Sergio Maciel - Ratzara.pdf

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ratzara

p/ fernanda adamowski

Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. Lei Nº 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998 Depois peguei as palavras prazer (oneg), abundância (shefa), beleza (shefer) e desejo (ratza), que trocando as letras ficam praga (nega), lodo (refesh), dejeto (feresh), crime (fesha) e aflição (tzara) Shai Agnon por Toba Sender

na base de qualquer comunidade humana, na raiz de qualquer princípio de civilização, é inevitável encontrarmos essas concepções e narrativas que, ao olhar moderno – e, diz-se, civilizado –, soam absurdas, sem fundamento, muitas vezes grotescas, que formam os mitos. para nós, em nosso estágio da civilização, esse tipo de história não passa de uma curiosidade bizarra, e uma palavra como “mito” é, com muita frequência, empregada pelo sentido pejorativo de “mentira” ou “crendice”, como se os povos antigos fossem ignorantes que elaboravam histórias esdrúxulas para combater o tédio e tentar explicar aquilo que não entendiam direito || o mito e o ritual (que é a encenação do mito e a participação da comunidade nele) não são erros, e os rituais para chuva não servem para fazer chover, mas como uma forma de marcar algo como: “agora é a época da chuva”. muito pouco, então, é o que nos separa das sociedades ditas “primitivas”, mas há diferenças no estruturamento básico da sociedade que se refletem talvez não tanto no nível racional quanto emocional, que é o que permite a elas que retenham os seus mitos comunitários, ao passo que nós parecemos ter jogado os nossos fora ao longo do caminho, dos quais só a superstição acaba permanecendo intocada || cada cultura constrói os seus mitos com base na própria experiência, fauna, flora e topologia conhecidos, o que as leva, por exemplo, a atribuir um estatuto sagrado a certos rios e montanhas locais. não por acaso, todos os povos parecem ter mitos associados à terra, e mesmo os mitos de criação do ser humano com muita frequência tocam nos mesmos lugares-comuns. alguns elementos em comum, porém,

como a relação com a terra, hão de ser muito próximos em todas as culturas que tenham desenvolvido algum tipo de atividade agrícola, que é provavelmente o que está por trás do mito da criação a partir do barro: plantas brotam da terra e servem de alimento a nós e aos animais, que, por sua vez, também podem nos servir de alimento, dependendo da cultura || nós, quando morremos, tendemos a ser sepultados, o que é menos uma preocupação higienista do que um ritual. o corpo é coberto de terra e desaparece debaixo dela, alimentando-a e estimulando a geração de outras plantas – da onde se conclui, portanto, que, por mais que a carne e a terra sejam matérias muito diferentes aos sentidos, deve haver alguma afinidade entre as duas coisas. o humano não é algo divorciado da natureza – e tampouco é a natureza divorciada do divino –, mas um processo dela própria, e essa é a noção que fica implícita nessa narrativa, cristalizada na forma do mito || o mesmo pode ser dito das conotações míticas dos ciclos de dia e noite, das fases da lua e das quatro estações, pelo menos para os povos habitantes das latitudes em que as estações são marcadamente distintas, dentre as quais a primavera costuma ter o maior destaque, muitas vezes associada a temas de morte e renascimento, com o fim do inverno e o desabrochar das flores. é por isso que abril é o mais cruel dos meses || o pensamento cabalista inseriu o drama cósmico no cerne da narrativa da criação e do problema do mal, através da noção do tzimtzum, das sefirót e suas klipót e a tikkun do mundo || todo fluxo material então está radicalmente desterritorializado e descodificado desprovido de sentido || essa falta de sincronia entre o

humano e o natural parece ser sintomática [...] não por acaso, passa a enxergar a natureza como mero recurso a ser explorado e gerenciado, e o humano como algo à parte disso || o corpo é marcado nas culturas primitivas, signos que marcam o seu pertencimento ao corpo pleno da terra, o movimento da cultura que se realiza nos corpos, se inscreve neles, domesticando-os || olhar para a poesia sob esse viés mítico, levando em consideração como os mitos podem ou não funcionar em cada etapa da estruturação das sociedades humanas, que nunca deixam de desejá-los, ainda que secretamente, e como os poetas lidam com isso, é importante para repensarmos a partir de um outro ângulo o problema persistente do espaço do poeta (ou a sua falta de espaço) na modernidade, que, longe de se resolver, nem que fosse através de uma resolução aniquilante, como queria peacock ou como quis adorno, só se torna mais complexo conforme a história avança || e refletir sobre isso, mais do que repetir automaticamente os velhos clichês sobre a herança xamânica da poesia – do poeta como o legislador não-reconhecido do mundo, antena da raça, aquele que purifica as palavras da tribo, etc, etc – é a tarefa que, mais do que nunca, recai sobre o poeta escrevendo hoje adriano scandolara

why you wanna fly Blackbird? you ain’t ever gonna fly Nina Simone

por uma brecha brilha a agonia: às carnes aradas atado o mundo de espalhados pastos sem espaços por uma brecha brilha a agonia: à noite se bebe se bebe a terra pelos sulcos escorrem assovios por uma brecha brilha a agonia: covas se cavam às cobras sem uso por uma brecha brilha a agonia toda dança seu ritmo mantém no breu dos bosques esconsos toda dança seu ritmo mantém e a agonia brilha pela brecha: se digna opacando-se escurece por uma brecha brilha a agonia por uma brecha brilha a agonia: à noite se come se come a terra para estralos ouvir o fim da fome:

onde terão curtos bichos sossego onde será segura a curta vida onde se deita com folga se deita por uma brecha brilha a agonia: tão pequena à noite à terra acolhida se brinca com ferro com bronze brinca por uma brecha brilha a agonia: e num ciclo curto e quase inotável em calma e clara forma se apresenta o detalhado desastre da dor no irreversível instante entreaberto da natureza mítica das coisas por uma brecha brilha a agonia: por uma brecha brilha a agonia

quando em seu bote inflável enfim ventanias sopraram e um turbilhão de águas confundiu seu rosto em pavor e pranto ela o filho acolhendo as mãos sobre ele pousou e assim disse: “filho, que dor desabou sobre nós! seu corpo não sabe e você dorme profundamente neste mísero bote de preto látex que sobre o breu-cianuro desliza nesta noite pobre de brilho nem tampouco sente o sal se abater sobre seus cabelos e à voz do vento permanece surdo somente se deita sobre uma sacola um plástico sujo com tão linda tez pois se nosso horror em você causar ainda mais horror cubra os ouvidinhos amor te peço que apenas durma te peço pequeno que também durma o mar e durma o mal que estremeça em brilho toda a mudança vinda de teu gesto e perdoe por favor qualquer pecado em nossa fuga” e contra as rochas se abate à

noite quem buscava refúgio enquanto dormimos e o fluxo contínuo das águas de algas o corpo todo cobre e com ânsia da costa os cílios cerrados mantém sem lembrança da mãe não acordem quem longe de casa sobre a areia morre

te agrada mesmo costurar-se na própria mortalha usando os mais estreitos pontos ou tecer o horror do vazio diariamente para na sombra desatá-lo em fracasso (qual é tua espera) prolongando o eco de algo como é bonito mas a beleza é só uma parte do processo algo quase descartável eu quero o travo a ânsia a dor o eco de sempre faltar qualquer coisa de corpo em tua busca você não está pronto é o momento de engolir a seco o mundo cozinhar uma calma útil para a velhice constatar a fraqueza ante o breu (você de fato não o deseja) que você prolonga com palavras adentrar como pode o seco escorrer do seco o áspero brotar do estéril tudo em você que se faz (de onde vem esse nome essa memória esquecida essa lembrança que você espera se abra em lugar muito longe de você) vai se consumindo num moroso adiamento é bonito mas não é bom ou é apenas bonito e o bonito já não serve a nada eu saio daqui anônimo e seco anônimo e seco como uma torneira (algumas palavras e você acredita nisso te humilham no uso) que alguém já referiu em algum lugar como uma imagem possível da impossibilidade da linguagem é bonito mas em tarde cinza

em que havia chuva sob a tarde cinza outra imagem continua se perpetuando em aquarela (até quando) e você resta

p/ ricardo domeneck

caro poeta, three men walk into a dream1 (não, isso não é uma piada!) e nós os assistimos: de nomes os três: capitão coronel e suj. desc. e caminham até o pé duma árvore (enquanto nós os assistimos) o capitão senta numa pedra o suj. desc. em pé dá as costas ao coronel e olha o nada (o suj. desc. aliás é uma espécie de contorno ele não tem voz não tem corpo não tem rosto é mais uma presença que deixamos sentir) o coronel também de pé saca uma arma !tudo isso vemos e não ouvimos! até que começam as seguintes falas: cor – “[inaudível]” cap – “[inaudível]” cor – “[inaudível]” cap – “ah, coronel, todos sabemos pra quem você trabalha” e pronto acabou acendem-se as luzes você olha pra mim e diz que a poesia é isso: “a fala do coronel representa precisamente aquilo que entendo por poesia, ou seja, não há nenhuma dificuldade, para nenhuma pessoa, em compreender o sentido da frase ‘ah, coronel, todos sabemos pra quem você trabalha’. todavia, pelo modo como é composta a estrutura do sonho não nos é dado saber a que se refere esse encadeamento de signos, em qual parte de qual discurso está inserida esta simples sentença. com isso, quero dizer que à poesia se assemelha precisamente pelo fato de optar por discurso e conferir a ele uma potencialidade de sentidos tal que nos permite inferir, porém nunca precisar, quem é o empregador do coronel. i.e., com isso, o sentido pleno da frase não possui outro pertencimento que não aquele do sonho. é preciso ser absolutamente contemporâneo, todavia, e perceber que essa forma do sonho não uma poética possível mais (você é pós-utópico? se o é, você é também trans-histórico? que dia é hoje no seu poema?). digo tão somente sonho em condição de símile, matéria da qual me aproveito para mostrar que linguagem, seja qual ela, 1

I think it gets funnier start in the language of our saviors (TRANSLATE, Google. 2016).

nunca é compreendida em sua totalidade e todo discurso, seja qual ele, mantém um estreito laço com a insuficiência – tanto política quanto poética – da expressão. graças a deus tudo é mistério (cf. rosa 1937 apud 2014 apud 2016). portanto, para encerrar a questão, quero apenas ressaltar que o que houve aqui, com essa frase, foi a instauração de um mundo – um mundo lançado no mundo –, uma brecha lançada, e a nós fica cabendo apenas duas coisas: 1) interpretar hermeneuticamente essa promessa do capitão/poeta através de uma contrapromessa sem fim que funda um sentido no vago e 2) incorporar esse empregadorobra (ainda desconhecido, pois fragmentário) ao nosso próprio corpo, assumindo o lugar do próprio capitão (à beira da morte?), entregando nosso corpo ao risco desse desconhecido. a busca por um sentido pleno é precisamente referida na presença do suj. desc., ou seja, como algo que nos vira as costas, que possui apenas uma forma metafísica, uma presença alheia ao acontecimento e, sobretudo, inalcançável” assim me disse embora voz alguma atestasse que alguém sobre meu sonho a outro alguém noturno e miserável em colóquio se estava dirigindo

p/ guilherme gontijo flores

ela de mim o mor carpo das dores colheu, nada a temer: tudo ceifou-me o pasto das coisas alegres e o terror mantém vias pra vir. atroz é temer quando o nada se espera: who dixit? [S 422-425]

chaira tudo isto é monótono eu sei não vai comover ninguém (Zbigniew Herbert)

p/ rafael falasco

I então derrama o sangue e ao derramar o sangue não muda o rito o povo clama então o povo clama por mais sangue é sempre assim o sangue mana o povo clama então o povo clama mais sangue e me pergunto não haverá fim pra tanto sangue então os estoques do mundo não secam nossos tédios não sossegam esse cansaço

II eu li que prado cerrado soterra não tem corpo que a grama cresce em fúria que a lama leva e traz um pouco nosso eu li que a terra não tem cor nem prata brilha sob que toda presença é um mero mito e que o lirismo devolveria um pedaço perigoso meu li que a cena acaba serena sem pergunta completamente induzida pelo desejo sem dor sem dó ou corpo eu li que ímpio é saber sobre nós o fim o fato feito eu li tanta coisa e tudo isso fede à paz

III eu sorvi toda tua cota teu terror em toda terra teu mestre em todo canto e exalo meros nomes sítios síria senegal beirute bom sucesso sem sentido mas a sede segue sua causa se infla e sedentos sorvem sangue primeiro o anho novo acossa aquele que mal manja e mirra mas enquanto a mão prepara o rombo bom sucumbe bambo ao solo e o peito aberto estanca a sede vira as vísceras vasculha-as espreme o pus aperta as veias em busca de mais sangue omnia nostrum sensere malum e eu aperto ao peito o grito o gozo

IV o sangue segue e o povo exige então o povo suga sangue e sangue ainda tanto sangue enquanto eu tento toda troca possível meu olho pelo seu meu corpo por outro minha vez por tua voz mas não mudam as coisas o sangue não cessa e a todo canto arrasta terror & tédio o povo corre então o povo corre tentando afastar-se do entulho daquilo que olha do dia da própria vida e ver consigo tudo con sumir-se

V depois o silêncio o denso o intenso o imenso

p/ ismar tirelli neto

aqui ninguém desemboca ao acaso: eis a terra dos desolados dos doídos firmes – sustém no cinza qualquer norte possível: (ver o sol surgir carmim ver sua seta rasgar o breu o peito prenhe pelo gozo saciar a boca com canto) entre o caco e o retalho humano é estacar em meio às coisas

sobre minha casa arde a chama da possibilidade o jardim é incerto e meu cão azul sem razão dorme ao pé da porta tudo acontece aqui meu quarto e minha sala estão no mundo: sou feliz e a flor da morte curva-se no canto do quintal

às vezes algo imane pousa sobre a ponta parca dum alfinete (eis-te crente aqui aspirando ao tempo: nada vasto adentra a vida sem deixar destroços) íntimo ao grito e ao abismo do nada

ao condensar-se em terra o corpo já que a matéria em tudo compacta inda que sólido discirna-se ao olho mudo rarefaz-se em reza e some (mas o corpo o corpo pode também brotar do sal ajuntar-se em flores) e em si mesmo aberto e fechado aguarda que a angústia então desapareça em morte dissolva-se (circundando assim uma casa estéril com seus jardins carnais) enquanto estrutura sob a chuva em desespero as formas o nada

escoar-se pela forma mais básica passar por fluir cruzar-se precipitar-se plúvio garoar-se pluvilíneo manar verter incessantemente aguar-se envolver encostas encobrir submergir alastrar-se propagar-se colonizar perder arrastar perpassar difundir-se impregnar e repassar invadir-se penetrar-se dimanar sobre diques resvalar relvas escorregar mover-se denso grosseiro trabalhoso demorado moroso pingar em chuviscar neblinar-se súbito cristalizar-se em bruma e cerração reacender-se pelo gume sangrar esmar-se pela palavra fazer-se do vazio volver e desvirar-se e tornar a revolver escavacar a cercania furar o contorno vazar assilhuetar-se azulado no perfil do branco enoitar-se tetro na própria boca da noite serenar sob o seco ramo sáfaro galho safirizar o tempo depois do tempo próprio descujar-se a caveira de fulano florescer desfiar-se recostar a carne lançar-se de si

díade sobre safo, horácio & catulo sobre gontijo & gonçalves

I (s.1, h.1.38, c.51) que sentado sempre diante de ti venha aqui ó róca-de-ardis eu peço não procure onde talvez a rosa dome meu peito doce e sorridente o que a mim inteiro mísero me arranca o sentido quando nem de mim destoa que sob a densa voz ou palavra II (s.21, s.23, s.24) ]velhice agora a pele ]circunda ]persegue e voa até onde o tempo come brota sobretudo o espanto ]barranco or]valhado em noite aden]tro

nada me espan]to ]você [...]’ [.] me livra ]de meus tormentos todos bem se faz viver também[ ]as coisas belas t]odas nós em pleno viço[

primeiras noites de lua cheia e estamos imersos em nudez damo-nos as mãos ao avesso vagas sombras de alento sussurros rondam a cidade a bordo de taxis noturnos sempre a mesma viagem em torno de nós e de tudo compele-me com teu sopro apagando-nos sobriamente em rugas e ano após ano primeiras noites de lua cheia: a luz revela-se de um modo que nunca pensamos precisar

p/ denise levertov & adelaide ivánova

ainda verdes sob a densa ânsia nossos corpos dos nossos cenhos e castos mais em viço que as faces: mamilos e umbigos e pentelhos parem um tipo ao léu de rosto: ou mudam a sombra roliça ao seio à bunda às bolas a dobra da minha pança o vão da tua virilha como um chão de estrelas como da terra à aurora se curva num gesto de gozo e sabida ternura nada assim vem passar em olhos ou lábios apáticos eu, tenho

um rasgo ou um risco que amo e corta meu corpo da caixa do peito à cintura e conta do anseio e da lonjura seu longo dorso a cor da areia e como o osso salta dizem do céu após o poente quase branco sobre a funda mata à qual as gralhas regressam diz

que coisa pode ser mais bonita que a noite (ou o ter alguém nos braços) é nisso que a arte nos pega: nesse parecer preferir (a nós) e permanecer inda que uma lua besta um lampião qualquer derrame uma luzinha – ou até o breu – você vira um retrato num quadro pedregoso com penhascos e vales cheios de mandacarus & samambaias respirando e roçando o céu que ao fim baixa como um lençol anil de tristes ânsias e devolve a face vista não precisa panorama nenhum: somos só um fumando no pátio complicado do espaço admirando a arquitetura dada aos olhos e ao tempo que nem o sussurro dum “eu sei que vou te amar” surgido assim como se nada no céu cinza



e então sorrimos e então nos unimos

feito dois pirilampos deixando brilhar a luz por sobre o rio

Antes tinha por ti todo o meu tédio, hoje é firme a aflição e este desejo atroz Horácio via Gontijo

nada surpreende a figura dum barco não consigo escrever sobre o mundo nem tenho a capacidade de descrever de modo lírico os acontecimentos bárbaros que o compõem os linchamentos que antropologicamente compõem o território brasileiro os desastres ambientais as guerras não consigo escrever não consigo escrever os acontecimentos se estraçalham com tanta violência destroem-se em tantos pedaços que se transformam num vazio áspero em nós certas belezas se apagam no breu ou na pressa e essa incapacidade de escrever os fenômenos submete-nos à tortura e converte-nos em museu da desgraça onde habitam as formas mais domésticas da indiferença ou seja isso equivale a dizer que vamos nos purificando criando texturas puras nos destroços do mundo que martirizamos mas toda pureza implica um aspecto de desumanização é o problema permanente da pureza ressecando a vida

é preciso sempre de uma voz de que apanhe esse verso que



ela e o lance a outra de uma voz que com tantas outras teça a vida

na poesia as coisas se esparramam por excesso e não há como escrever nada por isso não consigo escrever sobre o mundo sobre essa forma real que em si mesma divergindo se repete não posso nada para além de grafar barbárie pedra amor pátria mas o grão grosso da terra a fibra nativa à pele do homem só vivem mesmo em composição de ar e vero sofrimento não consigo escrever sobre nada em verso porque não posso ensinar à origem a vida da cópia a vagar taciturno entre o talvez e o se

tudo em volta é só tristeza pedras em terra destecem como tecendo se-fossem todas tetras faces cíclicas como tecendo se-fossem sobre o céu de abril – silentes cábulas – e a mata em flor fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos um corpo sempre é feito de ciclo assimilado daquilo que fizeram com os tecidos fios de seus vazios internos: um corpo sempre é feito fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos como se tudo só tecesse as tão brancas margens do sal ou um deserto nu de nadas como tecesse tudo só um grão de areia entre as próprias verticais paisagens de morte ou elementares enigmas na dita máquina da vida fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

que o tecer não é nunca só de apenas um fio destecido fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos o que procuraste em ti ou fora de teu ser restrito e nunca se mostrou a aparição da arredia face em úmidas pétalas do negro galho tudo se acha à meia parte da via a dura palavra em pedra tecida que pela escura selva sempre em ciclos faz levar mas também é conduzida a essa selva selvagem rude e forte onde o meio andar refaz-se e não finda fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos não há fugir não há esperança tudo é mudo e tudo está deserto como no fim do voo um pássaro pro passado ao olhar decompõe as próprias asas e em círculos caindo ao profundo dum lago tecendo-se fosse muda sombra nada

Well now that’s done: and I’m glad it’s over. T.S. Eliot

posfácio por rodrigo tadeu gonçalves

Mais ainda, em diversos lugares, nos meus próprios versos vês elementos muitos comuns a muitos dos verbos, mesmo que entre os versos e verbos, é necessário admitires que são dissonantes em som e sentido. Tanto elementos podem, mudadas apenas as ordens. Mas os que são os primórdios das coisas mais ainda podem exibir, donde podem criar-se todas as coisas. (DRN, I, 823-9) Pois já vês, a partir do que pouco antes eu disse, que é de grande importância saber desses mesmos primórdios com quais outros, em quais posições eles sejam dispostos, quais movimentos entre si recebem-se e dão-se e que os mesmos entre si um pouco mudados geram o ígneo e o lígneo? Assim as próprias as palavras quando entre si têm alguns elementos mudados apenas, lígneo e ígneo distinguem-se quando um som alteramos. (DRN, I, 907-14)



E, mais ainda, por todo lugar nesses próprios meus versos, muitos elementos comuns vês a muitas palavras, inda que seja mister confessar que, entre si, as palavras e os versos consistam de elementos diversos; não que, em comum, poucas letras percorram-nos, ou que, nenhuma das palavras se faça com letras iguais entre si, mas não é comum que se façam idênticas com mesmas letras. (DRN, II, 688-94)

O poeta romano Lucrécio, em seu materialismo radical, recuperando o atomismo de Demócrito, Leucipo e, em especial, Epicuro, reformula poeticamente diversas ideias filosóficas da Grécia antiga, quase sempre lamentando-se

com a língua na bochecha por conta da pobreza da sua própria língua (a mesma egestas que me obriga a decalcar tongue in cheek em vez de “piscadela”, algo feioso). O longo poema épicodidático De Rerum Natura, que não poucos traduziram como Sobre o universo ou Sobre a natureza, apresenta-nos tantas ideias radicalmente subversivas que até hoje pode ser usado como antídoto a ideias obscuras como medo da morte, pavor dos deuses, submissão aos fados, ao determinismo, à superstição, à religião. As ideias da física de Epicuro/Lucrécio tomam forma de poesia em DRN de uma forma profundamente simples: tudo é feito de átomos minúsculos, eternos, aos quais se opõem apenas os vazios. Átomos e vazio, em uma dança poética multiforme, geram todas as coisas. Nada, portanto, vem do nada, nem, uma vez destruído, volta ao nada. Ao morrermos, nossos corpos, almas e espíritos (anima atque animum/anim-ânimo) dissolvem-se em seus corpos primevos originais, em suas sementes primitivas, em seus primórdios, em seus elementos (inúmeros são em Lucrécio, também, os modos de evitar usar o termo grego átomoi). E o mesmo ocorre com todas as coisas. Juntei aqui as quatro ocasiões em que o atomismo de Lucrécio é visto de forma análoga ao processo a partir do qual os elementos da linguagem, também eternos e indestrutíveis (as letras, os sons, os fonemas, em seus inventários fechados) geram infinitas palavras, expressões, frases, textos. Como na Biblioteca de Babel de Borges ou como no teorema do macaco infinito, não há como provar que, em algum dos infinitos universos possíveis já previstos pela cosmologia lucreciana, outra pessoa (ou macaco em uma máquina de escrever) não acabará por escrever novamente,

reescrever, citar, parafrasear, plagiar, este exato mesmo texto. Como não há como provar que eu mesmo não esteja plagiando algum macaco ancestral. Assim procede Sergio Maciel neste seu belo volume de estreia (Adelaide Ivánova revolta-se, e faço coro: ele é de 1992!). As referências são inúmeras. Cabe a nós decifrá-las. Citações diretas, recontextualizações, alusões, intertextualidades, remendos, arremedos, mosaicos, reordenações aleatórias de passagens conhecidas ou desconhecidas se produzem de forma desconcertante e atordoante. Eu mesmo sou ali plagiado com descaramento, para meu grande prazer. Mas não fui exatamente eu o plagiado, pois se trata de passagem minha vertendo/redizendo/ reescrevendo Catulo. Assim, se um único primórdio/átomo pode fazer a diferença entre fogo e lenha (ignis e lignum, DRN I 912, 914), uma única letra faz a diferença entre lígneo e ígneo. Como se as letras produzissem as chamas (e quem dirá que não?), como no ardor poético somatizado ou no auto-da-fé. Sergio reescreve Drummond, Sêneca, João Cabral, CatuloJoão Angelo Oliva Neto, Catulo-eu, Safo-Guilherme Flores, Ricardo Domeneck, Antonio Candido, Simônides, Anne Carson, e (muitos) outros. Mas não se trata apenas de malabarismo com elementos da linguagem. A desestabilização a que são forçados os contextos de partida por Maciel operam rasgos lancinantes nas sensibilidades. Num mundo steineriano pós-tragédia, como voltar a sentir? Num mundo em que a imagem compartilhada aos bilhões nos obriga a ver o menino que dorme com ondas batendo em seu rosto, como é que e o que é que se pode sentir? Dessacralizamos a tragédia

greco-humana, sofisticamos nossos mecanismos de lidar com desgraças. Precisamos de açoites poéticos como os de Sergio Maciel (“mãe não acordem quem / longe de casa sobre a areia / morre”, “eu li tanta coisa e tudo isso fede à paz”) ou os de Guilherme Gontijo Flores em suas Troiades – remix para o próximo milênio (“A morte é a primeira / a fugir dos desgraçados”). Se já não for clichê reafirmar a etimolóbvia origem de texto – de texo, -ere, -ui, -tus, “tecer” –, deixo o próprio Sergio nos apresentar sua variação sobre o tema (sendo lucreciano, cabralino, sem saber, sabendo):



como se tudo só tecesse as tão brancas margens do sal ou um deserto nu de nadas como tecesse tudo só um grão de areia entre as próprias verticais paisagens de morte ou elementares enigmas na dita máquina da vida

Como acusá-lo de falta de inspiração, quando um mosaico vertiginoso de referências dança no ar como os grãos de poeira de Lucrécio vistos em um facho de luz? Como acusar o arquiteto quase-surrealista que ajuda a tirar do universo brega as colunas greco-romanas e as inscreve em sua recepção mais afinada com a poética sincrônica? Como não respeitar aqueles que percebem, como Terêncio já percebera ao reclamar em um prólogo de uma de suas

peças, no século II a.C., que tudo já foi dito? Ao invés de paralisia, criação – como etimológica eleição, como (re) criação, recreação, como diversão poético-tradutória: dou-me por satisfeito – pilhei Gontijo Flores.

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