comum, com possibilidades de realização de carreira regida pela habilitação profissional, pela competência profissional e pela dedicação ao trabalho, essa rede de escolas em pouco tempo poderia demonstrar à coletividade que é perfeitamente possível obter educação de qualidade no ensino público. Começaria por aí o processo de reversão das expectativas populares quanto à qualidade do ensino público. Por isso mesmo é que a varíavel central da proposta está na exigência de progressiva extensão do modelo a outras escolas da rede comum. Um cronograma de ampliação das escolas da rede experimental, uma vez divulgado pela administração, certamente levaria a população dos municípios e dos bairros das grandes cidades a lutar pela conquista de sua escola pública de qualidade. E quando a população do Estado estiver lutando pela conquista de sua escola pública de qualidade, os educadores, e mesmo o Governo do Estado, encontrarão na for-

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ça reivindicatória do povo o respaldo indispensável a realização dos esforços e à mobilização dos investimentos necessários à reconstrução do ensino público (Beisiegel, 1964). É inegável que neste processo se encontra uma modalidade de participação popular que não deve ser menosprezada.

CELSO DE RUI BEISEIGEL, doutor em Sociologia pela FFLCH da USP, é professor titular de Sociologia da Educação da Faculdade de Educação da USP. Vem trabalhando especialmente com as relações entre a política e a educação, sobretudo no campo da educação popular.

Referências bibliográficas AZANHA, José Mário Pires, (1985). Convênio de Cooperação Técnica FEUSP - Secretaria da Educação. São Paulo: FEUSP. BEISIEGEL, C.R., (1964). Ação política e expansão da rede escolar. Pesquisa e Planejamento, nº 8, dez. CRPE “Prof. Queiroz Filho”. BEISIEGEL, C.R., ARROYO, M.G., CURY, C.R.J., SAVIANI, D. (1983). Um novo estilo de diagnóstico educacional. Brasília: INEP. BEISIEGEL, C.R., (1984). Política e educação popular: a teoria e a prática de Paulo Freire no Brasil. São Paulo: Ática.

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François Dubet. Sociologie de l’expérience. Paris: Seuil, 1994. 273 p.

Pesquisador do CADIS — Centre d’Analyse et d’Intervention Sociologiques, até recentemente coordenado por Alain Touraine —, François Dubet realizou no início da década de 80 uma série de pesquisas sobre os novos movimentos sociais na França, como as lutas estudantis, o movimento antinuclear e a luta dos moradores de favelas de Santiago, no Chile. No entanto, a crise dos novos movimentos sociais e os processos de exclusão que culminaram com a dualização da sociedade francesa ofereceram novos desafios intelectuais para o pesquisador. Assim, nos últimos dez anos Dubet vem se dedicando ao estudo dos jovens e os mecanismos de exclusão social que gestam novas formas de sociabilidade e redefinem o papel da escola enquanto instituição socializadora. Seu trabalho La galère: jeunes en survie (Seuil, 1987) representa um marco fundamental nos estudos sociológicos sobre o agir coletivo juvenil e suas relações com o mundo da exclusão, até então configurado apenas como marginalidade e deliqüência.

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Em seu livro Les lycéens (Seuil, 1991), Dubet realizou estudos sobre os alunos dos liceus franceses, privilegiando a sua condição de atores sociais. Por essas razões seu interesse teórico maior resulta na investigação da subjetividade dos alunos e a maneira como vivem e constróem sua experiência. Sociologie de l’expérience, lançado no segundo semestre de 1994, é um livro que se torna produto de sua dupla atividade nos últimos vinte anos, como afirma o próprio autor: a de pesquisador e a de professor universitário. Por essas razões, realiza um esforço integrador de duas linhas de reflexão: uma primeira que diz respeito à sua tarefa de professor de sociologia e ao estado atual das teorias sociológicas contemporâneas; a segunda encontra ancoragem na atividade de pesquisa e na busca de fundamentos teóricos e metodológicos para seus trabalhos empíricos mais recentes. Na primeira vertente o livro examina a dispersão do campo sociológico atual, caracterizado pela multiplicidade de paradigmas e pelo estilhaçamento da sociologia clássica. No entanto, mais do que a fragmentação do campo de reflexão, Dubet considera que se desfaz a própria imagem clássica da “sociedade”, concebida como sociedade nacional e industrial.

Na segunda, o autor reconhece que a realidade social não se reduz a uma única lógica, a um só papel e a uma programação cultural homogênea das condutas. Sobressai, pelo contrário, tanto nas condutas individuais como coletivas uma heterogeneidade de princípios constitutivos que exigem dos indivíduos uma atividade constante de reflexão de modo a construir o sentido de sua prática. Por essas razões, o conceito de socialização enquanto interiorização individual das regras sociais vigentes torna-se objeto de exame crítico a partir das perspectivas consagradas de Durkheim e Parsons. O esgotamento dessas representações do social faz emergir a necessidade de novos conceitos que consigam apreender a natureza das práticas que caracterizam a vida social contemporânea. Assim, a noção de experiência, minuciosamente examinada por Dubet neste livro, recobre, ao mesmo tempo, segundo suas palavras, um “tipo de objeto teórico e um conjunto de práticas sociais”. O livro, dividido em seis capítulos, traduz o esforço intelectual do autor em desenvolver, por meio de um diálogo constante com a sociologia contemporânea, sobretudo a de origem francesa, a noção de experiência social.

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Examina criticamente, no primeiro capítulo, o argumento central da sociologia clássica, ou seja, a idéia de que o ator é um sujeito integrado, ou seja um indivíduo socializado em uma determinada sociedade percebida como sistema, como um Estado-nação e um conjunto de instituições. Por essas razões, logo a seguir (no segundo capítulo) Dubet examina o esgotamento da noção de sociedade, resultante de uma determinada forma de apreensão da realidade social, e a conseqüente fragmentação do campo da reflexão sociológica em várias correntes. Três capítulos constituem o argumento central do livro, onde a noção de experiência é examinada mediante a análise das lógicas de ação que se combinam na experiência social (terceiro capítulo); as relações entre o sistema social e a experiência são examinadas no quarto capítulo; e, finalmente, no quinto, Dubet se detém no trabalho ou atividade do ator, o modo como constrói sua experiência e se constitui como sujeito. Finalmente o livro examina em seu último capítulo as questões metodológicas, propondo os princípios centrais de uma sociologia da experiência que, segundo suas próprias palavras, “não é somente uma maneira de se ler as condutas sociais, mais um modo de fazer sociologia”. Até recentemente, na reflexão sociológica brasileira, a noção de experiência enriqueceu a compreensão sobre os processos de construção da ação coletiva e dos conflitos sociais, inspirada nos trabalhos de Thompson (Tradición, revuelta y consciencia de clase, Barcelona, Critica, 1979) sobre a formação da classe operária inglesa, ressaltando a importância dos elementos culturais na construção de uma prática de classe.

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Dubet certamente vem enriquecer esse campo de reflexão ao buscar construir um estatuto sociológico para uma noção que se tem revelado fundamental no estudo das práticas sociais dos sujeitos. Para os pesquisadores brasileiros que se dedicam à investigação das condutas coletivas ou individuais centradas na construção de sujeitos ou atores, o livro de Dubet oferece elementos importantes para a reflexão contemporânea. Permeando sua análise teórica com ricos exemplos advindos da sua atividade de pesquisa, as referências que faz aos jovens e professores indicam caminhos bastante fecundos para a pesquisa em educação no Brasil. Marilia Pontes Sposito Universidade de São Paulo

Jose Luis García Garrido. Problemas mundiales de la educación. Nuevas perspectivas. Madri: Dykinson, 1992. 273 p.

José Luis García Garrido, nascido na Espanha, é professor da Universidade Nacional de Educação à Distância. Como especialista em educação comparada ocupa cargos importantes em diferentes associações, tanto em seu país como em outros lugares do mundo. Presta, também, uma colaboração sistemática à UNESCO e a outros organismos internacionais. O livro Problemas mundiales de la educación. Nuevas perspectivas, publicado em 1992, é uma versão revisada e bastante reformulada da obra original, editada pela primeira vez dez anos atrás. “Tal cambio de actitud se debe al interés que han vuelto a provocar en mí los temas

capitales de que trata, consecuencia sin duda del interés que, al crepusculo del siglo XX, suscitan también en numerosos países. La última década ha sido particularmente rica en consideraciones de candente actualidad y de indudable proyección futura”, diz o prof. García Garrido. No momento em que reformas educacionais estão em discussão em quase todo o mundo e o debate tende a desenrolar-se independentemente das realidades nacionais e regionais, parece oportuno acompanhar as pesquisas comparadas em educação, tanto pela informação que podem oferecer-nos quanto pela comprensão das singularidades. Problemas mundiales de la educación... reúne cinco estudos sobre as questões educacionais mais relevantes no panorama mundial contemporâneo, tomando como base a análise comparativa de diferentes sistemas educacionais do Oriente e do Ocidente, de países desenvolvidos e de países do Terceiro Mundo. Ao longo da obra, fica claro que a sua organização por temas visa mostrar o auxílio que a pesquisa comparada pode prestar na definição de políticas educacionais e no progresso — utilizando as palavras do autor — do sistema institucional. Os temas selecionados são: a gestão do sistema educacional; a qualidade da educação; a formação docente; educação e emprego; o futuro dos sistemas educacionais. Cada um dos estudos que compõem o livro apresenta uma revisão resumida da evolução do tema em questão, principalmente ao longo dos últimos anos. Nos três primeiros estudos encontramos um análise global. O quarto consiste numa análise das relações entre educação e emprego num conjunto de países selecionados. E o quinto e último capítulo é um estudo de caráter prospectivo e transnacional.

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A gestão dos sistemas educacionais. No primeiro capítulo, onde o autor espanhol está interessado no estudo da gestão da educação, o conceito de regionalização constitui a coluna vertebral de sua análise. Entenda-se por regionalização, o processo de descentralização político-territorial que não necessariamente teve sua origem em uma situação prévia de centralização. O conceito de regionalização supõe autonomia e plena responsabilidade de ação no âmbito educacional dos governos regionais e locais, bem como das instituições e comunidades. Os sistemas educacionais nacionais, lembra-nos o autor, constituem um dos pilares da sociedade industrial e têm sua origem intimamente vinculada ao desenvolvimento do Estado-Nação nos diferentes-países. O problema é que os sistemas educacionais contemporâneos conservam ainda hoje uma certa tendência à nacionalização — ainda que com intensidades diferentes — num momento em que a era industrial e o Estado-nação estariam vivendo suas etapas finais. Afirma o autor: “El Estado-nación constituia y aún constituye, la estructura política que necesitaba un mundo consagrado al progreso industrial, al crecimiento de los núcleos industriales y de las ciudades. Una sociedad distinta — postindustrial o como quiera que se la llame — requeriría estructuras políticas también distintas [...] Um cambio sustancial de rumbo de la sociedad no tiene otro remedio que ocasionar a la vez um cambio de rumbo en la concepción actual de los sistemas educativos”. Por isso, na atualidade se estaria assistindo a um descontentamento generalizado devido à magnitude que os sistemas nacionais de educação foram

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adquirindo e se questiona tanto sua eficiência como sua tendência a uniformidade, eliminando as diferenças ao privilegiar a cultura nacional e sufocar as culturas locais. A partir dessas considerações preliminares, a proposta de García Garrido é, nas suas palavras, “...llevar a cabo un recorrido por el planeta en busca de esos sistemas educativos más flexibles, más porosos a las realidades subnacionales que los integran”. Para isso realiza uma rápida revisão dos sistemas educacionais centralizados, em seguida daqueles sistemas educacionais que preservam suas tradicionais autonomias e, por último, dos sistemas educacionais que apresentam tendências descentralizadoras. Para o estudo dos sistemas educacionais centralizados, os países escolhidos pelo autor foram: França; os países da Europa meridional, Itália, Portugal, Grécia; os países herdeiros do centralismo comunista; os países árabes; as novas nações, ou seja, aquelas que obtiveram sua independência ao longo do século XX. Todos esses sistemas educacionais possuem uma estrutura, governo e funcionamento que estão, principalmente, em mãos do poder político e dos órgãos supremos da administração nacional. O caso da França é significativo porque possui, segundo o autor, um modelo de forte centralização educacional acionado num país democrático e onde sua compatibilidade ocorre de fato. O autor observa, também, que as escolas particulares, tanto na França como na Itália, Grécia e Portugal, produzem um efeito inibidor ao centralismo da gestão do sistema educacional. Segundo García Garrido, ainda que a tendência a uniformizar seja, nesses países, geralmente reforçada pela política de

subvenção estatal à iniciativa privada, suas instituições acabam sendo um freio à centralização imperante. Por sua parte, os regimes comunistas imperantes na Europa oriental até a queda do Muro de Berlim, ainda que estejam num processo de reestruturação do Estado, são, e continuarão sendo durante longo tempo, os herdeiros do centralismo mais acentuado da história contemporânea, segundo o autor. Por isso, dedicará algumas linhas ao comentário do modelo de gestão educacional adotado na maioria desses países e das novas tendências provenientes do atual processo de transição para economias de mercado. No estudo dos países orientais, encontramos o mundo árabe. Ele está constituído por países situados em diferentes contextos geográficos, mas cuja administração da educação é fortemente centralizada. Nesses países, nos informa o livro, prevalecem estruturas administrativas e pedagógicas bastante parecidas entre si e que se sustentam na centralização das decisões, da administração e do controle de suas instituições. Uma vez mais, o autor destacará a importância da presença da educação particular; neste caso, para aliviar o centralismo do sistema educacional nos países árabes. Como exemplo é citado o caso do Egito, onde existe um sistema paralelo de educação particular islâmica que inclui sua própria universidade e que é sustentado, principalmente, pelas famílias dos alunos. Por último, o texto faz uma referência geral ao conjunto de países que obtiveram sua independência ao longo do século XX. Essas novas nações têm-se proposto construir sistemas nacionais de educação para ajudar o fortalecimento de sua identidade nacional; porém, o centralismo da

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administração educacional é contestado pela diversidade das etnias e das línguas da população. Essa situação obrigou as autoridades de alguns desses países a pensar na necessidade de estratégias de descentralização ou, pelo menos, de desconcentração de funções. Outro aspecto destacado nessa análise é que a política de nacionalização do sistema educacional tem-se dado também naqueles países que independentizaram-se de metrópoles com forte tradição de regionalização em educação. Por exemplo, as excolônias britânicas. Outro grupo de países estudados é aquele que apresenta uma vasta tradição de regionalização na sua gestão educacional. Entre eles, García Garrido vai diferenciar três tipos de regionalização diferentes. Um deles seria o dos países onde os governos dos territórios federados são os responsáveis pela administração de seus sistemas educacionais. Outro, o de países ligados ao Reino Unido, onde as comunidades locais tem uma forte tradição e força de participação junto ao governo central. E, por último, o autor cita o caso dos EUA, onde, além de a educação ser responsabilidade de cada um dos estados-membros, seu governo está em mãos das comunidades locais. García Garrido insiste na eficiência da gestão educacional norteamericana e afirma que a administração educacional desse país poderia ser sintetizada em três palavras: pluralidade, regionalização e democracia. Antes de finalizar o estudo, o autor se ocupará da análise de um grupo de sistemas educacionais que possuem uma estrutura administrativa centralizada, mas que estão em processo de descentralização. Alguns dos sistemas educacionais considerados

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pertencem a países organizados em Estados federais. Mas, à diferença de outras federações já analisadas, esses Estados ainda contam com um sistema educacional fortemente centralizado. Em primeiro lugar, são estudadas as formas de gestão da educação formal na Áustria e no Japão. Ambos países, ainda que tenham características bastante diferentes, vem buscando, nos últimos anos, novas maneiras de equilíbrio entre o poder central e os diversos poderes regionais e municipais. A seguir, são analisados os sistemas educacionais da Bélgica, dos países nórdicos, da América Latina e da Espanha. O caminho para a descentralização da gestão educacional aberto pela Bélgica, depois da Segunda Guerra Mundial, tem sido marcado tanto pelo alto grau de autonomia de seus municípios como pela diversidade religiosa e lingüística de sua população. Os países nórdicos manifestaram, nos últimos quinze anos, uma fase de progressiva descentralização, sustentada, principalmente, pela longa tradição de auto-abastecimento educacional municipal. O caso da América Latina é interessante de ser estudado porque, segundo o autor, é um dos lugares onde mais tem-se falado da necessidade de descentralização para melhorar a qualidade da educação. Por último, García Garrido dedica um espaço particular ao caso da Espanha, que — segundo ele — representa uma das mais ousadas políticas de descentralização educacional das últimas décadas, não só do cenário europeu mas também universal. A qualidade da educação. No segundo capítulo da sua obra, García Garrido tentará descobrir até que ponto os sistemas educacionais foram capazes de traduzir em ações concretas seus desejos de qualidade, e

em que medida a legislação e as ações institucionais dos diferentes países têm contribuído não só para um aumento quantitativo da instrução entre sua população, mas também para melhorar a educação de todos. Para responder a essa questão, o estudo apresentará os diversos enfoques de qualidade presentes nos EUA, na Europa, no Japão, na experiência comunista e nos países em desenvolvimento. Ao contextualizar o problema no âmbito mundial, o autor lembrará que a idéia de qualidade da educação surge nos anos 20. Após a Segunda Guerra Mundial, esta idéia se oporá à tendência que considerava que os problemas básicos da educação eram apenas de caráter quantitativo. Essa questão será retomada no debate educacional das últimas décadas em diferentes lugares do mundo, especialmente a partir de 1970, com o auge das reformas educacionais. A dissertação sobre o enfoque norte-americano de qualidade em educação tomou como base as informações e considerações fornecidas, principalmente, por dois documentos: um deles apresentado pelos EUA, em 1971, na Conferência Internacional de Educação, e outro elaborado pela National Commission on Excellence, em 1983. No primeiro informe, reconhecem-se falhas importantes no sistema educacional do país e propõem-se as seguintes estratégias para resolvê-las: oportunidades educativas institucionais compatíveis com o trabalho durante toda a vida e renovação das experiências educativas para resolver o problema do anacronismo do currículo na escola secundaria, além de algumas medidas concretas de ação. No segundo informe, a idéia central de qualidade muda e passa a ser a educação para a excelência.

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O autor parte da análise do conteúdo desses informes para avaliar até que ponto os EUA conseguiram alcançar as metas qualitativas em matéria de educação. Para tanto utiliza-se também de dados sócio-econômicos ligados ao desenvolvimento do país nos últimos vinte anos, fornecidos por Brown e Comola no livro Educating for Excellence: Improving Quality and Productivity in the 90’s, e de sua crítica ao sistema educacional contemporâneo. García Garrido, ainda que crítico da ótica economicista desses autores, compartilha com eles a importância que outorgam à contribuição de uma família unida e orientada à educação de seus filhos, à seleção e formação dos professores e à educação moral, enquanto aspectos-chave da qualidade da educação. Sugere que a situação norte-americana descrita não difere muito de outros países desenvolvidos e cita o exemplo de vários países europeus. Entretanto, a análise de dados sócio-econômicos do Japão possibilita compreender o melhor rendimento dos alunos japoneses em relação aos alunos dos países ocidentais, reforçando as conclusões das pesquisas norte-americanas que indicam os aspectos antes enunciados como elementos fundamentais da qualidade educacional. No caso da experiência da educação comunista, o prof. García Garrido questiona suas conquistas qualitativas devido ao fracasso do regime. O autor chega, inclusive, a duvidar dessas realizações educativas e denunciá-las como uma “propaganda bem orquestrada” do próprio regime, que encontrou crédulos intelectuais e educadores de diferentes tendências ideológicas que acreditaram que os sistemas educacionais implantados nos países comunistas eram superiores, em

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qualidade, aos do mundo capitalista. Diz o autor: “Es verdad que las universidades soviéticas y de otros países de Europa producían buenos profesionales. Pero está claro que no parece haber servido esto para proporcionar a dichos países, no ya un enriquecimiento economico semejante al de otros paises occidentales, sino ni si quiera una situación de modesto bienestar.” Assim, o autor mostra a impossibilidade de a educação comunista cumprir com um de seus objetivos principais, que é oferecer um “ensino de produção”. Também foi questionado no estudo seu propósito de formar um “homem novo, o comunista convencido e consciente”. Segundo o autor, é fácil observar a falta de convicções comunistas no mundo todo, inclusive entre os dirigentes do Partido e entre seus intelectuais. Finalmente, García Garrido analisa a qualidade da educação nos países em desenvolvimento. Segundo ele, nesses países está sempre presente a preocupação com os aspectos qualitativos do sistema educacional, mesmo que nos últimos anos, como os dados de diferentes pesquisas têm demonstrado, sua educação tenha-se deteriorado. É natural, afirma o autor, que, devido a seus escassos recursos, esses países possam apenas aspirar, no momento, um rendimento institucional compatível com o esforço necessário para criá-los e sustentá-los. Nesse contexto, é chamada a atenção do leitor para a ajuda internacional que os países em desenvolvimento têm recebido nos últimos anos, permitindo pôr em prática várias medidas para melhorar a educação, e são tomadas como base para o estudo da qualidade do sistema educacional desses países as avaliações que

alguns organismos internacionais realizam periodicamente. Entre as conclusões extraídas da análise comparativa, o autor destaca as seguintes: primeiro, a qualidade da educação continua sendo uma aspiração comum a todos os países, sejam eles pobres ou ricos; segundo, são poucos os países que discutem os rumos que deveria tomar uma educação de qualidade e pouquíssimos — ou talvez nenhum — os países que encontraram uma resposta para essa questão, ainda que provisória. A formação do professorado do ensino primário e secundário. No terceiro capítulo, o prof. García Garrido apresenta primeiramente uma visão geral da evolução histórica das instituições de formação do professorado, principalmente nas últimas décadas — na França, Alemanha, nos EUA, na Inglaterra, Espanha, ex-URSS, em algumas regiões da América Latina, na África —, e das reflexões dos organismos internacionais. Posteriormente, o autor fará considerações gerais sobre as tendências atuais da formação do professorado. E, por último, encontraremos algumas reflexões prospectivas sobre a formação docente no mundo. A formação dos professores é uma temática árdua e complexa desde o nascimento dos sistemas públicos de educação, no fim do século XVIII. E, nos dias de hoje — afirma o autor —, é cada vez mais difícil imaginar qualquer melhoria dos sistemas educativos que não seja acompanhada por uma melhoria da formação dos educadores. Um dos momentos mais significativos no desenvolvimento da formação do professorado primário foi a sua aproximação à universidade e a crise das escolas européias e americanas. As

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instituições de ensino superior norteamericanas foram, no final do século passado, as primeiras a demostrar interesse na formação de professores primários. Até então, a universidade preocupara-se somente com a formação do professorado do colégio secundário e limitara-se ao ensino de conteúdos de formação geral e à especialização científica. Isso a diferenciava das escolas normais, que no currículo vinham privilegiando a formação pedagógica dos professores de ensino primário. As principais conseqüências da evolução institucional, sinalizadas no estudo, foram a inclusão dos aspectos pedagógicos e do conteúdo científico especializado em ambos os currículos, e a redução das diferenças de formação existentes — e logo de status sócio-econômico — entre professores da escola primária e do colégio secundário. O autor lembra, também, a atuação dos organismos internacionais na formação do professorado, tanto na teoria como na prática. Como exemplo, García Garrido traz para sua análise as reflexões teóricas que aparecem em alguns documentos elaborados, em décadas diferentes, por várias dessas organizações. A exposição panorâmica sobre a evolução do professorado primário e as tendências contemporâneas na Europa, nos EUA e na ex-URSS mostra que a estruturação e organização da formação docente nesses países é bastante similar. A única distinção importante se encontra nos programas e conteúdos das instituições soviéticas, onde se evidencia a preocupação de possibilitar uma formação adequada ao futuro formador do homem novo. De qualquer maneira, parece não se encontrar realizações nesse sentido. O futuro e a melhoria da formação do professorado

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dependeriam, segundo o autor espanhol, de duas questões fundamentais: a necessidade de transcender o nacional e os problemas educativos próprios do país na formação do professor e a redefinição do profissionalismo docente, não só pela sua capacidade de produzir conhecimentos e habilidades mas, principalmente, considerando a suas dimensões morais. Educação e emprego. O quarto capítulo da obra examina a relação educação/emprego por meio do estudo comparativo das iniciativas de formação profissional nos países industrializados. O prof. García Garrido escolhe o termo emprego no lugar de trabalho porque seu propósito é centrar-se na análise das tendências de institucionalização da formação profissional numa atividade específica, sem se referir ao sentido educativo que, no âmbito da formação para o trabalho, pode e deve ter a formação geral. Para sua análise, García Garrido toma como base o estudo da evolução do tema em questão e das experiências nos cinco países ocidentais com maior índice de industrialização: França, Alemanha, Reino Unido, EUA e Japão. Essa escolha metodológica exclui as experiências de formação profissional e de pleno emprego dos países comunistas porque, segundo o autor, ainda que durante muito tempo tenham produzido bastante interesse entre os profissionais da área, nas últimas décadas esses países vêm sofrendo a derrocada teórica e prática da sua filosofia, encontramse, inclusive, numa situação sócioeconômica em que prevalece o desemprego, situação essa que representa uma das principais ameaças do panorama atual. O autor parte do pressuposto de que o problema do emprego é um

dos desafios mais importantes dos sistemas educacionais, nas últimas décadas, no mundo todo. A formação profissional constitui, segundo ele, uma dimensão essencial do processo educacional, mas não por isso deve estar orientada a eliminar o desemprego. O objetivo da educação deve ser promover o emprego, um emprego que seja digno da natureza do homem e da sociedade. A análise dos cinco países mostra que a trajetória da formação profissional nos países europeus e nos EUA é bastante diferente, devido, principalmente, à estrutura classista que acompanha, desde suas origens, a maioria dos sistemas educacionais na Europa, enquanto que o sistema de educação norteamericano foi construído na base de uma concepção unitária da escolaridade. Entre os países europeus, um caso que merece especial atenção é a Alemanha, porque, à diferença de outros países industrializados, conserva bem delimitados os distintos tipos de ensino secundário, sendo por isso possível afirmar-se que possui o sistema educacional mais classista do continente. O caso do Japão, com seu alto grau de industrialização e sua agressividade comercial nos mercados internacionais, desperta bastante interesse entre os demais países industrializados. À diferença do que se pode imaginar, a formação profissional japonesa não constitui uma área especialmente importante para a política educacional do país, nem tão desenvolvida como em outros países industrializados. Uma constatação do estudo que mais chama a atenção do autor é a dificuldade da educação no sentido geral e, nesse caso, da formação profissional de evoluir ao ritmo das

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mudanças no mundo do trabalho. Existem evidências de que, segundo o prof. García Garrido, a formação profissional não acompanha o ritmo das mudanças do emprego porque são elas as que influenciam na estrutura, organização e conteúdo da formação profissional, e por isso não se traduzem em novas ações até passado bastante tempo, quando, seguramente, o mundo do trabalho já é diferente. O futuro dos sistemas educacionais. O último capítulo está dedicado à análise das mudanças que, segundo o autor da obra, delineiam-se, neste fim de século, entre os sistemas educacionais. García Garrido afirma que as posturas ideológicas que outrora serviram de base para o desenvolvimento de gigantescos sistemas públicos de educação — como o nacionalismo, o otimismo pedagógico e o desenvolvimentismo — estão desmoronando. Torna-se assim necessária uma mudança de rumo de nossa sociedade, já que os modelos atuais satisfazem cada vez menos a humanidade, farta de problemas e faminta de soluções. A partir dessas considerações gerais, o autor esboça uma série de mudanças desejáveis nos sistemas educativos. Em primeiro lugar, García Garrido se refere a “mudanças de raiz”, que, segundo ele, são as mais urgentes, para logo passar a descrever as mudanças de estrutura e de função. Entre as mudanças de raiz, encontra-se a necessidade de que os sistemas educacionais venham a se configurar como sistemas de vocação planetária e de forte identidade regional, como sistemas que aglutinem todos os fatores e elementos sócio-educacionais e como sistemas presididos pelo objetivo básico de elevação cultural e moral dos povos.

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Dessa forma, a nova estrutura que se venha a propor deverá estar aberta aos projetos educativos dos indivíduos, grupos e comunidades, e ser regionalizada, permitindo a presença das diferentes realidades convivendo em harmonia. Também terá de promover a participação de todos os membros da comunidade no trabalho educativo e incitar a auto-avaliação educativa, no âmbito da cultura e da moralidade. As mudanças funcionais desejáveis nos sistemas educacionais são difíceis de enunciar, do mesmo modo que as outras mudanças já descritas, explica o autor, tendo em vista que as funções do sistema educacional são a conseqüência de uma complexa trama de causas que estão estreitamente vinculadas aos traços fundamentais da estrutura dos sistemas educacionais, mas dependem, também, de outros fatores externos ao sistema educativo. Não obstante, o autor enuncia algumas funções que, a seu ver, deveriam ser exigidas, no futuro, dos sistemas educativos: autocontrole, auto-avaliação e permanente revisão de seus próprios efeitos educativos. Para finalizar, García Garrido dá um novo passo nas suas propostas e coloca a necessidade de se caminhar, ainda que lentamente, para um sistema educacional universal, o qual define da seguinte maneira: “Un sistema educativo universal tendría que basarse fundamentalmente en la libertad, autonomía y creatividad de personas, grupos e instituciones. Un sistema educativo universal no tendría por qué ser una máquina pesada, complicada y costosa, sino un esfuerzo colectivo de cohesión, respetuosa de las múltiples y ricas diversidades existentes en el ámbito del ser y del quehacer culturales”.

Ao longo dos cinco estudos, o autor vai deixando perceber que existe uma crescente internacionalização dos problemas educativos e que suas soluções também deverão ser buscadas de modo global. Essa tendência à integralização sinaliza para o próximo milênio uma série de desafios educacionais, que obrigariam os estudiosos e políticos a modificar seu “mapa cognitivo”. Ou seja, segundo o prof. García Garrido, as possibilidades de projetar políticas educacionais, neste quadro dos novos desafios, implicaria a compreensão das experiências nos diferentes lugares do mundo. Juntamente com a procura de uma proposta educacional internacionalista, destaca-se no livro a necessidade de recuperar os valores culturais locais e o papel da família na educação moral, como os aspectos essenciais do processo de socialização da criança. Nesse contexto, as instituições particulares de ensino aparecem, em várias situações diferentes, como aquele setor mais dinâmico e capaz de se contrapor às limitações da postura nacionalista e da burocratização de muitos dos sistemas educacionais, ajudando a eficiência dos mesmos. As conclusões que o autor chega em cada uma das questões abordadas e os desafios que, segundo ele, a educação no mundo terá de enfrentar no século XXI mostram bastante empatia com as análises e recomendações elaboradas pelos organismos internacionais para o próximo milênio, que vêm inspirando atualmente as reformas educacionais de vários países do mundo. Há cerca de duas décadas, o debate educacional na América Latina entre os pesquisadores

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independentes, políticos e nos organismos internacionais, como UNESCO, CEPAL e PNUD, denunciava a preocupação pelo caráter discriminador do ensino público. Assim, em muitos trabalhos de investigação e análise, a pesquisa foi centralizada na busca do entendimento das origens e mecanismos dessa discriminação, pretendendo assim amparar as propostas a favor de um ensino público mais eqüitativo. O fim do século volta a encontrar os organismos internacionais e muitos pesquisadores da área preocupados em diagnosticar a realidade educacional e propor alternativas de transformação. Mas, hoje, o enfoque de interesse é radicalmente diferente. A lógica economicista a partir da qual vem sendo construída a leitura da realidade educacional coloca a descentralização e a instrumentalização do ensino como os pilares da nova tendência na política educacional, no quadro da melhoria da qualidade e eficiência da educação. Nesse contexto, o enfoque de análise dos assuntos levantados em Problemas mundiales de la educación parece estar mais próximo da necessidade de fornecer um conjunto de informações para a definição e legitimação de políticas educacionais específicas do que para o avanço do conhecimento comparado*. Assim, algumas experiências aparecem como “modelo”, enquanto outras são tiradas de cena por falta de legitimidade. A proposta do livro Problemas mundiales de la educación, ao abranger tantos temas importantes, é, sem dúvida, bastante ambiciosa. No entanto, ainda que ofereça informações interessantes sobre os sistemas educativos no mundo, não nos permite conhecer a complexidade

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de seus processos de desenvolvimento nem sua especificidade. Nora Krawczyk Pontifícia Universidade Católica de São Paulo * Essa orientação da pesquisa comparada foi evidenciada, também, num estudo sobre o estado da pesquisa comparada durante os anos 60 e 70. Citado em Miguel A. Pereyra, “La comparación, una empresa razonada de análisis. Por otros usos de la comparación”, Revista de Educación, número especial, Espanha, Ministerio de Educación y Ciencia, 1990.

Louann A. Bierlein. Controversial Issues on Educational Policy. Newbary Park: Sage, 1993.

Este livro faz parte da coleção Controversial Issues on Public Policy, voltada não para os especialistas de cada área mas sim para o público em geral. A proposta da autora é apresentar e discutir, de forma clara, as principais questões que têm permeado o debate educacional nos EUA. O texto procura ser, acima de tudo, informativo e simples, sem ser simplista. Não há dúvida de que um livro como esse só poderia surgir em um país em que a política educacional é matéria de interesse da sociedade como um todo e em que a discussão democrática das propostas existentes se dá nos mais diversos âmbitos e com a participação dos envolvidos. É interessante observar que, lá como cá, há uma intensa sensação de que vivemos um momento no qual há necessidade de profundas reformulações na educação. E que, também lá como cá, ao mesmo tempo em que há fortes pressões por reestruturação do sistema educativo — oriundas principalmente de

setores empresariais —, há pouca clareza de como se deve dar, em termos pedagógicos, essa reestruturação, ainda que o sentido geral do que se propõe diga sempre respeito à adaptação do sistema educativo às novas tendências da produção. Mas, se é verdade que, como nos EUA, vivemos no Brasil uma realidade de pressão por mudanças, a leitura desse livro nos alerta para a existência de uma diferença essencial entre ambos os países: a forma como essas pressões (que não deixam de ser legítimas) são apresentadas. Enquanto nos EUA as pressões são incorporadas num processo de negociação democrática — no qual, como veremos, a atuação dos pais de alunos acaba sendo preponderante —, no Brasil elas têm aparecido como exigências inexoráveis da “modernidade”, apresentadas especialmente por meio do “ideário pedagógico” do Banco Mundial. Mas deixemos esssas questões para serem retomadas ao final desta resenha e vamos ao conteúdo do livro. A autora começa por pontuar algumas características do sistema educacional norte-americano, como o seu caráter descentralizado, remetendo-as à história desse sistema. Vale a pena reproduzir alguns dados. Nos EUA, em 1860, 50% das crianças já concluíam a elementary school (seis anos). Em 1941, 50% dos jovens concluíam os doze anos de escolaridade básica e média. Em 1970, mais de 75% concluíam esses doze anos (K-12). Aproximadamente 46 milhões de alunos se encontram no K-12; o investimento nesses alunos é de mais de US$ 215 bilhões (4,1% do PNB). A autora apresenta quatro valores básicos que têm sido diferentemente enfatizados pelos diversos grupos envolvidos e pelas diversas correntes políticas:

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eqüidade, eficiência, liberdade e excelência. Assim, por exemplo, os liberals (termo que não corresponde exatamente ao nosso “liberais”) têm enfatizado muito mais a eqüidade do que o têm feito os conservadores. A autora também mostra que há um processo de mudanças no setor educacional: na década de 80, 35 Estados realizaram transformações significativas no seu sistema educacional, sendo que doze deles criaram ou aumentaram impostos com o fim específico de financiar essas mudanças. Algumas tendências dessa reformulação são: programas de pagamento diferenciado para professores, baseado na performance de seus alunos em testes padronizados; testes sistemáticos aplicados também aos professores. Mas não há uniformidade nas mudanças propostas: por exemplo, enquanto grande parte delas enfatiza maior autonomia para as escolas, outra parte, também significativa, implica maior centralização. O debate ideológico e partidário permeia várias das questões: enquanto os democratas propõem medidas compensatórias para o aumento da pobreza que houve na década de 80, entendendo que a pobreza é um dos fatores básicos do baixo rendimento escolar, os republicanos se voltam para propostas como as de gerir a educação em moldes mais próximos dos empresariais (operating education like a business), de instituir o sistema de vouchers (bônus), ligado à proposta de livre-escolha, que será discutida mais adiante. Em seguida a autora aponta o leque de atores sociais envolvidos na formulação e desenvolvimento de políticas educacionais: tanto os poderes constituídos (a respeito dos quais é interessante notar que o Judiciário tem um papel muito mais

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significativo na definição prática dessas políticas do que no Brasil) como as organizações da sociedade civil. Em alguns Estados, o poder sobre a educação foi quase totalmente transferido para os municípios, enquanto em outros quase todas as decisões permanecem no âmbito estadual. Dois grupos da sociedade civil merecem especial destaque: os pais de aluno e os professores. Os pais de alunos têm, em geral, grande poder sobre a escola em que seus filhos estudam, no âmbito do distrito, e também um poder significativo nos âmbitos superiores. A autora aponta que os pais de alunos são, em tese, favoráveis a amplas reestruturações do sistema de ensino, enquadrandose dentro da forte corrente de opinião, liderada por empresários, que entende que o sistema educacional norte-americano precisa ser reformulado a fim de assegurar aos EUA condições de competir em situação de igualdade (de preferência de superioridade) com o Japão e a Alemanha. Mas, aponta a autora, quando se trata de mudanças concretas para a escola em que seus filhos estudam, a maioria dos pais se coloca contra estas mudanças e são um dos principais fatores de resistência a elas. Argumentam eles que o ensino não está tão ruim assim e que não gostariam de que seus filhos funcionassem como cobaias. Quanto aos professores, são um grupo altamente qualificado: 47% tem mestrado ou doutorado. Estão engajados em dois sindicatos nacionais, NEA (National Education Association) e AFT (American Federation of Teachers). A autora apresenta dados incompatíveis sobre o salário anual médio dos professores em 1990: US$ 31.304 (p. 25) e US$ 44.400 (p. 50).

Mesmo se o problema é se se consideram ou não os meses de férias, a diferença é grande. A NEA tem cerca de 2 milhões de afiliados e se espalha nas pequenas e médias cidades. A AFT tem cerca de 500 mil afiliados e se concentra nas grandes cidades, especialmente da Costa Leste e do Mid-West. A autora também assinala que houve um aumento real de 27% nos salários dos professores na década de 80 (acima de todas as outras categorias). A AFT é formada por professores mais bem qualificados: cerca de 80% tem mestrado ou doutorado. Uma informação interessante que o livro nos traz é que, recentemente, a AFT mudou sua posição em relação a uma série de pontos: passou a admitir certo nível de competição entre as escolas, pagamento diferenciado para professores, baseado em avaliação de desempenho etc. A NEA continua a ser radicalmente contra esse tipo de medida. A interpretação da autora é que a AFT é mais permeável à necessidade de mudanças do que a NEA. É claro que há outras interpretações possíveis: pode-se pensar, por exemplo, que a AFT defende essas posições por imaginar que sua base, mais qualificada, tende a ganhar mais com pagamento diferenciado e competição entre escolas. Dois temas que a autora analisa com certo vagar são a aplicação de testes padronizados para medir performance das escolas e a polêmica sobre a livre escolha. Quanto à aplicação de testes, já é prática relativamente difundida nos EUA e é medida fácil de implementar, pois conta com o apoio dos pais de alunos. O mais interessante que a autora nos relata a respeito desse tema é uma crescente

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consciência de que testes padronizados que só meçam o básico (e não habilidades mais complexas) tendem a criar um ensino voltado à preparação para os testes. Ela mostra que tendem a cair o uso de laboratórios, a elaboração de ensaios, o ensino mediante projetos de pesquisa, ou seja, ocorre exatamente o contrário do que se diz pretender: um ensino voltado a formar pessoas adaptadas às novas exigências da produção, supostamente mais críticas, mais criativas, mais capazes de trabalho em equipe, mais autônomas. A aplicação de testes que meçam habilidades mais complexas, por sua vez, é extremamente cara. Quanto à livre escolha de escolas, a autora distingue pelo menos quatro modalidades: escolha intra-distrito entre escolas públicas, escolha inter-distritos entre escolas públicas, escolha intra-distrito e inter-distrito entre escolas públicas e privadas com o uso de bônus (em alguns casos, há ainda a distinção entre escolas privadas “sectárias” e “não-sectárias”). Expõe (novamente) a extrema diversidade de situações entre os Estados e municípios, e mostra que os princípios de eqüidade são levados a sério pelo Judiciário (por exemplo, algumas sentenças determinaram que só poderia haver livre escolha se fosse para todos, o que implicaria a necessidade de assegurar transporte para as crianças que fossem freqüentar escolas mais distantes de suas casas), mostrando ainda que não há avaliações confiáveis sobre o tema. Apresenta também um sumário de argumentos a favor e contra a livre escolha. Vamos aos principais deles: A favor — > Livre escolha é uma maneira de se conseguir oportunidades educacionais melhores para pobres e minorias.

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> Livre escolha permite livrar as crianças de más escolas. > A competição por estudantes e dinheiro forçará as escolas a melhorar. > As crianças têm diferentes necessidades de aprendizado e, portanto, necessitam de diferentes opções de ensino. Contra — > Não há evidências de que a competição melhore as escolas. > As crianças mais necessitadas — justamente aquelas sem pais capazes de escolher as melhores escolas — vão ficar com as piores escolhas. > A escolha vai funcionar contra as famílias mais pobres, a menos que seja fornecido transporte gratuito; o dinheiro gasto em transporte seria melhor aproveitado se usado na sala de aula. > A livre escolha que inclua as escolas privadas vai drenar recursos das já necessitadas escolas públicas. > Encorajar a transferência de estudantes significará diminuir os esforços para aumentar os laços escola/comunidade. Para finalizar, cabe levantar algumas especulações que com base neste livro podem ser feitas a respeito de três temas atuais e relevantes. O primeiro deles é o papel da discussão pública, da divergência democrática, da diversidade de experiências, da pluralidade de caminhos na definição de políticas públicas na área de educação. Talvez a mais interessante lição a ser extraída para nós, brasileiros, da leitura de um livro como este, sobre o debate atual das políticas educacionais nos EUA, é a existência e a importância dos diversos atores sociais que acabam tendo peso significativo na definição

dos rumos a serem dados à educação. O próprio livro — voltado para o público em geral — é um indicador dessa situação, na qual o interesse da sociedade como um todo na área educacional contribui para que as soluções afinal encontradas tendam a ser as mais adequadas e encontrem efetivo respaldo para serem implementadas. Cabe registrar que isso é o oposto do que vem ocorrendo no Brasil, onde “neotecnocratas” pretensamente iluminados pelas luzes da modernidade tentam sistematicamente desqualificar interlocutores importantes — particular e especialmente os professores da rede pública e, secundariamente, as próprias universidades das quais, em geral, se originam — para impor determinadas políticas. O segundo tema se reporta às políticas que os organismos internacionais (notadamente o Banco Mundial) preconizam para os países do Terceiro Mundo na área educacional. Algumas dessas políticas são controversas nos Estados Unidos — como o incentivo à competição entre as escolas — e outras são realmente o inverso do que se faz por lá. Lembremo-nos, por exemplo, da recomendação presente em vários textos do Banco Mundial (por exemplo, no livro de Eric A. Hanushek e W. Harbinson, Educational Performance of the Poor, resenhado no número anterior desta revista) de que se deve evitar dar aumento de salários aos professores, pois, em uma comparação da relação custobenefício dos diversos insumos possíveis (input/output approach) no setor educacional, os salários dos professores seriam um dos de mais baixo retorno. Ora, a autora nos relata o fato de que na década de 80

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houve um aumento real de 27% no salário dos professores (acima de quase todas as outras categorias), reflexo de um posicionamento da maioria da sociedade — que vigia ativamente o uso de seus impostos — de que educação é um setor estratégico e que, para melhorá-la, é necessário, ainda que não suficiente, pagar decentemente os professores. O terceiro tema diz respeito à relação problemática que existe entre o ideal proclamado para a educação e o conteúdo real das reformas que acabam sendo implementadas. Explico-me: em geral, o discurso sobre a importância estratégica da educação segundo o novo paradigma produtivo, de competição mundial, globalizada, enfatiza as novas habilidades que seriam necessárias para o cidadão (e trabalhador) da Nova Ordem Mundial: autonomia, criticidade, criatividade, capacidade de trabalho em equipe. As experiências que têm peso e divulgação no imaginário do percurso das reformas também caminham nesse sentido. A autora nos relata que teve impacto nos EUA a experiência, desenvolvida em algumas escolas da cidade de Colônia, na Alemanha, na qual seis professores “tutoram” noventa alunos durante seis anos de sua vida escolar (da 6ª à 11ª série), incentivando o trabalho em equipe, desenvolvendo projetos etc. Igualmente, quando se propõe a “uma visão” sobre a educação a que as reformas devem conduzir, a autora (p. 150) se permite pensar em alunos em permanente atividade (em grande parte diante de um computador), em vez de simplesmente ouvintes de um professor. O papel do professor (que, como na experiência de Colônia, acompanharia o aluno por vários anos) seria muito mais de tutor e orientador de estudos e projetos do

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que o de “ministrador de aulas”. As classes como tal seriam abolidas. Haveria grupos de estudo e também formas individuais de auto-instrução orientada. E assim por diante. Ora, quando se pensa nas reformas concretas que são propostas, percebe-se que elas têm muito pouca relação com o imaginário que estimula a necessidade delas. Por exemplo, os testes padronizados, que cada vez mais são enfatizados, caminham claramente num sentido oposto a essa “Escola Nova do século XXI”. Cabe a nós, educadores, tentar responder: por que se apresentam, como sustentação ideológica de determinadas reformas, visões que nada têm a ver como o conteúdo concreto das reformas que são efetivamente propostas? Cristiano Di Giorgi Universidade Estadual Paulista

Gaudêncio Frigotto. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1995, 231 p.

Os socialistas estão aqui para lembrar ao mundo que em primeiro lugar devem vir as pessoas e não a produção. As pessoas não podem ser sacrificadas. Nem tipos especiais de pessoas — os espertos, os fortes, os ambiciosos, os belos, aqueles que podem um dia vir a fazer grandes coisas — nem qualquer outra. Especialmente aquelas que são apenas pessoas comuns. [...] É delas que trata o socialismo; são elas que o socialismo defende. O futuro do socialismo assentase no fato de que continua tão necessário quanto antes, embora os argumentos a seu favor não sejam os mesmos em muitos aspectos. A sua defesa assenta-se no fato de que o capitalismo ainda cria contradições e problemas que não consegue resolver e que geram a desigualdade (que pode ser atenuada através de reformas moderadas) como a

desumanidade (que não pode ser atenuada). Eric Hobsbawm

A epígrafe de Hobsbawm é apropriada para começar essas breves palavras sobre o livro de Gaudêncio Frigotto. Não apenas porque o historiador inglês constitui uma das referências permanentes (tácitas ou explícitas) desta obra, mas também porque o seu conteúdo resume três das principais razões que orientam a estimulante reflexão teórica proposta pelo autor. Primeiramente, a necessidade de pensar as condições históricas que dão origem à profunda crise que atravessa hoje o capitalismo real, ultrapassando as visões apologéticas e apocalípticas. Em segundo lugar, a opção por realizar essa tarefa, partindo de uma reflexão rigorosamente crítica, da perspectiva do materialismo histórico; um materialismo histórico renovado e capaz de reformular-se ele próprio à luz do colapso do socialismo soviético e da queda dos regimes comunistas da Europa oriental. Por último, embora certamente não menos importante, o livro de Frigotto propõe um enorme desafio ético: pensar e compreender a crise do capitalismo a partir de um renovado enfoque socialista, como formas de contribuir para a construção de uma sociedade democrática e radicalmente igualitária, fundamentada nos direitos, e que respeite as diferenças, a diversidade, uma sociedade — segundo Hobsbawm — de pessoas comuns, das maiorias, justamente aquelas condenadas pelo mercado à mais absoluta miséria. Este livro, de alguma forma, é a continuação mais eloqüente de A produtividade da escola improdutiva, texto que ainda hoje continua sendo de consulta

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obrigatória para aqueles que desenvolvem pesquisa na área de educação e trabalho. Essa linha de continuidade entre duas obras, separadas por uma década, constitui, ao mesmo tempo, um dado alentador e trágico. Alentador porque Frigotto continua discutindo de forma clara e decidida os enfoques economicistas que reduzem a educação a um mero fator de produção, a “capital humano”. Trágico porque ainda hoje essa última perspectiva continua expandindo-se com novas roupagens, com inéditas e sedutoras máscaras que convencem, inclusive, muitos intelectuais que as combatiam no passado. Tal continuidade entre ambos os trabalhos não deve nos fazer pensar que, em seu novo livro, Frigotto limite-se a denunciar que, o “velho” ainda não morreu e que o “novo” é apenas uma armadilha que encobre um status quo imune ao passar do tempo. Justamente um dos valores mais destacados deste trabalho reside em que o autor pretende discutir a racionalidade (ou irracionalidade) que encerram os enfoques do neocapital humano no atual contexto de profundas mudanças vividas pela sociedade de classe neste fim de século. A especificidade da crise estrutural que atravessa hoje o capitalismo real é o marco no qual cobram materialidade as perspectivas discutidas por Gaudêncio neste novo livro. De fato, o contexto mais amplo da reestruturação capitalista contemporânea no plano político, econômico, jurídico e educacional funciona como um enquadramento ineludível para avançar tanto na crítica teórica aos enfoques apologéticos da sociedade pósindustrial, quanto para recusar as saídas individualistas e místicas que os intelectuais apocalípticos acabam

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defendendo. A Educação e a crise do capitalismo real é um livro para ser lido à luz da atual hegemonia dos regimes neoliberais e neoconservadores (tanto na América Latina quanto num número nada desprezível de países do Primeiro Mundo), e reconhecendo as novas condições materiais e culturais criadas a partir do regime de acumulação fordista, de seus Estados de bemestar e da própria reorganização (ou desorganização) da classe operária que é derivada de tal processo. E aqui cobra sentido a dupla tarefa crítica à qual se propõe Frigotto. Em primeiro lugar, discutir as novas concepções do “capital humano” que se respaldam na suposta legitimidade das teses do fim da história e das ideologias, segundo as quais (e afortunadamente) o mundo é e será para sempre capitalista. A recusa de tais perspectivas conduz o autor a discutir a validade das posições que as caracterizam no plano educacional. Frigotto analisa asssim três categorias básicas do discurso neoliberal dos homens de negócio, dos organismos internacionais, das burocracias governamentais conservadoras e dos intelectuais reconvertidos: “sociedade do conhecimento”, “educação para competitividade” e “formação abstrata e polivalente”. Em segundo lugar, realiza uma crítica não menos radical aos enfoques defendidos por três autores que, de óticas não divergentes e diferenciadas ainda da trivialidade que caracteriza os admiradores do capitalismo pós-industrial, “acabam silenciando ou eliminando os grupos ou classes sociais fundamentais e os movimentos com eles articulados como sujeitos da história [o qual os conduz], ironicamente, a reforçar a tese do fim da história: Adam Schaff, Claus Offe e Robert Kurz.

No contexto de um capitalismo transformado e não por isso mesmo excludente e discriminador, Frigotto desenvolve uma minuciosa análise marxista da educação. Enfoque marxista que, na medida em que é aplicado a ele próprio, reformula-se e enriquece-se. Logo, de certa forma, este livro difere da citada obra A produtividade da escola improdutiva. O leitor encontrará aqui novos conceitos, novos percursos teóricos, novas perguntas e também, certamente, novas respostas a velhas perguntas. Por último, este livro possui um inestimável valor político. Ele contribui com um conjunto de idéias relevantes no campo da ação política e, ao mesmo tempo, está inspirado na necessidade de aprofundar, defender e ampliar as experiências democráticas de resistência e oposição ao programa de ajuste neoliberal existentes em nossos países. No plano educacional, as reflexões de Frigotto inserem-se e inspiram-se numa multiplicidade de experiências alternativas de gestão que foram (e estão sendo) desenvolvidas no Brasil por administrações populares: Porto Alegre, Belo Horizonte, Angra dos Reis e muitas outras que constituem hoje modelo de gestão eficiente e democrática de uma política educacional pública e de qualidade. Tais experiências inspiram o autor deste livro e são uma referência tácita ao longo de todos os seus capítulos. O novo livro de Gaudêncio ajuda-nos a pensar que é possível renascer das cinzas, que é possível e necessário lutar por um mundo mais justo e igualitário. Simplesmente porque a história ainda não terminou. Pablo Gentili Deutscher Akademischer Austauschdienst, Universidade Federal Fluminense

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Notas de Leitura

Danilo Martuccelli. Décalages. Paris: PUF, 1995. 264 p.

Buscando decifrar sociologicamente as dimensões da subjetividade nas sociedades complexas, Danilo Martuccelli reúne nesse livro uma série de ensaios que instigam à leitura pela diversidade de temas que examina. A palavra que dá nome ao livro, “décalage”, procura exprimir, de acordo com o autor, “a distância entre o objetivo e o subjetivo, drama peculiar da modernidade que torna impossível a simples identificação dos indíviduos com as exigências das estruturas ou sistemas sociais”. Essa distância é examinada a partir das relações entre os signos e a ação, envolvendo três situações: “le dérapage”, quando ocorre o esforço impossível do ator de fazer o mundo curvar-se frente a um dispositivo simbólico que acaba por se exaurir; “la delimitation”, que evidencia o agir do ator à sombra de representações que não são capazes mais de explicar os fatos, constituindo expressões simbólicas ultrapassadas; “la depéndence”, finalmente, que resulta na impossibilidade do ator de definir uma matriz simbólica autônoma. A conspiração do amor e a idéia da

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revolução constituem exemplos da primeira situação, assim como a relação pedagógica na universidade exprimiria a segunda. O racismo e o populismo estariam refletindo, segundo Martuccelli, os mecanismos da dependência. A diversidade temática não só enriquece o campo de reflexão como aponta para uma unidade de fundo de suas preocupações, traduzidas no esforço de compreensão das relações entre o ator, a situação e os signos. A instigante análise desenvolvida ao longo do livro pelo autor certamente estimula a reflexão para investigações e estudos mais criativos, no âmbito da pesquisa em sociologia da educação. Desse modo seria possível ultrapassar certas reiterações empobrecedoras que vêm se impondo na pesquisa educacional que criam, ao mesmo tempo, dificuldades para o avanço do conhecimento. Marilia Pontes Sposito Universidade de São Paulo

The hidden consequences of a national curriculum. Washington: American Educational Research Association, 1995. Este volume, publicado pela American Educational Association (AERA), inclui artigos que focalizam recentes reformas curriculares nos Estados Unidos, voltadas para a instituição de metas escolares comuns, para a definição de currículos oficiais e para o estabelecimento de mecanismos de avaliação do desempenho das escolas. O primeiro texto, de autoria de Karen Zumwalt, discute as diferentes concepções de currículo nacional e denuncia a ambigüidade presente nas reformas propostas, que tento visam a aumentar o controle da prática curricular como a tornar as escolas espaços de criatividade e investigação. termina propondo que os atuais esforços sejam canalizados para o apoio a reformas localmente organizadas. O segundo, de Linda Mcneil, critica o estabelecimento de currículos oficiais e associa tal iniciativa à antiga visão da escola como fábrica, ressuscitada nas recentes reformas. A autora destaca o clima de medo e desconfiança

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Notas de Leitura

criado nas escolas, em recente experiência ocorrida no Texas, quando o professorado passou a ser julgado pelos resultados de seus alunos e alunas nos testes oficiais. Finaliza com sugestões semelhantes às do primeiro texto. O terceiro estudo, de Larry Cuban, acentua que as reformas curriculares das escolas americanas durante os últimos quinze anos têm partido da crença de que uma escola de maior qualidade contribui para levantar uma economia em crise. Termina comentando a falta de sucesso das iniciativas e lastimando que as mesmas se façam a partir de outros interesses que não os dos estudantes. O quarto artigo, de Hebert M. Kliebard, aborda dois precedentes históricos de implantação de um currículo nacional nos Estados Unidos (1917 e 1958) e procura relacioná-los aos atuais debates. Argumenta que a ênfase, em ambos os casos, foi não em uma educação adequada às crianças e aos jovens da nação, mas sim a um suposto interesse nacional. Sugere que a reestruturação do currículo americano se faça em prol do desenvolvimento de uma cidadania crítica. O último texto, de Thomas Kellaghan e George F. Madaus, defende a importância da análise de experiências de currículo nacional levadas a cabo em outros países. Discute as implicações dessa iniciativa nos EUA, tendo em vista as diferenças entre esse país e os países europeus. Recomenda, por fim, cuidados especiais na implementação dessa iniciativa. Considerando que o MEC está em processo de elaboração de parâmetros curriculares nacionais para a escola básica brasileira, a leitura dos textos acima ‘bastante oportuna, já que oferecem uma

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análise crítica de recentes experiências americanas. Tanto os pressupostos que vêm informando as reformas como seus efeitos são questionados pelos autores, que nos alertam, assim, para os equívocos e para os problemas implicados na implantação de um currículo nacional. Em síntese, as discussões e as recomendações presentes nos artigos podem estimular e enriquecer os debates sobre a elaboração e a implementação dos parâmetros curriculares da nossa escola. Antonio Flavio Barbosa Moreira Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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Paul Singer Poder, política e educação Conferência de abertura da XVIII Reunião Anual da ANPEd de 1995, onde se discute, de forma polarizada, duas visões de fins da educação e de como atingi-los: a civil democrática e a produtivista. A primeira é produto do amplo movimento pela igualdade dos dois últimos séculos e que resultou na democracia, moderna; a segunda se origina na mítica neoliberal aos serviços do Estado. Power, politics and education Opening conference of the XVIII Annual Meeting of ANPEd, held in 1995, where two views of education’s goals and how to reach them are polarized: democratic citizen education and education for productivity. The first is a result of the extensive movement over the last two centuries in favor of equality and which resulted in modern democracy; the second has its origins in neo liberal mystique which renders its services to the state.

Pierre Bourdieu Você disse “popular”? O texto analisa e faz implodir a noção realista de “linguagem popular”, mostrando como ela é originária da aplicação de categorias míticas. A análise é feita aplicando-

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se o modelo geral da produção do discurso como decorrente da interrelação entre um habitus lingüístico (que varia de acordo com o sexo, geração, posição e origem social e étnica) e um mercado, que pode ser um mercado dominante ou um mercado livre reservado aos dominados. Did you say “popular”? The text analyzes and demolishes the realist notion of “popular language” showing how this idea originates from applying mythical categories. The analysis is made by applying a general model identifying speech production as a consequence of the interrelation between a linguistic habit (which varies according to sex, generation, position and social and ethnic origin) and a market, which can be a dominant one or a free one reserved for the dominated.

Nelly P. Stromquist Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero: perspectivas comparativas Visando corrigir desigualdades entre homens e mulheres, vários Estados vêm se utilizando para tanto de políticas públicas. O artigo examina os diferentes tipos de políticas públicas que foram adotadas e postas em prática, fazendo notar o lento progresso alcançado nessa

área. Na base da legislação aprovada por alguns países desenvolvidos e em desenvolvimento e de suas conseqüências, destacam-se três tipos de políticas públicas: políticas coercitivas, executadas mediante uma autoridade que proíbe práticas indesejáveis; políticas de apoio, que estabelecem unidades organizacionais para promover e monitorar questões de gênero; e políticas de construção, que atuam no sentido de criar um saber contestatório e promover novos comportamentos e atitudes. Esse úlitmo grupo de políticas públicas — que demanda verbas para sua efetiva implementação — é o que, freqüentemente, tem recebido menor atenção por parte dos Estados-nações. State policies and gender equity: Comparative perspectives To correct inequalities among women and men, several states have utilized public policies. Remarking the slow progress attained through these means, the article examines the types of policies that have been designed and put into effect. On the basis of legislation enacted by some developed and developing countries and its aftermath, three types of policies are distinguished: coercive policies, which operate through commands prohibiting undesirable practices; supportive policies, which establish organizational units to

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Resumos/Abstracts

promote and monitor gender issues; and constructive policies, which function to create contestatory knowledge and promote new behavior and attitudes. This last set of policies — which need funds for their effective implementation — are the policies less often considered by nation states.

Luiz Antônio Cunha Sociedade, Estado e educação: notas sobre Rousseau, Bonald e Saint-Simon Nesse texto são passadas em revista as obras de três filósofos sociais, percursores da sociologia: Rousseau, Bonald e Saint-Simon. Para ressaltar as idéias saint-simonianas, uma obra de Júlio Verne, até há pouco inédita, é também analisada.O texto destaca as idéias gerais de cada um desses autores, relacionando-as com as posições sobre questões educacionais, especialmente uma, que mantém plena atualidade: a da distinção entre educação pública e educação privada. Em conclusão, fica evidenciada a ambigüidade com que a equação “educação pública igual a educação estatal” é empregada, pelo menos no que diz respeito aos seus destinatários. Society, State and education: Annotations on Rousseau, Bonald and Saint-Simon In this text the works of three social philosophers, forerunners of Sociology, Rousseau, Bonald and Saint-Simon, are reviewed. In order to highlight Saint-Simon’s ideas, a work of Julio Verne, only lately edited, is also analyzed. In each of these authors the text brings forth their general ideas, connecting them with positions related to educational issues, calling special attention to one which continues in existence: the distinction between public and private education. The text

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concludes showing the ambiguity with which the equation identifying public with state education is used, at least with regard to those for whom education is destined.

Clarice Nunes Ensino e historiografia da educação: problematização de uma hipótese A partir de dados preliminares de uma pesquisa sobre livros de história da educação publicados no Brasil, o artigo examina algumas hipóteses de interpretação sobre as características que esta produção apresenta. O conteúdo dos livros pesquisados estrutura-se em dois eixos: a organização escolar e o pensamento pedagógico. O texto apóia-se em biografias de alguns autores e dados de outros estudos, para apontar algumas das possíveis origens das concepções identificadas nesses livros. Teaching and history of education: Testing a hypothesis A research of books on the History of Education, published in Brazil, serves as a starting point for this article which examines some interpretative hypotheses regarding the characteristics that this material presents. The content of the books researched are structured on two axis: the organization of schools and pedagogical theories. The text is supported by biographies of other authors and data from studies in pointing out some of the possible origins of concepts identified in these books.

Maria Stela Marcondes de Moraes O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai e a ação político-educativa dos mediadores O texto analisa como as diferentes formas de organização interna e de intervenção externa do Movimento

dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai, ao longo do período estudado (1978-1990), refletem a ação político-educativa dos agentes de educação popular que atuaram junto às lideranças dos movimentos rurais, no Alto Uruguai em três momentos distintos: os agentes das pastorais da Igreja popular, inspirados na Teologia da Libertação; as escolas sindicais, que difundiam o modelo de organização e luta do “sindicalismo combativo”; a chamada “formação técnica”, assumida por assessores especializados, com ênfase na luta pelas necessidades imediatas e “por uma vida melhor”. The Movement of Populations Affected by Dam Constructions in the Uruguay River Basin and the role of mediators in shaping the movement The text analyses how the different forms of internal organization and external intervention of the Movement of Populations Affected by Dam Constructions in the Uruguay River Basin, over the period studied (1978-1990), reflect the political and educational action of the popular education agents who were active with the rural movement leaderships. This is seen in three distinct phases: the pastoral agents of the popular Church, inspired in Liberation Theology, the union schools that disseminated the model of organization and conflict of “combative unionism”, and “technical formation” taken on by specialized assessors, emphasizing the fight in favor of immediate necessities and for “a better life”.

Celso de Rui Beisiegel Participação popular na melhoria do ensino público O artigo expõe as linhas principais de uma proposta de contribuição da

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Resumos/Abstracts

universidade para a melhoria do ensino público. A proposta está centrada na idéia da necessidade de recuperação das expectativas populares de obtenção de um ensino de qualidade na escola pública. Discute a questão da participação indireta da população na recuperação de um ensino público de qualidade. Popular participation and bettering public education The article puts forth the principal lines of a proposal of the University’s contribution for bettering public education. The proposal centers on the idea of the need to recover people’s expectations of obtaining quality education in the public school. It also discusses the issue of the population’s indirect participation in recovering quality in public education.

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Normas para Colaborações

1. A Revista Brasileira de Educação aceita para publicação artigos relacionados com a educação, resultantes de estudos teóricos, pesquisas, reflexões sobre práticas concretas, discussões polêmicas, etc. Os textos devem ser inéditos, de autores brasileiros e estrangeiros. 2. Os originais devem ser encaminhados à Comissão Editorial em duas vias impressas, devidamente formatadas, acompanhadas de disquete, digitado em um dos programas de edição de texto em formato padrão para PC (exceto Carta Certa e Fácil). Entretanto, diferentemente das vias impressas, o texto que vai no disquete NÃO deve ser formatado. Isto é: a) Digitar todo o texto numa única fonte (tipo), sem fontes diferentes para títulos, seções, etc. b) Não utilizar negrito, sublinhado ou itálico em títulos e seções. c) Não utilizar caixa alta (tudo em maiúscula) para títulos, seções ou para ênfase. d) Para ênfase ou destaque, utilizar itálico e NÃO negrito ou sublinhado. e) Assinalar os parágrafos com um único toque de tabulação. f) Dar ENTER/RETURN apenas no final do parágrafo. g) NÃO utilizar a função de nota de rodapé (footnote) ou de nota final (endnote) do programa de processamento de texto. Em vez disso, simplesmente colocar todas as

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notas, numeradas, ao final do texto, como texto comum. h) Separar títulos de seções, nome do autor, etc. do texto principal com um duplo retorno (ENTER/RETURN). i) NÃO utilizar formatação especial (recuo, itálico, etc) para citações. Apenas separá-las do texto principal com um duplo retorno (ENTER/RETURN). 3. Os textos não devem exceder 40 laudas com aproximadamente 30 linhas digitadas em espaço 1,5, em fonte corpo 12 pontos (ou 10cpi)). Todas as matérias devem ser antecedidas do título em português e inglês e de resumo e abstract, sem ultrapassar 10 linhas, com indicação de pelo menos três palavras-chaves (key words). O autor deve também fornecer dados relativos à instituição e área em que atua, bem como indicar endereço para correspondência com os leitores. As referências bibliográficas (vide abaixo) devem estar incorporadas no texto e as notas devem ser explicativas. 4. A publicação dos artigos está condicionada a pareceres ad hoc de membros do Conselho Editorial ou colaboradores. A seleção de artigos para publicação toma como referência a sua contribuição à educação e à linha editorial da Revista, a originalidade do tema ou do tratamento dado ao tema, a

consistência e o rigor da abordagem teórica. Eventuais sugestões de modificações de estrutura ou de conteúdo por parte da Editoria, serão elaboradas com consenso do autor. 5. As resenhas não devem ultrapassar 10 laudas e as notas de leitura 2 laudas. A apresentação deve obedecer ao contido no item 2. 6. Os quadros, gráficos, mapas, etc. devem ser apresentados em folhas separadas do texto (indicando-se neste os locais em que devem ser incluídos) devendo ser numerados e titulados corretamente e apresentar indicação das fontes que lhes correspondem. Sempre que possível, deverão ser confeccionados para sua reprodução direta. 7. As notas de pé-de-página, quando existirem, devem ser de natureza substantiva. As menções de autores, no correr do texto, devem subordinar-se à forma (autor, data) ou (Autor, data, página) como nos exemplos: (Apple, 1989) ou (Apple, 1989, p. 95). Diferentes títulos, do mesmo autor publicados no mesmo ano deverão ser diferenciados adicionando-se uma letra depois da data. Exemplo: (Gadotti, 1995a), (Gadotti, 1995b), etc. 8. A bibliografia será apresentada ao final do artigo, em ordem alfabética, obedecendo as seguintes indicações:

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Normas para Colaborações

a) Tratando-se de livros: sobrenome do autor (em caixa alta)/ VÍRGULA/Seguido do nome (em caixa alta e baixa)/VÍRGULA/Data, entre parênteses/PONTO/Título da obra (em itálico)/DOIS PONTOS (se houver subtítulo)/Subtítulo (se houver)/PONTO/Edição de forma abreviada e se não for a primeira/ PONTO/Local da publicação/ ESPAÇO, DOIS PONTOS, ESPAÇO/ Nome da editora/PONTO/Nome do tradutor, quando houver/PONTO/. Exemplo: APPLE, Michael W., (1989). Educação e poder. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas. Tradução de Maria Cristina Monteiro. b) Tratando-se de artigos: sobrenome do autor (em caixa alta)/ VÍRGULA/seguido do nome (em caixa alta e baixa)/VÍRGULA/Data, entre parênteses/PONTO/Título do artigo/PONTO/Título do periódico (em itálico)/VÍRGULA/Volume do periódico/VÍRGULA/Número do periódico/VÍRGULA/Páginas correspondentes ao artigo/PONTO. Exemplo: MACHADO, L.R.S., (1985). Cidadania trabalho no

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ensino de segundo grau. Em Aberto, v.4, nº 28, p. 35-38. c) Tratando-se de coletâneas: sobrenome do autor do capítulo (em caixa alta)/VÍRGULA/seguido do nome (em caixa alta e baixa)/ VÍRGULA/Data, entre parênteses/ PONTO/Título do capítulo/ PONTO/Escrever “In:”/Sobrenome do organizador (em caixa alta)/ VÍRGULA/Iniciais do nome do organizador/(SE HOUVER OUTRO ORGANIZADOR, REPETIR ESTA OPERAÇÃO SEPARANDO OS NOMES ATRAVÉS DE VÍRGULA)/ Escrever, quando for o caso, “(orgs.)” ou “(coord.)”/PONTO/ Título da coletânea (em itálico)/ DOIS PONTOS (se houver subtítulo)/Subtítulo (se houver)/ PONTO/Edição de forma abreviada e se não for a primeira/PONTO/ Local da publicação/ESPAÇO, DOIS PONTOS, ESPAÇO/Nome da editora/PONTO/Nome do tradutor, quando houver/PONTO. Exemplo: ROMÃO, José E., (1994). Alfabetizar para libertar. In: GADOTTI, M., TORRES, C. A. (orgs.). Educação popular: utopia

Latino-Americana. São Paulo: Cortez. d) Tratando-se de teses acadêmicas: sobrenome do autor (em caixa alta)/VÍRGULA/Seguido do nome (em caixa alta e baixa)/ VÍRGULA/Data, entre parênteses/ PONTO/Título da obra (em itálico)/ DOIS PONTOS (se houver subtítulo)/Subtítulo (se houver)/ PONTO/Grau acadêmico a que se refere/PONTO/Instituição onde foi apresentada/VÍRGULA/Tipo de reprodução/PONTO. Exemplo: DI GIORGI, Cristiano Amaral Garboggini, (1992). Utopia da educação popular: o paradigma da educação popular e a escola pública. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Observação: O envio espontâneo de qualquer colaboração implica automaticamente a cessão integral dos direitos autorais à Revista Brasileira de Educação da ANPEd. A Revista não se obriga a devolver os originais das colaborações enviadas.

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Assinaturas

REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO é uma publicação da ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, voltada à divulgação da produção científica, fomentando e facilitando seu intercâmbio no âmbito nacional e internacional. É uma publicação quadrimestral, distribuída sob a forma de assinaturas (R$ 28,00/ano) e/ou de números avulsos (R$ 10,00/número). Assinale com um X a opção desejada e preencha os campos com as quantidades e valores: Solicito _____ assinaturas de 3 exemplares/ano x R$ 28,00 cada = R$ __________________ Solicito _____ exemplares avulsos do Nº _____ x R$ 10,00 cada = R$ __________________ Solicito _____ exemplares avulsos do Nº _____ x R$ 10,00 cada = R$ __________________ Solicito _____ exemplares avulsos do Nº _____ x R$ 10,00 cada = R$ __________________ Total = R$ __________________ FORMA DE PAGAMENTO Envie cheque nominal à ANPEd com o valor total acima, para o seguinte endereço (acompanhado de cópia preenchida desta página): Secretaria da Revista Brasileira de Educação Ação Educativa Tel. (011) 825-5544 Fax (011) 825-7861 Av. Higienópolis, 901 CEP 01238-001 São Paulo - SP Nome/Instituição: _____________________________________________________________________ Rua/Bairro: __________________________________________________________________________ CEP: ________________________ Cidade: ___________________________________ UF: _________ Assinatura: _______________________________________________ Data: _______/_______/_______ Banco: _________________________________ Nº do Cheque: ________________________________

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ERRATA No número anterior da Revista Brasileira de Educação (Nº 0, Set/Out/ Nov/Dez, 1995), nas páginas 5, 53, 83 e 94, onde se lê “Trabalho apresentado na XVII Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, outubro de 1995”, leia-se “Trabalho apresentado na XVII Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, outubro de 1994”.

ESTA PUBLICAÇÃO FOI COMPOSTA EM O PTIMA E SABON BRACHER & MALTA, COM FOTOLITOS DA HOLT E IMPRESSA PELA EDITORA PARMA EM PAPEL P ÓLEN SOFT 80 G/ M 2 DA CIA. S UZANO DE PAPEL E C ELULOSE PARA A ANPED , EM ABRIL DE 1996.

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